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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo jan./mar 2022  Epub 08-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.18539 

Artigos

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM EM CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONTRIBUIÇÕES DA COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA

LANGUAGE DEVELOPMENT IN CHILDREN WITH INTELLECTUAL DEFICIENCY IN CHILD EDUCATION: CONTRIBUTIONS OF ALTERNATIVE COMMUNICATION

Adelyn Barbosa de Aquino, Mestre em Educação1 
http://orcid.org/0000-0001-6808-4667

Tícia Cassiany Ferro Cavalcante, Doutora em Psicologia Cognitiva2 
http://orcid.org/0000-0001-8963-9609

1Mestre em Educação pela, Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Rede Municipal de Itapissuma. Itapissuma, Pernambuco- Brasil.

2Doutora em Psicologia Cognitiva pela UFPE. Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Recife, Pernambuco - Brasil.


Resumo

As crianças com deficiência intelectual apresentam prejuízo no desenvolvimento da capacidade expressiva. Como consequência, fazem uso por mais tempo da linguagem gestual. Existem recursos de Comunicação Alternativa, categoria de Tecnologia Assistiva, que contribuem para a acessibilidade cognitiva dessas crianças, facilitando o desenvolvimento e a aprendizagem. Esta pesquisa buscou analisar como o uso da Comunicação Alternativa (CA) em sessões de intervenção pode contribuir para a linguagem-comunicação de crianças com deficiência intelectual na etapa da Educação Infantil. Como participantes, a pesquisa contou com duas crianças com deficiência intelectual com impedimentos comunicativos, estudantes de escolas públicas da cidade de Igarassu-PE. Como instrumentos de coleta de dados, foram realizadas sessões de intervenção com o uso de recursos da CA. O estudo demonstrou que o uso dos recursos de comunicação alternativa contribuiu significativamente para a comunicação das crianças. Permitiu que criança e pesquisadora compartilhassem atenção nas atividades desenvolvidas; auxiliou a compreensão, estimulando as crianças a participarem ativamente das interações; também possibilitou às crianças planejar e produzir linguagem mais significativa e funcional.

Palavras-chave: aquisição da linguagem; comunicação alternativa; deficiência intelectual; educação infantil

Abstract

Children with intellectual disabilities suffer from the development of expressive capacity; consequently make use of sign language for longer. There are Alternative Communication features, Assistive Technology category, which contributes to the cognitive accessibility of these children, facilitating development and learning. This research sought to analyze how the use of Alternative Communication (AC) in intervention sessions can contribute to the communication-language of children with intellectual disabilities in the stage of Early Childhood Education. As participants, the research had two children with intellectual disabilities with communicative disabilities, students from public schools in the city of Igarassu-PE. As data collection instruments, intervention sessions were conducted with the use of AC resources. The study demonstrated that the use of alternative communication resources contributed significantly to children's communication. It allowed the child and researcher to share attention in the activities developed; aided understanding by encouraging children to actively participate in interactions; and also enabled children to plan and produce more meaningful and functional language.

Keywords: acquisition of language; alternative communication; intellectual disability; child education

1 Introdução

As pessoas com deficiência intelectual sempre apresentam atraso na aquisição e no desenvolvimento da linguagem, com variação das suas dificuldades a depender do processo de estimulação e do nível de comprometimento biológico e social. Uma característica importante da linguagem das crianças com deficiência intelectual é a diferença existente entre sua capacidade de compreensão e de expressão (DUARTE; VELLOSO, 2017). A dificuldade é frequentemente maior na produção de linguagem, ou seja, na expressão (ANDRADE; LIMONGI, 2007). Essas dificuldades destacam-se na Educação Infantil, período em que a fala está em pleno desenvolvimento, e, sobretudo, a fase na qual a estimulação precoce se torna essencial ao aprendizado e desenvolvimento.

Um dos recursos utilizados para minimizar as dificuldades funcionais das pessoas com impedimentos na fala é a Comunicação Alternativa (CA), caracterizada por Bersch (2017) como uma das categorias de Tecnologia Assistiva. A CA parece ser um recurso importante para a autonomia e autoconfiança dos estudantes com impedimentos na fala, pois permite que eles expressem desejos, sentimentos e troquem ideias, melhorando significativamente seu processo de interação e aprendizagem, já que o desenvolvimento da linguagem tem papel decisivo no desenvolvimento intelectual e cognitivo do sujeito.

