Introdução
Houve um tempo em que a escola primária brasileira teve em sua organização curricular uma matéria escolar designada por Trabalhos Manuais4 e tal configuração não se caracterizou como uma particularidade do Brasil, pelo contrário, tratou-se de um importante movimento educacional de âmbito internacional com diferentes finalidades. A dinâmica de criação, expansão, apogeu e declínio da matéria Trabalhos Manuais possibilita melhor compreender as conexões, presentes nos programas atuais da educação básica, entre diferentes trabalhos manuais propostos aos alunos em articulação com o processo de ensino de saberes geométricos.
Os estudos e as pesquisas históricas sobre a matéria de Trabalhos Manuais no Brasil são poucos. Revisão bibliográfica realizada por Frizzarini (2018) apontou duas dissertações de mestrado Martins-Salandim (2007) e Santos (2012) e duas teses de doutorado desenvolvidas sobre a temática Fonseca (2010) e Oliveira (2012). Em 2019, outras duas teses passaram a compor o rol de estudos, Conceição (2019) e Camara (2019). De todo modo, a temática de investigação sobre articulações entre o ensino de saberes geométricos, trabalhos manuais escolares e circulação internacional de propostas para o ensino de geometria esteve presente em dois projetos de pesquisa brasileiros5. No presente artigo, as teses de Frizzarini (2018) e Conceição (2019), produzidas no âmbito dos respectivos projetos, conduzem e sustentam a problemática, as análises e as conclusões, ora expostas.
O objetivo do estudo em questão é analisar processos de apropriação e objetivação de saberes escolares, especificamente os trabalhos manuais articulados aos saberes geométricos, postos em circulação a partir de contextos internacionais. Como procedimentos teórico-metodológicos seguem-se as etapas de investigação, amparadas em Valente (2020): (i) recompilação de experiências docentes, etapa que reuniu os resultados de pesquisas e informações coletadas de documentos históricos, ligados ao ofício docente envolvendo os trabalhos manuais. Com uma coleção formada, passa-se para (ii) uma análise comparativa dos conhecimentos docentes - aqui refinou-se a coleção e procurou-se realizar uma análise dos conhecimentos colocados em circulação e suas interseções advindas tanto de resultados de pesquisas, quanto das fontes históricas, dessa forma, ocorreu a possibilidade de revelarmos, ao longo do tempo, tendências de assentamento de propostas e construção de consensos pedagógicos. Após isso, (iii) analisa-se a sistematização construída identificando os processos de apropriação e realizou-se a (iv) utilização dos conhecimentos como saberes ao longo do tempo, última etapa deste percurso metedológico que permite com que as informações sobre as diversas experiências docentes fossem lidas em diálogo com a base teórica como saberes, bem como o seu processo de objetivação ao longo do tempo, produzindo uma história dos trabalhos manuais e dos saberes geométricos a partir da circulação internacional.
A circulação internacional apoia-se em Matasci (2015), que considera os intercâmbios entre os diferentes países como um papel particularmente relevante na construção dos sistemas escolares modernos no século XIX, tanto na França como em outros países ocidentais. Trata-se de contextos complexos, de muitas mudanças e de intensificação de conexões entre os países do mundo no momento da primeira globalização com repercussão no domínio da vida social e na educação, estreitamente associado à construção de identidades nacionais.
Muito se discutiu sobre a propagação, transferência ou disseminação do conhecimento. Os acadêmicos costumavam partir do princípio de que o conteúdo disseminado permanecia mais ou menos igual à medida que passasse de um lugar para outro e de uma pessoa para outra. Hoje, porém, parte-se do pressuposto contrário, isto é, a ideia de que o conteúdo que chega difere em importantes aspectos daquilo que se produziu inicialmente. Ele é mediado. (BURKE, 2016, p. 68).
Desta forma, busca-se compreender como propostas e métodos de inserção dos trabalhos manuais no ensino primário, que circularam internacionalmente, foram recebidos e reelaborados no contexto brasileiro, em particular, no Rio de Janeiro, Distrito Federal na época. Acrescenta-se ao processo analítico (pautado no cotejamento de documentos) a reflexão pertinente de Valente (2019) acerca de processos de objetivação num determinado período, que resultam na constituição de saberes objetivados:
Envolvem tempo relativamente longo, situações de decantação, de estabilização, de consensos sobre determinados saberes que vão ganhando formas sistematizadas para se tornarem referência à formação de professores, em termos da constituição de matérias de ensino, de disciplinas escolares e científicas. (VALENTE, 2019, p. 17).
Pretende-se, assim, como nos convida Valente (2019), “captar” movimentos de sistematização de saberes da ação, que, no presente estudo, constituem saberes relatados de contextos estrangeiros, em processo histórico, com o intuito de sustentar uma narrativa histórica adequada e plausível.
