A história não nos ensina nada, já que somos nós que, aprendendo com ela, ensinamos a nós mesmos. A historicidade, a história, somos nós. Somos nós os professores e os discípulos nesta escola que é o nosso planeta.
Agnes Heller
Considerações iniciais e aspectos conceituais
O Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE)2, vinculado ao Centro de Inovação Tecnológica e Educação Inclusiva (CITEI) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), tem discutido, desde a sua criação em 2009, as diferentes dimensões sobre as políticas de educação inclusiva nas redes de ensino, a escolarização de pessoas com deficiência intelectual e deficiência múltipla, assim como tem se dedicado a analisar as redes de suporte educacional para efetivar o processo educacional dessa população em turmas comuns de ensino. Outro aspecto que tem abordado é a discussão e a compreensão da Educação Especial a partir dessas políticas em uma perspectiva histórica.
Nesse sentido, compreendemos, como abordado por Pletsch (2020), que a Educação Especial é uma modalidade de ensino transversal que perpassa todos os níveis, as etapas e as modalidades educacionais, que realiza o Atendimento Educacional Especializado (AEE), disponibiliza recursos e serviços específicos e orienta quanto a sua utilização nos processos de ensino e de aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular (BRASIL, 2008). Temos também defendido que a Educação Especial é uma área de produção de conhecimento que integra a área da Educação.
Tomando essa perspectiva como pano de fundo, um conjunto de pesquisas evidencia a consolidação da Educação Especial como campo de pesquisa, o que foi importante e determinante para que área se tornasse um campo de ampliação da Pós-Graduação no país e de criação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) em 1976, já com um Grupo de Trabalho em Educação Especial (GT15), e também com a fundação da Revista Brasileira de Educação Especial (RBEE) e da Associação de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) em 1992 e 1993, respectivamente. A partir de então, a produção científica cresceu e vem se consolidando em termos nacionais e internacionais, focando as mudanças epistemológicas, políticas e sociais que marcam o campo acadêmico da Educação Especial, como tão bem discutido por Casagrande e Mainardes (2021) e Casagrande (2021). Os autores defendem que a constituição do campo acadêmico da Educação Especial teve como antecedentes a formação para atuação nessa área nos anos de 1950 e a criação do curso de formação de professores de Educação Especial na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1962, e, mais tarde, a institucionalização política da Educação Especial na primeira metade da década de 1970. A partir de Casagrande e Mainardes (2021, p. 121), compreendemos que o campo acadêmico da Educação Especial é “[...] um espaço onde ocorrem práticas sociais distintas, relacionadas à produção e à circulação de bens acadêmicos, o que envolve sobretudo a ideia de Universidade”. Nesse viés, como abordado pelos autores, a especialização de saberes, a atuação e o papel de diferentes personagens sociais e políticos, bem como as instituições, acabam contribuindo para compreendermos o processo e a institucionalização de um campo.
A discussão sobre a constituição do campo da Educação Especial também foi realizada por Bueno e Souza (2018) ao analisarem a contribuição da RBEE. Com base no referencial teórico dos estudos de Pierre Bourdieu, os autores defendem que o campo da Educação Especial é um “[...] campo de conhecimento dotado de forças que o movimentam e que tanto sua constituição quanto do sujeito designado como seu público instituem-se na dinâmica contraditória da própria história e desenvolvimento social” (BUENO; SOUZA, 2018, p. 34).
O reconhecimento da Educação Especial como campo de produção científica somente foi possível a partir de iniciativas de sua institucionalização no país, em meados da década de 1970, a partir de ações pactuadas nos Acordos do Ministério da Educação (MEC) e da United States Agency for International Development (USAID)3, durante o regime militar de 1964 a 1985 (SOUZA; PLETSCH; BATISTA, 2019), com a criação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp). Diversos autores já se dedicaram ao estudo histórico da Educação Especial e sua constituição como política e modalidade de ensino, assim como a influência das diretrizes políticas internacionais propagadas pelas organizações especializadas do Sistema das Nações Unidas (ONU) e pelo Banco Mundial (BM) na configuração das políticas educacionais no Brasil ao longo dos tempos (BEZERRA, 2017; CARDOSO, 2018; JANNUZZI, 2004; KASSAR, 2011, 2013; MENDES, 2010; RAFANTE, 2011; SIEMS, 2016; SOUZA; PLETSCH, 2017; SOUZA; PLETSCH; BATISTA, 2019).
Neste artigo, nosso objetivo é apresentar e discutir o papel de Sarah Couto Cesar, primeira diretora-geral do Cenesp, e de Olívia da Silva Pereira assessora do órgão, na constituição da Educação Especial brasileira. O foco é compreendermos a participação e a influência dessas profissionais na história da Educação Especial brasileira. Para tal, com base em dados biográficos dessas personagens, apresentamos o papel desempenhado, suas redes de relacionamos e como contribuíram para a constituição da Educação Especial no Brasil. O texto integra as ações desenvolvidas no projeto de pesquisa “Portal Pioneiros da Educação Especial no Brasil: instituições, personagens e práticas”4.
Opções metodológicas para a pesquisa
Em termos metodológicos, trabalhamos, prioritariamente, com a pesquisa bibliográfica e com as entrevistas realizadas, em 2018, com Sarah Couto Cesar, em 2020, com Rosana Glat e, em 2021, com Ilza Maria Ferreira Pinto Autran. O Quadro 1 sistematiza as informações sobre as entrevistadas.
Nome e idade | Formação | Atuação | Local da entrevista e duração |
---|---|---|---|
Sarah Couto Cesar, 92 anos (in memoriam). | Pedagoga e Psicóloga, com Mestrado em Educação. | Diretora do Cenesp e presidenta Emérita da Sociedade Pestalozzi. | Residência da depoente, cerca de duas horas. |
Ilza Maria Ferreira Pinto Autran, 75 anos. | Psicóloga, Mestrado e Doutorado em Educação. | Professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). | Online pela plataforma Zoom, cerca de duas horas. |
Rosana Glat, 68 anos. | Psicóloga, Mestrado e Doutorado em Psicologia. | Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). | Online pela plataforma Zoom, cerca de duas horas. |
Fonte: Elaborado pelas autoras para fins de pesquisa.
Em decorrência da pandemia mundial provocada pelo novo “coronavírus” (SARS-CoV-2), declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, as entrevistas com as Professoras Ilza Maria Ferreira Pinto Autran e Rosana Glat foram online, via plataforma Zoom.
