Introdução
A ideia de Universidade Popular foi concebida, em meados do século XIX, pelos pedagogos dinamarqueses Nikolai Grundtvig e Kristen Kold no contexto da implantação de escolas livres de educação superior destinadas a classes sociais (operários, camponeses etc.) excluídas da elitizada universidade europeia da época (POULOIN, 2012). No século XX, o termo foi utilizado para designar iniciativas de instituições de educação continuada patrocinadas por organizações anarcossindicais e destinadas aos operários urbanos e suas famílias (MIGNON, 2007). No século XXI, o conceito tem sido recentemente recuperado por Michel Onfray nas novas universités populaires francesas1 e por Boaventura de Sousa Santos na iniciativa transnacional da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS).2
Num sentido geral, o adjetivo popular com frequência é utilizado em alusão a práticas, realidades, concepções, projetos ou processos considerados de qualidade inferior, marcados pelo senso comum, pelo espontaneísmo e pela falta de racionalidade crítica. Na ótica da teoria crítica contemporânea, a mesma expressão remete ao radical latino populus, por referência a povo, e pode ser empregada com significado distinto, identificando propostas e ações comprometidas com o protagonismo dos sujeitos, a emancipação das classes populares e a transformação radical da sociedade.
Como base conceitual, a teoria crítica rejeita o determinismo, o idealismo e o positivismo; como plataforma política, luta contra a opressão, a exclusão social e a herança colonial. Um dos predicados básicos dessa teoria aplicada ao campo da educação é a recusa da tese da neutralidade política do conhecimento, das instituições de ensino-aprendizagem e das práticas educativas. Nesse aspecto particular, Paulo Freire (1997, p. 78) afirma que “[…] não há nem jamais houve prática educativa em espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra, comprometida apenas com ideias preponderantemente abstratas e intocáveis.” Essa perspectiva das práticas educativas, inevitavelmente, revela uma contradição política de base: a educação pode assumir uma direção excludente, alienante, individualista, reprodutora do sistema hegemônico (numa palavra: elitista) ou, ao contrário, uma orientação democrática, libertadora, respeitadora das diversidades e emancipatória (enfim: popular). Esse dilema produz e reproduz modelos de sociedade distintos e antagônicos. Nesse sentido, um dos elementos fundamentais do caráter popular da educação superior relaciona-se às possibilidades e condições concretas de inclusão, na universidade, de classes, categorias e segmentos sociais que historicamente dela foram excluídos.
Anísio Teixeira, eminente educador brasileiro, há mais de 50 anos demonstrava enorme confiança na tecnociência como elemento de qualidade das práticas educacionais, além de fonte de soluções inovadoras para os dilemas relacionados aos projetos de popularização da educação universitária. A proposta anisiana de Universidade Popular tem como principal elemento uma estreita articulação do ensino superior com o secundário, mediante bacharelados de pré-graduação (mas já no nível universitário de formação geral) realizados numa rede de colégios universitários. Por sua vez, a proposta freiriana de educação popular promove modelos de ensino-aprendizagem baseados nos conceitos de autonomia e conscientização, orientados à emancipação do sujeito. Esse é o marco referencial que inspira e mobiliza o projeto político-institucional da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a mais nova universidade pública brasileira, cujo caso é sucintamente apresentado e analisado no presente texto.
O modelo brasileiro de Universidade Popular reserva à educação superior um papel central na promoção da integração social e na construção de projetos de desenvolvimento humano sustentável alternativos ao modelo neoliberal de desenvolvimento. Ao assentar sua base na ecologia de saberes e na epistemologia dos conhecimentos ausentes (SANTOS, 2008) e ao se estruturar em ciclos de formação (geral e cidadã; profissional e acadêmica), a UFSB assume uma proposta pedagógica de vanguarda. Sua perspectiva como Universidade Popular representa, portanto, uma opção descolonial, intercultural e emancipadora, tomando a educação como pressuposto para promover a democratização do conhecimento, o encontro de saberes, a justiça cognitiva, a equidade e a sustentabilidade socioambiental.