Para tal, esta investigação teve como objetivo analisar as contribuições do uso da Comunicação Alternativa (CA) para o desenvolvimento da linguagem de crianças com deficiência intelectual na etapa da Educação Infantil a partir de sessões de intervenção.

Nessa perspectiva, foram adotados, como base teórica, para entender o processo de apropriação e desenvolvimento da linguagem, os estudos de visão sociointeracionistas, que entendem a aquisição da linguagem como um processo pelo qual a criança se firma como sujeito da linguagem (e não como aprendiz passivo) e pelo qual constrói ao mesmo tempo seu conhecimento de mundo, passando pelo outro (SCARPA, 2001). A interação social e a troca comunicativa entre as crianças e seus interlocutores são vistas como pré-requisito básico no desenvolvimento linguístico; “rituais comunicativos pré-verbais preparam e precedem a construção da linguagem pela criança” (p. 214). Assim, as características da fala do adulto ou de crianças mais velhas são estudadas e consideradas fundamentais para o desenvolvimento da linguagem na criança.

Existe uma evolução linguística da criança ao entrar em contato com o outro. Dentro desse paradigma, há vários teóricos que tentam entender o desenvolvimento da linguagem e sua relação com o pensamento (VYGOTSKY, 2001; LURIA, 1987; TOMASELLO, 2003). Tomasello (2003) acredita que por volta dos nove meses acontece uma revolução na vida da criança. Pela primeira vez, os bebês começam a olhar de modo flexível e confiável para onde os adultos estão olhando; começam a participar de ações de atenção conjunta com o adulto. Suas interações evoluem de diádicas (interação criança-adulto) para triádicas (criança-objeto-adulto).

Para isso, utilizam gestos dêiticos como apontar para um objeto ou segurá-lo para mostrar a alguém. Os gestos dêiticos podem ser imperativos - tentativas de fazer com que o adulto faça algo com relação a um objeto ou evento - ou declarativos - simples tentativa de fazer o adulto prestar atenção a algum objeto ou evento. Para Tomasello, “O simples gesto de apontar para um objeto para alguém com o intuito de compartilhar a atenção dedicada a ele é um comportamento comunicativo exclusivamente humano” (TOMASELLO, 2003 p. 87).

A criança passa de uma fase em que a linguagem é puramente emocional para uma linguagem objetiva (com intencionalidade comunicativa). Vigotski (2001) diz: “A linguagem não é só um meio expressivo-emocional, mas também um meio de contato psicológico com semelhantes” (p. 127). Esse é um momento crucial na vida das crianças, discute Vigotski (2001), fase em que o desenvolvimento do pensamento e da linguagem se cruzam.

Segundo Medeiros (2009), as cenas de atenção conjunta podem ser caracterizadas como as interações sociais nas quais a criança e o adulto prestam conjuntamente atenção a uma terceira coisa. O importante é a compreensão que adulto e criança têm do “que nós estamos fazendo”, ou seja, da intenção subjacente ao evento em curso, “as crianças passam a se envolver em interações de atenção conjunta quando começam a entender as outras pessoas como agentes intencionais iguais a elas próprias.” (TOMASELLO, 2003, p. 94).

Tomasello (2003) chama de intencionalidade comunicativa o fato de compreender a intenção de outra pessoa em relação ao meu estado de atenção. Sobre isso, Medeiros (2009) diz que, no caso específico da linguagem, os sons só se tornam um tipo de linguagem para as crianças quando elas compreendem que as emissões sonoras realizadas pelo adulto carregam uma intenção de prestar atenção a algo.

Para aprender a usar um símbolo comunicativo de maneira convencional, a criança precisa se envolver na inversão de papéis. A imitação com inversão de papéis trata-se do momento em que a criança se imagina no lugar do outro. Assim, depois que ela compreende a intenção comunicativa, precisa utilizar isso para aprender a produzir o elemento da linguagem compreendido por ela.

Conforme Allan e Souza (2009), depois que a criança consegue compreender o papel que ela, o adulto e o referencial externo desempenham no contexto, ela já pode fazer a intercambialidade desses papéis, ou seja, a criança pode dirigir um símbolo linguístico ao adulto da mesma maneira como o adulto o usou dirigido a ela para manipular sua atenção. Para Tomasello (2003), o resultado desse processo de imitação com inversão de papéis é um símbolo linguístico: um mecanismo comunicativo entendido intersubjetivamente por ambos os lados da interação.