Viajantes6 brasileiros
O final do século XIX registrou, com base na literatura da História da Educação, o envio de professores em missões ou viagens pedagógicas internacionais. As viagens pedagógicas intencionavam aproximar as políticas educacionais, bem como as práticas inovadoras e bem-sucedidas. Por conta disso, vários países se interessavam em enviar educadores com essa finalidade (MIGNOT; GONDRA, 2007).
O Brasil participou desse movimento e organizou a primeira delegação oficial republicana de docentes primários brasileiros em missão pedagógica ao exterior em 1891, que contou com Luiz Augusto dos Reis, Manoel José Pereira Frazão e Amélia Fernandes da Costa. Eles circularam por Portugal, Espanha, França, Suíça, Suécia, Inglaterra, Itália e Bélgica.
Luiz Reis, Manoel Frazão e Amélia Costa eram todos nascidos no Rio de Janeiro. Luiz Reis obteve a sua formação pela prática, dentro das escolas primárias, onde trabalhou como adjunto das escolas públicas entre os anos de 1860 e 1870, efetivando-se em 1873, considerado, no mesmo ano, habilitado para o magistério primário da Corte. Foi secretário da Comissão Executiva Permanente do Professorado e autor de artigos em periódicos. Manoel Frazão formou-se no curso superior de Matemáticas e Ciências Naturais pela Academia Militar do Rio de Janeiro. Foi redator de periódicos e autor de obras didáticas, todas aprovadas para uso nas escolas primárias. Criou manifestos, foi membro do Conselho de Instrução Pública da Corte e responsável pela escrita do Programa de Trabalho Manuais do Rio de Janeiro de 1890. Finalmente, Amélia Costa, formou-se pela Escola Normal da Corte, exerceu o cargo de adjunta das escolas públicas primárias em 1855 e foi efetivada para o magistério primário em 1877, autora de várias obras, distribuídas e aprovadas para utilização das escolas primárias e amplamente divulgadas nos jornais da época (CONCEIÇÃO, 2019).
Os viajantes da comissão ao exterior constituem um perfil de docentes ativos e participantes do contexto em que estavam inseridos. Por intermédio da imprensa, dos conselhos oficiais ou de classe, dos jornais, das revistas pedagógicas, na produção de livros e relatórios oficiais, eles não somente contribuíram para o debate sobre Educação, mas também, e principalmente, disputavam entre si ideias e propostas sobre o tema.
Trabalhos Manuais no exterior - Apropriações e representações dos viajantes
Frazão, Luiz Reis e Amélia Costa destacaram os trabalhos manuais, em seus registros de viagem, como elemento relevante na formação dos alunos do curso primário e, consequentemente, apontaram a necessidade de formar professores para o exercício de tal docência. No entanto, neste cenário, o relatório de Frazão (1893) ganhou destaque por ele ter sido o único professor brasileiro que realizou dois cursos de verão, em 1891, no centro europeu de formação de professores para os Trabalhos Manuais, a famosa Escola de Trabalhos Manuais da Suécia, a Escola (Seminário) de Nääs ou ainda Slodjlarareseminarium, devido ao ensino dos métodos de Slodj7, termo usado pelos suecos para designar o trabalho manual educativo.
A circulação e trocas de saberes, as experiências e as referências internacionais de formação nos Trabalhos Manuais podem ser evidenciadas em seu relatório. A Escola de Nääs era “sem contestação, o berço do trabalho manual educativo, se não quisermos considerá-lo desde Froebel8. Foi na Suécia que ele se propagou mais rapidamente” (FRAZÃO, 1893, p. 416). O viajante brasileiro identificou a presença de professores de diferentes países9 na Escola de Nääs.
Para o ensino primário, os trabalhos manuais presentes na formação de professores da Escola de Nääs seguiam a proposta de Froebel, iniciada nos jardins de infância e prosseguindo na escola primária, até o Slodj. Manoel Frazão, Luiz Reis e Amélia Costa apontaram em seus relatórios a presença do ensino froebeliano na Bélgica, na Suécia, na França, na Espanha e na Itália.
Na França, país citado por Reis (1892), os Trabalhos Manuais ganharam destaque especial. O professor brasileiro, a partir da experiência ali observada, apontou o programa de Trabalho Manual Masculino10, proposto na França em que se identifica a “modelação froebeliana” nos três primeiros anos da escola primária. Para os 1.o e 2.o anos, o programa pede para construir formas espaciais como esfera, cubo, cilindro e prisma, assim como formas planas, por exemplo, quadrado e retângulo. Sugere também construir objetos que tenham as respectivas formas, como bolas, garrafas, dados, ponte e janela. Propõe uso de dobraduras e recortes com tesoura. No 3o ano, indica a cartonagem, trabalhos com tesoura e, uso do esquadro para traçar e cortar linhas retas e ângulos retos. Colagem das peças em papel de cor e harmonizar as formas e os tons. Observa-se, assim, a estreita ligação das atividades propostas na matéria Trabalhos Manuais com os conceitos iniciais do ensino de geometria, em particular a identificação das semelhanças e diferenças entre as formas geométricas, sejam elas espaciais ou planas.