UFSB: Universidade Nova
Criada em 2013, além de ser a mais nova instituição da rede federal de educação superior, a UFSB pretende ser uma Universidade Nova (SANTOS; ALMEIDA-FILHO, 2008) quanto à arquitetura curricular, ao modelo pedagógico e às dinâmicas de formação, numa perspectiva ampla e integral da educação. O projeto da UFSB incorpora um conjunto de valores fundamentais para a instituição: eficiência acadêmica, integração social, compromisso com a educação básica e promoção do desenvolvimento regional. Com base nesses princípios, estabelece cinco elementos estruturantes: regime letivo quadrimestral; modelo de ciclos de formação; currículo modular flexível; cobertura territorial a mais ampla possível, capilarizada ao nível municipal e uma estrutura organizacional “leve”.
A UFSB está presente em Itabuna (campus Jorge Amado), em Porto Seguro (campus Sosígenes Costa) e em Teixeira de Freitas (campus Paulo Freire), municípios-polo dos territórios das regiões Sul e Extremo-Sul da Bahia. A principal inovação do modelo são unidades descentralizadas chamadas Colégios Universitários (CUNIs), pela qual estudantes podem fazer o primeiro ano de estudos sem sair da localidade onde residem. Os CUNIs utilizam instalações da rede estadual do ensino médio formando a Rede Anísio Teixeira de Colégios Universitários. Essa rede encontra-se em progressiva implantação na UFSB. Unidades especiais de CUNIs serão também implantadas em quilombos, assentamentos e aldeias indígenas que tenham oferta de ensino médio e adequada conexão digital. Para viabilizar a integração pedagógica, cada ponto da Rede Anísio Teixeira conta com um pacote de equipamentos de tele-educação conectados a uma rede digital implantada e gerenciada pela pró-reitoria de TI da UFSB. Equipes docentes coordenam e orientam estudantes e tutores. Esses tutores são oriundos das próprias escolas, cidades ou comunidades que sediam os CUNIs. Atualmente, a UFSB mantém oito CUNIs, nas cidades de Ilhéus, Itabuna, Teixeira de Freitas, Coaraci, Ibicaraí, Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Itamaraju.
Como modelo curricular, a universidade adota o regime de ciclos, oferecendo cursos de formação geral interdisciplinar em primeiro ciclo como modalidade exclusiva de acesso aos cursos de graduação; cursos de formação profissional específica compõem o segundo ciclo; e a pós-graduação, o terceiro. O primeiro ciclo compreende bacharelado interdisciplinar (BI) e licenciatura interdisciplinar (LI), cursos de graduação plena em grandes áreas que compartilham a etapa de formação geral, com duração de um ano ou três quadrimestres. O BI tem duração mínima de três anos, sendo oferecido em quatro áreas de formação: artes, humanidades, ciências e saúde. Com terminalidade própria, habilita o estudante a atuar no setor público, no segmento empresarial e no campo não governamental associativo. A LI, formação de docentes para o ensino básico, também oferece grandes áreas, seguindo parcialmente as áreas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): artes; ciências humanas e sociais; matemática e computação; ciências da natureza; linguagens e códigos. Tanto o BI quanto a LI habilitam, por meio de requisitos específicos, para o ingresso em uma formação profissional de graduação (curso de segundo ciclo), bem como para formação científica, humanística ou artística na pós-graduação (curso de terceiro ciclo).
A demonstração gráfica da figura 1 esclarece a lógica dos cursos de graduação no modelo de ciclos. Observa-se o arranjo na ordem de oferta de componentes curriculares (CC) com base na articulação entre um tronco comum da formação geral, elementos específicos de grande área de conhecimento e, em segundo ciclo, CCs de saberes e práticas específicos e/ou exclusivos de uma dada formação profissional ou acadêmica.
Os CCs da formação geral estão posicionados no início da formação universitária. Em seguida, componentes compartilhados pelas diversas carreiras em grandes áreas de formação. No segundo ciclo, concentram-se componentes específicos e, em alguns casos, exclusivos de formações profissionais. O estudante que pretende cursar medicina entra na universidade em um BI ou LI, mas preferencialmente no BI Saúde, em um dos campi ou em colégio universitário da Rede CUNI. Durante a formação geral, inscreve-se em CCs nos campos das artes, das humanidades e das ciências. Ao fazê-lo, poderá encontrar, por exemplo, CCs de psicologia na interface saúde - humanidades ou de saúde coletiva, na interface tecnociências-saúde. Nesse processo, a mobilidade interna é encorajada e as escolhas são facilitadas.
