SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número58O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO: HISTÓRIAS DE VIDA E DE APRENDIZAGEM NA CONSTITUIÇÃO PESSOAL E PROFISSIONAL DO(A) EDUCADOR(A) SOCIALFormação humana e o Ensino Religioso na Educação Infantil índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.58 São Paulo jul./set 2021  Epub 06-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n58.13507 

Artigos

PROFESSORAS E BEBÊS: UMA DOCÊNCIA INTERPRETATIVA-RELACIONAL

TEACHERS AND BABIES: AN INTERPRETATIVE-RELATIONAL TEACHING

MAESTROS Y BEBÉS: UNA ENSEÑANZA INTERPRETATIVA-RELACIONAL

Marlene Oliveira dos Santos, Doutorado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-5894-1298

1Doutorado em Educação, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Salvador, Bahia - Brasil


Resumo

O presente artigo discute a docência interpretativa-relacional na Educação Infantil. Os principais argumentos teóricos dialogam com estudos de Tardif, Lessard, Martins Filho, Delgado, Heidegger e outros pesquisadores do campo da Educação Infantil. A pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo descritiva, escutou seis professoras que exerceram a docência com bebês na rede pública de ensino de um município brasileiro. As narrativas de cada docente foram ouvidas em encontros denominados Tertúlias Narrativas. Concluiu-se que a docência interpretativa-relacional é experienciada cotidianamente por professoras e bebês e que toda interpretação vem acompanhada de uma ação, pois quando a professora interpreta, ela age, estabelece relação e se move em direção ao bebê, reconhecendo-o como um sujeito potente, capaz e criativo, princípio fundante para o trabalho pedagógico.

Palavras-chave: bebês; docência; educação infantil; professoras.

Abstract

This article discusses the interpretive-relational teaching in Early Childhood Education. The main theoretical arguments dialogue with studies by Tardif, Lessard, Martins Filho, Delgado, Heidegger and other researchers in the field of Early Childhood Education. This was a descriptive research, that had a qualitative approach and listened to six teachers who taught babies in the public school system of a Brazilian municipality. The narratives of each teacher were heard in meetings called Narrative Tertúlias. It was concluded that interpretive-relational teaching is experienced daily by teachers and babies and that every interpretation is followed by an action, because when teachers interpret, they act, establish a relationship and move towards the babies, recognizing them as powerful, capable and creative subjects, founding principle for the pedagogical work.

Keywords: babies; teaching early; childhood education; teachers.

Resumen

Este artículo analiza la enseñanza interpretativa-relacional en la Educación Infantil. Los principales argumentos teóricos dialogan con los estudios de Tardif, Lessard, Martins Filho, Delgado, Heidegger y otros investigadores del campo de la Educación Infantil. Esta investigación con enfoque cualitativo, de tipo descriptivo, escuchó a seis docentes que se encontraban enseñando bebés en el sistema escolar de un municipio brasileño. Las narrativas de cada profesor fueron escuchadas en encuentros denominados Tertulias Narrativas. Se concluyó que la enseñanza interpretativo-relacional es vivida diariamente por maestros y bebés y que toda interpretación va acompañada de una acción, porque cuando la maestra interpreta, actúa, establece una relación y se mueve hacia el bebé, reconociéndolo como un poderoso, capaz y creativo sujeto, principio fundacional del trabajo pedagógico.

Palabras clave bebés; enseñanza; educación infantil; maestros.

1 Introdução

A docência como profissão existe desde o século XVI (VEIGA; ARAÚJO; KAPUZINIAK, 2005), mas o exercício docente com bebês em uma instituição de Educação Infantil é algo novo. A inserção de bebês no sistema público de ensino como “estudantes”, nas últimas décadas, recolocou no centro do debate político-acadêmico o tema da docência, da identidade e da formação do profissional responsável pelo educar-cuidar-brincar na escola. A principal novidade reside no fato de garantir aos bebês o direito de terem um professor1 como o profissional responsável pelo trabalho pedagógico. A presença de bebês em instituições de caráter confessional e filantrópico no Brasil é notada a partir da segunda metade do século XIX, mas em uma perspectiva de atendimento assistencial e à margem das políticas públicas de educação.

Ter um professor com nível superior, conforme prevê a legislação educacional brasileira atual (BRASIL, 1996), como o profissional responsável pelo trabalho pedagógico com os bebês é um avanço importante para a configuração e afirmação da Educação Infantil como campo de atuação profissional e um relevante passo para a atualização de paradigmas - médico-higienista, espontaneísta e escolarizante - que sustentaram, durante muito tempo, a ação de guarda e de cuidado de bebês em espaços doméstico-institucionais (OLIVEIRA, 2005).

Mesmo com avanços importantes no marco regulatório e na produção de conhecimentos sobre a infância, a criança e a Educação Infantil, essas tendências não desapareceram, elas ainda se mantêm vivas e presentes em orientações, diretrizes pedagógicas, políticas públicas e materiais didáticos, interferindo na autonomia do professor e no trabalho pedagógico com seus princípios e concepções conservadoras.

A docência na Educação Infantil ainda carrega as marcas deixadas por uma concepção de magistério infantil associada à condição feminina, à assistência, ao cuidado e à socialização da criança (KRAMER, 2005; CERISARA, 2002). Esse binômio - ser mulher e trabalhar com criança -, construído socialmente, está tão enraizado no modo de a sociedade conceber a docência na Educação Infantil que, hoje, mesmo com o avanço da legislação educacional vigente e com a definição de diretrizes e orientações para esse segmento, ainda se questiona a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, como campo de atuação profissional e como campo de conhecimento.

A docência é muito complexa e essa complexidade encontra-se tanto na Educação Infantil como nos demais segmentos da Educação Básica. A docência é uma ação educativa intencional, marcada por princípios políticos, éticos e estéticos, que se concretiza na relação entre sujeitos, que buscam construir conhecimentos de forma articulada e contextualizada em espaços escolares e não-escolares.