A pedagogia de Froebel (ou ainda pedagogia do brinquedo) defende a ideia de que as crianças são naturalmente inocentes e boas. Apoia-se fortemente nos brinquedos denominados por dons, instrumentos que serviam para educar as crianças:
O primeiro dom era uma caixinha, com seis bolas - três de cores primárias e três de cores secundárias -, que servia para dar à criança ideias de forma, posição, movimento, direção, cor, peso, densidade e volume. O segundo dom era formado por uma coleção de sólidos geométricos - uma esfera, um cubo, um cilindro - que introduziam a análise e comparação das formas. O terceiro, o quarto, o quinto e o sexto dom eram cubos de madeira divididos gradualmente e de diversos modos, destinados a satisfazer o desejo natural da criança de conhecer o interior das coisas, de ver o que está dentro. (CHAMON, 2005, p. 261).
Os brinquedos de Froebel são objetos compostos por formas geométricas espaciais, para serem tocadas, observadas e exploradas, propostos inicialmente aos jardins de infância, mas que também adentram ao curso primário. Particularmente, o segundo dom apresenta três sólidos especiais, com o objetivo de comparar as diferentes formas entre eles: a esfera com a superfície toda curva, o cilindro com duas faces planas e uma superfície curva e o cubo com todas as faces planas.
O método froebeliano já circulava pelo Brasil desde a segunda metade do século XIX, principalmente a partir da década de 1870. Joaquim José Menezes Vieira11 criou o primeiro Jardim de Infância no Rio de Janeiro, em 1875, e a seguir publicou o Manual para os jardins de infância, compilação das ideias de Froebel e Mme. Pape-Carpantier, em 1882. O livro apresenta detalhadamente os dons propostos por Froebel, a sua proposição e os exercícios que o professor deveria fazer com cada um dos brinquedos e, na sequência, expõe as propostas de trabalhos manuais propriamente, como modelagem, trabalhos com ervilhas e pauzinhos, tecelagem, dobraduras, entrelaçamento, recortes, bordados, varetas articuladas, trabalho com papelão e desenhos. Pode-se dizer que o manual é um roteiro de aula para os professores.
Outro método retratado nos relatórios dos viajantes sobre a experiência observada na Bélgica é o Método Boogaerts, estudado por Frazão no curso realizado na Escola de Nääs:
Para os trabalhos de papel, o intelligente e laborioso professor Boogaerts encontrou o meio de, tendo por base os principios mathematicos, fazer-se um numero incalculavel de exercicios e construir mil objectos differentes, que não somente desenvolvem a habilidade manual do alumno, como tambem a sua imaginação, contribuem para a cultura esthetica e são um auxiliar poderoso para o estudo da geometria. (REIS, 1892, p. 517).
Segundo Reis, o método Boogaerts é uma continuação no ensino primário da proposta froebeliana do programa educativo dos jardins de infância, tendo os trabalhos manuais como um trabalho pedagógico para o ensino de geometria. Trata-se de uma série de exercícios metódicos de trabalhos manuais, diretamente atrelado à geometria, de forma que Boogaerts procura ser
[...] sempre fiel aos principios do grande pedagogo [Froebel]. Toda a geometria é applicada nos trabalhos em papel. Esta sciencia penetra no espirito das creanças por exercicios dos dedos e da vista e as prepara admiravelmente pelo verdadeiro caminho do desenvolvimento phisico (do concreto para o abstrato), para a concepçao das verdades do dominio das mathematicas. (REIS, 1892, p. 518-519).
O método utiliza-se somente de papel, com as atividades de dobradura, corte, colagem, modelagem feitos unicamente à mão. O fazer manual é o motor que parte do concreto para possibilitar a compreensão da abstração matemática.
Pelos relatos de Reis, pode-se perceber a similaridade do método com o de Froebel, em relação ao uso de dobraduras para construir formas geométricas planas e espaciais, de modo que as crianças possam manipulá-las. Destaque-se também a importância de atrelar a confecção e a manipulação das formas, cores e combinações que proporcionem decorações belas e estéticas. O método ressalta como ponto significativo a não necessidade do uso de utensílios para construção de figuras, como esquadros, compassos, a fim de se filiar ao fazer lúdico e evitar o uso de instrumentos para o início do ensino de geometria.