A arquitetura curricular da UFSB permite um tempo inicial prospectivo, pois fomenta a construção da maturidade e da autonomia no processo de escolha da trajetória singular do(a) estudante, respeitando opções e tempos. Desse modo, a exposição à cultura universitária ou mesmo a escolha eventual de uma carreira se definem pela opção de saída e não por uma entrada cega e prévia, como ocorre tradicionalmente quando a pessoa se inscreve num curso antes de entrar na universidade. De acordo com Lima et al. (2016, p. 191),
[…] escolhas profissionais feitas antes da entrada na universidade são, na melhor das hipóteses, idealizações, projeções construídas a partir de experiências de pais e demais familiares, amigos, professores e outros profissionais que eventualmente estão presentes na vida desses jovens.
A formação geral é constituída por CCs necessários para a vida universitária na sociedade contemporânea, sendo predominante a formação ético-cidadã. A formação específica amplia o horizonte acadêmico com a escolha possível de uma área de concentração específica, ligada a um curso profissional de segundo ciclo, mas sem o viés da especialização ou da escolha antecipada.
Na formação geral, são contemplados três grandes eixos:
I - Eixo de afiliação, por meio de um CC intitulado Experiências do Sensível, obrigatório para todos os estudantes de BI e LI. Esta inovação pedagógica visa recuperar, entre docentes e estudantes, a sensibilidade praticamente apagada da vivência acadêmica ao longo da vida escolar. São experiências compartilhadas, com o objetivo de requalificar a aventura de viver num mundo complexo e em constante mutação, compreendendo a experiência sensível como desencadeadora de ações estéticas, científicas, artísticas. Ao mesmo tempo, busca construir um ambiente de acolhimento às subjetividades e à diversidade, promovendo a ética e a solidariedade.
II - Eixo de formação cultural, com três blocos de CCs obrigatórios, sem pré-requisitos: língua portuguesa; linguagem matemática e computacional; estudos sobre a universidade em perspectiva local, nacional e planetária. Inclui também a compreensão de textos escritos em língua inglesa, por meio da permanente exposição a essa língua, com seis módulos, sendo os dois primeiros obrigatórios e os demais podendo ser optativos, a depender da área ou curso.
III - Eixo vocacional, com a escolha entre um e quatro CCs que apresentam visão panorâmica de cada uma das grandes áreas. Permite refletir e planejar o seguimento da vida pessoal-profissional, a partir de problemas atuais, trabalhos de campo e técnicas de orientação de carreira. Busca, também, oferecer um quadro atualizado das áreas básicas do conhecimento e das profissões.
Nesse desenho curricular, o(a) estudante pode optar por integralizar o BI exclusivamente na grande área ou buscar uma área de concentração preparatória para um curso de segundo ciclo. Assim, o diploma indicará bacharel em ciências, em artes, em humanidades ou em saúde, com um mínimo de 2.400h, tal como ocorre nos BIs da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao cumprir a etapa de formação geral (900h, em três quadrimestres), o estudante recebe um certificado de formação geral universitária (CFGU) na modalidade curso sequencial de complementação de estudos. Após a formação geral, o estudante do CUNI pode optar por concluir aí seus estudos ou por integrar-se ao BI ou LI na etapa de formação específica, mediante seleção direta por coeficiente de rendimento (CR) ou preenchimento de vagas residuais. Por variados motivos, pode suspender sua inscrição na UFSB para dedicar-se a uma atividade laboral sazonal ou, ainda, sob tutoria, programar uma série coordenada de CCs (no mínimo seis) pertencentes a um ou mais cursos para obter um certificado de curso sequencial, sem dirigir-se a uma área de concentração.
A UFSB opera com um regime de quadrimestres. Muitas universidades de grande prestígio internacional utilizam um sistema equivalente de quarters; no Brasil, a UFABC adota esse regime letivo desde sua fundação. O semestre letivo na universidade pública brasileira, e na rede federal em particular, é uma completa ficção, pois integraliza menos de quatro meses. O regime adotado pela UFSB totaliza 72 dias letivos por quadrimestre, com intervalos de duas semanas entre quadrimestres, além das férias de dezembro a fevereiro.
