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Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

versão impressa ISSN 1415-2150versão On-line ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.25  Belo Horizonte  2023  Epub 05-Set-2023

https://doi.org/10.1590/1983-21172022240153 

Artigos

A PRESENÇA E AS CARACTERÍSTICAS DA ASTRONOMIA NA FORMAÇÃO INICIAL DO PEDAGOGO: UMA ANÁLISE DOS PROJETOS PEDAGÓGICOS DE CURSOS DO BRASIL

LA PRESENCIA Y LAS CARACTERÍSTICAS DE LA ASTRONOMÍA EN LA FORMACIÓN INICIAL DEL PEDAGOGO: UN ANÁLISIS DE LOS PROYECTOS PEDAGÓGICOS DE CURSOS EN BRASIL

Thayná Cristina Dias e Dias1 
http://orcid.org/0000-0002-7501-0671

Camila Maria Sitko2  3 
http://orcid.org/0000-0003-4620-1388

Rodolfo Langhi4 
http://orcid.org/0000-0002-3291-5382

1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Programa de pós-graduação em Educação para Ciência, Bauru, SP, Brasil.

2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campo Mourão, Paraná, PR, Brasil.

3 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciência e Matemática, Marabá, PA, Brasil.

4 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências, Departamento de Física, Bauru, SP, Brasil.


RESUMO:

A Astronomia ainda é pouco estudada nos cursos de graduação, especialmente no curso de Pedagogia, embora o ensino desse conteúdo seja recomendado desde os anos iniciais do Ensino Fundamental. A fim de compreendermos como se dá essa relação entre a Astronomia e a formação inicial do pedagogo, esta pesquisa visa investigar a presença e as características da Astronomia nos Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) de Pedagogia presentes nas universidades federais das capitais dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Os resultados apontam a existência de elementos de Astronomia em apenas seis disciplinas, as quais são analisadas de acordo com critérios específicos da análise de conteúdo categorial de Bardin. Considera-se que essa insuficiência na formação dos pedagogos pode acarretar uma deficiência na formação científica dos alunos do Ensino Fundamental, havendo, portanto, a necessidade de revisão do currículo de Pedagogia, de forma a contemplar uma Educação em Astronomia indicada para o ensino na Educação Básica.

Palavras-chave: Educação em Astronomia; Projeto Pedagógico de Curso (PPC); Formação inicial em Pedagogia

RESUMEN:

La Astronomía aún es poco estudiada en los cursos de graduación, especialmente en el curso de Pedagogía, aunque se recomienda impartir este contenido desde los primeros años de la Enseñanza Primaria. Para comprender la relación entre la Astronomía y la formación inicial del pedagogo, esta investigación tiene como objetivo explorar la presencia y las características de la Astronomía en los Proyectos Pedagógicos de los Cursos de Pedagogía (PPC) presentes en las universidades federales de las capitales de los 26 estados brasileños y del Distrito Federal. Los resultados apuntan hacia la existencia de elementos de Astronomía en solo seis asignaturas, las cuales son analizadas según criterios específicos del análisis de contenido categórico de Bardin. Se considera que esta insuficiencia en la formación de los pedagogos puede conllevar una deficiencia en la formación científica de los alumnos de la Enseñanza Básica. Por lo tanto, surge la necesidad de revisar el currículo de Pedagogía, a fin de contemplar una Educación en Astronomía adecuada para la enseñanza en la Educación Básica.

Palabras clave: Educación en Astronomía; Proyecto Pedagógico de Curso (PPC); Formación inicial en Pedagogía

ABSTRACT:

Astronomy is still little studied in undergraduate courses, especially in the Pedagogy course, although teaching this content is recommended from the early years of Elementary School. In order to understand how this relationship between Astronomy and the initial formation of pedagogues takes place, this research aims to investigate the presence and characteristics of Astronomy in the Pedagogical Projects of Pedagogy Courses (PPC) present in the federal universities of the capitals of the 26 Brazilian states and the Federal District. The results point to the existence of Astronomy elements in only six disciplines, which are analyzed according to specific criteria of Bardin’s categorical content analysis. It is considered that this insufficiency in the training of pedagogues can lead to a deficiency in the scientific training of Elementary School students. Therefore, there is a need to revise the Pedagogy curriculum, in order to contemplate an Education in Astronomy indicated for teaching in Basic Education.

Keywords: Education in Astronomy; Course Pedagogical Project (PPC); Initial formation in Pedagogy

INTRODUÇÃO

O ensino de Astronomia e a formação inicial de pedagogos são duas áreas distintas, mas, se analisadas categoricamente, é possível extrair pontos de convergências entre elas. Tal confluência passa a existir quando, por exemplo, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2018) - estabelece o ensino de Astronomia nos anos iniciais do Ensino Fundamental, na Educação Básica, etapa de ensino em que está prevista a atuação do pedagogo. No entanto, sua formação, em geral, não inclui o ensino desse conteúdo. Dessa forma, como poderia o professor ensinar algo com o qual não teve contato em sua formação?

Na seleção curricular construída para os cursos de Pedagogia, quase nada consta sobre temas que abordem ensino de Ciências, em particular o ensino de Astronomia, o que pode contribuir para sustentar concepções alternativas sobre o Universo, nossa posição no cosmo, entre outras (Langhi & Nardi, 2012). Assim, ocorrem situações cujas concepções alternativas são repassadas aos alunos dos anos iniciais, ou ainda o que é mais comum, situações em que o professor pedagogo suprime os conteúdos por não os compreender. Como aponta Langhi (2011)em sua revisão bibliográfica sobre concepções alternativas em Astronomia, um dos temas mais recorrentes foi relacionado ao formato da Terra e seu campo gravitacional, o que gera ao professor uma “[...] sensação de incapacidade e insegurança ao se trabalhar com o tema, respostas insatisfatórias para os alunos, falta de sugestões de contextualizações [...]” (Langhi & Nardi, 2012, p. 104). Com isso, “a Astronomia parece não ter seu espaço de fato garantido na organização escolar atual, que tem preceitos formativos que não necessariamente condizem com os documentos oficiais” (Carvalho & Ramos, 2020, p. 16).

