Introdução
Como estudos e pesquisas acadêmicas tratam a questão da transição da Educação Infantil (EI) para o Ensino Fundamental (EF)? Os resultados dos trabalhos científicos têm sido incorporados nas orientações e diretrizes de autoria de órgãos públicos (secretarias municipais e estaduais, Ministério da Educação) acerca deste processo? Que tipo de cuidados e/ou de práticas são valorizados e destacados nas pesquisas sobre a transição? Esses cuidados e/ou práticas tornam-se referências para um bom trabalho pedagógico neste processo? Estes cuidados e práticas são reconhecidos como merecedores de destaque nestes documentos? São neles incorporados?
Essas perguntas foram o ponto de partida para o trabalho investigativo que aqui se apresenta. Trata-se de uma pesquisa documental (trabalhando com 8 documentos produzidos na esfera como referenciais para as redes educacionais) e de uma pesquisa bibliográfica (incluindo 23 trabalhos científicos, entre artigos, dissertações e teses).
Para tal, primeiramente, buscamos analisar o processo de transição EI-EF a partir de documentos oficiais publicados para funcionarem como guias do padrão de qualidade de atendimento educacional; buscamos todas as orientações e diretrizes para o trabalho pedagógico com a transição nestes dois segmentos. Tanto na Educação Infantil quanto no Ensino Fundamental, ensinar e mediar o caminho a ser percorrido por cada criança, mostrando a porta de entrada para o mundo novo escolar é muito importante e relaciona-se com condições favoráveis para adaptação e sucesso dos alunos nos primeiros anos do ciclo I do EF. Estas ações articulam-se com o tema mais amplo da qualidade da educação oferecida para a infância brasileira e com outros âmbitos de direitos historicamente alcançados, como veremos a seguir.
Pesquisa documental: o que se diz em documentos oficiais sobre a transição de crianças entre a EI e o EF
Na década de 1990, o princípio do dever do Estado de garantir o direito das crianças à Educação Infantil, registrado na Constituição Federal (1988), é reafirmado por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Ao mesmo tempo, via estes dois documentos, estabelecem-se mecanismos de controle social e de participação na formulação e na implementação de políticas para a infância, indispensáveis à construção da cidadania.
Partindo destes dois marcos legais e das discussões que vinham sendo feitas em torno da elaboração de uma Política Nacional de Educação Infantil, a Coordenação-Geral de Educação Infantil (COEDI), lançou um conjunto de quatro cadernos, publicado pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC), nos quais considerações sobre a EI foram formuladas, correlacionadas a outras referentes ao EF. Estes Cadernos são as primeiras publicações do âmbito federal destinando diretrizes à EI. Em que pese seu mérito e a importância de aportes tais como o conceito de criança “como cidadã, como pessoa em processo de desenvolvimento, como sujeito ativo da construção do seu conhecimento” (BRASIL, 1993, p.11), neles não há qualquer menção a respeito da transição da EI-EF.
Ao final da década de 1990, o MEC, na esteira da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira - LDB/96 (marco no reconhecimento da importância da Educação Infantil) elaborou e distribuiu às escolas de todo o país o documento Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) composto de três volumes (BRASIL, 1998). Neles, apresentam-se diretrizes para a construção do currículo para a EI. Trata-se de referência para que os Conselhos Estaduais e Municipais autorizem e orientem o funcionamento das unidades de EI em seus estados e municípios. O RCNEI indica parâmetros para o trabalho pedagógico cotidiano a ser realizado na EI, embora não tenha função normativa. Dentre eles, destaca-se a importância do processo de socialização para o desenvolvimento infantil, possível de se concretizar de maneira singular nos contextos educacionais:
O ingresso na instituição de educação infantil pode alargar o universo inicial das crianças, em vista da possibilidade de conviverem com outras crianças e com adultos de origens e hábitos culturais diversos, de aprender novas brincadeiras, de adquirir conhecimentos sobre realidades distantes (BRASIL, 1998, v. 2, p.13).
Neste Documento, a EI passa a ser vista por outro ângulo, valorizando as crianças ao encará-las como protagonistas de suas vidas. A criança é referenciada como sujeito social e histórico que faz parte de uma sociedade, sendo sujeito de direitos. De acordo com este documento “as crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio” (BRASIL, 1998, v.01, p. 21).