As entrevistas foram desenvolvidas a partir da metodologia da história oral, que propicia o registro de informações a partir das memórias daqueles que vivenciaram os fatos passados. Segundo Ferreira e Amado (2006), a história oral, como metodologia, estabelece e ordena procedimentos de trabalho, tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e suas desvantagens, as diferentes maneiras do pesquisador de relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho. Entendemos que conhecer as histórias vividas e as experiências deixadas podem contribuir para a compreensão da constituição da Educação Especial como modalidade de ensino e como campo acadêmico que produz ciência sobre diferentes temas que envolvem a deficiência, os transtornos do espectro do autismo (TEA) e as altas habilidades/superdotação.
Com base em Manzini (2020), a entrevista é utilizada como “procedimento para coleta de informações”. Com a entrevista semiestruturada, a partir do roteiro com perguntas, obtivemos informações a respeito da formação e da trajetória profissional de Sarah Couto Cesar e de Olívia da Silva Pereira. As entrevistadas (Ilza Maria Ferreira Pinto Autran e Rosana Glat) foram selecionadas por terem convivido pessoalmente com Olívia da Silva Pereira e por suas respectivas trajetórias na história da Educação Especial brasileira. Os áudios foram transcritos de forma literal pelas próprias pesquisadoras que efetuaram as entrevistas.
A pesquisa bibliográfica, da mesma forma, serviu de procedimento para a obtenção das informações, no sentido de que o acesso às referências contribuiu para darmos conta do acesso a dados relativos aos participantes deste estudo. Nesse caso, tomamos como base Gil (2002, p. 45), ao afirmar que “[...] a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”.
A partir dos dados cotejados, o artigo aborda os dados biográficos focando na formação e no papel das professoras Sarah Couto Cesar e Olívia da Silva Pereira na constituição da Educação Especial no Brasil, bem como as relações e as articulações políticas delas na Educação Especial e na formação de professores na área.
Trajetórias de Sarah Couto Cesar e Olivia Pereira na Educação Especial brasileira
Os dados e a análise da literatura especializada (BATISTA, 2019; BLANCO, 2020; MAZZOTTA, 2011; ROCHA, 2017), assim como do currículo de Sarah Couto Cesar, indicam ser esta uma personalidade que atuou na estruturação da Educação Especial brasileira de forma contundente desde a década de 1950 até o seu falecimento em 2020, constituindo sua trajetória profissional como professora, psicóloga e gestora. Recentemente, Sarah Couto Cesar foi sujeito de três pesquisas desenvolvidas em nível de Pós-Graduação, fato que reafirma o seu lugar de destaque na constituição da Educação Especial no Brasil.
Rocha (2017) analisou a trajetória profissional de ex-alunas da educadora russa Helena Antipoff, de modo a identificar a influência da formação orientada pela professora na Educação Especial brasileira. Sarah Couto Cesar integrou a investigação por ter estudado com Helena Antipoff e ter trabalhado com a Educação Especial. A autora conclui que o legado da educadora russa repercutiu na trajetória profissional de suas ex-alunas e, em relação a Sarah Couto Cesar, afirma:
notamos que a ampla formação, as participações em cursos e visitas para conhecer o trabalho com as pessoas com deficiência e, por último, a atuação na universidade, são algumas das atividades desenvolvidas por Sarah ao longo da sua trajetória profissional. Sua atuação foi pautada na formação e na ação, outra herança do contato e das vivências com Helena Antipoff. A soma de toda trajetória dessa educadora se completa com as ações na gestão e promoção das pessoas com deficiência. (ROCHA, 2017, p. 147).
Batista (2019), em pesquisa realizada no âmbito do ObEE da UFRRJ, abordou a institucionalização da Educação Especial brasileira, com foco na criação do Cenesp e nas ações realizadas por esse órgão no período de 1973 a 1979. Sarah Couto Cesar contribuiu como entrevistada, tendo em vista ter sido a primeira diretora-geral do Cenesp, como já sinalizado anteriormente, e por sua atuação nas diferentes iniciativas da Educação Especial nas décadas de 1950 a 1970. Aliás, é preciso registrarmos que, no período de 2016 a 2020, Sarah Couto Cesar contribuiu com o ObEE com entrevistas, acesso ao seu acervo particular e ministrou palestra no I Seminário de História da Educação Especial: Pesquisas, Políticas e Formação de Professores, realizado em parceria entre a UFRRJ e a UERJ na disciplina “Tópicos Especiais: História, políticas e propostas metodológicas na área de História e História da Educação Especial”, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ) pela professora Márcia Denise Pletsch e pelo professor Fernando Gouveia.
Sarah Couto Cesar também foi interlocutora de Blanco (2020, p. 32) na tese que objetivou “[...] interpretar processos sociais e culturais que possibilitam identificar configurações da Educação Especial brasileira na segunda metade do século XX”. Segundo análises da autora, Sarah Couto Cesar integrava-se como personalidade da elite educacional frente à atuação que desenvolveu tanto no setor público quanto no setor privado nas questões da Educação Especial nacional.
Sarah Couto Cesar era pedagoga, formada pela Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), psicóloga pela PUC-Rio e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - mestrado concluído em 1978. Sua dissertação, intitulada Integração de educandos portadores de deficiências mentais, físicas, de visão e de audição, no sistema regular de ensino de 1º grau do município do Rio de Janeiro, objetivou investigar como ocorria a integração de tais educandos no município carioca. Foram selecionadas 20 escolas que atendiam, no mínimo, duas categorias de “excepcionalidade”. Os resultados apontaram que o processo de integração dos estudantes investigados era marcado por falta de recursos humanos e de materiais especializados, fatores que impediam a devida integração de acordo com as normas preconizadas legalmente (CESAR, 1978).
Sarah Couto Cesar nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de março de 1925. Filha do oficial do Exército Boanerges Lopes Cesar, nascido no estado da Paraíba, que, após formado, foi enviado para o Maranhão, e da dona de casa Elisa Nunes Couto Cesar. Faleceu em 8 de maio de 2020, no Rio de Janeiro, aos 95 anos, vítima do coronavírus.
A trajetória profissional de Sarah Couto Cesar na Educação Especial brasileira foi iniciada como estagiária da área de Psicologia na Sociedade Pestalozzi do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1958. Nessa instituição, ocupou diversos cargos, chegando a ser Presidente, assim como integrou a Diretoria Executiva e o Conselho de Honra da Federação Nacional das Associações Pestalozzi (Fenapestalozzi).