Nesse sentido, percebe-se que há uma grande problemática com relação ao currículo na formação dos professores dos anos iniciais no que diz respeito ao ensino de Astronomia. A fim de compreendermos melhor essa questão, fundamentamo-nos na pesquisa documental para descrevermos e analisarmos a situação atual da área. Baseamo-nos na análise do PPC de Pedagogia de 27 universidades brasileiras, buscando responder à seguinte questão: Como o ensino de Astronomia está contemplado nos Projetos Pedagógicos do Cursos (PPC) de Pedagogia das instituições superiores federais localizadas nas capitais brasileiras?

O presente artigo insere-se como um recorte de uma dissertação de mestrado em andamento. Para responder à nossa questão, inicialmente será feita uma breve discussão a respeito da formação inicial dos pedagogos e da importância do ensino de Astronomia nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Após isso, apresentaremos nosso processo de coleta e análise de dados, fundamentados na análise de conteúdo categorial de Bardin. Por fim, serão tecidas reflexões acerca da importância do currículo de Pedagogia para o ensino de Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

A ASTRONOMIA NO CURRÍCULO DA FORMAÇÃO INICIAL DE PEDAGOGOS

Ao investigar os ementários dos cursos de Pedagogia do Brasil em instituições públicas e privadas, nos anos de 2001, 2004 e 2006, Gatti (2009) elencou uma série de categorias das disciplinas analisadas, entre elas, a dos “conhecimentos relativos à formação profissional específica”, na qual constam as disciplinas que envolvem o ensino de Ciências. A autora aponta que

[...] as disciplinas deste grupo trazem ementas que registram preocupação com as justificativas sobre o porquê ensinar, o que, de certa forma contribuiria para evitar que essas matérias se transformassem em meros receituários. Entretanto, só de forma muito incipiente registram o quê e como ensinar (Gatti, 2009, p. 23).

Na visão de Sacristán (2000, 1998), a construção do currículo é, muitas vezes, pautada nos saberes clássicos, para os quais é destinada a maior carga horária, pois “[...] formam parte da cultura considerada como o legado valioso no qual iniciar, de alguma maneira, a todos os cidadãos” (Sacristán, 2000, p. 67). Nessa perspectiva, entende-se que o curso de Pedagogia tem seus saberes clássicos, os quais se encontram fixados nas disciplinas obrigatórias, somando assim uma maior carga horária. Quando analisamos esses cursos, percebemos que os saberes clássicos se voltam a disciplinas de natureza filosófica, pedagógica, histórica; e pouco ou quase nada de ensino de áreas específicas como Geografia, Biologia, Física e Química.

Em vista disso, para que a Astronomia passe a ser estudada no espaço escolar formal de ensino, é indispensável que a construção do currículo escolar seja conduzida por um projeto de educação que priorize tal ciência. Nesse sentido, Sacristán (2013) discorre que, com base nessa elaboração, “[...] melhoramos os seres humanos, aumentamos seu bem-estar e desenvolvimento econômico, atenuamos as deficiências sociais, contribuímos para a redenção do ser humano, sua liberação” (Sacristán, 2013, p. 24).

Com essa intenção, os conteúdos escolares precisam ser filtrados, sintetizados e selecionados, de acordo não apenas com uma cultura (dominante), mas relacionados às problemáticas mais relevantes para cada cultura social (Sacristán, 2000). Construindo um pensamento social e cultural sobre nosso Planeta Terra, podemos pensar a emergência de um saber sobre o conhecimento do homem em relação ao Universo que nos cerca, conhecendo sua miudeza diante do tamanho de nosso mundo (Langhi & Nardi, 2012). Para isso, os professores e formadores desses profissionais devem ampliar suas concepções e entender o ensino como pesquisa, “[...] tomada como princípio simultaneamente científico, educacional e metodológico” (Amaral, 2005, p. 39).

Batista (2016) também discute sobre como equacionar o despreparo dos professores em ministrar conteúdos na área de Astronomia. Para o autor, por mais que a formação possa ser um processo contínuo, construindo novos conhecimentos, ainda assim, o pilar essencial para a formação dos professores se dá por meio da formação inicial, devendo ser essa etapa, portanto, privilegiada. Batista (2016)defende que os cursos que formam professores devem olhar com mais atenção para o ensino de Astronomia.

Com relação às pesquisas em ensino de Ciências e de Física que, do ponto de vista dos conteúdos de Astronomia, Langhi e Silva (2018) salientam que os resultados dessas investigações indicam sérios problemas na formação inicial dos professores. A carência no ensino desse tema leva os professores a enfrentarem obstáculos motivados pelo despreparo, como a dificuldade em encontrar ajuda, livros e tempo para estudo dos temas relacionados à Astronomia (Langhi & Silva, 2018).

Leite et al. (2013) também concordam com essa questão quando afirmam que os programas de formação de professores precisam considerar, para a elaboração de suas propostas, os resultados que são divulgados na área de Educação em Astronomia, bem como no ensino de Ciências.