O RCNEI aborda ainda a necessidade de que as escolas de EI incorporem as funções de educar e cuidar de forma integrada, como vemos a seguir:
Educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural. (BRASIL, 1998, v.1, p.23-24).
Conforme o RCNEI, o brincar é fundamental na vida das crianças e, no cotidiano escolar; deve permitir que elas expressem seus sentimentos e emoções, que vivenciem o mundo circundante, contribuindo para formação de sua identidade. Neste documento são realçadas também ações que fomentem a parceria com as famílias: “Os profissionais, devem desenvolver a capacidade de ouvir, observar e aprender com as famílias” (BRASIL, 1998, v.1, p.77). A entrevista de matrícula pode ser uma boa oportunidade para conhecer os hábitos da criança e estabelecer um primeiro contato com as famílias. As reuniões de pais devem ser entendidas e valorizadas como um direito da família de obter informações sobre os objetivos da EI e de tomar consciência dos trabalhos feitos com/por seus filhos.
É no contexto das relações família-escola que aborda-se, pela primeira vez, o tema da adaptação das crianças às instituições educacionais, focalizando o seu ingresso nas instituições de EI. No texto assinala-se que este momento pode “criar ansiedade tanto para elas [crianças] e para seus pais, como para os professores. As reações podem variar muito, tanto em relação às manifestações emocionais quanto ao tempo necessário para se efetivar o processo”. (BRASIL, 1998, v.1, p.79-80).
Sendo assim, recomenda-se que
No primeiro dia da criança na instituição, a atenção do professor deve estar voltada para ela de maneira especial. Este dia deve ser muito bem planejado para que a criança possa ser bem acolhida. É recomendável receber poucas crianças por vez para que se possa atendê-las de forma individualizada. Com os bebês muito pequenos, o principal cuidado será preparar o seu lugar no ambiente, o seu berço, identificá-lo com o nome, providenciar os alimentos que irá receber, e principalmente tranquilizar os pais. A permanência na instituição de alguns objetos de transição, como a chupeta, a fralda que ele usa para cheirar, um mordedor, ou mesmo o bico da mamadeira a que ele está acostumado, ajudará neste processo. Pode-se mesmo solicitar que a mãe ou responsável pela criança venha, alguns dias antes, ajudar a preparar o berço de seu bebê. (BRASIL, 1998, v. 1, p. 80).
Das orientações sobre os primeiros dias do ano ou do semestre, destaca-se o planejamento para organizar a adaptação e a rotina das crianças na EI.
É importante que se solicite, nos primeiros dias, e até quando se fizer necessário, a presença da mãe ou do pai ou de alguém conhecido da criança para que ela possa enfrentar o ambiente estranho junto de alguém com quem se sinta segura. Quando tiver estabelecido um vínculo afetivo com o professor e com as outras crianças, é que ela poderá enfrentar bem a separação, sendo capaz de se despedir da pessoa querida, com segurança e desprendimento (BRASIL, 1998, v. 1, p.82).
A importância do processo de passagem da EI para a escola de EF é reconhecida nesse documento; porém tudo o que se menciona a esse respeito no RCNEI está transcrito a seguir:
Com a saída das crianças, as famílias enfrentam novamente grandes mudanças. A passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental representa um marco significativo para a criança podendo criar ansiedades e inseguranças. O professor de Educação Infantil deve considerar esse fato desde o início do ano, estando disponível e atento para as questões e atitudes que as crianças possam manifestar. Tais preocupações podem ser aproveitadas para a realização de projetos que envolvam visitas a escolas de Ensino Fundamental; entrevistas com professores e alunos; programar um dia de permanência em uma classe de primeira série. É interessante fazer um ritual de despedida, marcando para as crianças este momento de passagem com um evento significativo. Essas ações ajudam a desenvolver uma disposição positiva frente às futuras mudanças demonstrando que, apesar das perdas, há também crescimento. (BRASIL, 1998, v. 1, p. 84).
O próximo documento publicado na esfera pública federal intitula-se “Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação” (BRASIL, 2005). Neste, reafirmam-se orientações que já vinham sendo ressaltadas desde os volumes da COEDI de 1993: “a Educação Infantil deve pautar-se pela indissociabilidade entre o cuidado e a educação” no atendimento a todas as crianças (BRASIL, 2005, p.17). Destaca-se também, dentre os objetivos desta Política, o de "Assegurar a qualidade de atendimento em instituições de Educação Infantil (creches, entidades equivalentes e pré-escolas)" (BRASIL, 2005, p.19).