Sobre o Slodj, Conceição (2019) enfatiza que a articulação direta entre o desenho e a geometria era importante, pois possibilitava uma maneira de aliar ao ensino atividades de caráter prático, também proposta pelo método Boogaerts, pois
[...] elles formam a base de methodo de desenho ao natural tanto melhor que a creança conhece perfeitamente o modelo, visto que por si mesma o constroe e que as difficuldades são apresentadas desde os elementos mais simples até os mais complicados. (REIS, 1892, p. 523).
Amélia também reitera que “a licção é dada no quadro e o professor executará o exercício ao mesmo tempo que seus alumnos, os quais mais facilmente comprehenderão as explicações, tendo a sua vista o próprio modelo” (COSTA, 1891, p. 146). Pelo Slodj, a educação do corpo, dos sentidos e da atenção era evidenciada e promovida, sempre articulada com o desenho, de forma que nenhum objeto era construído antes de ser desenhado, esboçado, analisado, visualizado.
Os suecos chamam Slodj o trabalho manual, que, não tendo caracter de officio, exige, todavia, certa dextreza de mãos. As outras liínguas não possuem palavra que possa exprimir com precisão essa idéa. Recorrem a locuções, mais ou menos extensas. Em consequencia, tem sido a palavra Slodj aceita em diversos paizes. Não seria, portanto, grande desacerto empregá-la em vez da expressão trabalho manual, que não tem uma significação precisa, pois significa tudo quanto se faz com as mãos, com, ou sem caracter de officio. [...] Todo o processo pedagogico deve ser dirigido do concreto para o abstracto. (FRAZÃO, 1893, p. 354).
Assim sendo, o foco das atividades manuais estava diretamente ligado à escolha dos modelos, que deveriam ser variáveis e adaptáveis, em dificuldade crescente e progressiva, sem formalização, do concreto para o abstrato. O desenho sem utilização de instrumentos era considerado etapa importante para expressar a visualização, o pensamento e as intenções dos alunos na observação e na prática, buscando inspirar a destreza das mãos, principalmente em papel, em cartão, obedecendo à máxima, segundo a qual aquilo que o aluno percebe intuitivamente, deve também fazer manualmente.
No processo de aprender com o outro, no caso, o estrangeiro, diversas recomendações e propostas para o ensino foram apropriadas e colocadas em circulação pelos docentes viajantes, em particular os métodos de Froebel, de Boogaerts e o Slodj. Há, como visto, no registro dos docentes, a intenção formal de que o ensino de geometria deveria estar intimamente articulado aos trabalhos manuais, em particular no que diz respeito às formas, seja na construção, no desenho, por intermédio da modelagem e/ou da cartonagem.
Para o ensino primário, os três métodos reiteram o lugar de atividades manuais atreladas a intuição, prática, construção sem instrumentos de formas geométricas, diretamente ligada à observação, partindo de ações concretas até ascender as abstrações matemáticas. Destaca-se também a não utilização de máquinas e/ou ferramentas. A articulação direta com o desenho constitui etapa importante, objetivando a expressão do pensamento, a visualização e as intenções da criança e também a possibilidade de aliar ao ensino atividades de caráter prático.
Em síntese, os três métodos destacados - Froebel, Boogaerts e Slodj - conceituam os trabalhos manuais como um trabalho pedagógico, de modo a sustentar o ensino de geometria. Entretanto, como nos alerta Burke (2016, p.113), o que chega a nós não é exatamente o que ocorreu no exterior, visto que
[...] seja transferência ou circulação a denominação adotada, claro que precisamos lembrar que o conhecimento recebido não é igual ao conhecimento emitido, por causa dos mal-entendidos e das adaptações deliberadas ou traduções culturais.
Desta maneira, procura-se, a seguir, compreender como tais representações postas em circulação pelos viajantes foram apropriadas no Brasil, em particular, no Rio de Janeiro.
Trabalhos Manuais no Rio de Janeiro
O final do século XIX, logo após a Proclamação da República (1889), corresponde ao momento de grandes transformações no processo educativo brasileiro. Como o Rio de Janeiro teve papel de destaque por ser a Capital Federal, torna-se, então, local de importantes debates políticos, jurídicos e educacionais. Dentre eles, uma grande reforma curricular do ensino primário e secundário, destinada ao Distrito Federal do governo provisório. Trata-se da Reforma Benjamin Constant12, a primeira lei de instrução pública do Brasil republicano, datada de 1890.