Assim, com base nas discussões e reflexões apresentadas, e de diversas outras aqui não mencionadas, entende-se que a formação de professores que ensinam Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental é ainda insuficiente, na questão do currículo da respectiva área, podendo refletir de maneira desfavorável no ensino e na noção de Ciências que as crianças recebem.

Nesse sentido, para analisar a formação do professor é preciso investigar os documentos curriculares elaborados para formar esse docente, identificando as disciplinas (obrigatórias e optativas) e modelos metodológicos que o documento apresenta como sendo essencial para a trajetória formativa inicial desse profissional, o que é realizado neste trabalho.

METODOLOGIA DA PESQUISA

A abordagem desta pesquisa foi assumida como qualitativa, do tipo documental, uma vez que a coleta de dados ocorreu por meio de documentos públicos, considerados por Marconi e Lakatos (2003) como fonte primária de investigação. Os documentos em questão foram os Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) de Pedagogia presentes nas universidades federais localizadas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. Tais documentos foram coletados de maneira online,1 no site da instituição2 ou via e-mail, nos casos em que os documentos não constavam no site.

O critério de escolha das universidades federais selecionadas foi determinado considerando-se que essas instituições formam uma grande quantidade anual de professores em cursos de licenciatura nessa área, como também contemplam várias cidades ao seu redor, como regiões metropolitanas e o interior de seus respectivos estados. Assim, entende-se que se trata de instituições que formam uma quantidade significativa de profissionais que irão atuar nos anos iniciais do Ensino Fundamental, oferecendo, dessa forma, um panorama relevante no que diz respeito à formação de professores pedagogos no Brasil, de maneira geral.

Como metodologia de análise de dados, utilizamos a Análise de Conteúdo (AC) de Bardin (Bardin, 2016), na especificidade categorial. Tal metodologia consiste em

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (Bardin, 2016, p. 38).

A AC foi utilizada por entendermos que “[...] a categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os critérios previamente definidos”. (Bardin, 2016, p. 117). Justificamos nossa escolha por esse método analítico por compreender que esse processo de categorização é capaz de fornecer dados que possam caracterizar o panorama do ensino de Astronomia nos cursos de Pedagogia analisados.

O alvo principal da coleta de dados nos PPCs foram as ementas das disciplinas de Ciências presentes nessas propostas curriculares.3 Conforme aponta Gatti (2009), o termo ementa tem significados diversos, sendo que alguns PPCs a compreendem como a lista de conteúdos da disciplina, e outros como objetivos da disciplina, por exemplo. Mas a maioria das ementas analisadas neste trabalho traz tanto uma lista de conteúdos a serem ensinados quanto os objetivos da disciplina.

Tendo em mãos os PPCs, foi realizada a pré-análise das ementas de cada disciplina de ensino de Ciências e dos conteúdos apresentados nelas. Foram então selecionadas as que continham elementos de Astronomia. Como forma de classificar as dimensões histórica, metodológica e/ou prática e conceitual que apareceram nas ementas de Ciências que abordavam conteúdos de Astronomia, já na fase de exploração do material, utilizamos três enfoques de análises desenvolvidos por Batista (2016). Nossa escolha se justifica por reconhecermos que tais enfoques “[...] deveriam estar contemplados na ementa das disciplinas que envolvem a ciência no curso de formação inicial de professores dos anos iniciais, pois seria uma estrutura adequada para a formação de um profissional dessa área” (Batista, 2016, p. 63). A dimensão de cada enfoque será apresentada no Quadro 1 a seguir.

Batista, 2016.

Quadro 1 Enfoque das disciplinas 

Após a exploração e categorização dos dados, cumprimos a segunda etapa da AC, não apenas pelos enfoques trazidos no Quadro 1, mas também por outras categorias que serão mencionadas a seguir, no item 4. Foi contemplado pela AC, em sua terceira etapa, o tratamento dos resultados e inferências sobre a questão pesquisada. Tais resultados são apresentados na próxima seção.

IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DAS DISCIPLINAS QUE APRESENTAM CONTEÚDOS DE ASTRONOMIA NOS PPCS INVESTIGADOS E SEUS CONTEXTOS

Dos PPCs de Pedagogia das 27 universidades federais participantes da pesquisa, foi analisado um total de 66 disciplinas identificadas com foco no ensino de Ciências. Entre estas, apenas seis apresentavam elementos relacionados à Astronomia, ou seja, apenas cerca de 9% das disciplinas contemplam um currículo voltado para a formação de professores para o ensino de Astronomia nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Tais ementas foram então analisadas conforme os seguintes critérios: seu enfoque, conforme Batista (2016); carga horária, forma e conteúdo; comparação com os conteúdos da BNCC; profissionais que atuaram na produção do PPC; perfil do egresso e objetivos do curso; e espaços não-formais associados. Tais análises serão descritas a seguir.

a) Enfoques: Quando analisados por enfoque, de acordo com a categorização de Batista (2016), das seis disciplinas identificadas, apenas três apresentaram enfoques pertinentes às categorias A, B e C, como pode ser observado no Quadro 2 a seguir.

Fonte: Autoria própria.

Quadro 2 Disciplinas que apresentaram elementos de Astronomia 

Das seis disciplinas analisadas, duas são específicas de ensino de Astronomia. As demais levam o nome de Fundamentos e Metodologia (três) e, por fim, uma tem foco em Ciências, no nível de Ensino Fundamental. Podemos notar que todas as seis apresentam a categoria C, no entanto, quando analisada a bibliografia de base das disciplinas (Quadro 3), os conteúdos específicos (correspondentes à categoria C) ainda aparecem em quantidade menor. Dado isso, podemos inferir que uma das características da maioria das disciplinas específicas é que, seja nos temas ou bibliografias, se referem mais ao plano metodológico e a aspectos históricos do que realmente ao que deve ser ensinado na escola, apesar das seis apresentarem a categoria C. Esse tipo de dado é abordado por Gatti (2009), que esclarece que a minoria das disciplinas específicas é pensada para a perspectiva “do que” ensinar.