No documento em foco é apontada a importância de se “articular a Educação Infantil com o Ensino Fundamental, de forma que se evite o impacto da passagem de um período para o outro em respeito às culturas infantis e garantindo uma política de temporalidade da infância” (BRASIL, 2005, p. 26). Como se vê, reconhece-se a relevância de nosso objeto de estudo - a transição - porém de forma bem sucinta.
Em 2006 foram publicados os Parâmetros Nacionais de Qualidade para Educação Infantil, composto de dois volumes, tendo como base a LDB/96. Nestes, propõem-se critérios curriculares para o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. Almeja-se, também, a uniformização e universalização da qualidade do atendimento de crianças pequenas no território nacional.
Os Parâmetros indicam as capacidades de ordem física, cognitiva, ética, estética, afetiva, de relação interpessoal, de inserção social a serem desenvolvidas pelas crianças e indicam os campos de atuação do trabalho pedagógico. Esses campos são especificados da seguinte forma: o conhecimento de si e do outro, o brincar, o movimento, a língua oral e escrita, a matemática, as artes visuais, a música e o conhecimento do mundo, a importância de construção da cidadania. Menciona-se, ainda, que as crianças necessitam ser apoiadas e incentivadas em suas iniciativas para:
brincar;
movimentar-se em espaços amplos e ao ar livre;
expressar sentimentos e pensamentos;
desenvolver a imaginação, a curiosidade e a capacidade de expressão;
ampliar permanentemente conhecimentos a respeito do mundo da natureza e da cultura apoiadas por estratégias pedagógicas apropriadas;
diversificar atividades, escolhas e companheiros de interação em creches, pré-escolas e centros de EI. (BRASIL, 2006, v. 1, p.19).
Dentre diversas propostas pedagógicas para as instituições de EI, apresentadas no segundo volume destes Parâmetros, assinala-se que, em conformidade com a legislação nacional, devem ser adotadas “medidas para garantir uma transição pedagógica adequada na passagem das crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental” (BRASIL, 2006, v. 2, p. 20).
Assim como no RCNEI, o destaque para o acolhimento das crianças articula-se com o acolhimento de seus familiares, propondo-se ações integradoras entre família e escola:
3.1 Antes de a criança começar a frequentar a instituição de Educação Infantil, são previstos espaços e tempos para que mães, pais, familiares e/ou responsáveis, professoras, professores, gestoras e gestores gestoras e iniciem um conhecimento mútuo.
3.2 O período de acolhimento inicial (“adaptação”) demanda das professoras, professores, gestoras e gestores uma atenção especial com as famílias e/ou responsáveis pelas crianças, possibilitando, até mesmo, a presença de um representante destas nas dependências da instituição. (BRASIL, 2006, v.2, p. 32).
Fica a cargo da gestão fornecer informações a mães, pais, familiares e/ou responsáveis durante o período de matrícula,bem como realizar encontros periódicos entre eles e os profissionais da instituição de Educação Infantil. A integração família-escola depende, fortemente, de gestores que
10.11 Possibilitam que mães, pais e familiares e/ou responsáveis tenham a oportunidade de visitar as instalações das instituições de Educação Infantil e de conhecer os profissionais que lá trabalham antes de matricular a criança.
10.12 Têm uma atenção especial com as famílias e/ou responsáveis durante o período de acolhimento inicial (“adaptação”) das crianças, possibilitando, até mesmo, a presença de um representante destas nas dependências da instituição. (BRASIL, 2006, v. 2, p. 37-38).
O próximo documento publicado foi a Resolução CEB/CNE no. 5 de 17/12/2009 que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). Como os textos desse gênero, trata-se de um documento bastante sintético, composto por 5 páginas. Nelas, a transição é mencionada duas vezes. No inciso III do art. 10 ressalta-se a importância da
[...] continuidade dos processos de aprendizagens por meio da criação de estratégias adequadas aos diferentes momentos de transição vividos pela criança (transição casa/instituição de Educação Infantil, transições no interior da instituição, transição creche/pré-escola e transição pré-escola/Ensino Fundamental). (BRASIL, 2009, p. 5).