O acesso dos estudantes à Rede CUNI se dá mediante processo seletivo baseado no Enem, com cota de 85% das vagas para egressos do ensino médio público, sendo 50% destas reservadas a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita. Nesse caso, o escore Enem é utilizado como base classificatória num processo seletivo local, coordenado pela UFSB para assegurar sua política própria de ações afirmativas e inclusão social. Vagas supranumerárias são ofertadas a indígenas aldeados, quilombolas e assentados da região.
O concluinte de uma LI terá formação plena para docência no ensino básico. Busca-se formar um professor com autonomia profissional, autor e pesquisador de sua própria prática, que reconhece a si mesmo como sujeito em processo de formação permanente. Sua formação se dará por meio de laboratórios, oficinas, ateliês e componentes curriculares obrigatórios, optativos e livres, práticas pedagógicas e estágio supervisionado. Mesmo se optar pela saída imediata para o trabalho docente, na rede municipal ou na rede estadual de ensino, o egresso da LI poderá posteriormente, ao preencher requisitos de seleção em vagas residuais ou formas diretas de seleção, retomar os estudos nas respectivas áreas de formação profissional, em qualquer das modalidades previstas e concluir o ciclo profissionalizante em um dos cursos da UFSB, bem como prosseguir para a pós-graduação.
Universidade Popular: acesso e integração de saberes
Em sua proposta político-pedagógica, a UFSB (2014, p. 6) “[…] compreende a educação como tarefa civilizatória e emancipatória primordial, a um só tempo formadora e transformadora do ser humano”, revelando uma inspiração anisiana e freiriana. Para Anísio Teixeira (1968, p. 43),
O direito à educação faz-se um direito de todos, porque a educação já não é um processo de especialização de alguns para certas funções na sociedade, mas a formação de cada um e de todos para sua contribuição à sociedade integrada e nacional, que se está constituindo com a modificação do tipo de trabalho e do tipo de relações humanas.
O conceito de “uma espécie de Universidade Popular” remete ao projeto da célebre Escola Parque, integrada à rede de educação pública de Salvador, na década de 1950. A principal contribuição de Anísio ao projeto da primeira LDB, na era pós-Vargas, foi o modelo de educação integrada, do primário ao ensino superior, detalhando uma educação universitária em dois níveis de formação: curso básico e curso propedêutico. Anísio indica, sem hesitação, que as trajetórias de seleção para carreiras profissionais ou acadêmicas implicariam opções num mesmo ciclo de formação com a “[…] introdução da formação acadêmica ao lado e independente da profissional.” (TEIXEIRA, 1998, p. 155). O seguinte trecho sintetiza com clareza a proposta anisiana de Universidade Popular:
A reforma resolveria, assim, o problema da admissão à universidade, abrindo os seus portões para acolher a mocidade, que terminara o curso secundário e alimentava o propósito de continuar os estudos, para um curso introdutório, de nível superior, destinado a alargar-lhes a cultura geral recebida no nível secundário, dar-lhes uma cultura propedêutica para as carreiras acadêmicas ou profissionais ou para treiná-los em carreiras curtas de tipo técnico. Terminados esses cursos é que iria ele ser selecionado para os cursos regulares de graduação nas carreiras acadêmicas ou profissionais. (TEIXEIRA, 1998, p. 156)
Anísio Teixeira propôs o Colégio Universitário no início de sua carreira de líder intelectual da educação brasileira com a criação da Universidade do Distrito Federal em 1934-1935, concebida com um centro de formação de professores e uma faculdade central de ciências e letras, entrada única na educação superior para estudantes que completassem o ensino secundário na rede pública. Em vários escritos, detalha sua estrutura curricular: cursos de cultura geral; preparatórios para avançar na formação universitária; propedêuticos para ingresso nas escolas profissionais; cursos vocacionais para carreiras curtas, “[…] ampliando a sua capacidade de admissão para acolher todos que estiverem em condições de receber alguma espécie de ensino superior.” (TEIXEIRA, 1998, p. 189)