Com isso, “esse dado torna evidente como os conteúdos específicos das disciplinas a serem ministradas em sala de aula não são objeto dos cursos de formação inicial do professor” (Gatti, 2009, p. 24). A autora infere que “nas disciplinas de formação profissional, predominam os referenciais teóricos, seja de natureza sociológica, psicológica ou outros, com associação em poucos casos às práticas educacionais” (Gatti, 2009, p. 24). Percebe-se também que duas disciplinas são da região Nordeste, duas da região Norte, uma da região Centro-Oeste e uma da região Sul. Em contrapartida, nos PPCs analisados, a região Sudeste não apresentou nenhum conteúdo de Astronomia.

b) Carga-horária: A carga horária dessas disciplinas é limitada quando comparada com a carga horária total do curso, pois a disciplina com maior carga horária (80h) ainda corresponde a apenas 2,42% da carga horária total do curso. Uma possível explicação para a insuficiente carga horária das disciplinas envolvendo áreas de ensino de Ciências e Astronomia nos cursos de Pedagogia seria a grande oferta de disciplinas voltadas a uma visão mais psicológica e sociológica da área, e, consequentemente, a oferta de maior carga horária destinada a disciplinas dessa natureza. Esses efeitos podem ser elucidados pelo que aponta Sacristán (1998) quando afirma que a Pedagogia se tornou invisível e psicológica. Para o autor, os estudos dessa área se centraram em questões teóricas da psicologia que ainda não supriram, em certa parte, as reais necessidades de seus alunos.

O fato é que a formação em Pedagogia é muito ampla, resultando em um profissional polivalente, que é o docente que atua na Educação Básica, mais especificamente nos anos iniciais, o qual precisa apropriar-se de conhecimentos de áreas distintas e tentar desenvolvê-los de forma interdisciplinar (Lima, 2007). Nesse sentido, há diferentes frentes de trabalho para o profissional pedagogo, que vai desde a gestão escolar, para a qual a formação psicológica e sociológica mencionada é relativamente adequada, até a atuação em sala de aula propriamente, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, foco do presente trabalho, para a qual afirmamos que o currículo ainda precisa ser repensado, em termos de conteúdos científicos.

c) Forma e conteúdo: Outro ponto importante que deve ser mencionado corresponde ao formato das disciplinas nos PPCs, pois das seis disciplinas mencionadas, duas são optativas, isto é, passíveis de não serem ofertadas para todos os alunos, a depender do regimento de cada curso especificamente. A seguir, esses conteúdos de Astronomia são analisados de maneira mais detalhada, com base nas ementas e bibliografias apresentadas nos documentos investigados (Quadro 3).

Fonte: Autoria própria.

Quadro 3 Ementários das disciplinas que apresentavam elementos de Astronomia 

Quadro 3 Continuação... 

Quadro 3 Continuação... 

Quadro 3 Continuação... 

Com base no Quadro 3, é possível perceber que a maior parte das ementas apresenta elementos de ensino de Astronomia destinados a procedimentos metodológicos de ensino de Sistema Terra-Sol, Terra-Sol-Lua e Universo de forma geral, apesar de não ser mencionada nenhuma bibliografia básica para estudos dessas temáticas. Em contrapartida, as disciplinas da UFRN e UFRGS apresentam todas as bibliografias básicas e complementares para o ensino de Astronomia, além de seus ementários serem destinados especificamente a elementos dessa ciência.

A ementa da disciplina “Astronomia e Educação” (UFRN), além de vários conteúdos específicos de Astronomia, também aborda o tema “Ensino de Astronomia nos Ensinos Fundamental e Médio: conteúdos, metodologias e práticas”. Já na disciplina ofertada pela UFRGS, consta na proposta que o professor terá uma ampla base teórica dos elementos da Astronomia, no entanto, não são abordados aspectos metodológicos acerca de como ensinar esses conteúdos.

As ementas das disciplinas das universidades UFPA, UFT, UFBA e UFG ganham destaque no Quadro 3, pois o rol de conteúdos que disponibilizam nos faz questionar se o professor formador conseguirá trabalhar todos os conteúdos mencionados com uma carga horária média de 60h. Por exemplo, a ementa da disciplina “Fundamentos, Conteúdos e Metodologia de Ciências Naturais II” (UFG), que menciona, entre outros assuntos, os procedimentos metodológicos referentes aos conteúdos das Ciências da Natureza: Botânica, Zoologia, Ecologia, Educação Ambiental e da Astronomia; bem como a discussão de temas transversais como educação étnico-raciais e educação ambiental. Essa disciplina tem uma carga horária de 80 h, o que consideramos bastante relevante, no entanto, sua ementa pretende abordar os conceitos básicos de cinco áreas diferentes dentro da Ciências da Natureza, assim como os procedimentos metodológicos delas, além de propor tratar dos temas transversais citados. Diante dessa realidade, nós nos perguntamos: essa disciplina consegue dar conta de ensinar o que se propõe com essa carga horária?