O professor viajante Manoel Frazão foi o responsável pela construção de parte do programa de 1890, referente à matéria de Trabalhos Manuais, sendo encarregado de seguir os padrões oferecidos pela conceituada Escola Normal de Nääs, na Suécia. Apesar de o contato com as propostas do exterior estarem já circulando no Rio de Janeiro, como vimos, o programa somente mencionava os trabalhos froebelianos propostos para as meninas. Ressalta-se ainda que o programa fora redigido antes de sua viagem pedagógica, ou seja, a proximidade de Frazão com os trabalhos manuais antecedeu o curso feito no referido seminário.
O programa de 1890 da Reforma pouco delimitava sobre o ensino propriamente dos trabalhos manuais, mas isso ocorria também para as demais matérias do programa. Entretanto, a Revista Pedagogica (1891), fornecia um Programa Detalhado, em que se observa que os conteúdos geométricos são enfatizados a todo o momento a partir da construção dos diferentes tipos de trabalhos manuais, conforme o excerto sobre a cartonagem:
1.° Em um cartão formar um rectangulo de 20 centímetros sobre 2 centímetros; 2.° Construcção da escala métrica; 3.° Recosto de triângulos, quadrilateros, polygonos, inclusive o dodecagono; 4.° Recorte de um círculo e semi-círculo. (PROGRAMA, 1891, p. 132).
As articulações entre os trabalhos manuais e os saberes geométricos deixam explícita a relação com o método de ensino intuitivo, da promoção de um ensino ativo, sobre as coisas, os objetos, a intuição infantil. Ou seja, suas principais finalidades para a construção escolar de modelagens, cartonagens, recortes, dobraduras, trabalhos de costura e de madeira estão na própria confecção dos trabalhos, em resposta principalmente à formação social, intelectual, moral e física dos futuros homens e mulheres. Os saberes geométricos são mobilizados como bons modelos para serem reproduzidos.
De outra parte, o exame da matéria Geometria13 no programa de 1890 sugeria uma orientação, segundo dois enfoques diferenciados, o primeiro de observação e comparação de figuras espaciais, mais familiares aos alunos, mas não de construção, como se observa em um trecho do programa de Geometria:
Conhecimento da esfera, do hemisfério e do círculo; do cone; da pirâmide triangular e do triângulo; da pirâmide quadrangular, do quadrilátero e de suas variedades; do cilindro; do prisma; do paralelipípedo, do cubo. Comparação do cone com o cilindro e exprimir a sua diferença. Das linhas retas, quebradas, curvas, mixtas e seu traçado. (RIO DE JANEIRO, 1890, n.p.).
O segundo enfoque do programa aproximava-se do caráter abstrato, da formalização dos conceitos, com identificação de propriedades e definições, ou seja, distanciava-se mais ainda de um ensino a partir da prática de trabalhos manuais. Além disso, nas normativas de Geometria não havia menção ou indicação de uso de materiais concretos e de instrumentos de construção, de realização de atividades práticas, ou de confecção de objetos usuais para o ensino dos saberes geométricos. Assim sendo, pode-se dizer que a articulação dos Trabalhos Manuais com a Geometria era estabelecida em uma via de mão única em que os elementos geométricos eram mobilizados no ensino de Trabalhos Manuais, mas o mesmo não ocorria no ensino da Geometria. Trata-se, como visto, de apropriações brasileiras diante do conhecimento de fora.
Para melhor compreender a complexa circulação e apropriação de saberes estrangeiros em terras brasileiras, e seguindo na busca por captar momentos de sistematização de saberes da ação (VALENTE, 2019), analisam-se duas obras de ampla divulgação à época, as publicações: Primeiras noções de Geometria Prática, de 1894, de Olavo Freire e Trabalhos Manuais - cartonagem escolar, de 1897, de Ezequiel Benigno Vasconcellos Junior.
Olavo Freire da Silva foi conservador do Museu Pedagogium. A função dele era zelar pela manutenção do acervo, organizar exposições e ministrar cursos para professores. Em 1894, Freire encerrou sua atuação no Pedagogium e, ao mesmo tempo, recebeu um convite para ser professor das cadeiras e aulas de Trabalho Manual da Escola Normal Livre. Ezequiel Vasconcellos Junior foi diplomado pela Escola Normal da capital, discípulo de Olavo Freire, mestre ao qual Vasconcellos Junior dedicou sua obra. Foi professor de Trabalhos Manuais na 2.a escola pública do sexo masculino da freguesia de Santa Rita, e seus trabalhos foram elogiados nas exposições de trabalhos manuais realizadas pelo Museu Pedagogium.
O livro de Olavo Freire14 se baseia em uma geometria prática pautada nos elementos da geometria com medições e objetos do cotidiano, mas sempre remetendo à construção de figuras geométricas com o uso de régua e compasso. A articulação dos saberes geométricos é fortemente vinculada com o desenho geométrico. A geometria prática é interpretada como prática de desenhar com instrumentos e não como prática de confecção de trabalhos manuais.