A docência, dentre outros elementos, envolve escutar, aprender, ensinar, planejar, estudar, refletir sobre a prática, interpretar, documentar, avaliar, produzir/socializar conhecimentos e acompanhar o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças, seja na condição de professor de bebês na Educação Infantil, seja na de professor de adolescentes e jovens no Ensino Médio.

Ser professor e exercer a docência na Educação Infantil não é mais “fácil” e não dá “menos” trabalho, como aparece no imaginário social brasileiro quando se compara a ação docente nos três segmentos que constituem a Educação Básica. A construção de uma imagem da profissão docente como sendo fácil de ser desempenhada com os bebês mostra-se como “equivocada”, pois o trabalho pedagógico com crianças é intenso, complexo e requer formação específica, conhecimentos plurais e condições de trabalho asseguradas. Esta premissa é válida tanto para os professores da Educação Infantil como para os docentes de outras etapas e modalidades da educação. Além disso, o fato de a criança ser o “objeto” de trabalho do professor na Educação Infantil não significa, em hipótese alguma, facilidade na mediação pedagógica, nas relações, interações, investigações, descobertas e na construção das aprendizagens, ao contrário, quanto menor a criança mais conhecimento o professor precisa ter para exercer a função docente.

Pesquisadores e especialistas da Educação Infantil têm feito um esforço coletivo para produzir conhecimentos sobre as especificidades da docência com bebês (TRISTÃO, 2004; AMBROSETTI e ALMEIDA, 2007; DUARTE, 2011; 2012; ARRUDA, 2016) e sobre a formação de professores para a Educação Infantil (OSTETTO, 2008; GOMES, 2009; 2018; CRUZ, 2010), o que vem contribuindo para o cambiamento do olhar descrito acima sobre a docência com crianças de pouca idade. Além desses estudos, a escuta do que os professores da Educação Infantil têm a dizer é uma das condições importantes para quem pretende compreender a docência e o currículo a partir do cotidiano escolar. Aqueles que vivem e fazem o currículo na escola são possuidores de informações e saberes preciosos. Todavia, parece que esses saberes quando anunciados por quem está “na prática” perdem valor e relevância político-pedagógica. É como se a fala do professor pronunciada em diferentes instâncias, especialmente aquele que trabalha com bebês, não provocasse tanto interesse no ouvinte. É preciso “[...] assegurar que a voz do professor seja ouvida, ouvida em voz alta e ouvida articuladamente”, diz Goodson (1992, p. 67) em seu texto “Dar voz ao professor: histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional”.

O valor e o eco da fala de um professor na sociedade estão relacionados à sua valorização, reconhecimento e prestígio social. Escutar o que o professor disse significa fazer reverberar o que foi escutado na proposta pedagógica e nas políticas públicas, objetivando o planejamento e a execução de ações concretas para a melhoria das condições de trabalho, para potencialização de processos formativos, para a resolução de problemas e para valorização de ações pedagógicas e da carreira desse profissional. E quem está interessado nas experiências e narrativas de professores que trabalham com bebês? Por que as narrativas dos professores que trabalham com criança ainda produzem pouco eco na sociedade brasileira?

Se o professor ainda não tem a formação específica para trabalhar com os bebês é porque o tempo/a qualidade dessa formação e o ingresso dos bebês na escola nem sempre acontecem concomitantemente. De um modo geral, primeiro, os bebês são matriculados e passam a frequentar uma escola de Educação Infantil, e, somente depois, quando acontece, o estado propõe algum tipo de ação formativa para esses docentes que trabalham com bebês. Os professores têm buscado meios para construir conhecimentos quando se deparam em um grupo de bebês. Esse movimento tem ocorrido de forma individual e/ou coletiva no contexto da escola, que desenvolve ações formativas para os seus profissionais. Exigir apenas do professor que ele tenha uma formação específica para o trabalho pedagógico com bebês, sem que o estado garanta as condições necessárias, é atribuir ao docente uma responsabilidade exclusiva pela sua formação. Eximir o estado de assumir o seu papel constitucional, que é de assegurar políticas públicas e uma educação de qualidade para todos, é um dos princípios das políticas neoliberais (GENTILLI; SILVA, 2001) e neoconservadoras (LIMA; HYPOLITO, 2019) que vêm se aprofundando no Brasil e atingindo intensamente a Educação Infantil. Os professores querem se atualizar e construir conhecimentos sobre a educação dos bebês e seus processos de desenvolvimento para exercer, com qualidade, a docência com crianças, mas o poder público tem se mostrado omisso em relação à educação e aos seus profissionais.

As transformações sociais, culturais e econômicas da sociedade em cada momento histórico afetam a docência tanto no que tange à subjetividade do professor quanto às políticas públicas e projetos que versam sobre a garantia dos direitos dos profissionais da educação e das crianças. Por esta razão, a discussão feita ao longo deste texto sobre a docência interpretativa-relacional na Educação Infantil está matizada de questões político-pedagógicas, como pode ser visto nas seções seguintes.

2 O caminho narrativo da pesquisa: sobre os instrumentos e procedimentos

A pesquisa desenvolvida possui características da abordagem qualitativa, do tipo descritiva (TRIVIÑOS, 1987; LÜDKE; ANDRÉ, 1986) e o método de investigação foi sendo tecido no caminho narrativo da pesquisa com as narrativas das professoras.

O caminho narrativo da pesquisa foi construído entre a pesquisadora e as seis professoras que exerceram à docência com bebês, no ano 2016, na rede municipal de ensino de uma cidade brasileira. Todas as professoras integrantes da pesquisa possuíam graduação em Pedagogia. Cinco são funcionárias públicas concursadas do município que foi o campo da pesquisa; apenas uma é contratada pelo Regime Especial de Direito Administrativo. As professoras estavam distribuídas em três Centros Municipais de Educação Infantil, nos quais encontravam-se os quatro grupos de bebês existentes na rede municipal, naquele ano. Visando manter em sigilo a identidade das professoras, adotaram-se os códigos P1, P2, P3, P4, P5 e P6 para identificar suas falas.