Como princípio pedagógico geral, o projeto da UFSB também revela forte inspiração na obra de Paulo Freire. Em todos os ciclos, os cursos são pautados numa reflexão crítica articulada à prática; num processo ensino-aprendizagem baseado em problemas concretos; na busca de respostas a demandas locais e regionais; no fortalecimento da educação cidadã e emancipadora. Para isso,
[…] valoriza as pedagogias ativas, retomadas criticamente, recuperando nos seus processos de ensino-aprendizagem conceitos e métodos das ecologias cognitivas contemporâneas e suas respectivas tecnologias de apoio. Tal modelo visa à formação plena e madura do estudante, não só para o mundo do trabalho ou para a profissionalização, mas sobretudo para a autoemancipação, a formação do cidadão crítico e consciente, comprometido com a promoção de equidade, ética e justiça na sociedade. (UFSB, 2014, p. 59)
Na ótica freiriana, o ensino-aprendizagem requer ambiente democrático e dialógico em que se exercita colaboração, solidariedade cognitiva e construção coletiva, superando práticas individualistas e meramente competitivas. A educação não pode ser reduzida a processos mediados pelo currículo e pelo professor; necessita ser mediatizada por objetos cognoscíveis e realidades mais amplas. De acordo com Freire, não basta aprender a ler palavras e assimilar teorias; é imprescindível aprender a ler e interpretar o mundo para transformá-lo.
Nesse modelo, ao ingressar na universidade, os estudantes não fazem matrícula no sentido convencional do termo, mas firmam e renovam periodicamente contratos pedagógicos, assumindo compromissos de aprendizagem, convivência, solidariedade e responsabilidade institucional. Essa estratégia pedagógica fortalece o significado social da formação universitária numa instituição pública. Contribuem, para tanto, as equipes de aprendizagem ativa (EAAs), especialmente no segundo ciclo. Articulado às EAAs, introduzimos avaliações processuais de aproveitamento acadêmico em três dimensões: individual, da equipe de aprendizagem ativa e do colega que cada estudante da UFSB terá sob sua responsabilidade. Trata-se de uma estrutura integrada de aprendizagem compartilhada (shared peer-learning) na qual residentes e outros estudantes do terceiro ciclo (pós-graduação), responsabilizam-se pela supervisão de estudantes do segundo ciclo, que por sua vez são tutores de estudantes de primeiro ciclo nos BIs e nas LIs.
Promove-se, na UFSB, o uso de tecnologias digitais de ensino-aprendizagem em todos os ciclos, priorizando expansão com qualidade. Para superar o suposto dilema massividade versus qualidade, o uso ampliado e competente de tecnologias aplicado a processos metapresenciais de aprendizagem apresenta grande potencial. Em várias universidades no mundo recursos educacionais abertos têm sido implementados e, apesar da inevitável polêmica, mostram-se muito atraentes. Uma metanálise de ensaios randomizados, avaliando evidências em relação à eficácia desses modelos híbridos, demonstra que o impacto pedagógico de recursos educacionais abertos é praticamente igual ao dos modelos convencionais de educação presencial com pequenos grupos (BOWEN et al., 2014). Isso significa que, com o mesmo investimento em recursos, equipamentos e por meio de uma formação continuada de docentes em prol de outras e novas formas de atuar em rede, é possível expandir e democratizar o acesso à educação superior sem perder qualidade.
A UFSB não oferece licenciaturas convencionais, definidas de modo disciplinar restrito ou mesmo em combinações ou fusões disciplinares. Com o modelo adotado, objetiva-se seguir o que a LDB definiu e o CNE regulamentou, mas que o sistema de educação e as universidades não seguem, apesar de o Enem estabelecer o perfil interdisciplinar da formação docente como desejado. Com a implantação das licenciaturas interdisciplinares no primeiro quadrimestre de funcionamento, de setembro a dezembro de 2014, a UFSB promoveu uma experiência inovadora, com a participação em sala de aula de mestres dos saberes tradicionais e seus aprendizes. Participaram carpinteiros navais, ceramistas, pajés conhecedores de plantas medicinais, pais e mães de santo de terreiros de candomblé, mestres de capoeira, mateiros, narradoras e historiadoras indígenas, pescadores, marisqueiros.