Nas entrevistas concedidas a Batista (2019), Sarah Couto Cesar afirmou ter conhecido Olívia da Silva Pereira na formação de Psicologia e que o estágio na Pestalozzi foi influência dela, momento em que passou a ter contato com Helena Antipoff: “Eu queria ter o registro de Psicóloga, que eu tenho, então eu fui parar na PUC-Rio, que já estava com Olívia Pereira, minha amiga. Olívia já estava fazendo o curso para o registro de Psicologia [...]” (BATISTA, 2019, p. 39). Segundo Sarah Couto Cesar:
Foi por ter conhecido Olívia Pereira é que eu fui parar na Sociedade Pestalozzi, agora sob direção de Dona Helena Antipoff, foi aí que eu me candidatei a ser estagiária de Psicologia, que para obter o diploma de psicólogo você tinha que ter um estágio e eu fui fazer o estágio na Sociedade Pestalozzi do Brasil que era no Leme, aqui em Copacabana. Que Dona Helena era a diretora na época [...]. (BATISTA, 2019, p.39-40).
Sarah Couto Cesar mencionou em entrevista que o convívio direto com Helena Antipoff, na Sociedade Pestalozzi do Brasil e na Fazenda do Rosário, foi primordial para a sua formação e trajetória profissional, o que corrobora os achados de Rocha (2017). Das experiências adquiridas nesses espaços, a pedagoga e psicóloga passou a ocupar cargos públicos, em uma constante interação e trânsito entre instituições públicas e privadas que prestavam atendimento e discutiam as questões da Educação Especial no Brasil. Sobre a trajetória de Sarah Couto Cesar na Fenapestalozzi e suas ações, Rocha (2017) aponta:
Sarah atuou na Federação desde a sua criação, promoveu cursos, eventos, capacitou técnicos, enfim, desenvolveu atividades como realizava na Sociedade Pestalozzi do Brasil, porém com um âmbito maior, visto que na Federação o público era de todo país, o que viabilizou a criação de outras Pestalozzi em outros estados brasileiros. (ROCHA, 2017, p.151-152).
Importante lembrarmos que, no cenário nacional, o atendimento das pessoas que demandavam serviços da Educação Especial contou, inicialmente, apenas com dois espaços públicos: o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) e o Instituto Benjamin Constant (IBC). Dessa forma, as instituições filantrópicas, como Pestalozzi e Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), ganharam projeção nacional como resultado dos atendimentos que prestavam em todo país, com seus representantes assumindo cargos de chefia na esfera pública e participando ativamente das decisões políticas relacionadas com a Educação Especial (BUENO, 2004; BUENO; LEHMKUHL; GOES, 2019). Nesse sentido, a trajetória de Sarah Couto Cesar é um exemplo da constituição histórica da Educação Especial brasileira.
Sarah Couto Cesar relatou que, desde 1950, realizou diversos cursos, tanto no Brasil como no exterior. O currículo de Sarah Couto Cesar apresenta formações em áreas variadas, mas todas diretamente relacionadas à Educação Especial, como: i. Especialização em testes projetivos: PMK e Rorschach, na Fundação Getúlio Vargas (1959); ii. Especialização em Educação Especial, na Sociedade Pestalozzi do Brasil (1959 a 1960); iii. Curso sobre Desenvolvimento e Comportamento da Criança e do Adolescente, participação como bolsista da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do Centro Internacional da Infância da Unesco, em Paris (1961); iv. Curso sobre Aspectos Psiquiátricos e Sociais da Epilepsia (1967); v. Curso sobre o Acompanhamento de Mães de Crianças em Tratamento Psicoterápico da Associação Brasileira de Psicologia Aplicada (1968); vi. Planejamento Educacional e Administração na Educação, ambos na UFRJ (1973).
Ainda, para Sarah Couto Cesar, os estágios e a observação em diferentes países foram importantes e compuseram sua formação: a. Estágio de Observação no Instituto Pedagógico de Sèvres, na França (1961); b. Estágio de Observação no Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genéve, na Suíça (1961); c. Estágios de Observação nos Centros Ocupacionais e Escolas Especiais, em Copenhague, na Dinamarca (1963); d. Estágios de Observação em Escolas Especiais da Bélgica e da Holanda (1964); e. Estágios de Observação em Escolas Especiais e Centros Ocupacionais do Canadá (1972); f. Estágio de Observação em Universidades e Serviços de Educação Especial nos Estados Unidos, como convidada do Departamento do Estado Americano (1975); g. Estágios de Observação em Escolas e Serviços de Educação Especial de Portugal (1981).
No ano de 1967, Sarah Couto Cesar integrou o quadro de estagiários do Serviço de Promoção da Cooperação Técnica (Astef), em Paris, na função de Técnica da Educação do Ministério da Educação e Cultura, do Instituto Benjamin Constant. Os estagiários eram profissionais das mais diversas áreas, de países da América, da Europa, da África, da Ásia e da Oceania, mais especificamente da Austrália, ocupantes de cargos importantes ou que iriam assumir tais cargos em seus países de origem. A maioria obteve bolsa de cooperação técnica do governo francês, com benefício de programa organizado pela Astef, sob forma de estágio ou de convite especial. Os cursos tinham caráter de treinamento, essencialmente práticos, com duração de seis meses, com objetivo de cooperação técnica para a disseminação de métodos, de técnicas e de empresas francesas no desenvolvimento dos países dos estagiários.
No seu relato, Sarah Couto Cesar contou-nos que atuou no Instituto Benjamin Constant, instituição criada em 1854 para atendimento de pessoas com problemas visuais, como Encarregada do Setor de Psicologia, entre 1962 e 1964, e como Chefe da Seção de Serviço Geral do Instituto Benjamin Constant, nos anos de 1964 a 1965. A esse respeito, Sarah Couto Cesar afirmou:
Depois, eu fui parar por influência do pessoal médico, dos meus parentes, eu fui parar no Instituto Benjamin Constant, onde eu trabalhei no Instituto Benjamin Constant, trabalhei justamente no consultório de Psicologia do Instituto Benjamin Constant [...].
De lá, da minha performance no Benjamin Constant é que eu fui [...] chamada para ir para a CADEME [...]. (BATISTA, 2019, p. 40).