Ainda neste Documento, no art. 11, prosseguem as considerações a respeito da transição da EI-EF
Na transição para o Ensino Fundamental a proposta pedagógica deve prever formas para garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, respeitando as especificidades etárias, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. (BRASIL, 2009, p.5).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, resultantes da Resolução CEB/CNE no. 5 foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2010 e publicadas pela Secretaria da Educação Básica, no mesmo ano. Articulando-se às Diretrizes Curriculares da Educação Básica, nesse documento reafirma-se o fortalecimento da concepção da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica e a centralidade da participação da criança na sua construção. Quanto à transição, no documento o tema recebe destaque no tópico 13, intitulado “Articulação com o Ensino Fundamental”, no qual se reproduz o texto transcrito acima, já apresentado na Resolução CEB/CNE no. 5. (BRASIL, 2020).
Com uma dinâmica diferente dos outros documentos, o texto das DCNEI é acompanhado de artigos complementares, escritos por autores reconhecidamente estudiosos e militantes da área da Educação Infantil. Conforme indicado nas Diretrizes, a Secretaria de Educação Básica elaborou “orientações curriculares em processo de debate democrático e com consultoria técnica especializada sobre os seguintes temas [...] (BRASIL, 2010, p. 31). Apresenta-se, então uma lista de 11 temas. Cada um deles é desenvolvido em textos à parte, todos disponíveis na internet e que foram publicados nos Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento - perspectivas atuais”, realizado em Belo Horizonte, em novembro de 2020. Dentre eles, interessa-nos comentar o intitulado “Avaliação e transições na educação infantil” (MICARELLO, 2010). Nele, a autora reafirma algumas orientações que já estavam presentes desde os primeiros documentos que aqui analisamos. Uma delas é a importância de que o ingresso das crianças nas instituições seja cuidadosamente planejado e que inclua a possibilidade de receber as crianças e as famílias e de permanência de alguns membros das famílias na instituição até que “as crianças estabeleçam laços com os adultos [...] e se sintam seguras e confiantes”. (MICARELLO, 2010, p. 6). Outra orientação refere-se à importância de que as crianças visitem a pré-escola (quando estão na creche) e as escolas de EF (quando estão na EI) para que se familiarizem com o ambiente e com as pessoas que nele trabalham.
Porém, também encontramos no texto uma proposição original ao fazer relação entre os registros avaliativos das produções das crianças e sua potência para que os próximos professores tenham sempre informações sobre cada novo aluno e possa, de modo sensível, construir o trabalho a partir do que já conhece sobre ele, ainda que seja via relatórios, portifólios produzidos pelos professores que o antecederam. Essa estratégia contribuiria para que as transições (da creche para a pré-escola, com as mudanças de turmas e de professoras que costumam acontecer anualmente e, por fim, da pré-escola para o EF) pudessem ser feitas de modo a considerar o que as crianças já sabem, seus principais interesses, peculiaridades sobre seu desenvolvimento. Em outra proposição original desse texto a autora afirma a importância de que
os profissionais que atuam nas diferentes etapas se encontrem e discutam sobre os documentos de registro, as formas de organizá-los e como podem obter uma continuidade, mesmo que esses profissionais atuem em diferentes instituições (MICARELLO, 2010, p. 10).
Para atendermos a nossos objetivos em termos de abarcar as publicações da esfera federal destinadas ao trabalho na EI, analisamos o documento da Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil (BNCC) publicado no final de 2017. O texto da BNCC traz eixos estruturantes que devem ser assegurados, assim como seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. A BNCC refere-se à transição da EI-EF da seguinte forma:
A transição entre essas duas etapas da Educação Básica requer muita atenção, para que haja equilíbrio entre as mudanças introduzidas, garantindo integração e continuidade dos processos de aprendizagens das crianças, respeitando suas singularidades e as diferentes relações que elas estabelecem com os conhecimentos, assim como a natureza das mediações de cada etapa. Torna-se necessário estabelecer estratégias de acolhimento e adaptação tanto para as crianças quanto para os docentes, de modo que a nova etapa se construa com base no que a criança sabe e é capaz de fazer, em uma perspectiva de continuidade de seu percurso educativo (BRASIL, 2017, p. 51, ênfase no original).