Antes de dar início a esse experimento pedagógico, a equipe docente inicial realizou uma cartografia dos saberes tradicionais e populares do Sul da Bahia e deu os primeiros passos no sentido de instituir reais colaborações com comunidades locais, algumas já organizadas e outras constituídas historicamente como povos ou instâncias tradicionais de artes e ofícios. Com essa experiência inicial, foi possível vivenciar o potencial da produção de material didático compartilhado nas escolas da região, com vistas a um conhecimento sistemático das soluções ambientais, sociais e estéticas de diferentes povos e comunidades da região. Com tal iniciativa, materializa-se um dos pressupostos fundantes da UFSB, que é de inscrever-se no território, não para impor uma episteme, mas para aprender e interagir com a epistemodiversidade que caracteriza os territórios onde a universidade se implanta.
Democracia cognitiva e ação descolonial
A América Latina e, particularmente, o Brasil se constituíram com base em forte herança colonialista e autoritária. A hierarquização de classes sociais produzidas e reproduzidas por mecanismos perversos de dominação, injustiça e desigualdade é um processo histórico com características estruturais. Essa configuração incorpora múltiplos aspectos associados, ou seja, a colonialidade não resulta apenas de ações e políticas que incidem sobre o campo econômico. Antes, articula a economia, a política, a cultura e a religiosidade, confluindo em um sistema colonial.
O papel primeiro de uma Universidade que se pretende popular é sua opção descolonial na promoção da democracia cognitiva (QUIJANO, 2009; MIGNOLO, 2008). Boaventura de Sousa Santos (2008) assinala que a democracia implica não somente participação política, mas apropriação e compreensão dos saberes necessários à participação consciente dos sujeitos em todos os aspectos da vida social. Considera ainda que, além da formação de profissionais críticos, a missão de uma universidade renovada em suas práticas políticas e pedagógicas se estende ao desenvolvimento de competências transformadoras, superando a segregação de sujeitos e a compartimentalização do conhecimento. (SANTOS & ALMEIDA-FILHO, 2008)
Aníbal Quijano estabelece uma diferenciação importante entre colonialismo e colonialidade. Para ele, a colonialidade transcende o colonialismo histórico e não desaparece com a independência, prolongando-se para dentro “[…] do sistema-mundo capitalista colonial-moderno.” (ASSIS, 2014, p. 614). De acordo com Walter Mignolo (2008), as populações consideradas inferiores sofreram historicamente o agenciamento epistêmico e político. Daí, para se emanciparem, precisam aprender a desobedecer e a desaprender, e, por outro lado, construir um novo pensar e um novo fazer.
A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento […]. Consequentemente, a opção descolonial significa, entre outras coisas, aprender a desaprender (como tem sido claramente articulado no projeto de aprendizagem Amawtay Wasi, voltarei a isso), já que nossos (um vasto número de pessoas ao redor do planeta) cérebros tinham sido programados pela razão imperial/colonial […]. Pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais. (MIGNOLO, 2008, p. 290-291, grifo do autor)
A educação superior adquire densidade popular quando assume o papel de promover a descolonização das mentes, das consciências e das práticas educacionais e sociais. A consolidação do caráter popular da universidade se dá na medida em que ela for capaz de contribuir de modo significativo com a reversão das injustiças, das desigualdades e do crescimento predatório e excludente e, por outro lado, com uma práxis efetivamente transformadora. A ação descolonial pressupõe uma opção político-pedagógica descolonialista. O papel primeiro de uma universidade que se pretende popular é, pois, sua opção teórico-prática pela descolonialidade, mais do que simplesmente pela descolonização.
Para a UFSB, o desafio da descolonialidade adquire triplo significado: a) em face do contexto socioeconômico e sociocultural em que está situada, em que ressalta ampla presença de indígenas, quilombolas, assentados, trabalhadores rurais e urbanos de classes menos favorecidas e historicamente excluídos; b) pelo contexto sociopolítico e educacional em que foi criada e que dá seus primeiros passos - expansão e interiorização da universidade brasileira; c) pelo contexto sócio-histórico de sua localização - marco inicial da ação colonizadora no Brasil. No local em que, por primeiro, foram impressas as marcas do colonialismo, torna-se simbolicamente fundamental desencadear fortes processos de descolonialidade do poder, do ser e do saber.