Esse processo de aprendizagem cultural garante que a criança entenda que ela adquiriu um símbolo linguístico que é socialmente “compartilhado”, no sentido que ela pode supor que, na maioria das circunstâncias, o ouvinte entenderá e poderá reproduzir aquele mesmo símbolo. Em outras palavras e com a intenção de síntese, Tomasello explica esses três fatores presentes no processo de aquisição da linguagem:

As pessoas fazem uns barulhos e movimentos manuais engraçados para a criança parecendo esperar alguma resposta em troca. Para chegar a ver esses barulhos e movimentos manuais como algo com um significado comunicativo que pode ser aprendido e usado, a criança tem que compreender que eles são motivados por um tipo especial de intenção, isto é, uma intenção comunicativa. Mas essa compreensão só pode ocorrer dentro de algum tipo de cena de atenção conjunta que lhe forneça sua fundamentação sociocognitiva; ademais, aprender a expressar a mesma intenção comunicativa (usando os mesmos meios comunicativos) que os outros exigem compreender que os papéis dos participantes desse evento comunicativo podem potencialmente se inverter. (TOMASELLO, 2003, p.134, grifo nosso).

Os estudos aqui expostos nos levam a compreender a aquisição da linguagem como um processo histórico-social, em que a criança aprende os símbolos linguísticos cultural e socialmente compartilhados a partir de experiências de interação com o adulto. “Portanto, comunicar implicará uma reorganização de representações sociais, culturais e mentais que, por meio da linguagem como instrumento de comunicação e psicológico (signo), permite a construção e a partilha de significados.” (BEZ; PASSERINO, 2015, p 21-22)

Para Nunes (2003), a linguagem representa o mais importante processo no desenvolvimento humano. Mas o que acontece quando a criança por algum impedimento não desenvolve a linguagem oral, como é o caso de algumas crianças com deficiência intelectual? Muitos aspectos da sua vida são adversamente afetados. Muitos autores sugerem o uso dos sistemas alternativos de comunicação (REILY, 2004; BEZ; PASSERINO, 2015); uma parte deles se constitui de sistemas da CA com o uso de pictogramas.

Para Reily (2004), a Comunicação Alternativa (CA) se refere à abordagem que pretende complementar (comunicação suplementar) ou substituir (comunicação alternativa) a fala natural e/ou a linguagem escrita de alguém; para alguns indivíduos que não conseguem emitir sons, é utilizada a CA para substituir a fala natural. No entanto, há indivíduos que apresentam um pouco de fala funcional e que utilizam CA para ampliar suas tentativas de fala.

Para Zaporoszenko e Alencar (2008), o termo Comunicação Aumentativa e Alternativa é utilizado para definir outras formas de comunicação como uso de gestos, sinais da Língua de Sinais, expressões faciais, uso de pranchas de alfabeto ou símbolos pictográficos, comunicadores, até o uso de sistemas sofisticados como o computador com voz sintetizada e tablets.

Brasil (2004) comenta que, em Educação Especial, a expressão comunicação alternativa e/ou suplementar vem sendo utilizada para designar um conjunto de procedimentos técnicos e metodológicos direcionados a pessoas acometidas por alguma doença, deficiência ou alguma outra situação momentânea que impede a comunicação com as demais pessoas por meio da fala.

Crianças com deficiência com impedimentos comunicativos estão presentes nas salas de aula da Educação Infantil e têm direito, assim como as demais crianças sem deficiência, de participar do processo educacional. Porém, para que o desenvolvimento integral dessas crianças ocorra, faz-se necessário o uso de recursos de acessibilidade que deem suporte à linguagem, sendo adaptável às suas habilidades e necessidades comunicativas (MASSARO, 2017).

Consta nos Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil - RCNEI (1998) que se deve considerar o aprendizado da linguagem oral como um processo natural, que ocorre em função da maturação biológica e que é preciso, nesse caso, que haja investimento em ações educativas planejadas com intenção de favorecer essa aprendizagem.