Ainda no texto da BNCC é mencionada a necessidade de acompanhamento das práticas pedagógicas na EI relativas às aprendizagens e ao desenvolvimento da criança pequena concretizado na creche, na pré-escola e no Ensino Fundamental, na expectativa da continuidade nesta nova etapa da vida escolar no EF. Reafirma-se aqui o que encontramos em Micarello (2010):
As informações contidas em relatórios, portfólios ou outros registros que evidenciem os processos vivenciados pelas crianças ao longo de sua trajetória na Educação Infantil podem contribuir para a compreensão da história de vida escolar de cada aluno do Ensino Fundamental. Conversas ou visitas e troca de materiais entre os professores das escolas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental - Anos Iniciais também são importantes para facilitar a inserção das crianças nessa nova etapa da vida escolar (BRASIL, 2017, p. 53).
Compreender como se pensa a infância atualmente, como é orientada a finalização do trabalho pedagógico na EI e como se dá a passagem para o EF na concretude das unidades educacionais não é um objetivo irrisório. Ao contrário, fundamentando-nos na perspectiva da Psicologia Histórico-cultural, realçamos que as condições concretas de vida têm consequências importantes para os modos de viver a infância e para viabilizar diferentes caminhos para o desenvolvimento psíquico. Conforme Vygotski, essas condições são
o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade. Determina plenamente e por inteiro as formas e a trajetória que permitem à criança adquirir novas propriedades da personalidade, já que a realidade social é a verdadeira fonte de desenvolvimento, a possibilidade de que o social se transforme em individual (VYGOTSKI, 1996, p. 264).
Sendo assim, buscamos analisar o alcance dos objetivos propostos, conforme orientações e diretrizes fixadas nos documentos publicados pelo MEC e/ou a necessidade de aprimoramentos e novas formas de dizer das autoridades, caso se evidencie que o que já está textualizado não está sendo suficiente. Em outras palavras: as prescrições se realizam? O que se dispõe como necessário é o que se faz? É o que exploraremos a seguir, baseando-nos em pesquisa bibliográfica realizada.
Pesquisa bibliográfica: o que se faz no cotidiano educacional para a transição de crianças entre a EI e o EF
Para maior aprofundamento sobre nosso tema, realizamos revisão bibliográfica, buscando produções científicas relativas à transição. O procedimento adotado foi busca sistemática na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), complementada por artigos acadêmicos selecionados a partir de buscas realizadas no Scielo (Scientific Eletronic Library Online).
Na BDTD, com os descritores “Ensino Fundamental de 9 anos” e “Ensino Fundamental de nove anos” levantamos um conjunto de 118 trabalhos; nas referências destes, encontramos mais 15 trabalhos desenvolvidos sobre o tema. A escolha dos descritores deveu-se à nossa compreensão de que a mais recente e importante alteração nas relações entre Educação Infantil e Ensino Fundamental (o EF de 9 anos) repercutiria em reflexões intensificadas e atualizadas sobre o tema da transição. Pela leitura dos títulos, identificamos que 13 trabalhos estavam duplicados e foram excluídos. Dos 120 restantes, pela leitura dos resumos, elegemos 13 trabalhos (5 teses e 8 dissertações) que tratavam de forma central o tema pesquisado. Quanto aos artigos, eles foram Informações básicas sobre os trabalhos selecionados estão apresentadas nos Quadros 01 e 02.
TÍTULO | AUTOR(ES) | Ano |
---|---|---|
Continuidades e descontinuidades na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental no contexto de nove anos | Marcondes | 2012 |
Cotidiano escolar e infância: interface da Educação Infantil e do Ensino Fundamental nas vozes de seus protagonistas | Mascioli | 2012 |
A articulação da Educação Infantil com o Ensino Fundamental I: a voz das crianças, dos professores e da família em relação ao ingresso no 1º ano | Rabinovich | 2012 |
Interpretações de si mesmo, do outro e do mundo por crianças na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental | Ramos | 2013 |
A identidade da pré-escola: entre a transição para o Ensino Fundamental e a obrigatoriedade de frequência | Fernandes | 2014 |
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras
TÍTULO | AUTOR(ES) | Ano |
---|---|---|
Um retrato do primeiro ano do Ensino Fundamental: o que revelam crianças, pais e professoras | Raniro | 2009 |
Tensões contemporâneas no processo de passagem da Educação Infantil para Ensino Fundamental: um estudo de caso | Neves | 2010 |