Em 28 de setembro de 1970, Sarah Couto Cesar foi nomeada como Diretora-Executiva da Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais (Cademe), pela Portaria Nº 3.513. Quando da extinção da Cademe, em 1973, em decorrência da criação do Cenesp, passou a ser a Diretora-Geral desse órgão. No período de 1972 a 1973, Sarah Couto Cesar participou de todo o processo que culminou na concepção e na implantação do Cenesp, órgão criado pelo Decreto Nº 72.425, de 3 de julho de 1973 (BRASIL, 1973), destinado a gerir os programas e os projetos da Educação Especial em todo território brasileiro (BATISTA, 2019):
gerente do Grupo Tarefa Educação Especial (GTEE), que realizou os estudos no período de fevereiro a abril de 1972 e concluiu pela criação de um sistema de Educação Especial e reabilitação, sob a denominação de “Coordenação Nacional de Educação Especial e Reabilitação” - Coner (BRASIL, 1972);
funcionária do Departamento de Educação Complementar (DEC), integrou o Grupo-Tarefa que desenvolveu suas ações entre 1º de julho de 1972 a 28 de fevereiro de 1973, e foi responsável pela montagem do Projeto Prioritário nº 35 - Educação Especial, que resultou na criação do Cenesp (PIRES, 1974);
gerente do Grupo-Tarefa Implantação do Cenesp, criado pela Portaria Nº 215, de 20 de agosto de 1973, que tinha como objetivo geral “[...] realizar a implantação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp) e promover a extinção da Campanha Nacional de Cegos (CNEC) e da Campanha Nacional de Deficientes Mentais (Cademe)” (BRASIL, 1974, p. 5).
O cargo de diretora do Cenesp foi ocupado por Sarah Couto Cesar entre os anos de 1973 e 1979. Nesse período, foram realizadas ações para dar conta dos projetos para a Reformulação de Currículos para Educação Especial, para a Capacitação de Recursos Humanos para Educação Especial e para a Assistência Técnica e Financeira às Instituições Privadas na área da Educação Especializada (BATISTA, 2019).
Sarah Couto Cesar contou-nos com orgulho que uma das ações realizadas, nesse tempo, foi ampliar a formação de recursos humanos com o envio dos profissionais brasileiros para a formação em nível de Mestrado nos Estados Unidos, no final da década de 1970, conforme discutido de forma mais detalhadas por Souza, Batista e Pletsch (2019). Essa formação foi concretizada no George Peabody College for Teachers, por 14 profissionais, no ano de 1977 (BRASIL, 1978). A respeito desse curso de Mestrado, Sarah Couto Cesar “[...] afirmou que a capacitação de pessoal surgiu da necessidade de se prover o país com professores em nível de mestrado e doutorado, selecionados pela CAPES e com verbas fruto dos acordos MEC-USAID” (BATISTA, 2019, p. 162, grifos da autora).
Como afirmamos anteriormente, alguns dos professores formados nesse curso passaram a ocupar lugar de destaque na história da Educação Especial brasileira, ao integrarem os cursos de Pós-Graduação que foram implementados nas universidades nacionais e participarem das pesquisas e das entidades ligadas à área da Educação Especial (KASSAR, 2016; PLETSCH, 2020). Esses profissionais foram determinantes para o que Casagrande e Mainardes (2021) chamam de produção de bens acadêmicos e, por conseguinte, para a constituição do campo de pesquisa em Educação Especial.
Como professora, Sarah Couto Cesar também atuou em instituições privadas e públicas. Na Sociedade Pestalozzi do Brasil, foi docente da disciplina de Psicologia Evolutiva dos cursos de Orientação Psicopedagógica, entre 1964 e 1966. Na UFRJ, lecionou, no curso de Educação Especial da Faculdade de Educação, disciplinas nas áreas da “deficiência mental” e deficiência física, no período de 1975 a 1980. Em 1977 e 1978, na Universidade Católica de Petrópolis, foi professora dos cursos de Especialização em Problemas de Conduta realizados na Universidade Católica de Petrópolis.
Ao longo de sua trajetória, foi representante do Brasil no 2º Seminário de Educação Especial, realizado em 1963, na Dinamarca; no 2º Congresso Internacional da Associação Internacional para o Estudo Científico da Deficiência Mental, em Varsóvia, na Polônia, no ano de 1970; e no 5º Congresso Internacional da Associação Internacional para o Estudo Científico da Deficiência Mental, em Montreal, no Canadá, em 1972.
Foram ações realizadas por Sarah Couto Cesar: organização do I Seminário sobre o Preparo de Pessoal Especializado para Deficiência Mental, feito pela Cademe, no então estado da Guanabara, em 1971; e do I Seminário Regional (Nordeste) para Estudo da Educação Especial, juntamente ao III Seminário das Faculdades de Educação do Norte e Nordeste, também no ano de 1971, no Ceará; Coordenação Técnica do I Seminário sobre Superdotados realizado na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, em 1971; Membro da Comissão Organizadora do I Seminário Latino-Americano sobre Planejamento e Organização de Serviços para Deficientes Mentais em Países em Desenvolvimento, em São Paulo, em 1971; organizadora do Seminário de Educação Especial, em Manaus, em 1972; Coordenadora Técnica da 8ª Semana Nacional da Criança Excepcional, realização do MEC, em 1972; Organizadora do I Seminário sobre Planejamento da Educação Especial, ocorrido na Faculdade de Educação da UFRJ, em 1974; Coordenadora Técnica do Seminário sobre Planejamento da Integração no Atendimento aos Excepcionais, no Paraná, em 1976.
Tanto o Seminário sobre Planejamento da Educação Especial quanto o Seminário sobre Planejamento da Integração no Atendimento aos Excepcionais foram ações destinadas ao cumprimento de metas estabelecidas para atuação do Cenesp (BATISTA, 2019; SOUZA; PLETSCH; BATISTA, 2019). O primeiro foi dirigido pelo professor de Educação Especial da Universidade do Arizona, Samuel Kirk (psicólogo e administrador), para o treinamento técnico de pessoal que executariam programas de Educação Especial no Brasil. O segundo integrou o Projeto Especial Multinacional de Educação Brasil, Paraguai, Uruguai, com vistas ao cumprimento da “cooperação técnica e financeira aos sistemas estaduais de ensino” e para discutir a respeito do planejamento da Educação Especial para o contexto nacional (SILVA, 2017; BATISTA, 2019).
Importante também pontuar a rede de relações que Sarah Couto Cesar estabeleceu durante sua trajetória na Educação Especial brasileira, convivendo com agentes políticos e nomes importantes na sociedade brasileira. Exemplo disso é o caso do Ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho, com o qual Sarah afirmou trabalhar diretamente. Ao relembrar o processo de constituição do Cenesp, Sarah citou ainda outros nomes e órgãos que estiverem presentes, como: Maria Helena Novaes, Maria Luíza Bittencourt, Dulce Maciel e o Dr. Odylo5 “ele era jornalista e tinha uma penetração muito grande nos meios políticos. Porque era preciso um apoio político: sem a política você não poderia fazer nada. Era preciso que os políticos também influenciassem tanto nas casas da Câmara, no Senado”. (BANCO DE DADOS ObEE, 2019-2021).