As narrativas das professoras foram escutadas em encontros nomeados pela pesquisadora de Tertúlias Narrativas. ‘Tertúlia’ porque constituiu-se um lugar de encontro entre a pesquisadora e seis professoras da Educação Infantil que trabalhavam com bebês na rede municipal de um município brasileiro. ‘Narrativas’ porque o caminho narrativo pedia uma estratégia de encontro que primasse pela alteridade nos atos de escuta, diálogo e reflexão entre as integrantes da pesquisa sobre os currículos praticados com os bebês, tema da pesquisa realizada.

As Tertúlias Narrativas, matizadas por poemas, poesias e músicas, foram encontros nos quais cada professora relatou suas histórias, escutou as narrativas de seus pares, teve seus gestos, expressões, palavras e silêncios acolhidos e tensionados, ampliando seu repertório narrativo e a sua experiência como narradora-ouvinte. No total foram 10 Tertúlias Narrativas, oito das quais ocorridas no período de agosto a novembro de 2016; as outras duas ocorreram, uma em julho e a outra em agosto de 2017, com duração de aproximadamente 2 horas cada. Em virtude de ajustes no calendário, a periodicidade dos encontros variou entre semanal, quinzenal e a cada 20 dias.

No caminho da pesquisa, três tipos de instrumentos foram adotados: de registro, de mediação e de síntese. Para armazenar as narrativas, na íntegra, recorreu-se aos artefatos tecnológicos (gravadores de áudio, celular e gravador de voz; máquina fotográfica e filmadora), ao caderno de anotações e aos relatos escritos feitos pelas professoras (aqui chamados de instrumentos de registro).

Outro instrumento que fez parte das Tertúlias Narrativas foi o cesto de tesouros, alcunhado de instrumento de mediação. Mediação porque ele permitiu que as professoras dialogassem entre si e entre elas e a pesquisadora sobre os currículos produzidos e praticados com os bebês a partir dos objetos, brinquedos, livros, materiais e documentos trazidos pelas docentes em cada Tertúlia Narrativa para o referido cesto. A presença do cesto nas Tertúlias Narrativas veio de uma inspiração da abordagem pikleriana2, que propõe em sua pedagogia o respeito à singularidade e à atividade autônoma de cada criança em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem. O cesto de tesouros, proposto por Elinor Goldschmied e Sonia Jackson (2006), colaboradoras de Pikler, é um cesto de vime com uma rica variedade de objetos do cotidiano, artesanais e manufaturados, de diversos tamanhos, comprimentos, formas, texturas, temperaturas e pesos, para que os bebês, que já sentam sozinhos, os explorem.

O último instrumento, o de síntese, refere-se ao cesto de palavras, isto é, às palavras-destaque. As palavras-destaque expressam uma síntese das experiências das professoras em cada Tertúlia Narrativa. Ao final de cada encontro, as professoras retiravam, de seu repertório e/ou do que foi escutado, palavras que foram grafadas com canetas coloridas em pedaços de papel vergê bege, cortados em forma de retângulo. Cada palavra, cheia de gente, veio acompanhada de outras palavras carregadas de significados e sentimentos.

3 A docência interpretativa-relacional em foco

Olhar para a docência com os bebês sem compreender o contexto no qual ela é tecida, no cotidiano da escola e da sociedade, é sinal de cegueira às complexidades e sinuosidades que envolvem ser professor no Brasil hoje, especialmente ser professor da Educação Infantil que exerce a docência com bebês. Logo, a reflexão sobre a docência com crianças de pouca idade está, sem dúvida, entrelaçada com o contexto sociopolítico e cultural de cada época, que também é (re)criado cotidianamente pelas professoras e bebês por meio de suas ações, posições e intervenções no mundo.

A palavra do-cência com o seu prefixo “do” remete à ideia de encontro entre duas ou mais pessoas no ato pedagógico. A etimologia da palavra docência traz outro significado (‘ensinar, instruir, mostrar, indicar, dar a entender’), mas uma interpretação distinta foi feita aqui, partindo do princípio de que a docência acontece com um outro ou com outros. O professor pode se inspirar na sua história de vida para exercer a docência, mas ele não pode ser professor de si mesmo.

A docência como profissão tem o professor e a pessoa do professor com toda sua subjetividade, mas ela não pode existir sem o(s) outro(s). Assim sendo, a docência tem natureza coletiva e se constitui na/em relação com o(s) outro(s). E essas relações são relações humanas, individuais e sociais ao mesmo tempo (TARDIF, 2002).

A docência, portanto, é um ato humano para com outros humanos. Esse é o material de trabalho do professor: o ser humano desde a tenra idade. Para Tardif (2002, p. 128), “o objeto de trabalho dos professores são seres humanos individualizados e socializados ao mesmo tempo”. O ser humano como “objeto” de trabalho do professor introduz pelo menos três características no processo de trabalho docente: são indivíduos e são heterogêneos; os estudantes “são seres sociais e suas características socioculturais despertam atitudes e julgamentos de valor nos professores”; a dimensão afetiva passa a fazer parte do trabalho pedagógico por se tratar de seres humanos (TARDIF, 2002, p. 129-130).

A docência, como ato humano e entre humanos, é essencialmente relacional e marcada pelas interações humanas, como destacam Tardif e Lessard (2005). Para esses autores, o “[…] trabalho sobre e com os seres humanos leva antes de tudo as relações entre as pessoas, com todas as sutilezas que caracterizam as relações humanas” (p. 33). No caso do trabalho pedagógico com bebês, a dimensão relacional é estruturante e ganha mais força porque são crianças muito pequenas, o que exige do professor uma ação voltada para as minúcias do fazer fazendo da docência (MARTINS FILHO, 2013). Em seus estudos, este pesquisador destaca que a docência com bebês se constitui na vida cotidiana e que dar atenção às minúcias do fazer fazendo na prática das professoras é uma das formas para se compreender a complexidade que envolve o ato docente.