A criança de 6 anos no Ensino Fundamental de 9 anos na perspectiva da qualidade na Educação Infantil | Campos | 2011 |
Escola vista pelas crianças: uma análise das representações sociais da escola na voz (vozes) das crianças | Souza | 2011 |
Programa “Cidadescola” no 1º ano do Ensino Fundamental em uma escola de Presidente Prudente: entre a ludicidade e a sala de aula. | Azevedo | 2012 |
Bem-vinda à escola: o ingresso da criança no primeiro ano do Ensino Fundamental sob o olhar docente e a perspectiva do brincar | Oliveira | 2013 |
A Educação Infantil e Ensino Fundamental de nove anos nas vozes de crianças e na organização do trabalho pedagógico de duas instituições de Curitiba - PR | Chulek | 2013 |
Sintomas de estresse e percepção de estressores escolares no início do Ensino Fundamental | Crepaldi | 2016 |
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras
TÍTULO | AUTOR(ES) | Ano |
---|---|---|
A passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental: tensões contemporâneas | Neves Gouvêa Castanheira |
2011 |
Da criança a aluno; transformação social na passagem da educação infantil para o ensino fundamental | Motta | 2011 |
A transição do Educação Infantil para o Ensino Fundamental no olhar das crianças, pais e educadores: um recorte fenomenológico | Szymanski Grando Freire Villas Boas Souza Jr |
2011 |
A inserção das crianças de seis anos no Ensino Fundamental: exemplo de desrespeito à infância | Zibetti | 2012 |
Contribuições da Pedagogia da Infância para a Articulação entre Educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. | Nogueira Vieira | 2013 |
Narrativas de crianças sobre as escolas da infância: cenários e desafios da pesquisa (auto)biográfica | Passeggi Furlanetto Conti Chaves Gomes Gabriel Rocha |
2014 |
“Faz de conta que as crianças já cresceram”: o processo de transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental | Martinati Rocha |
2015 |
Sob o olhar das crianças: o processo de transição escolar da Educação Infantil para o Ensino Fundamental na contemporaneidade | Dias Campos |
2015 |
Perspectivas de crianças sobre o cotidiano da pré- escola: o recreio em foco | Cruz Santos |
2016 |
A vivência em uma pré-escola e as expectativas quanto ao ensino fundamental sob a ótica das crianças | Correa Bucci |
2018 |
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras
O corpus final para análise, portanto, compôs-se por 23 textos (10 artigos, 8 dissertações e 5 teses) que investigaram a transição da EI para o EF. Embora tenham sido desenvolvidos de modos diversos em termos de procedimentos, participantes, objetivos, redes ou unidades escolares pesquisadas, referenciais teóricos assumidos, todos os estudos são consensuais quanto à importância de reflexões sobre a transição EI-EF. Também de forma consistente e unânime, apontam para as seguintes constatações a respeito do processo em foco:
- rupturas entre o cotidiano da EI e o do EF, sem esforços para aproximá-los;
- cada segmento continua desenvolvendo o trabalho pedagógico da maneira como tradicionalmente se faz;
- destaque para a necessidade de adaptação dos espaços físicos no EF, incluindo mobiliário, muitas vezes inadequado para as crianças de seis anos que agora ingressam nesse segmento.
Estudos e pesquisas que incluíram trabalho de campo têm evidenciado que quando a criança pequena ingressa no Ensino Fundamental se depara, em geral, com um ambiente muito diferente daquele com que estava acostumada na Educação Infantil: a sala de aula não comporta mais brincadeiras, as carteiras são individuais e organizadas em fileiras, permanece a maior parte do tempo realizando tarefas de escrita, atividades massificantes de cópia de letras e números e horário reduzido de uso do parque (quando existe no espaço escolar) e, mais frequentemente, de quadras esportivas e áreas abertas (CORRÊA; BUCCI, 2018; CRUZ; SANTOS, 2016; PASSEGGI et al., 2014; NOGUEIRA; VIEIRA, 2013; NEVES; GOUVÊA; CASTANHEIRA, 2011; MOTTA, 2011; ROCHA; MARTINATI, 2015; dentre outros autores).
Motta (2011, p. 166) afirma que:
O primeiro dia de aula marca uma drástica ruptura com o trabalho desenvolvido. As crianças não sabiam o que podiam fazer. As carteiras arrumadas em fileiras, voltadas para o quadro, a mesa da professora na frente, a presença de crianças reprovadas, a ausência de outras que compunham a turma anterior, o abecedário e os numerais na parede, tudo indicava um ano diferente. Não era permitido correr, ir ao banheiro, brincar de pique, batucar ou olhar pela janela. Havia um descompasso entre as crianças que vieram da Educação Infantil e as outras. Abaixar a cabeça e esperar não faz parte do repertório do ano anterior.