Desde muito cedo os bebês emitem sons articulados que lhes dão prazer e revelam seu esforço para comunicar-se com os outros. Os adultos e as crianças maiores interpretam esses sons, dando sentido à comunicação dos bebês. A comunicação oral implica, portanto, a verbalização e a negociação de sentidos entre pessoas que buscam comunicar-se. (BRASIL, 1998, p. 119).

As atividades típicas de Educação Infantil proporcionam ricos momentos de interação, ampliando as oportunidades de desenvolvimento da linguagem oral. Quando a criança chega à escola, encontra um contexto de aprendizagem diferente do que se desenvolve em casa, pois no ambiente escolar uma boa parte do tempo é dedicada a aprender em grupo, de maneira que as interações adulto-criança perdem a importância em favor das interações com os iguais. A comunicação que as crianças estabelecem com professores e colegas lhes proporcionam habilidades linguísticas cada vez mais complexas (VALMASEDA, 2004; OLIVEIRA et al. 2012; CARDOSO, 2012).

Nesse sentido, Tetzchner, Brekke, Sjothun e Grindheim (2005) afirmam que se faz necessário o uso da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) para crianças com impedimentos na fala desde a Educação Infantil, unindo as funções conversacionais desse tipo de comunicação com atividades sociais e culturais típicas para a faixa etária.

Conforme Tetzchner e Martisen (2000), é muito importante que as intervenções com a CA se inicie o mais cedo possível para as crianças com impedimentos comunicativos, como é o caso das crianças com deficiência intelectual.

O argumento principal a favor desta afirmação é que parece haver um período sensível para a aquisição da linguagem; a aprendizagem da linguagem é mais fácil para as crianças em idade pré-escolar do que para crianças mais velhas e para os adultos. Esta apreciação é igualmente válida para a aprendizagem da comunicação alternativa. (TETZCHNER; MARTISEN, 2000, p. 130).

De acordo com os autores, estudos realizados com pessoas com perturbações de linguagem mostraram a existência de uma etapa importante na aquisição da linguagem, por volta dos 4-5 anos. Assim também, dentre as crianças com deficiência intelectual que aprendem a falar, poucas aprendem depois dessa idade. Mas isso não deve ser encarado como regra universal. Os autores relatam casos em que as crianças começam a falar mais tarde mesmo sem o uso de comunicação alternativa; já em outros casos, o uso de comunicação alternativa foi um trampolim para a aquisição da linguagem de crianças mais velhas.

Dessa forma, o uso de sistemas, recursos e estratégias de comunicação alternativa podem favorecer o desenvolvimento da linguagem da criança com deficiência e viabilizar a participação nas brincadeiras e atividades pedagógicas na Educação Infantil.

2 Caminho metodológico

Esta pesquisa teve como campo de pesquisa duas escolas municipais da cidade de Igarassu, cidade da Região Metropolitana do Recife - Pernambuco, sendo uma escola de Educação Infantil na zona urbana e outra na zona rural da cidade, e faz parte da dissertação de mestrado da primeira autora (AQUINO, 2018). A escolha das escolas se deu por contato com a secretaria de educação municipal. Foram consideradas participantes da pesquisa crianças com deficiência intelectual cursando a Educação Infantil que tivessem algum impedimento comunicativo.

É o tipo de intervenção que, conforme Damiani (2012), caracteriza-se como uma investigação que visa planejar, implementar e avaliar práticas pedagógicas inovadoras com base em um determinado referencial teórico, tendo como intuito maximizar as aprendizagens dos estudantes nela envolvidos, principalmente em situações pedagógicas nas quais essas aprendizagens se encontravam aquém do esperado, que é o que acontece com as crianças com deficiência intelectual.

Às duas crianças selecionadas, foram dados os nomes fictícios de Ana e Laura. O corpus empírico se constituiu de sessões de intervenção, conforme descrito a seguir.

Sessões de intervenção

Foram realizadas oito sessões de intervenção com Ana e seis intervenções individuais com Laura. As intervenções trataram-se de interações com o uso de recursos de comunicação alternativa entre a pesquisadora e a criança a partir de atividades de linguagem oral típicas da Educação Infantil, como contação de histórias, músicas, conversas, entre outras. A intervenção se constituiu de etapas: (i) planejamento das intervenções; (ii) construção das pranchas de comunicação; (iii) as intervenções propriamente.