Para Martins Filho e Delgado (2016, p. 9), “[...] o exercício da docência envolve não somente as professoras, mas os bebês, as crianças bem pequenas e suas culturas constituídas em práticas sociais.” Esses autores defendem a participação das crianças na construção da docência e as professoras P5 e P3 também vão nesta direção e dizem que, mesmo com as pesquisas feitas na internet sobre o trabalho pedagógico com os bebês, elas aprendem a ser professoras junto com os bebês:

E eu aprendi uma coisa: são eles mesmos que nos ensinam no dia a dia. Eu aprendi que no meio de tanta pesquisa que eu fiz (e olhe que pesquisei demais!), eu assisti vídeos, eu procurei blogs de pessoas que trabalhavam em Berçário, eu li documentos municipais de outros estados para ver exatamente como é que era organizado e eu vi que o meu aprendizado foi junto a eles. É vivenciando o dia a dia de cada um deles que você percebe exatamente como é que você pode estar aprendendo com eles e, ao mesmo tempo, também, de certa forma, dando a sua contribuição naquilo que tentamos fazer no nosso dia a dia com eles (P5, 8ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 13).

P5 traz uma coisa bem bacana, que eu acho também: quem mais me ensina a trabalhar com o Berçário são as crianças. [...] é como fosse nosso combustível (P3, 8ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 15).

Esse é um olhar da professora que vê o bebê como um ser potente e capaz (RINALDI, 2016) que, com seus gestos, expressões, invenções e conquistas, é capaz de influenciar e alterar o modo de ser professor e de exercer a docência no cotidiano. Essa perspectiva se potencializa quando o professor busca compreender os bebês na sua complexidade e riqueza por meio da escuta e de um olhar sensível, acolhedor e encorajador. Caso contrário, as experiências e ações dos bebês no cotidiano da escola caem no lugar da invisibilidade e da normalidade, pouco influenciando o modo de ser professor do docente que está com eles no cotidiano.

A docência com bebês, como prática social e coletiva, se constitui mesmo é no encontro com o outro e num movimento fractal do professor consigo mesmo e com a sociedade. A história de vida do professor, a sua trajetória escolar, a sua relação com os seus pares, com o Sindicato, com movimentos sociais, com os órgãos executivos da educação, com a conjuntura política do país/município e com as famílias e as crianças são fios que compõem o ato da docência com bebês e deixam marcas no percurso profissional do professor. Eis o que disse a professora P1:

Eu tive professor que, por exemplo, ele passava uma atividade de Artes, e se ele não gostasse, ele amassava e jogava no lixo. Eu tenho imagens nítidas de professores fazendo isso comigo na Educação Infantil. E eu dizia: eu quero ser uma professora que faça a diferença. Eu posso até deixar lembranças, mas eu não quero uma lembrança dessa em uma criança nunca. [...] E na 5ª série eu tive um professor de Matemática que ele me disse: P1, você é muito inteligente. Gente, vocês não sabem como aquele homem conseguiu transformar a minha vida em tudo, sabe? Profissionalmente, em tudo. E a gente pode ser bom e muito perverso com os nossos alunos. Então, a gente precisa ter essa consciência na Educação Infantil, Fundamental, onde quer que você esteja. Você é a referência naquele momento e você deixa marcas e pode ser marcas que talvez psicólogo nenhum consiga te fazer curar (6ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 19).

As palavras da professora mostram que da sua passagem pela escola ficaram marcas que até hoje ainda estão presentes na sua trajetória profissional. De fato, “[…] cada professor é uma pessoa única e cuja personalidade conta muito” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 190) na constituição do ser docente. Foram marcas que independente de seu significado, danos e/ou benefícios, também colaboraram com a constituição do seu ser docente: “eu quero ser uma professora que faça a diferença”, afirmou P1. As experiências escolares, desde a infância, se tornam, sem dúvida, fontes de inspiração para o exercício da docência na Educação Infantil.

Essas marcas se constituem em uma espécie de genes do DNA da docência (SANTOS, 2017) e afetam longitudinalmente o modo de ser e de estar professor de cada sujeito. Assim como o DNA de cada indivíduo é exclusivo, o DNA da docência também é. Cada professor tem o seu. A diferença é que o indivíduo já nasce com o conjunto de genes que define o seu DNA e o DNA da docência vai sendo construído paulatinamente com as múltiplas experiências pessoais e profissionais do professor, desde a infância.

O DNA da docência é um conjunto de marcas (genes) que influenciam no modo como o professor constrói e experiencia o fazer docente. E esses genes são conhecimentos, saberes, sentimentos, afetos, destratos, elogios, silêncios, olhares, gestos, expressões, incentivos resultantes das experiências do professor que foram impressos na constituição de seu eu ao longo de sua vida. Nas pesquisas realizadas por Tardif, na década de noventa, ele já apontava que “[...] os professores utilizam, em suas atividades cotidianas, conhecimentos práticos provenientes do mundo vivido, dos saberes do senso comum, das competências sociais” (TARDIF, 2002, p. 136).

As marcas que constituem o DNA da docência de cada professor não desaparecem com a virada de um século para outro, com mudança de uma escola para outra, de um segmento para outro ou com a adoção de um novo modelo pedagógico3. Cada docente carrega consigo as suas marcas, mostrando que a docência possui singularidades e também traços comuns entre as docências exercidas em outras etapas e níveis de ensino, em diferentes escolas e espaços geográficos.

A docência com os bebês, por exemplo, tem as suas especificidades, mas possui semelhanças com a docência nas demais etapas da Educação Básica, pois a profissão é professor, como afirma Nóvoa (1992; 1995). Popkewitz (1992, p. 38), por sua vez, assinala que “profissão é uma palavra de construção social, cujo conceito muda em função das condições sociais em que as pessoas a utilizam”. Logo, se o tornar-se professor, como profissão, é uma construção pessoal, social, política e histórica, as singularidades e as semelhanças da docência não se restringem a algumas etapas e modalidades da educação. Reconhecer que o professor da Educação Infantil é professor da Educação Básica faz muita diferença nas discussões sobre a sua identidade, formação e garantia dos direitos trabalhistas.