Sarah Couto Cesar contou-nos, também, com orgulho, sobre os prêmios que recebeu: no ano de 1973, ela foi condecorada com a Ordem Nacional do Mérito Educativo, por ter se distinguido pelos “excepcionais serviços prestados à Educação” (BRASIL, 2003). Por sua vez, o Prêmio Direitos Humanos, na categoria Garantia dos Direitos das Pessoas com Deficiência, foi recebido em 2000. Em 2019, foi agraciada com o Prêmio Brasil Mais Inclusão, na categoria Mérito Darci Ribeiro - essa homenagem é oferecida anualmente pela Câmara dos Deputados do Congresso Nacional Brasileiro a “[...] empresas, União, Estados e Municípios, entidades como ONGs e Oscips ou ainda personalidades que tenham realizado ações em prol da inclusão de pessoas com deficiência ou que sejam, elas próprias, exemplos de vida e superação” (BRASIL, 2021, n.p.).
No que diz respeito à produção intelectual de Sarah Couto Cesar, foram encontradas poucas obras de sua autoria, e a análise desses trabalhos apresenta um sentido próximo de quem ocupava cargos de direção e expunha sobre as diretrizes políticas adotadas pelas autoridades brasileiras. No Quadro 2, estão listados os textos da autora.
Ano | Título | Periódico/Evento |
---|---|---|
1972 | A situação da Deficiência Mental no Brasil | Revista Brasileira de Deficiência Mental |
1975 | Atuação do CENESP na educação de excepcionais | UFRJ |
1975 | Área de ação prioritária do Ministério da Educação e da Cultura | VII Congresso Nacional da Federação Nacional das Apaes - São Paulo |
1992 | Da CADEME ao CENESP - 13 anos de conquistas na Educação Especial no Brasil | Anais do I Congresso Brasileiro sobre a Experiência Antipoffiana na Educação |
2008 | Políticas Públicas | III Encontro Nacional do ConBraSD |
Fonte: Elaborado pelas autoras para fins de pesquisa.
Como podemos depreender dos dados biográficos e dos relatos obtidos por meio de entrevistas, Sarah Couto Cesar vivenciou o percurso histórico que resultou na institucionalização da Educação Especial brasileira, desde que iniciou na Sociedade Pestalozzi do Brasil, no final da década de 1950, até a sua morte, em decorrência da Covid, em 2020. Sua trajetória profissional ultrapassou os limites impostos pela aposentadoria, continuando ativa como palestrante nos eventos de instituições filantrópicas, os quais foram recorrentes ao longo de sua carreira. Também soube estabelecer uma rede de relações que possibilitaram seu retorno ao meio acadêmico, agora como personalidade, como definido por Blanco (2020), que, a partir de suas narrativas e do seu acervo pessoal, contribuiu para estudos sobre a história da Educação Especial.
Uma outra grande pioneira da Educação Especial no Brasil, que teve ligação direta com Helena Antipoff, Sarah Couto Cesar e contribuiu para a constituição acadêmica do campo da Educação Especial, foi Olívia da Silva Pereira (1918-1995). Seu nome foi citado diversas vezes por Sarah Couto Cesar durante as entrevistas e as atividades realizadas entre 2016 e 2020 no ObEE/UFRRJ. Uma das preocupações de Sarah Couto Cesar era justamente a não existência de pesquisas que registrassem a tão relevante atuação de Olívia da Silva Pereira no processo de implantação da Educação Especial no Brasil e sua ligação direta com Helena Antipoff.
Dentre os raros documentos encontrados sobre Olívia da Silva Pereira, tivemos acesso ao artigo de Autran e Loureiro (2010), intitulado Memória da educação especial na PUC-Rio: resgatando a história. A partir desse artigo, realizamos contato com a professora Ilza Maria Ferreira Pinto Autran, uma das autoras, que nos concedeu entrevista e prontamente disponibilizou a versão original (impressa) da dissertação de Mestrado de Valéria Marques (1994), defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, sob o título A história da Educação Especial no Brasil através da história de vida da professora Olívia Pereira, uma das nossas referências básicas para o estudo sobre Olívia da Silva Pereira.
De acordo com Marques (1994), Olívia da Silva Pereira nasceu em 23 de agosto de 1918, na Rua Concórdia, Bairro São José, em Recife, Pernambuco. Filha de Manoel Praxedes Pereira e Targelia Coelho da Silva Pereira, a segunda de quatro irmãos, um mais velho e duas irmãs mais novas. Considerada “[...] desbravadora na área da educação especial, sob grande influência da professora Helena Antipoff, estabeleceu os pilares da educação especial e contribuiu para sua evolução [...] mulher inquieta, transformadora e inovadora” (MARQUES, 1994, n.p.). Olívia da Silva Pereira veio a falecer no ano de 1995, um ano depois da defesa da dissertação de Marques (1994).
Era de família de classe média e seus pais tinham preocupação com a educação dos filhos. Ela sempre estudou em escola pública, e uma curiosidade da época é que os alunos levavam as cadeiras que usavam na escola. De acordo com entrevista para Marques (1994), Olívia da Silva Pereira comentou: “Eu me lembro que as cadeiras onde eu sentava na escola que eu frequentava [...] eu levava a minha cadeira. Então todo mundo levava a sua cadeira, ficava lá e depois trazia. Quando quebrava, mudava.” (MARQUES, 1994, n.p.).
Olívia da Silva Pereira obteve seu diploma de professora em 1939. Na Escola Normal, fez também o curso ginasial. Posteriormente, ingressou no Instituto de Educação de Pernambuco e, em 1942, ao encerrar seus estudos, por ter tido boa colocação nos exames, foi convidada para a primeira escola de atendimento às crianças excepcionais, criada na Secretaria do Interior de Pernambuco, Escola Aires Gama, onde permaneceu de 30 de dezembro de 1942 até 1950 (MARQUES, 1994).