d) Comparação com conteúdos indicados na BNCC: A BNCC tem sofrido severas críticas por preservar em sua ontologia um consenso por filantropia quanto à produção de conhecimentos “[...] usados por fundações privadas para obter um consenso entre múltiplos atores sociais e institucionais em apoio a uma determinada política pública [...]” (Tarlau & Moeller, 2020, p. 02). Veiga e Silva (2018), Flôr e Trópia (2018) e Franco e Munford (2018) também enfatizam que a nova proposta curricular oficial do país representa um retrocesso no que diz respeito a uma formação cidadã, constituindo-se como um documento com caráter doutrinador. Igualmente, Sacristán (2000) apresenta discussões ainda muito atuais ao analisar os objetivos de novas reformas curriculares, as quais são criadas, “[...] na maioria dos casos, para melhor ajustar o sistema escolar às necessidades sociais e, em muito menor medida, para mudá-lo, embora possam estimular contradições que provoquem movimentos para um novo equilíbrio” (Sacristán, 2000, p. 18). Apesar de tudo, a nova base curricular do país, a BNCC (MEC, 2018), já se encontra vigente para o Ensino Fundamental e Médio, sendo o documento que atualmente orienta a Educação Básica. Desse modo, os professores que lecionarem no Ensino Fundamental I (os pedagogos) precisam ter conhecimentos em ensino de Ciências e afins para serem capazes de atender à demanda solicitada pelo documento.

Assim, nesta seção, foram comparados: os conteúdos de ensino de Astronomia indicados na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (MEC, 2018); a unidade temática Terra e Universo, para os anos iniciais; e os conteúdos contidos nos ementários dos seis PPCs analisados, na tentativa de investigar os pontos de convergência e divergência que esses documentos - o primeiro pensado para a formação de alunos e o outro para a formação de professores - adotam. O comparativo pode ser observado no Quadro 4.

É possível notar que alguns elementos convergem tanto nas ementas selecionadas como na BNCC, no entanto, outros ficam implícitos, podendo ser suprimidos, dependendo da forma como a ementa for interpretada e a disciplina ministrada. Alguns tópicos das ementas da graduação são muito generalistas. Não se sabe, por exemplo, se os fenômenos do Sistema Terra-Sol-Lua mencionados no PPC da UFPA, ou o tópico sobre Terra, Sistema Solar e Universo, da UFBA, abordam escalas de tempo, Sol como fonte de luz e calor, entre outros itens indicados pela BNCC. A ementa da UFG indica o ensino de conceitos básicos de Astronomia, no entanto, o que se entende por “conceitos básicos” não está claro. Na ementa da UFT, ao tratar de observação e experimentação para o campo do ensino e aprendizagem em Astronomia, não se sabe ao certo que tipo de experimentos (ou conteúdos relacionados a eles) serão realizados.

Fonte: Autoria própria.

Quadro 4 Conteúdos de Astronomia da BNCC versus conteúdos de Astronomia contidos nos PPCs analisados 

Apesar de a UFRN elaborar uma ementa ampla, contemplando a maioria dos elementos indicados na BNCC, instrumentos ópticos não são abordados. E com relação à ementa da UFRGS, a qual prevê a discussão de grandes tópicos da Astronomia, no entanto, elementos essenciais não são explicitados, como o ensino de rotação da Terra e periodicidade das fases da Lua, que imaginamos estarem contemplados no item “planetas solares”. Alguns conteúdos mais avançados são indicados, o que é fundamental para uma melhor compreensão da Astronomia pelo licenciando, não suprindo, no entanto, suas necessidades imediatas em sala.

Inferimos com base nessa análise que é possível tais ementas contemplarem os conteúdos que o pedagogo precisará ensinar, no entanto, como não aparecem de maneira explícita no documento, não puderam ser considerados. Esse mesmo problema pode ocorrer quando o professor destinado a ministrar essa disciplina for estudar tal ementa.

Como já discutido, uma das lacunas do currículo de professores é a pouca importância dada aos elementos do ensino de Astronomia: apenas 9% dos PPCs das universidades federais brasileiras expressam um incentivo em colocar em seus ementários tópicos da área, assumindo um currículo escrito. Para Goodson (1997), é necessário lembrar que “[...] o currículo escrito é o testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas escolares” (Goodson, 1997, p. 20). A relevância de assumir nos ementários um currículo que inclui elementos de Astronomia acaba constituindo um valor a mais a tudo que envolve esse ensino.

Dessa maneira, estudos que tenham como foco o ensino de Astronomia são importantes e necessários. São indispensáveis para pensarmos de uma forma mais geral sobre as (in)certezas do Universo, sobre a nossa localização (Via Láctea, Sistema Solar, Terra), entre outros assuntos ligados ao tema. Leite et al. (2021) investigaram as justificativas do ensino de Astronomia e concluíram que as maiores razões para ensinar essa ciência estão relacionadas a questões sentimentais, sócio-histórico-culturais, e a um maior entendimento sobre o mundo e suas interdisciplinaridades. Contudo, para existirem ações nesse sentido, o primeiro passo é inserir ensino de Astronomia nos currículos de todas as áreas de ensino, especialmente nos cursos de licenciatura em Pedagogia, nos quais são formados os professores que atuam nos anos iniciais da Educação Básica.

Alinhamo-nos aos argumentos de Leite et al. (2021) e de Langhi e Nardi (2015) ao defenderem as aprendizagens que os alunos (de maneira geral, e não especificamente os dos anos iniciais) podem conquistar se apresentados à Astronomia, como: preservação do meio ambiente, sustentabilidade, compreensão sobre o mundo, podendo fazer relações com outras áreas de conhecimento que investigam o ser humano e nosso ambiente. Trata-se, a nosso ver, de aprendizagens que teriam efeitos positivos se trabalhadas desde os primeiros anos em que as crianças são expostas às Ciências, conforme também defende Carvalho (2020).

e) Profissionais: Outro ponto a se refletir diz respeito a quem construiu e/ou está construindo os ementários de ensino de Astronomia, consequentemente o ensino de Ciências para o curso de Pedagogia. Caso sejam professores de Física, Biologia ou Química, estariam elaborando ementas que tenham como foco conteúdos que se relacionam com os níveis de ensino em que os pedagogos irão atuar (Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos)?4 Questionamentos dessa natureza estão presentes nas reflexões de Sacristán (2000, p. 67) ao reconhecer que “as disciplinas e áreas do saber que formam os currículos escolares são, em muitos casos, seleções arbitrárias, sem coerência interna, que não transmitem nem cultivam a essência básica e genuína de cada área”.