A docência é essencialmente relacional, como discutido anteriormente, mas a ação pedagógica com bebês não se constitui apenas das relações entre os humanos, ela é também interpretativa. É interpretativa porque enquanto o professor está em relação com o bebê e observa-o em ação, ele procura compreender o que ainda é desconhecido, tomar decisões para atender o que está sendo demandado pelo bebê, confirmar conjecturas elaboradas a partir de cenas visualizadas anteriormente, potencializar as ações dos bebês e nutrir a sua ação pedagógica com elementos que atendam às especificidades do currículo para aquele grupo de crianças.

Quando o professor interpreta, ele está, concomitantemente, construindo relações com o bebê e decidindo sobre o que fazer e como agir diante da cena que ele tem diante de si. São os conhecimentos, as suas experiências e os elementos trazidos pelos bebês que dão sustentação às decisões tomadas sobre o que será feito, como e quando será feito. O professor tece relações com os bebês e interpreta suas manifestações, tanto para atender as suas diferentes demandas, como para potencializar as suas múltiplas linguagens e experiências. Toda ação e expressão do bebê requerem do professor interpretação e cada ato interpretado gera novas ações e relações. Interpretar, hermeneuticamente falando, “[...] não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas elaborar possibilidades projetadas na compreensão” (HEIDEGGER, 1998, p. 206). No âmbito da docência com bebês, o professor interpreta o que tem diante de si com o que ele, previamente, compreendeu sobre o episódio visto e/ou sobre o que foi escutado. Interpretar é mais do que tomar conhecimento do que aconteceu e/ou está acontecendo, é agir a partir do compreendido em direção ao outro, buscando atender uma demanda que se apresenta ora de forma explícita, ora implícita. No caso dos bebês, as suas solicitações são explicitadas mais pela linguagem não verbal do que verbal.

A docência interpretativa-relacional passa pela escuta, observação, palavra, olhar, toque, riso, acolhimento, pelo respeito ao tempo e ritmo de cada bebê, assim como pela organização do tempo, dos espaços-ambientes e pela disposição de objetos, materiais e brinquedos que são ofertados na sala de referência e em outras áreas da instituição. Interpretar o que significa cada movimento, gesto, olhar, expressão corporal, choro, riso, silêncio de um bebê é tarefa diária do professor que observa. Nas palavras de Rinaldi (2016, p. 243), “é impossível observar sem interpretar, porque a observação é subjetiva. É impossível documentar sem interpretar, e é impossível interpretar sem refletir e observar”. Na perspectiva heideggeriana, “a interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições” (HEIDEGGER, 1998, p. 207). Assim sendo, quando o professor observa ele explicita o que sabe e compreende sobre o que está observando. A interpretação se assenta na compreensão expressada também no ato da observação. Quanto mais o professor conhece e estuda sobre os bebês e sobre a educação para esses seres humanos de pouca idade no contexto da escola de Educação Infantil, mais amplitude e profundidade terá o seu olhar observador e mais qualidade terá a sua interpretação.

Os choros de um bebê, por exemplo, não possuem os mesmos significados. E como saber o que cada um quer dizer? Como o professor sabe se é sono, fome, necessidade de troca da fralda, se é mal-estar, se é insatisfação com a posição (deitado ou sentado), se é um pedido de colo ou se é uma outra demanda que o professor nem imagina qual seja? A interpretação do choro de um bebê pode ser feita pelo professor considerando marcadores socioculturais como a intensidade, a cadência, o tempo, o horário do choro, a posição e o local onde o bebê se encontra, bem como os conhecimentos que ele possui sobre o bebê e seus processos de desenvolvimento e sobre ação pedagógica com crianças de pouca idade. E como agir diante dos significados captados de cada choro? Os significados atribuídos pelo professor ao choro dirão como ele vai proceder frente a um bebê que chora ou a vários bebês que choram ao mesmo tempo. Esses significados imediatos atribuídos pelo professor ao choro do bebê, enquanto ele interpreta e tece relações, são produzidos com base em conhecimentos convocados, inicialmente, de sua matriz experiencial/profissional (DNA da docência), mas análises posteriores também podem ser feitas com base em outras referências, propiciando a construção de novos significados. Nas palavras de Heidegger (1998, p. 204), “a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa”. Logo, o professor interpreta o choro do bebê com o repertório experiencial e epistemológico que ele possui.

As possibilidades de ação do professor diante do choro surgem concomitantemente à produção dos significados. O professor não espera o bebê calar a boca para decidir o que vai fazer. Enquanto o bebê chora, ele toma iniciativas. Ir em direção ao bebê ou ficar imóvel onde ele está, acolher o choro com palavras de conforto ou ignorá-lo são modalidades de iniciativas oriundas da interpretação que revelam o significado do choro na perspectiva do professor. Pode ser que o “verdadeiro” sentido do choro de um bebê não seja descoberto, pois muitos códigos usados por eles para se comunicarem, inclusive o choro, ainda são desconhecidos pelo professor e isso torna a docência ainda mais desafiante e complexa. A interpretação do professor das ações do bebê dá sustentação ao trabalho pedagógico, especialmente, quando se busca interpretar captando o ponto de vista do bebê, fugindo da lógica adultocêntrica.

O choro foi mencionado aqui como exemplo, mas o professor, no cotidiano da escola, interpreta múltiplas linguagens e experiências dos bebês. A interpretação é a visão singular de cada professor diante das ações dos bebês e nem sempre ela é refletida em tempo real pelo docente, mas é certo que para cada ação da criança há interpretações feitas pelo professor, do mesmo modo que para cada ação do professor também há interpretações feitas pelo bebê. A interpretação se dá numa tentativa de compreender e de ser compreendido a partir do encontro com os bebês. Para tanto, é imprescindível estudos sobre/com os bebês e sobre a educação para essas pessoas de pouca idade a partir de diferentes campos de conhecimento.

4 O encontro das professoras com os bebês

Quando eu caí numa turma, eu disse: Meu Deus! O que é que eu vou fazer? É o que todos os professores pensam: o que eu vou fazer com o Berçário, com o bebê? O que vou ensinar? E quando eu cheguei lá que eu vi que não era só eu sentar ou cantar, que tinha muito mais além, eu fiquei assim perdida. Se não fosse P4 e vocês para orientar. P1, então! (P2, 8ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 11).