Sua ligação com a professora Helena Antipoff teve início ainda no curso normal, por conta de uma professora de didática com características inovadoras que lhe apresentou a autora. Um dado interessante que Olívia da Silva Pereira relatou na entrevista para Marques (1994) é que a referida professora foi designada pelo governo de Pernambuco para receber Helena Antipoff na década de 1920, ao chegar ao Brasil. “Mesmo sem saber nesta época que trabalharia durante toda sua vida desenvolvendo projetos com Helena Antipoff, já se encantava com o que ouvia falar sobre ela” (MARQUES, 1994, n.p.). Ainda segundo a autora, Olívia da Silva Pereira conheceu o trabalho do Dr. Ulysses Pernambuco, psiquiatra, e começou a visitar, fazer cursos, trabalhar em sua equipe, que era referência na época. Teve ao seu lado a psicóloga Anita Paes Barreto, e continuaram atuando juntas em Recife, após Dr. Ulysses Pernambuco ter ficado doente e transferir-se para o Rio de Janeiro.
Na época (1942 a 1944), Olívia da Silva Pereira cursou o primeiro curso no Nordeste de Assistência Social, mas não se identificou. Em decorrência de não apresentar o trabalho final, que seria um estudo de caso, não conseguiu tal Graduação, e afirmou: “[...] eu não era muito encantada pelo serviço social não, porque eu não sei muito bem resolver problema de [...] por exemplo: comida, dinheiro [...] eu não sou muito hábil para isso não [...]. É interessante porque a minha formação é muito mais de [...] formar pessoas [...]” (MARQUES, 1994, n.p., grifos nossos).
Destacamos, em sua afirmação, a área que realmente iria abraçar intensamente em sua vida profissional, a “formação de recursos humanos”, com a finalidade principal dos profissionais para atuação na área de Educação das pessoas com deficiência. Em entrevista à Prof.a Dr.a Ilza Maria Ferreira Pinto Autran, que atuou bem próxima de Olívia da Silva Pereira na PUC-Rio, ela relatou “[...] a importância de Olívia no processo de formação de recursos humanos para a área da educação especial no Brasil” - entrevista realizada em 17 de maio de 2021 (OBEE, 2021, n.p.).
Conforme dados cotejados a partir da entrevista da Prof.a Dr.a Ilza Maria Ferreira Pinto Autran e da Prof.a Dr.a Rosana Glat, assim como de registros realizados por Marques (1994), analisamos a biografia e a atuação de Olívia da Silva Pereira. Em 1943 e 1944, ela iniciou os primeiros contatos com Helena Antipoff no Rio de Janeiro, e fez o curso com a Dr.a Myra y Lopes, organizado por Helena Antipoff. Olívia da Silva Pereira retornou em 1944 para o Rio de Janeiro, como representante de Pernambuco, agora com o propósito de fazer o curso oferecido por Helena Antipoff, no Instituto da Criança, do Ministério da Saúde. Infelizmente, o curso já estava em andamento e, por essa razão, não conseguiu cursar. Entretanto, não se deu por vencida e conversou com Helena Antipoff, que prontamente a convidou para participar de outro curso e da organização da Sociedade Pestalozzi do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1945 (MARQUES, 1994; OBEE, 2021).
Em 1945 e 1946, iniciou seus cursos, seus estágios e suas visitas sob a orientação de Helena Antipoff, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Em Belo Horizonte, também acompanhou os cursos de Psicoterapia do Menor e Método de Exploração da Dr.a Myra y Lopes, no Departamento de Ensino da Fundação Getúlio Vargas (MARQUES, 1994).
Dentre alguns estágios, em 1945, Helena Antipoff indicou Olívia da Silva Pereira e mais três pessoas para o estágio na Fazenda do Rosário, em Belo Horizonte, para conhecerem o projeto idealizado por Helena Antipoff que ali era desenvolvido. O objetivo indicado para cada estagiário era a elaboração de um plano de ação de Educação Especial. Olívia da Silva Pereira apontou como foi produtivo tal estágio, principalmente pela postura de Helena Antipoff, que respeitava a criatividade de cada estagiário, dava espaço para encaminharem sugestões e soluções dos casos. Segundo Marques (1994, n.p., grifos nossos): “Ela exigia um plano de trabalho [...]. Dona Helena era muito interessante, ela não dizia [...] a pessoa é quem tinha que arrancar da cabeça a solução. Isso eu peguei muito com ela [...]. A pessoa é quem tem que saber fazer as coisas [...] resolver as situações”.
Após o estágio, Olívia da Silva Pereira foi convidada por Helena Antipoff para colocar em prática o seu plano de ação direcionado aos adolescentes excepcionais6 da Sociedade Pestalozzi do Brasil no Rio de Janeiro. Era um convite de três ou quatro meses, mas Olívia da Silva Pereira permaneceu a vida toda nesse estado. Assim, iniciou na coordenação das oficinas pedagógicas da Sociedade Pestalozzi do Brasil sob supervisão de Helena Antipoff em 1945. Desse modo, aprofundou-se nos estudos sobre a profissionalização das pessoas com deficiência. Em 1946, também a pedido de Helena Antipoff, assumiu os cursos de Psicopedagogia e Estágios para professores com a finalidade de Especialização na área de Educação Especial, na Sociedade Pestalozzi do Brasil (MARQUES, 1994). Ainda nesse período, fez investimentos em sua formação, pois participou, em 1945, do 1º Curso de Orientação Psicopedagógica, que teve convênio com o Departamento Nacional da Criança e a Sociedade Pestalozzi do Brasil. “Experiência inédita na orientação de jovens retardados mentais e portadores de sérios distúrbios de conduta [...]” (PEREIRA, 1974, p. 4 apud MARQUES, 1994, n.p.).
Foi diplomada na Fundação Getúlio Vargas, em 31 de março de 1948, com o curso Psicoterapia do Menor e com o curso Análise Crítica dos Métodos de Exploração da Personalidade, em 15 de outubro de 1949. Em 1949, na Faculdade de Filosofia e Letras da Santa Úrsula, cursou Pedagogia. Teve oportunidade de fazer a relação teórica dos seus estudos com a sua prática ligada diretamente às exigências nos trabalhos que apresentava a Helena Antipoff (MARQUES, 1994).
No período de 1958 a 1961, iniciou sua participação em diversos cursos de Especialização para introdução da educação do excepcional em universidades como: PUC-SP; PUC-Rio; Instituto de Reabilitação de São Paulo; Instituto de Psicologia da UFRJ, assim como fez assessoramento a diversos Núcleos de Ensino Universitários, para introdução de disciplinas ligadas à psicologia da educação do excepcional. Nessa época, também colaborou com a formação da Apae de São Paulo (MARQUES, 1994). Na entrevista com a profa. Dra. Ilza Maria Ferreira Pinto Autran foi comentado a possibilidade do título de graduação de psicologia de Olívia foi conquistado pelo recurso do notório saber (ObEE, 2021).