Formulamos outras perguntas à medida que emergiram conteúdos de Astronomia nas disciplinas, como por exemplo, como e por que os conteúdos de Astronomia foram inseridos no ementário das seis disciplinas? Existem professores qualificados para ensinar tal ciência? Será que, mediante os demais conteúdos de Ciências apresentados na ementa das seis disciplinas, os professores conseguem ensinar os conteúdos de Astronomia, podendo utilizá-los de maneira interdisciplinar? Tais questões ecoam neste processo de pesquisa, uma vez que, para além de um currículo estabelecido no documento, este precisa de uma ação, isto é, ser efetivado no processo de formação docente.

Na tentativa de compreender o que levou os cursos de Pedagogia das seis universidades5 a adotarem conteúdos de Astronomia em suas ementas, foram enviados e-mails para os coordenadores do curso na época da criação dos PPCs. Dos seis envios, recebemos apenas um retorno, de uma coordenadora, afirmando que não se sentia apta a responder o motivo que levou à inserção da disciplina no PPC de Pedagogia. Assim, o e-mail que enviamos foi encaminhado ao professor de Geografia, responsável pela inserção da disciplina no curso. No entanto, após esse episódio, não houve mais retorno. Construímos, portanto, a hipótese de que a inserção da disciplina no curso de Pedagogia pode ter ocorrido devido à indicação de professores que fossem da área de Astronomia ou pela influência de docentes que apresentavam afinidade com o tema.

Para a construção da caracterização das disciplinas de ensino de Astronomia também avaliamos elementos externos e internos dos ementários dos PPCs, pois “[...] analisar currículos concretos significa estudá-los no contexto em que se configuram e através do qual se expressam em práticas educativas e em resultados” (Sacristán, 2000, p. 16). Com essa perspectiva, foi investigado, como elemento externo ao PPC, o corpo docente dos cursos cujas ementas foram identificadas com conteúdos de Astronomia, com o intuito de observar se os docentes desenvolvem pesquisas ou são formados na área de Astronomia. Porém, não obtivemos resultados expressivos: das seis instituições, apenas oito professores mencionaram alguma atividade relacionada à Astronomia em seu currículo Lattes, como participação em Bancas (Graduação e Mestrado) de temáticas sobre Astronomia, ou participação em atividades de extensão envolvendo ensino de Ciências, sem delimitarem, contudo, uma temática específica, ou ministraram disciplinas de ensino de Ciências no curso de Pedagogia.

f) Perfil do egresso e objetivos do curso: Foram investigados o perfil do egresso de Pedagogia e os objetivos do curso. Notou-se que o perfil dos egressos nas seis instituições visa uma formação para atuação nos diferentes níveis de ensino, pautada numa perspectiva crítica. Acentua-se também um perfil voltado para a coordenação e gestão educacional, configurando um perfil formativo múltiplo.

Inferimos que a maioria dos discursos presentes no perfil do egresso não esclarece a intenção formativa para esse profissional, como quando mencionam, por exemplo que “Espera-se que o pedagogo tenha uma ampla compreensão do universo da cultura e da produção do saber” (UFG).

Assim acontece em relação aos objetivos do curso, que se ampliam para a “produção e difusão do conhecimento científico e tecnológico do campo educacional em contextos escolares e não-escolares” (UFT). Em determinados trechos, os documentos chegam a afirmar que visam à difusão do conhecimento científico, o que aparece, no entanto, de forma muito vaga no PPC, dado que não aponta uma definição clara do que se compreende por conhecimento científico, tampouco esclarece como podem se relacionar com o ensino de Ciências.

g) Espaços não-formais: Para além da investigação do PPC e do currículo inicial do pedagogo, pode-se afirmar também que a análise de tudo que envolve o currículo é inevitável, em razão de serem igualmente utilizados para sua criação elementos exteriores à educação formal, como é o caso dos espaços não-formais de educação (Langhi & Nardi, 2009), que podem promover divulgação em Astronomia para professores, favorecendo seu entendimento sobre o tema. A Educação não Formal é caracterizada por ocorrer fora do espaço escolar, e, principalmente, da curricularização escolar. Ocorre atividades educativas nos espaços não formais, no entanto, a intencionalidade difere da Educação Formal (Marandino, 2015), pois não se tem pré-requisitos, avaliações, carga horária a se cumprir. Por isso, com base no site da Associação Brasileira dos Planetários e dos sites institucionais de cada uma das seis universidades selecionadas, foi realizado um breve levantamento dos espaços não-formais que divulgam Astronomia e se localizam nas capitais em que foram coletadas as seis ementas em questão.

Todas as seis universidades apresentam projetos relacionados ao ensino e divulgação de Astronomia, sendo que apenas a UFT não possui planetário. A UFPA também não conta com esse recurso, no entanto, a Universidade Estadual do Pará - cuja sede se localiza em Belém, mesma cidade em que é oferecido o curso de Pedagogia da UFPA - abriga dois planetários, um fixo e outro móvel. Dessa forma, entende-se que há a opção de visita a esse tipo de local pelos graduandos, mesmo que não sejam da mesma instituição. Assim, é possível inferir que, além da disciplina que aborda elementos de Astronomia, são oferecidos outros espaços não-formais de Educação em Astronomia, como planetários, clubes de Astronomia e qualquer outro projeto de extensão na área.