Observam-se alguns indícios de cartonagem na obra de Freire, quando do ensino dos poliedros, prismas e pirâmides, porém nem no corpo do livro e nem nos exercícios propostos isso é verdadeiramente evidenciado. A intenção está no conhecimento dos sólidos pela sua observação das bases, superfícies laterais, altura, ângulos, arestas, ou seja, o ensino se finda aos conceitos geométricos sem a proposição de uma atividade manual ao aluno para construção dos referidos sólidos. Em síntese, apesar da expertise de Olavo Freire como professor de Trabalhos Manuais e por trabalhar no Pedagogium, espaço de vanguarda de propostas do exterior, sua publicação sobre o ensino de saberes geométricos não exprime os trabalhos manuais como uma possibilidade de trabalho pedagógico no ensino de geometria.
Já o livro de Vasconcellos Junior tem como intuito o ensino da cartonagem, que como o próprio autor salienta, consiste na confecção de figuras planas e sólidos geométricos, de objetos úteis feitos em cartão ou papelão. Ou seja, trata-se basicamente de construção de sólidos geométricos. O manual é estruturado em duas partes, uma inicial, teórica e intitulada “Geometria - noções e definições gerais de geometria”, destinada aos professores e uma segunda, prática, com exercícios destinados aos alunos. A parte teórica é um pequeno compêndio de Geometria, com definições e a presença de construções com régua e compasso, similar à proposta de Freire, porém mais reduzida. Na parte prática dos alunos é que se encontram atividades de cartonagem, tecelagem e recorte, sendo a maioria delas propostas em papel quadriculado.
Segundo Vasconcellos Junior (1897), o manual busca propor elementos para o ensino de trabalhos manuais, tomando por base o que era desenvolvido em alguns países da Europa, especialmente na França e na Bélgica, consistindo em um ramo do ensino manual de grande importância educativa e que deveria ser executado depois dos trabalhos froebelianos. O manual de Freire não faz qualquer referência aos métodos propagados pelos viajantes, somente Vasconcellos Junior menciona os trabalhos de Froebel, sem, no entanto, comentar como eles seriam propostos e articulados com sua recomendação.
Novamente, percebe-se o vínculo das atividades propostas por Vasconcellos Junior (1897) com o ensino da geometria, porém não de maneira explícita como um método de ensino. De acordo com o autor, a relação entre os trabalhos manuais e os saberes geométricos deve acontecer simultaneamente, porém não evidencia sua interação.
Assim sendo, a análise das obras publicadas no final do século XIX, reitera a articulação em via de mão única. O que leva a crer que, os saberes geométricos eram inseridos intuitivamente nas práticas dos trabalhos manuais, enquanto a mobilização das práticas manuais para o ensino de geometria não era evidenciada de mesma maneira.
Anos depois, em 1923, uma nova normativa foi publicada acerca do ensino primário no Rio de Janeiro. A reforma ganhou o nome de Carneiro Leão, diretor geral de instrução pública à época. Neste programa, pode-se notar, uma vez mais, que os trabalhos manuais andavam no mesmo sentido que os saberes geométricos, atuando conjuntamente sobre os mesmos assuntos. Por exemplo, no primeiro ano o ensino de Geometria se pautava sobre “Conhecimento pratico e á vista dos sólidos em questão da esphera e do cubo” (RIO DE JANEIRO, 1923, p. 8) com a intenção de que os alunos possuíssem uma ideia clara de superfície curva e plana e já incitando às noções de faces, ângulos, quinas e cantos. Nesse mesmo momento, o programa de Trabalhos Manuais propunha além de trabalhos de trançagem, agulha e alinhavos, a modelagem em massa plástica exatamente da esfera e do cubo e dos objetos que se assemelhem a esses sólidos.
Além disso, ao discutir sobre o ensino dos trabalhos de costura, recorte, Slodj e trabalhos em madeira, o programa datado de 1923 apresentava inovações, ao abordar saberes geométricos de maneira explícita no seu ensino, como no programa de modelagem do 1.o ano: modelagem com massa plástica da esfera e do cubo e de objetos de forma aproximadamente esférica e cúbica.
Todavia, o mesmo não ocorria na matéria Geometria, que dispunha seus conteúdos sem propor a atividade manual, seguia indicando observação e comparação entre os sólidos, somente a partir da vista. Ou seja, tudo indica que a relação se mantinha sob uma via de mão única, em que os Trabalhos Manuais mobilizavam os saberes geométricos, mas a Geometria ainda não os incorporava em suas práticas como método. Uma vez mais, a sistematização dos saberes em ação (trabalhos manuais pela geometria) parece ser um processo longo de objetivação, em acordo com que nos aponta Valente (2019).