Ingressou, em 1961, no Serviço Público no Ines, com projetos direcionados para deficiências múltiplas, pessoas com deficiência auditiva e pessoas com deficiência mental (termo usado na época). Nos anos seguintes, conforme nossos dados, mais especificamente em 1964, ano da ditadura militar no Brasil, iniciou estudos sobre a tradução e a adaptação do teste de Gunzburg’s PAC 1-2, que, em 1967, com a colaboração da Professora Luiza da Rocha Silveira, publicou uma versão final considerando as adaptações às condições socioeconômicas do Brasil.
Anos mais tarde, em 1970, transferiu sua matrícula para a Cademe para atuar como assessora e participar dos Grupos Tarefa (GT) que trabalhavam, especificamente, nos estudos e nos planejamentos para efetivação de um órgão implementador da Educação Especial, desde a montagem do Projeto Prioritário nº 35. Foi assessora para a área de “deficientes mentais” do GT - Educação Especial e assessora especializada no GT - Implantação do Cenesp, setor que, anos depois, passou a gerir como vice-diretora ao lado da diretora Sarah Couto Cesar.
Nesse período, também foi professora do departamento de Psicologia da PUC-Rio, especializada em Pedagogia Terapêutica. Lecionava a disciplina de “Psicologia do Excepcional” e trabalhou na Pestalozzi do Brasil. Segundo Autran e Loureiro (2010), Olívia da Silva Pereira foi a principal idealizadora e professora da Habilitação de Educador de Excepcionais, em 1970, do curso de Pedagogia da PUC-Rio.
Conforme Autran e Loureiro (2010), no Cenesp, a professora Olívia da Silva Pereira atuou como assessora na área de “deficiência mental” e coordenou o Projeto de Capacitação de Recursos Humanos, uma das áreas elencadas como prioritária para atuação do Centro. Tal projeto propôs a qualificação de mestres em Educação Especial na George Peabody College for Teachers, como comentado anteriormente a partir dos relatos de Sarah Couto Cesar. Ainda segundo a entrevistada, a professora Olívia da Silva Pereira foi figura importante no estabelecimento de parcerias entre o Cenesp e a PUC-Rio, por meio do Departamento de Educação, para a realização de diversos cursos de aperfeiçoamento na área da Educação Especial. Na entrevista Autran complementa: “Olívia foi importantíssima, por conta de ter dado esse impulso a formação de profissionais em Educação Especial, o grande desejo dela era fazer a formação do professor, do pedagogo ou do professor em Educação Especial (ObEE, 2021, n.p.).
Outra atuação importante de Olívia da Silva Pereira era na área de superdotação, também foco de dedicação de Helena Antipoff em seus últimos anos de vida. Em 1971, participou do Seminário sobre Superdotados, na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. A finalidade do evento era proporcionar “[...] conhecimento e levantamento, dentro da realidade brasileira, da problemática do superdotado nos aspectos de conceituação e programas de atendimento, visando a um planejamento pelo MEC através de sugestões e medidas propostas por especialistas” (BRASIL, 1971, p. 5).
Diferentemente de Sarah Couto Cesar, Olívia da Silva Pereira atuou fortemente na pesquisa e publicou diversos artigos e capítulos no campo da Educação Especial, assim como organizou e publicou livros. Também participou de projetos de pesquisa internacionais e nacionais. Dentre os bens acadêmicos, destacamos o livro Integração do excepcional na força de trabalho (PEREIRA, 1977) e a participação da equipe que integrou o Projeto Especial Multinacional de Educação Brasil, Paraguai, Uruguai, desenvolvido por meio do acordo entre o MEC e a Organização dos Estados Americanos (OEA), na década de 1970.
A profissionalização de pessoas com deficiência - em particular de pessoas com deficiência intelectual, que são a maioria das matrículas do público da Educação Especial na Educação Básica -, e a sua integração no mercado de trabalho ainda hoje têm se constituído como um deságio (REDIG, 2016). Olívia da Silva Pereira, em Integração do excepcional na força de trabalho, apresenta um conjunto de diretrizes para o desenvolvimento de ações voltadas ao preparo profissional do “excepcional” e sua integração na força competitiva ou protetiva do trabalho. Na obra, traz fundamentos filosóficos, retrospectiva histórica de documentos oficiais internacionais e de movimentos ocorridos no Brasil, assim como fatores que influenciaram na defesa pela preparação excepcional para o trabalho (psicológicos, sociais, tecnológicos, administrativos e legais), conceitos (habilitação e reabilitação), modelos de atendimento; exemplos de tipos de ocupação para deficientes “mentais”, físicos sensoriais (visual, auditivo) e físicos não-sensoriais; técnicas e recursos para treinamento profissional; indicações para avaliação vocacional pautada nos conceitos de elegibilidade e de grau de capacidade para execução da tarefa ou desempenho da função/emprego; relação de pesquisas realizadas no Brasil sobre a profissionalização do “excepcional”; formação de recursos humanos (BATISTA, 2019; OBEE, 2021). Em um dos capítulos de livro publicados por Olívia da Silva Pereira, em 1983, apresenta-se a origem, os aspectos históricos, filosóficos e sociais, e os fatores relacionados à implementação dos princípios de normalização e de integração, foco de debate e de pesquisas naquele momento no país.
Olívia da Silva Pereira também atuou na formação de recursos humanos, como relatado pela entrevista de Rosana Glat, na constituição do Mestrado em Educação da UERJ em 1979. Nesse programa, foi professora visitante na linha de Educação Especial, ministrando disciplina e orientando pesquisas como das professoras Rosita Edler de Carvalho e Rosana Glat. Também atuou na PUC-RJ, como sinalizado anteriormente. Foi membro de comitês científicos de referenciais nacionais no campo e orientadora de pesquisas. Rosana Glat contou-nos que Olívia da Silva Pereira tinha grande preocupação com a formação de pessoal para a Educação Especial: “Olívia era mais ligada à Universidade [...], ela fez livre docência, naquela época. Tanto que ela foi da minha banca de doutorado e essa parte de recursos humanos a Olívia desenvolveu bastante. Isso foi ideia da Olívia” (OBEE, 2021, n.p.) - referindo-se ao projeto de formação de mestres e doutores nos Estados Unidos, gerido no período de Sarah Couto Cesar à frente do Cenesp - em entrevista realizada em 2 de outubro de 2020. No Quadro 3, sistematizamos as produções científicas de Olívia da Silva Pereira.