Planejamento das intervenções

O planejamento das intervenções sempre contava com a colaboração das professoras da sala de aula regular. Para que acontecesse a parceria professora-pesquisadora, houve necessidade de apresentar o recurso que seria utilizado nas intervenções. Antes mesmo de serem iniciadas as observações, as professoras tiveram contato com recursos da CA de baixo custo e com o aplicativo aBoard1. Receberam informações sobre a importância de utilização e, também, foram disponibilizados artigos sobre o uso dos recursos. Para organização das intervenções, uma semana antes de cada sessão era combinado com a professora o tema delas, que era sempre de acordo com o planejamento da semana. Dessa forma, as atividades de estímulo à linguagem realizadas nas sessões estavam sempre em harmonia com o que a professora estava trabalhando em sala de aula.

Construção das pranchas de comunicação

A partir do acesso ao planejamento da professora, foram planejados e construídos recursos de comunicação alternativa que foram utilizados em cada sessão. Como atividades, durante as intervenções, foram realizadas: contação de histórias, reconto, conversas livres e dirigidas, construção de sequência de músicas infantis, recorte e colagem, jogos, entre outras. A realização das atividades era sempre mediada pela comunicação alternativa, que foi apresentada para as crianças de diferentes formas: a partir de ilustrações, de cartões com cenas visuais compostas, de sequência de imagens, de cartões com figuras e pictogramas (PCS). Como suporte foram utilizadas pranchas feitas com material de baixo custo e um aplicativo de comunicação alternativa instalado em tablet, o aBoard.

O corpus gerado pelas intervenções foi capturado a partir de videografias. O uso desse instrumento de observação amplifica a capacidade de análise, já que possibilita ao observador repensar o observado (VIANNA, 2003; BERGAMASCO, 1996). Assim, “a observação de uma gravação em vídeo pode sugerir ideias interessantes sobre novas situações de comunicação que se podem criar e sobre novas medidas de intervenção que se pode tomar” (TETZCHNER; MARTISEN, 2000, p. 98). Para a pesquisa, possibilitou a captura de gestos, expressão facial e outros meios de comunicação verbal e não verbal dos participantes, o que foi essencial para a análise.

Como equipamento de gravação de som e imagem, utilizou-se a câmera de um tablet exclusivo para essa função. O equipamento foi instalado em um minitripé em cima da mesa na qual a pesquisadora e as crianças realizavam as atividades. A câmera foi posicionada de maneira que enquadrasse rosto e tronco da criança com a intenção de capturar o máximo possível dos movimentos e gestos. Para os momentos em que pesquisadora e criança utilizavam para a atividade o aplicativo aBoard, instalado em um segundo tablet, utilizou-se, também, um aplicativo de captura de tela, o Mobizen Screen Recorder. O aplicativo permitiu capturar toda movimentação que criança e pesquisadora fizeram para escolher os pictogramas no aBoard.

O corpus foi analisado a partir de uma abordagem teórico-metodológica sociointeracionista, que concebe a língua como uma construção histórica, resultado de práticas sociocomunicativas, e entendendo a aquisição da linguagem como um processo pelo qual a criança se coloca como sujeito da linguagem, aprendendo sobre o mundo na interação com o outro (SCARPA, 2001).

Utilizou-se para a análise alguns conceitos desenvolvidos por Vigotsky (1997), sendo este um dos principais teóricos da abordagem sociointeracionista. O corpus foi analisado à luz de conceitos de deficiência, concebida não como um déficit centrado no impedimento orgânico dos indivíduos, mas como a falta de oportunidades sociais para que essas pessoas se desenvolvam. O conceito de compensação foi entendido como a superação de algumas barreiras sociais a partir de artefatos culturais, como as ferramentas de tecnologia assistiva.

Em Vigotski (2001), a construção do corpus empírico se apoia nas discussões sobre a relação entre pensamento e linguagem; explora-se o conceito de mediação, que é tido como a ação de estimular a criança a alcançar níveis mais altos de desenvolvimento dentro do que já está perto de alcançar, ou seja, sair da zona de desenvolvimento real e alcançar a zona de desenvolvimento proximal.

Congregando da mesma abordagem sócio-histórica, a análise se baseia também nas discussões de Luria (1987) sobre a aquisição da linguagem, entendendo esta como signo que modifica as funções psicológicas superiores, tendo a função de mediar e regular o contato do sujeito com o mundo na troca de experiência com outros sujeitos.