No programa de 1923, o Slodj era mencionado e proposto no 2.º ano da matéria de Trabalhos Manuais, de forma exclusiva aos meninos, exprimindo suas finalidades, de execução de trabalhos em madeira que tinham utilidade prática, e observando que esse tipo de ensino não poderia ser considerado como um começo de aprendizagem profissional.
Ainda, no mesmo ano de 1923, foi publicado o livro intitulado Geometria (Observação e Experiência), de Heitor Lyra da Silva15. Segundo o autor da obra, sua proposta de ensino de Geometria era considerada modernizadora e apropriada da circulação internacional de modelos pedagógicos ainda não seguidos no Brasil. Um elemento importante e relevante na proposta de Heitor Lyra associada ao seu caráter experimental era a inserção de trabalhos manuais como suporte para o ensino de geometria. A Figura 1 apresenta um exemplo da articulação proposta por Lyra, em que a partir do corte de uma pedra de sabão no formato de um paralelepípedo seja possível obter uma nova figura geométrica, os prismas triangulares.
A articulação dos trabalhos manuais e o estudo dos conceitos geométricos também está presente nos exercícios propostos pelo autor, ao propor a confecção de sólidos geométricos por meio da cartonagem com medidas delimitadas. Como salientam Silva e Leme da Silva (2019, p. 13), a proposição de atividades, envolvendo a cartonagem e a modelagem,
[...] permite a observação e o tato do sólido, de modo a identificar suas propriedades; a concretude do objeto no momento inicial da exploração das figuras é elemento importante na proposta metodológica que valoriza o sentido, as coisas e a experiência.
O livro de Heitor Lyra indicava uma mudança na articulação do ensino dos Trabalhos Manuais com os saberes geométricos, aproximando-se do que se observa nos discursos internacionais acerca do método de Boogaerts, em que a construção de elementos geométricos e sua composição são compreendidos como elementos centrais no ensino de trabalhos manuais, tendo como objetivo sustentar o ensino de geometria.
Em 1928, uma nova normativa foi promulgada e refletia a efervescência de novos debates internacionais de uma pedagogia dita escolanovista16. Como o programa não apresenta os conteúdos dispostos em cada matéria, não é possível inferir sobre as articulações acerca dos trabalhos manuais e a geometria. Entretanto, no ano de 1929 foi publicado o livro A Escola Ativa e os Trabalhos Manuais, por Corinto da Fonseca. Fonseca (1929) evidenciava, explicitamente em sua fala, estreita articulação dos saberes matemáticos com os trabalhos manuais:
A matemática é uma das matérias que maior margem oferece para os trabalhos manuais. Em qualquer trabalho manual há sempre medidas a tomar, cálculos a fazer, de sorte que há sempre nele geometria, aritmética e até álgebra a aplicar. De um modo geral, qualquer que seja a aplicação didática ocasional que tenham, os trabalhos manuais são sempre um curso de matemática aplicada, de matemática realizada. (FONSECA, 1929, p. 36, grifos nossos).
O manual é considerado exclusivamente teórico, informativo sobre como deveria ser encarado o ensino de Trabalhos Manuais no período educacional da Escola Nova:
Vemos por aí que, longe de ser uma matéria nova, independente e ao lado de outras, os trabalhos manuais fazem parte de todas elas, como um meio didático. Os trabalhos manuais são uma metodologia, a metodologia, por excelência, da Escola Ativa, e representam, mau grado a sua materialidade de obras das mãos, antes uma tarefa mental, do que uma tarefa material. (FONSECA, 1929, p. 26, grifo do autor).
Desta forma, como metodologia e não uma matéria a mais nos programas, o trabalho manual deveria incorrer no ensino das demais matérias do programa, em especial às matemáticas. Certamente a defesa de Corinto dos trabalhos manuais como uma metodologia vem corroborar a sua proposta como um trabalho pedagógico para o ensino de geometria, discurso internacional apropriado pelos viajantes brasileiros.
O manual de Corinto fala explicitamente sobre o Slodj e toma-o como o trabalho em madeira, assim como já aludido no programa anterior de 1923. Ou seja, por mais que a proposta dos viajantes ao exterior evidenciasse o Slodj como uma metodologia dos trabalhos manuais, de modo amplo, tudo indica que ele se inseriu em território brasileiro, identificado como uma prática de trabalhos em madeira.
A Figura 2, denominada “faca de Sloyd”, é apresentada no manual como própria para a confecção do trabalho manual em madeira17, dando relevância a um determinado tipo de trabalho manual e não ao método como um todo. Uma vez mais, o conhecimento do exterior ganhava novas leituras e interpretações no contexto brasileiro (BURKE, 2016).