Quando uma professora recebe a notícia que assumirá um grupo de bebês para exercer a docência, as reações e os sentimentos são distintos entre os professores. No caso da professora P2, ela indagou: “O que é que eu vou fazer? O que eu vou fazer com o Berçário, com o bebê? O que vou ensinar?” Nota-se que essas perguntas elaboradas pela professora P2 são também de outros docentes, como ela mesma disse: “é o que todos os professores pensam.”

Esse ato de indagar a si próprio sobre o que fazer com os bebês desencadeia no professor inúmeras reações e processos mentais, levando-o a buscar elementos que o apoiem, especialmente, no início exercício da docência com os bebês. O primeiro lugar a ser vasculhado são as memórias de suas experiências de vida e acadêmicas (DNA da docência). Concomitante a essa busca, outras referências também são convocadas para ajudá-lo a organizar informações que lhe possibilite compreender as questões feitas por ele ao receber a notícia de que exercerá a docência com bebês. Tardif e Lessard (2005, p. 286) ressaltam que:

[...] a experiência [docente] denomina as fontes pessoais - história de vida, experiências escolares anteriores, etc. - a partir das quais se edificaram as representações e as práticas pessoais do professor para com seu ofício. O professor jovem nunca chega totalmente virgem ao seu novo ofício; ele começa a trabalhar possuindo já experiências - muitas vezes fundamentais - do ensino, da classe, dos alunos, etc.

O professor que exercerá à docência, pela primeira vez com bebês, pode buscar inspiração em suas histórias de vida e experiências escolares anteriores, como anunciaram Tardif e Lessard (2005), mas elas não são suficientes para sustentar um trabalho pedagógico de qualidade. No começo da docência, o professor também pode experienciar diferentes situações no seu encontro com os bebês. Aqui destacam-se três dessas situações: a primeira consiste no fato de o professor adentrar a sala dos bebês e se dar conta de que o que ele sabia não é suficiente para exercer a docência com aquele grupo de crianças, como disse a professora P2. O professor chega até a esboçar um planejamento com o que ele sabe, com as suas pesquisas e conversas com colegas de profissão, mas o planejado não se adequa às potencialidades e demandas dos bebês. As ações planejadas, naquele momento, foram as melhores que o professor podia dispor para os bebês e isso precisa ser reconhecido quando se analisam as práticas pedagógicas de um docente que está iniciando a docência com esse grupo de crianças. Esse planejamento inicial elaborado com base nos saberes que o professor possui deve ser tomado como um ponto de partida para apoiá-lo na construção de novas aprendizagens sobre o trabalho pedagógico com os bebês e não como um argumento para desqualificar e carimbar como ruim o trabalho docente desse profissional.

A segunda situação diz respeito à inserção do professor em uma escola e/ou rede de ensino que determina o que ele fará com os bebês, cabendo-lhe o papel de tarefeiro e de executor de um planejamento elaborado por outrem. Ele tenta colocar em prática o que foi delineado, mas como o “objeto” da docência é o ser humano, aquilo que foi definido no planejamento não será aplicado/vivido ipsis litteris, porque a ação-reação do professor e dos próprios bebês desviam as rotas preestabelecidas e criam outras, dando diferentes feições ao que foi planejado. O papel de executor exigido a um professor (iniciante ou experiente) nunca será cumprido na íntegra porque o seu DNA da docência imprimirá a sua marca no trabalho pedagógico, dando diferentes sentidos e significados à educação dos bebês. Além disso, os próprios bebês com suas experiências e linguagens também influenciarão na organização do trabalho pedagógico diário, como disse a professora P5 em sua narrativa:

No caso, eu aprendi na prática, porque eu vinha pesquisando muita coisa, como falei inicialmente, em blogs, em sites, onde vinham trazendo relato de pessoas que já trabalhavam com crianças e ali compartilhavam suas experiências, sempre também demostrando uma certa insegurança, um pouco de angústia, justamente por não saber ainda como fazer isso, e eu trazia para a sala de aula. Se é que tu podes chamar de sala de aula com bebês! Às vezes, eu falo de sala de convivência e alguém na SMED também um dia trouxe isso. Era lá com eles, convivendo com eles que eu ia descobrindo. Não, às vezes, o que eu buscava nos sites, nos blogs eu via que não era exatamente daquela maneira. Ali no grupo é que eu determinava como tinha que ser feito, de que maneira é que realmente a gente conseguia ver as coisas acontecerem. Então, o documento que foi colocado, inicialmente, para mim foi só mesmo para cumprir certas exigências, como poderia dizer, exigências da escola, de preenchimento de documentos, mas não que isso interferia realmente na minha prática com as crianças (1ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 22).

A terceira situação é quando o professor já tem algum conhecimento sobre a educação de bebês e busca organizar o trabalho pedagógico de modo a contemplar e valorizar as suas potências e capacidades, fazendo do encontro com eles uma oportunidade para o seu desenvolvimento integral. Esta última situação ainda é rara nos grupos de bebês, nas escolas e/ou redes de ensino, haja vista a narrativa das professoras que afirmam iniciar a docência com os bebês “sem saber nada”.

O encontro com os bebês no cotidiano da escola também provoca medo, insegurança, angústia, entusiasmo, alegria, desejo de conhecê-los, de saber como eles se relacionam/interagem, aprendem e se desenvolvem, como mostra a narrativa da professora P5 sobre o início da docência com os bebês:

E nesse meu caminho de angústia eu vivia pedindo à gestora, ao pessoal da Gerência Regional de Educação (GRE) quando ia lá na escola: gente, por favor, me dá o contato de alguém que tenha uma sala de Berçário para eu poder saber o que é que faz na sala, o que está sendo trabalhando, de que forma ele está sendo conduzido para ver se esse caminho que eu escolhi realmente é o caminho ou se há mais novidades, há coisas melhores para estar sendo feitas (1ª Tertúlia Narrativa, 2016, p. 5).