Em seus modos de perceber a escola da EI e do EF, as crianças ressaltam a distinta distribuição entre o tempo entre o brincar e o aprender como marco de seu ingresso no universo escolar. Em alguns casos sinalizam a existência de atividades que têm dificuldade de realizar e pelas quais não têm interesse, como relatado por Cruz e Santos (2016, p. 173)
Na grande maioria, tais atividades (mais conhecidas como “tarefinhas”) são relativas ao ensino da leitura e escrita. Na pesquisa de Souza (2006), por exemplo, disseram não gostar de fazer um “monte de números” nem escrever, porque “é difícil aprender a escrever”, “é difícil fazer os nomes sem ver”; e um garoto conclui: “Não gosto de tarefa das letras, porque eu não aprendi as letras”.
As pesquisas acadêmicas apontam, portanto, que ainda há muito a se fazer para que a transição da EI para o primeiro ano do EF ocorra levando em consideração as necessidades das crianças e o seu processo de desenvolvimento. Dizendo de modo mais preciso, apontam que quase nada tem sido feito, apesar da aparente consensualidade sobre a importância desse processo e da recorrência com que vem sendo assumido pelos documentos públicos. Um recente estudo científico corrobora nossos resultados de pesquisa:
Apesar dos normativos e orientações elaborados pelo Ministério da Educação sobre o atendimento de crianças que ingressam no Ensino Fundamental, permanece uma distância entre o que se prescreve e aquilo que, de fato, se concretiza no espaço/tempo da escola. (FURLANETTO et al., 2020, p. 1245).
Além desse uníssono informe sobre a ausência de ações voltadas para a transição nas unidades escolares, sejam de EI, sejam de EF, poucas foram as propostas/ações sugeridas pelos pesquisadores; as que identificamos encontram-se arroladas a seguir:
- adaptação dos espaços físicos nas escolas de EI e EF;
- integração entre o brincar e o aprender nas práticas pedagógicas da EI e do EF;
- compreender o papel da brincadeira de faz de conta nestes contextos da EI e do EF a partir de narrativa e desenho das crianças;
- discussão sobre a importância do papel do professor no processo adaptativo da criança nas experiências vividas no início do EF;
- reconhecimento da importância da mediação do professor tanto da EI quanto do EF, no sentido de que utilizem instrumentos que permitam as expressões de sentimentos da criança nos diferentes espaços.
Vemos, então, que existem pontos de encontro entre o que se formula nos documentos e o que os pesquisadores sugerem como formas positivas de se lidar com a transição. A questão que se impõe é: por que, então, não há avanços e reformulações nos modos de lidar com a transição? Faremos algumas considerações a respeito dessa pergunta no próximo tópico.
A falta de diálogo dos documentos com as pesquisas e o cotidiano: como integrar o que se diz e o que se faz?
Conforme destacamos anteriormente, no campo dos discursos (oficial e acadêmico-científico) reconhece-se a importância de procedimentos para que a transição promova condições favoráveis ao desenvolvimento infantil; entretanto, no campo das práticas pedagógicas pouco é concretizado. Conjecturamos como possível fonte deste problema o modo pelo qual os discursos são construídos, marcados por pouca interlocução do discurso público oficial com o acadêmico científico. Dados os limites do presente artigo, focalizaremos dois eixos nos quais essa pouca interlocução pode ser notada: questões quanto à fundamentação teórica e quanto à incorporação de resultados de pesquisas estarão em foco.
É importante notar que em todos os documentos analisados não se encontra nenhuma menção a resultados de pesquisas científicas sobre o tema da transição. Todos silenciam sobre a ruptura persistente entre a EI e o EF, fartamente registrada nos trabalhos de campo. O que dizem sobre a importância da continuidade curricular parece estar a serviço da ilusão de que basta mencioná-la para que ações para sua realização sejam feitas.
De nossa perspectiva, seria muito importante que os próprios documentos alertassem claramente (trazendo resultados de trabalhos investigativos), que, apesar da insistência no tema, nada ou quase nada foi feito, efetivamente, para criar condições mais propícias para a transição como processo cuidadosamente construído; poderiam convocar os profissionais da Educação para que as transformações e bons exemplos de cuidados com a transição pudessem ser produzidos e relatados.