Em 1934, foi feita uma nova publicação de programas para o curso primário pelo Departamento de Educação do Distrito Federal. Dessas normativas, só foi possível acessar os programas de matemática, no qual se evidencia a proposta da Escola Nova. O programa foi organizado em forma de projetos, articulando as matérias de linguagem e ciências sociais, trazendo uma estreita ligação entre os trabalhos manuais e os saberes geométricos, como por exemplo, no caso do ensino de sólidos geométricos, em que prevê, ao longo desses estudos, o trabalho de cartonagem com a finalidade de estabelecer as diferenças e as analogias existentes entre eles [sólidos geométricos], fazer perfeita discriminação de faces, arestas, vértices e ângulos e fornecer um maior cuidado na exatidão de representações, principalmente quanto às proporções (PROGRAMA, 1934).
Ao mesmo tempo, publicações relevantes na época voltavam a referenciar elementos tão evidenciados como inovadores pelos viajantes do século XIX, como é o caso do manual Trabalhos manuaes escolares, publicado em 1934 sob autoria de Afonso Penna. O autor deixava clara a orientação moderna dos trabalhos manuais:
[...] sem menor preocupação teórica mas simplesmente como um poderoso meio de educação da vista, habilitando, ao mesmo tempo, as crianças no senso comparativo, tão necessario para o nosso aperfeiçoamento, no correr da existência. Há autores, entretanto, que condenam a confecção dos sólidos geométricos, em se tratando do ensino da modelagem pois, afirmam êles, em argila ou em qualquer outra pasta, as suas arestas nunca ficam perfeitas. Ora, si se tratasse do estudo rigoroso desses corpos geométricos, êles teriam razão. Mas não ao cogita disto, mesmo porque os exercicios em questão são destinados às crianças que apenas começam a aprendizagem freqüentando ainda os dois primeiros anos do curso, os estudos das formas mais típicas armam os alunos de um poderosíssimo meio educativo composto de uma meia duzia de padrões, seguros têrmos de comparação, para as inumeráveis e diferentes formas existentes na natureza. (PENNA, 1934, p. 135).
Ou seja, a proposta de um trabalho manual educativo - com forte articulação aos saberes geométricos - era defendida em publicação de cerca de 40 anos depois de sua proposição e difusão a partir dos viajantes. Os métodos de Froebel, Boogaerts e Slodj, postos em circulação pelos viajantes no final do século XIX, sofreram apropriações, adaptações ao contexto brasileiro e, aos poucos, se incorporaram nas normativas e nos manuais pedagógicos.
Considerações finais
O presente estudo buscou analisar os processos complexos de apropriação e objetivação da articulação entre os trabalhos manuais com saberes geométricos, postos em circulação a partir de contextos internacionais. Identificou-se que os três métodos enfocados pelos viajantes brasileiros no final do século XIX - Froebel, Boogaerts e Slodj - foram apropriados, mas não igualmente incorporados, referenciados, tampouco “copiados” dos relatórios dos docentes. Os nomes Froebel e Slodj foram mais mencionados tanto nas normativas como nos manuais, sendo que a referência direta ao método de Boogaerts não foi encontrada em nenhuma das fontes ora analisadas, apesar de serem identificadas suas propostas.
De outra parte, mesmo sem fazer designação explícita aos métodos, a análise realizada ao decorrer de mais de quatro décadas no Rio de Janeiro, apontou que os princípios lidos pelos viajantes sobre os trabalhos manuais se incorporaram ao ensino de geometria, num processo lento de objetivação. Ou seja, para que os trabalhos manuais fossem considerados como “auxiliar poderoso da geometria”, um método de ensino, no qual o fazer manual passa a ser o motor para possibilitar a compreensão da abstração geométrica, se fez necessário um longo período, com a colaboração de novos movimentos pedagógicos, novos autores de manuais, experts, de modo a legitimar a prática manual como um trabalho pedagógico para o ensino de geometria.
Para além de toda a complexidade da dinâmica de transferir, circular conhecimentos, de reconhecer os mal-entendidos e as adaptações, apropriações requeridas ao transpor de uma cultura para outra (BURKE, 2016), é preciso considerar igualmente o processo de uma cultura escolar em incorporar novas práticas pedagógicas, como os trabalhos manuais como meio educativo.
Como reflexão, a nossa história sinaliza um final feliz. Se por um lado, a matéria de Trabalhos Manuais desapareceu dos programas da escola primária, a incorporação dos trabalhos manuais como potencial aliado para o ensino de saberes geométricos se faz presente nas normativas atuais, assim como nos livros didáticos do século XXI, certamente com novas e desafiadoras finalidades.