A presença dos bebês na escola tem, de certa forma: 1) instigado os professores na busca de conhecimentos sobre como ser professor da Educação Infantil que exerce a docência com bebês, 2) cobrado dos gestores públicos a formulação de políticas públicas para a primeira etapa da Educação Básica e 3) impulsionado as equipes gestoras das secretarias de educação para o fomento de ações formativas para esse grupo de profissionais, recém-chegados à rede municipal de ensino ou que estão trabalhando pela primeira vez com bebês. Para Tardif e Lessard (2005, p. 185), “os professores noviços parecem que pedem e recebem mais o suporte pedagógico, tanto para o planejamento quanto para a preparação do material”. No caso dos professores que trabalham com bebês, essa prática tem ocorrido com pouca frequência na rede municipal onde a pesquisa foi desenvolvida.

O encontro dos professores com os bebês insere-se num espectro bem variado de possibilidades: 1) professores que, por opção e desejo, almejam ser professores de bebês; professores que não pensam em ser professores de bebês, mas que, com a oferta de um grupo de bebês, aceitam o desafio; 2) professores que, por falta de opção de grupos da Educação Infantil ou do Ensino Fundamental na rede e/ou instituição de ensino, são encaminhados pela equipe escolar executiva para trabalhar com os bebês; 3) professores que estão próximos da aposentadoria ou que estão com algum problema de saúde são “premiados” pelo gestor da educação do município e/ou da instituição de ensino para trabalhar com os bebês, como se o trabalho com esse grupo fosse mais “fácil e tranquilo”; 4) professores (concursados ou contratados) que, por conta da perseguição política, são retirados do Ensino Fundamental ou de outros grupos da primeira etapa da Educação Básica e colocados no grupo dos bebês, como uma forma de punição por não ter votado ou feito campanha para o candidato eleito; 5) professores que, mesmo não gostando de trabalhar com bebês e crianças pequenas, são “obrigados” a ser professores de bebê para não perder o emprego.

Existem ainda outras circunstâncias de encontro entre professores e bebês na escola, mas o intento deste artigo é chamar a atenção para o fato de que o encontro dos professores com os bebês não é linear e não está localizado apenas no campo do desejo e do projeto profissional de cada professor. Existem interferências alheias à sua vontade que o levam ao encontro com os bebês e que as circunstâncias desse encontro podem desencadear aberturas e/ou bloqueios para o exercício da docência com estes seres humanos de pouca idade.

O encontro com os bebês se dá sempre num movimento dinâmico, no qual elementos da experiência de vida e profissional se conectam, se afastam e se misturam, evidenciando possibilidades ou obstáculos para a construção de uma docência interpretativa-relacional que respeite os bebês. Debruçar-se sobre os encontros entre professores e bebês na escola é um modo de refletir sobre como a docência vai se constituindo, de compreender o porquê da ação pedagógica com os bebês é feito da forma que é, e de entender que

[…] as tramas interativas cotidianas entre professores e alunos são complexas, pois, ao mesmo tempo, estão em ação rotinas e fases de iniciativas, de interpretações, de intervenções pontuais, bem como a maioria dos componentes do ser humano: a moralidade, a afetividade, a cognição, a vontade e a capacidade de agir sobre o outro, de seduzi-lo, de dominá-lo, de obter seu respeito, etc. (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 248).

No universo das professoras integrantes desta pesquisa, a maioria não escolheu ser nem professora nem professora de bebês. Apenas duas tinham o desejo de ser professora, como mostra o quadro abaixo:

Quadro 1 Ser professora: o desejo e a realidade 

Professoras Desejo Realidade atual
P1 Ser professora Professora Grupo 0 (Bebês);
Coordenadora Pedagógica.
P2 Não ser professora/Ser contadora Professora Grupo 0 (Bebês)
P3 Ser professora Professora Grupo 0 (Bebês)
P4 Não ser professora/Ser médica Professora Grupo 0 (Bebês)
P5 Não ser professora Professora Grupo 0 (Bebês)
P6 Não ser professora/Ser psicóloga Psicóloga; Professora Grupo 0 (Bebês);
Vice-diretora.

Fonte: Arquivos de áudio e vídeo da pesquisadora | ano 2016.

O fato de não terem escolhido, inicialmente, ser professora e professora de bebês não representa, em si, uma sentença negativa para o exercício da docência. O início pode não ter sido desejado, mas a partir do encontro com os bebês, os sentimentos e expectativas podem ser modificados. Aqueles professores que, mesmo tendo ido parar na sala dos bebês sem terem feito essa escolha, podem, a partir do contato com estes seres humanos de pouca idade, cambiar seus sentimentos e suas opiniões em relação aos bebês e ao trabalho pedagógico com eles. Do mesmo modo, aqueles que escolheram ser professores de bebês podem, com o passar do tempo, desejar mudar de grupo para exercer a docência em outro grupo da Educação Infantil ou em outro segmento da Educação Básica, modalidade de educação e/ou nível de ensino. No caso das professoras integrantes da pesquisa, ao chegarem na sala, elas foram seduzidas pela magia e encanto dos bebês e foram aprendendo a ser professoras de bebês, diariamente, com eles, com seus conhecimentos, com suas próprias experiências profissionais e pessoais e com o estudo de outras referências no campo da educação e de outras ciências.

5 Considerações finais

A docência exercida pelas professoras com os bebês caracteriza-se como interpretativa-relacional. Professoras e bebês tecem relações enquanto experienciam processos pedagógicos, aprendem, ensinam e se desenvolvem. É nesse contexto relacional que ambos necessitam interpretar as ações uns dos outros para que cada um seja compreendido e haja comunicação, interação e empatia. A professora precisa interpretar o que significa cada olhar, balbucio, gesto, riso, choro, expressão (corporal, facial...) dos bebês para atender suas demandas fisiológicas, afetivas, motoras, cognitivas e sociais. A interpretação do que um bebê faz e necessita é a docência em ação, pois a professora não interpreta de vez em quando, ela o faz da hora que encontra o bebê até o momento que o entrega para os seus responsáveis, ao final da jornada de trabalho, e ainda leva para casa, em sua mente, cenas dos bebês em ação procurando interpretá-las. Nem sempre a interpretação feita pela professora corresponde ao que o bebê quer. Toda interpretação vem acompanhada de uma ação. Ao interpretar, a professora age, estabelece relação e se move em direção ao bebê, acolhendo-o na sua individualidade e riqueza de inciativas.