Ano | Produção |
---|---|
1948 | Uma experiência de laboterapia nas oficinas pedagógicas da Sociedade Pestalozzi do Brasil. Boletim semestral, julho a dezembro, Sociedade Pestalozzi do Brasil, Rio de Janeiro. |
1967 | Com a colaboração da Professora Luiza da Rocha Silveira, publica uma versão final da tradução e adaptação do teste Gunzburg’s PAC 1-2. |
1970 | The adjustment of social education target to different cultural setting. Mimeo, Rio de Janeiro. |
1970 | Preparação do professor especializado. In: 1º Seminário Internacional de Educação Especial e Reabilitação do Retardado Mental. Julho a dezembro. Mãlmoe, Suécia. |
1974 | Memorial pessoal. Rio de Janeiro. |
1979 | Organização das Oficinas Pedagógicas. Curso de Oficinas Pedagógicas. Mimeo. Sociedade Pestalozzi do Brasil. UERJ, Rio de Janeiro. |
1977 | Integração do excepcional na força de trabalho. |
1978 | Dissertação: Avaliação de treinamento profissional do adolescente retardado mental adotado pelas oficinas pedagógicas da Sociedade Pestalozzi do Brasil. |
1978 a 1994 | 13 produções de artigos e textos diversos publicados na Revistas da Pestalozzi. |
1980 | Educação Especial: atuais desafios. Interamericana. Rio de Janeiro. |
1981 | Tecnologia aplicada à educação especial. Área de atendimento ao deficiente mental. Revista Tecnologia Educacional. Associação Brasileira de Tecnologia Educacional (ABT), julho/agosto, nº 41, ano X. |
1982 | Da filosofia à ação na obra de Helena Antipoff. XII Encontro da Federação Nacional da Sociedade Pestalozzi. Outubro, Recife. |
1983 | Capítulo: Princípios de normalização e de Integração na educação dos Excepcionais”, do livro Educação Especial - atuais desafios. |
1990 | Estado atual da educação especial no Brasil. Reunion Internacional para el estudio científico del retraso mental. Homenaje a Mª Soriano por 63 años de investigation del retraso mental. De 28 a 31/05/1990. Aisla, Santigo de Compostela. |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Marques (1994) e ObEE (2021).
Assim como Sarah Couto Cesar, a professora Olívia da Silva Pereira também integrou o quadro da Pestalozzi, instituição na qual, dentre outras ações, escreveu textos para a Revista Pestalozzi, com abordagens e temáticas variadas, como contribuições de Helena Antipoff, oficinas pedagógicas protegidas, conceito de “retardo mental” (termo da época), resumo de anais de congressos, seminários, dentre outras temáticas.
Para finalizar
Ao longo deste artigo, os dados evidenciam as contribuições e as importâncias de Sarah Couto Cesar Couto Cesar e de Olívia da Silva Pereira na constituição da Educação Especial no Brasil. A atuação de Olívia da Silva Pereira abarcou diferentes frentes, como a formação de recursos humanos, a participação em projetos de pesquisa, a escrita de artigos e a gestão pública da Educação Especial. Já Sarah Couto Cesar dedicou-se mais aos projetos institucionais, por meio da gestão do Cenesp e da elaboração de diretrizes políticas. Ambas foram responsáveis pela formação de recursos humanos qualificados em nível de Pós-Graduação, por meio de parcerias com os Estados Unidos, necessários para formar professores no Brasil e, mais tarde, para constituir o campo acadêmico da Educação Especial. Por tudo que realizaram, a pesquisa realizada permite inferir que deixaram um legado importante na constituição da Educação Especial brasileira como política pública na educação.
A relação de Sarah Couto Cesar e de Olívia da Silva Pereira com diferentes agentes políticos da época e com instituições filantrópicas privadas foi importante naquele contexto histórico, sobretudo para fortalecer e fazer avançar projetos de Educação Especial no país. Todavia, essa relação acabou, de certa forma, interferindo nas disputas, ainda hoje prementes no Brasil, sobre o lócus de escolarização de pessoas com deficiência. Em que pesem os avanços legais pró-inclusão desde a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), como a Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 2008), a Lei Brasileira de Inclusão - Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), e o Plano Nacional de Educação (PNE), em vigência por meio da Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (BRASIL, 2014), continua-se usando o termo “preferencialmente” no que se refere à matrícula da população com alguma deficiência na escola comum. A disputa entre o sistema público e privado-filantrópico na escolarização de pessoas com deficiência é constitutivo da história da Educação Especial brasileira (LAPLANE; CAIADO; KASSAR, 2016; PEREIRA; PLETSCH, 2021).
No que diz respeito à formação de professores, a privatização é evidente. Dados de pesquisa apresentada no GT-15 de Educação Especial na 40ª Reunião Anual da ANPEd evidenciam que existem 272 cursos de Licenciaturas em Educação Especial registrados no MEC, dos quais apenas dois são oferecidos por universidades públicas (0,7% do total). A primazia do setor privado repete-se na formação continuada, em que 95,3% dos 633 cursos de Especialização em Educação Especial são oferecidos por instituições privadas (SIEMS et al., 2021).
Ao longo do texto, identificamos a importância das duas personagens retratadas. Muitos dos desafios enfrentados por Sarah Couto Cesar e por Olívia da Silva Pereira em seu tempo ainda hoje não foram plenamente superados, no que se refere aos direitos educacionais e sociais de pessoas com deficiências, TEA e altas habilidades/superdotação. Atualmente, temos um conjunto enorme de crianças e de jovens com deficiências fora da escola, sem acesso a programas de profissionalização e sem garantia de suporte educacional especializado do AEE em salas de recursos, como previsto na legislação brasileira como um direito desses estudantes (BRASIL, 2009). Dessa população de 1,251 milhão de matrículas na Educação Básica, somente 38,7% tem acesso ao AEE. Importante dizermos que, desse total, 1,1 milhão de matrículas estão em turmas comuns do ensino regular e 160 mil em espaços segregados privados, conforme dados do Educacenso7.
Conhecermos a história da Educação Especial é urgente e necessário, principalmente neste momento em que tem crescido, no Brasil e em outros países, a violação dos direitos humanos e da democracia. Nesse sentido, defendermos os direitos educacionais da população com deficiência, TEA e altas habilidades/superdotação em uma perspectiva inclusiva, tendo como horizonte a justiça social, é também uma forma de defendermos a democratização da vida social e o reconhecimento das diferenças como constitutivas da humanidade.