TECENDO DISCUSSÕES ACERCA DO ENSINO DE ASTRONOMIA

Diante de tudo o que foi analisado, desde as reflexões tecidas acerca das disciplinas de Ciências até as seis ementas relacionadas ao ensino de Astronomia, não foram evidenciadas justificativas da presença de tais elementos no currículo. As respostas dos professores que participaram das decisões de implementação da proposta de ensino de Astronomia poderiam explicar, ou até mesmo indicar, uma criação motivada por interesses particulares dos docentes, o que já seria um dado relevante, de acordo com os preceitos de Sacristán (2000). No entanto, mesmo sem tais respostas, afirmamos inicialmente, com base no referencial teórico utilizado, que o proposto (ou imposto!) - sejam leis que regulamentam a Educação, sejam os projetos pedagógicos pensados para o currículo dos cursos de licenciatura - corresponde a uma seleção cultural do currículo, não demonstrando fugir dessa circunstância.

Porém, nosso primeiro contato com os dados nos possibilitou vislumbrar que o ensino de Astronomia foi pensado de maneira diferente, pois não se incluiu Astronomia nas seis ementas por seleção cultural do currículo, ou pela importância desse ensino na formação inicial dos professores e na Educação Básica. Diante dessa constatação, levantamos a hipótese de que a criação de disciplinas com os conteúdos de Astronomia foi planejada por um professor que: ou pesquisava na área (isso parece mais evidente nas disciplinas optativas voltadas especificamente ao ensino de Astronomia), ou um professor que ministrava a disciplina de Ciências e desejava a inserção do ensino de Astronomia no currículo, por mais que não fosse formado nessa área.

Ainda assim, as escolhas de permanência do ensino de Astronomia nos ementários ainda estão submetidas a uma influência dos aparatos curriculares, ou seja, estão ligadas a um código6 (Sacristán, 2000). Por exemplo, em alguns dos ementários analisados, essa ciência foi contemplada, e em outras (especificamente em seis disciplinas), tornou-se mais evidente. Isso sugere que “aquilo que está vigente em determinado momento não deixa de ser um produto incerto, que poderia ter sido de outra maneira, e que pode ser diferente tanto hoje como no futuro” (Sacristán, 2000, p. 23). Tal situação nos conduz à hipótese, mesmo de forma subjetiva, que a inserção de conteúdos de Astronomia nos ementários pode ter sido construída pelo interesse de professores. Partindo dessa hipótese, é possível pensar que esse cenário pode se modificar, no futuro, em relação à presença (mais expressivamente, ou menos) do ensino dessa ciência nos PPCs de Pedagogia, mediante a elaboração de uma nova versão do documento por outros professores, que manifestem outros interesses e outras visões sobre ela.7

Questionamo-nos se o código escolhido pelos professores para inserir o ensino de Astronomia nos PPCs analisados contempla visões de conteúdo com as:

[...] possibilidades de aprendizagem dos alunos, seus interesses, sua forma de aprender; ou que eles são organizados em torno de unidades globalizadoras para dar mais significatividade à aprendizagem; que são ordenados com uma sequência que se considera mais adequada: em espiral, linear, etc.; que os métodos e as disciplinas são selecionadas considerando todos esses fatores psicológicos e pedagógicos, além de optar por princípios como a conexão da aprendizagem formal com as experiências prévias dos aluno, com as realidades culturais do meio imediato, etc. (Sacristán, 2000, p. 84).

Quando esses mesmos questionamentos sobre escolha de conteúdos de ensino de Astronomia são colocados em relação às diretrizes que regem a Educação Básica (ou seja, conteúdos que os professores dos anos iniciais precisam “conhecer”), os argumentos de inserção são mais evidentes: as concepções utilizadas para ensinar elementos da unidade temática Terra e Universo (MEC, 2018), por exemplo, ao levar em conta a importância, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, de “[...] aguçar ainda mais a curiosidade das crianças pelos fenômenos naturais e desenvolver o pensamento espacial a partir das experiências cotidianas de observação do céu e dos fenômenos a elas relacionados” (MEC, 2018, p. 328).

Com isso, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, as expectativas em relação ao professor que ensina Ciências são as de que seus alunos desenvolvam “[...] conhecimentos a respeito do movimento do céu e da maneira como os percebemos e os interpretamos” (Carvalho & Ramos, 2000, p. 96).

APONTAMENTOS FINAIS

Com base no que foi exposto, é possível inferir que a formação dos pedagogos das universidades analisadas apresenta uma carência muito grande nas questões associadas ao ensino de Astronomia, o que é um fato preocupante, uma vez que são esses profissionais que oferecerão o primeiro contato dos alunos dos anos iniciais com a Ciência e com a Astronomia.

Além disso, mesmo nos cursos em que estavam presentes alguns elementos de Astronomia, problemas foram encontrados. É importante frisar que, dos conteúdos de Astronomia contemplados nas seis ementas analisadas, apenas uma pequena parte tem pontos de convergência com os conteúdos previstos na BNCC (MEC, 2018), o que mostra uma falta de sincronia entre o que se estuda na licenciatura e o que se busca ensinar na Educação Básica.