1Adota-se aqui a expressão “professor/es” para fazer referência a professor/es da Educação Infantil e demais segmentos da Educação Básica, reservando o termo “professora/s” para fazer referência às docentes integrantes da pesquisa.

2A abordagem pikleriana consiste em concepções e princípios sobre o desenvolvimento infantil e sobre a ação pedagógica com bebês e crianças pequenas. Foi desenvolvida pela pediatra austríaca Emmi Pikler a partir de seu trabalho como diretora do Instituto Lóczy, fundado em 1946, para acolher crianças órfãs da Segunda Guerra em Budapeste-Hungria. Para saber mais sobre essa abordagem, Cf. FALK, Judit (Org.). Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy. Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2011.

3Por modelo pedagógico entende-se, aqui, “um sistema educacional compreensivo que se caracteriza por combinar um quadro de valores, uma teoria e uma prática” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007, p. 34).

Referências

AMBROSETTI, Neusa B.; ALMEIDA, Patrícia C. Albieri de. A constituição da profissionalidade docente: tornar-se professora de Educação Infantil. 30ª reunião Anual da ANPED, 2007. Disponível em: http://30reuniao.anped.org.br/trabalhos/GT08-3027--Int.pdf. Acesso em: 12 mar. 2008. [ Links ]

ARRUDA, Jeniffer de. Especificidades da docência na infância: o foco no trabalho com bebês. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp, Campus de Marília, São Paulo, Marília, 2016. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República - Casa Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 10 jul. 2013. [ Links ]

CERISARA, Ana Beatriz. Professoras da Educação Infantil: entre o feminino e o profissional. São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção Questões da Nossa Época; v. 98). [ Links ]

CRUZ, Silvia Helena V. Novas perspectivas na formação de professores da Educação Infantil. XV ENDIPE “Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais”. Belo Horizonte, abril de 2010. [ Links ]

DUARTE, Fabiana. Professora de bebês: as dimensões educativas que constituem as especificidades da ação docente. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/13_02_2012_10.57.57.28cafef3be1dcdb956ea860e7318ec7b.pdf. Acesso em: mar. 2015. [ Links ]

DUARTE, Fabiana. Professoras de bebês: as dimensões educativas que constituem a especificidade da ação docente. Congresso de Educação Básica - aprendizagem e currículo. Prefeitura Municipal de Florianópolis/SC, ano 2012. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/13_02_2012_10.57.57.28cafef3be1dcdb956ea860e7318ec7b.pdf. Acesso em: 21 jan. 2016. [ Links ]

GENTILLI, Pablo Antonio Amadeo; SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001. [ Links ]

GOLDSCHMIED, Elinor; JACKSON, Sonia. O cesto de tesouros. In: GOLDSCHMIED, Elinor; JACKSON, Sonia. Educação de 0 a 3 anos: atendimento em creche. Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 113-128. [ Links ]

GOMES, Marineide de O. (Org.). Formação de professores na Educação Infantil: conquistas e realidades. Santos (SP): Editora Universitária Leopoldianum, 2018. [ Links ]

GOMES, Marineide de O. Formação de professores na Educação Infantil. São Paulo: Cortez, 2009. [ Links ]

GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992, p. 63-78. [ Links ]

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. (Parte I). RJ, Petrópolis: Vozes, 1998. [ Links ]

KRAMER, Sônia (Org.). Profissionais da Educação Infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática, 2005. [ Links ]

LIMA, Iana; HYPOLITO, Álvaro. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-15, 24 set. 2019. [ Links ]

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. [ Links ]

MARTINS FILHO, Altino José. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na Educação Infantil. (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2013. [ Links ]

MARTINS FILHO, Altino José; DELGADO, Ana Cristina Coll. A construção da docência com bebês e crianças bem pequenas em creches. In: MARTINS FILHO, Altino José (Org.). Educar na creche: uma prática construída com os bebês e para os bebês. Porto Alegre: Mediação, 2016. [ Links ]

NÓVOA, António (Org.). Profissão Professor. Portugal: porto Editora, 1995. [ Links ]

NÓVOA, António. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, António (Coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 15-33. [ Links ]

OLIVEIRA, Zilma de M. R. de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia (Org.). Pedagogia(s) da Infância: reconstruindo uma práxis de participação. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia (Org.). Modelos Curriculares para a Educação de Infância: construindo uma práxis de participação. Porto, Portugal: Porto Editora, 2007, p. 13-42. [ Links ]

OSTETTO, L. E. (Org.) Educação infantil: saberes e fazeres da formação de professores. Campinas: Papirus, 2008. [ Links ]

POPKEWITZ, Thomas S. Profissionalização e formação de professores: algumas notas sobre a sua história, ideologia e potencial. In: NÓVOA, António (Coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 35-50. [ Links ]

RINALDI, Carlina. A pedagogia da escuta: a perspectiva da escuta em Reggio Emília. In: EDWARDS; GANDINI; FORMAN (Org.). As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação (V.2). Porto Alegre: Penso, 2016, p. 235-247. [ Links ]

SANTOS, M. O. dos. “Nós estamos falando! E vocês, estão nos escutando?” Currículos praticados com bebês: professoras com a palavra. Tese de Doutorado em educação - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017. [ Links ]

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. [ Links ]

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. [ Links ]

TRISTÃO, Fernanda Carolina Dias. Ser professora de bebês: um estudo de caso em uma creche conveniada (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2004. [ Links ]

TRIVINÕS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. [ Links ]

VEIGA; Ilma P. A.; ARAÚJO, José Carlos S.; Célia, KAPUZINIAK. Docência: uma construção ético-profissional. Campinas, SP: Papirus, 2005. [ Links ]

Recebido: 09 de Abril de 2019; Aceito: 05 de Dezembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.