Fortalecer a Universidade Popular implica, necessariamente, ampliar condições - e não somente oportunidades, pois estas sem aquelas se tornam ineficazes - para as camadas populares acessarem a educação superior. Promover a democratização no acesso e na permanência na universidade requer garantir mais condições a quem sempre esteve menos favorecido ou excluído do sistema socioeconômico e educacional. Significa tratar os desiguais de forma diferenciada (princípio da equidade) para que todos possam usufruir dos mesmos direitos de maneira semelhante, evitando transformar diferenças em desigualdades. A universidade constitui-se, desse modo, em mecanismo importante para corrigir distorções históricas traduzidas em desigualdades sociais e econômicas.
À Universidade Popular, com efeito, cabe o efetivo compromisso político-pedagógico de fomentar a cidadania ativa, a cooperação, a solidariedade e a sustentabilidade planetária. Para tanto, torna-se essencial aprofundar a reflexão teórica e fortalecer iniciativas como a agroecologia, a agricultura familiar, a economia solidária, empreendimentos cooperativos, a mobilização comunitária, a saúde coletiva, a valorização e empoderamento dos diversos saberes e práticas populares, respeitando a sociodiversidade, a etnodiversidade e o multiculturalismo.
Considerações finais
Anísio Teixeira e Paulo Freire concebem a educação como instrumento de integração social, de autonomia do sujeito, de construção da equidade e de emancipação sociopolítica. Inspirada nesses autores, a UFSB orienta-se para a formação ética e cidadã, numa perspectiva pública e popular. Para ser pública e popular, a universidade precisa continuamente perseguir a perspectiva de uma educação humanizadora, promotora do desenvolvimento integral e da sociedade sustentável, superando as tendências da educação bancária, tecnicista, positivista, elitista e meritocrática. Esse desafio não será efetivamente enfrentado sem um permanente processo de investigação, análise, autoavaliação e reafirmação das bases epistemológicas e metodológicas da universidade.
Os desafios desse início de uma universidade que começa do ponto zero e traz como principais marcas o compromisso com sua região, com a educação básica e com inovações pedagógicas de grande monta são enormes. Anima-nos compartilhar, do modo mais amplo possível, tudo o que temos conseguido propor e até mesmo realizar para superar os desafios de implantar uma Universidade Popular. Os próprios estudantes que já concluíram a formação geral em BIs e LIs têm divulgado suas vivências em blogs e redes sociais, revelando anseios e comunicando aprendizagens, demonstrando que a experiência de criar uma instituição universitária em bases renovadas se realiza numa relação dialógica, sensível e comprometida com o território que nos abriga, seja este o do campus universitário seja o do planeta.
As metodologias ativas representam avanço significativo em relação ao modelo tradicional, “bancário” e meramente teórico de ensino. A UFSB apresenta uma experiência (inicial e em permanente construção) de democratização do acesso à educação superior, bem como de democratização dos saberes acadêmicos e populares. Por outro lado, vale ressaltar que não é suficiente incluir na universidade uma parcela de público que nunca esteve nela. Numa visão mais alargada, que compreende o direito inalienável e absolutamente essencial da educação na vida das pessoas, o desafio passa a ser lutar pela garantia de possibilidades e condições para a universalização da educação universitária e para a consolidação da justiça cognitiva.
No contexto do sistema neoliberal, do mercado total e da grave crise socioambiental que estamos vivendo, a Universidade Popular enfrenta sérios desafios no sentido de construir sujeitos críticos, ativos e transformadores; de promover a emancipação, a solidariedade, a equidade e o desenvolvimento humano, econômico, tecnológico e social. Nesse sentido, como aponta o Plano Orientador da UFSB, é fundamental a interlocução e a integração continuada, efetiva e orgânica da universidade, não só com os movimentos sociais populares, mas com as dimensões de sociodiversidade, etnodiversidade e epistemodiversidade que caracterizam os territórios do Sul da Bahia que acolhem a nossa Universidade Popular, em permanente diálogo com as novas ecologias de saberes que desafiam e transformam o contexto planetário contemporâneo