A falta do contato do pedagogo com Astronomia em seu currículo de formação inicial pode acarretar alguns problemas em sua futura prática docente, entre eles, a criação e/ou potencialização de concepções alternativas acerca dos conhecimentos astronômicos, que serão repassadas aos seus alunos. Dessa forma, percebe-se que esta é uma questão educacional complexa, pois envolve tanto a formação do profissional quanto a percepção de Ciências dos alunos dos anos iniciais. Entende-se que há um longo caminho para a inclusão de uma Educação em Astronomia no currículo do professor dos anos iniciais e, consequentemente, na sala de aula dos anos iniciais. Assim, é necessário que os esforços feitos nos cursos de Pedagogia, os quais visam uma formação polivalente do professor, com o uso de metodologias de ensino inovadoras e fundamentos teóricos de aprendizagem, estejam alinhados ao ensino de conteúdos científicos, de modo a promovermos uma educação científica crítica para as crianças (não somente em Astronomia), desde os anos iniciais.

Esta pesquisa evidenciou indícios factuais de que as matrizes curriculares obrigatórias dos cursos de Pedagogia nas universidades federais das capitais do país, em sua maioria, não oferecem conteúdos de Astronomia para a formação inicial de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esse resultado já vem sendo afirmado na maioria das pesquisas, artigos e trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre a insuficiência de elementos de Astronomia na formação de professores dos anos iniciais (Langhi & Nardi, 2005; Batista, 2016; Lopes, 2018). Nosso estudo, no entanto, diferencia-se por apresentar um recorte nacional da área.

Apesar de as seis disciplinas que apresentaram elementos de Astronomia nos seus ementários revelarem alguns problemas que podem dificultar sua efetivação na prática, como o fato de quatro delas abrigarem uma quantidade ampla de conteúdo para uma carga horária muito pequena para ministrá-los, ainda assim, apresentam as possibilidades e as características de ensinar Astronomia para o professor dos anos iniciais, dado que não foi evidenciado nas outras 60 disciplinas analisadas.

Ao assumir as oportunidades de uma disciplina com inclusão de Astronomia, constroem-se privilégios curriculares para a formação do pedagogo, com as contribuições que essa ciência oferece, sobretudo quando desenvolvida de maneira interdisciplinar, conscientizando os alunos para temas relativos à cidadania, educação ambiental, sustentabilidade, geografia, etc.

Assim, sugerimos abordar tal problema por meio da introdução dos conteúdos de Astronomia nos cursos de Pedagogia com base na colaboração entre universidade e espaços não-formais que divulgam essa Ciência, visto que estes têm muito a oferecer aos professores em todas as áreas de ensino, inclusive dos anos iniciais, disponibilizando informações seguras e divulgando o conhecimento astronômico.

Por fim, ressalta-se a importância de a formação do pedagogo ser conduzida não apenas para a gestão escolar e para a compreensão de métodos de ensino e de aprendizagem, como também para a introdução das crianças no mundo da ciência, como bem indicam Moraes, Lima e Carvalho (2021), pois é dessa primeira experiência científica - e, neste caso, astronômica - que depende a apreciação e o interesse futuro das crianças pela Ciência. Assim, destaca-se que um déficit de formação em Astronomia na graduação do pedagogo pode acarretar um déficit de formação científica/astronômica, bem como a falta de interesse dos seus alunos pela área.

AGRADECIMENTO

A primeira autora do artigo agradece a FAPESPA (Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas) pelo financiamento da pesquisa em questão.

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1Os documentos foram coletados até o final de 2019.

2Foi utilizada para consulta a plataforma do e-mec, a qual contém o credenciamento de todos os cursos de Ensino Superior do país devidamente regularizados. Disponível em: https://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 30 de abril de 2021.

3As disciplinas de Ciências neste estudo envolvem: Ensino de Ciência, Ciências da Natureza, Educação ambiental e Astronomia.

4Para esse nível de ensino, o pedagogo atua no início da Etapa 1, correspondente ao Ensino Fundamental.

6Para Sacristán (2000), o código se caracteriza como elementos, ideias, sequências, metodologias etc. que são adotados em um currículo para alunos e professores.

7É importante esclarecer que foram analisadas apenas as disciplinas dos PPCs das universidades federais. Sabemos que existem diversas universidades estaduais situadas em capitais, e que manifestam um grande incentivo à Astronomia. No entanto, não faziam parte da amostra escolhida.

Declaração sobre disponibilidade de dados

O conjunto de dados que dá suporte ao estudo será disponibilizado no dataverse Scielo EPEC

O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Recebido: 08 de Dezembro de 2022; Aceito: 25 de Julho de 2023

Contato: Thayná Cristina Dias e Dias, Programa de Pós-graduação em Educação para Ciência, Universidade Estadual Paulista, Bauru - SP | Brasil, CEP 17011-101

Contato: Centro de Ensino de Ciências e Matemática de Minas Gerais - CECIMIG, Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais, revistaepec@gmail.com

Thayná Cristina Dias e Dias: Mestra em Educação em Ciências e Matemática. Doutoranda pelo programa de pós-graduação em Educação para Ciência da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP (Campus de Bauru), Brasil, São Paulo, Bauru, 17011-101. E-mail: thayna.dias@unesp.br

Camila Maria Sitko: Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática. Professora adjunto A na Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFP (Campus de Campo Mourão), Brasil, Paraná, Campo Mourão, 87301-060. E-mail: camilasitko@utfpr.edu.br

Rodolfo Langhi: Doutor em Educação Para a Ciência. Professor assistente doutor do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP (Campus de Bauru), Brasil, São Paulo, Bauru, 17033-360. E-mail: rodolfo.langhi@unesp.br

Editor responsável: Geide Rosa Coelho

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