Um outro caminho nos esforços para enfrentarmos a estagnação seria a substituição de assertivas genéricas sobre a continuidade de experiências escolares por sustentação teórica e empírica robusta. Retornando aos documentos, tomemos apenas dois trechos como exemplos, em que orienta-se sobre este ponto, advindos da Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação (BRASIL, 2005) e da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). No primeiro, lê-se que nas unidades escolares deve-se
[...] articular a Educação Infantil com o Ensino Fundamental, de forma que se evite o impacto da passagem de um período para o outro em respeito às culturas infantis e garantindo uma política de temporalidade da infância” (BRASIL, 2005, p. 26)
No segundo documento, encontramos o destaque para a importância de
[...] garanti[r] integração e continuidade dos processos de aprendizagens das crianças, respeitando suas singularidades e as diferentes relações que elas estabelecem com os conhecimentos, assim como a natureza das mediações de cada etapa. (BRASIL, 2017)
Tratam-se de documentos publicados com 12 anos de intervalo, mas com muita similaridade quanto ao conteúdo e uso de expressões genéricas, tais como: “respeito às culturas infantis”, “política de temporalidade da infância”, “respeitando suas singularidades”, “diferentes relações que elas estabelecem com os conhecimentos”... Então perguntamo-nos: se nada mudou nesses anos (e as pesquisas mostram isso), não seria um dever dos formuladores dos documentos pensar em outros modos de dizer que pudessem ter algum efeito nas práticas e organização do cotidiano das instituições educacionais? É importante, além disso, comentar o quanto essas expressões são ambíguas e talvez pouco contribuam para estimular/orientar os professores, gestores e redes a projetarem programas de transição.
Por fim, apesar da ambiguidade dos termos, pensamos não ser improvável que um dos significados remeta à atividade lúdica, que costuma ser identificada como um dos principais integrantes da “cultura infantil” e privilegiado modo de conhecer o mundo por parte das crianças. Se assim for, cabe lembrar que esse tema é fartamente discutido na literatura e existem muitos trabalhos que apontam para concretas contribuições das brincadeiras para o desenvolvimento infantil. Trazê-los para diálogo com os leitores dos documentos pode ser um caminho profícuo de convencimento sobre a importância de cuidarmos da articulação entre as atividades da EI e do EF.
Conclusão
A entrada das crianças pequenas no primeiro ano deve ser bem planejada e programada pela instituição escolar. Entretanto, convém ressaltar que a responsabilidade nesse processo não cabe apenas às unidades escolares e suas equipes pedagógicas. De nosso ponto de vista, é necessário que as redes de ensino e os representantes do governo e dos sistemas públicos de ensino, sobretudo as secretarias municipais de Educação se posicionem de modo mais veemente, criando condições para que o diálogo seja instaurado e para que os currículos sejam articulados.
Compreender as crianças pequenas, escutá-las sobre suas experiências escolares e considerar as especificidades do desenvolvimento e aprendizagem, procedimento com certa frequência adotado pelos pesquisadores, é essencial para a elaboração da prática educativa realizada pelo professor por meio do diálogo, imprescindível para a organização do trabalho pedagógico na e da passagem do EI para o EF, buscando superar desencontros e desarticulações entre os dois segmentos de ensino. Entretanto, esse procedimento não tem sido suficiente para instituir práticas pedagógicas inovadoras e consistentes, permeadas por cuidado, preparo, acompanhamento, acolhimento.
Todavia, precisamos buscar meios de saber como utilizar a escuta sensível para direcionar/transformar de maneira consistente o trabalho pedagógico nesse processo, com o intuito de auxiliar no enfrentamento de possíveis dificuldades pela mudança para um novo ambiente, construindo modos desenvolventes de transição. Sugerimos que sejam privilegiadas ações sensíveis a respeito dos processos de desenvolvimento infantil, ações que se ocupem da escuta das crianças, mediante estratégias que provoquem a fala delas, mas que se comprometam a ir além e a prover transformações nas possiblidades de experiências escolares.
Embasados nas análises de estudos acadêmicos e documentos oficiais, evidenciamos a necessidade de acolhimento adequado das crianças pequenas na passagem do EI-EF, o que significa oferecer novas oportunidades para seu desenvolvimento, de suas famílias e da comunidade.
Finalizamos o artigo, portanto, sugerindo a necessidade de pesquisas que investiguem o tema de forma inovadora, visando contribuir para transformar os problemas e não apenas constatá-los.