Alguns conceitos discutidos por Tomasello (2003) também colaboraram para a discussão do corpus, como os conceitos de cenas de atenção conjunta, momentos em que criança e pesquisadora compartilharam a atenção a um objeto em uma relação triádica: criança-objeto-adulto; o conceito de intencionalidade comunicativa foi utilizado para classificar os momentos em que criança ou pesquisadora compreendia a intenção da outra na interação; já o conceito de inversão de papéis foi utilizado quando as crianças fizeram uso dos mesmos recursos que a pesquisadora utilizou para chamar sua atenção. Também se fez uso dos conceitos de gestos declarativos. Foram classificados como declarativos os gestos que as crianças utilizaram para compartilhar com a pesquisadora a atenção por algum objeto ou evento.

As informações geradas pelas videografias das intervenções foram transcritas para melhor interpretação dos fenômenos ocorridos. Para isso, foram utilizados sinais baseados na obra Análise da Conversação, de Marcuschi (2000). Foram transcritas três sessões de intervenção de cada criança: uma inicial, outra do meio do processo e a última sessão. O Quadro 2 apresenta os sinais e suas legendas.

Quadro 1 Sinais e legenda das transcrições 

SINAL LEGENDA
Pesq. Pesquisadora
Crian. Criança
T Turno de fala*
Ana e Laura Nomes fictícios das crianças sujeitos de pesquisa.
C1, C2, C3 etc. Demais crianças - colegas de sala de aula.
()* Para as descrições do contexto da realização das atividades, foram utilizadas anotações entre parênteses.
(())* Para as descrições das ações dos sujeitos, foram utilizadas anotações entre parênteses duplos.
(...)* Para informar pausa na fala, foram utilizados três pontos entre parênteses.

Fonte:

*Alguns desses sinais e conceitos foram baseados na obra Análise da Conversação, de Marcuschi (2000).

Para análise das contribuições do uso da comunicação alternativa a partir das intervenções, foram criadas três categorias de análise: 1. Cenas de atenção conjunta a partir do uso dos recursos da CA; 2. O uso da comunicação alternativa como apoio à compreensão; e 3. O uso da comunicação alternativa como apoio ao planejamento e à produção da fala.

3 Análise do corpus: as intervenções e as contribuições do uso da comunicação alternativa

A avaliação das habilidades comunicativas realizada com as crianças participantes desta pesquisa demonstrou que tanto Ana quanto Laura, na maioria das vezes, compreendia a fala direcionada a elas, e que a principal dificuldade enfrentada para a comunicação seria mesmo na elaboração e produção da fala. De acordo com Luria (1987), a compreensão e a produção da fala são funções relacionadas a áreas diferentes do cérebro, e que na aquisição da linguagem a compreensão da fala do outro se desenvolve primeiro do que a elaboração e produção da própria fala; esta se dá progressivamente a partir das experiências comunicativas que a criança vai participando.

Assim também, Vigotski (2001) postula que pensamento e linguagem estão intimamente relacionados, porém o desenvolvimento dessas áreas é independente. Nesse sentido, a aquisição da linguagem se inicia quando pensamento e linguagem se cruzam, ou seja, a fala torna-se intelectual e o pensamento torna-se verbal.

No caso das crianças com deficiência intelectual, o desenvolvimento cognitivo acontece em ritmo mais lento do que nas crianças sem deficiência, o que pode acarretar atrasos no processo de aquisição da linguagem, já que a aquisição dos símbolos linguísticos, como diz Luria (1987), é um processo dinâmico e complexo. Justifica-se, então, a necessidade de estímulos precoce para a linguagem das crianças com deficiência intelectual, como os recursos de comunicação alternativa.

Nesse sentido, os planos de intervenção elaborados a partir do uso de recursos de comunicação alternativa tiveram como objetivo contribuir para que as crianças participantes melhorassem a compreensão (linguagem receptiva) e principalmente a organização do pensamento para a elaboração e produção da fala (linguagem expressiva). Para isso, utilizou-se a estratégia de modelo de uso citado por Massaro (2017), em que o professor, nesse caso a pesquisadora, utiliza os modos alternativos de comunicação que são esperados para a criança utilizar, ou seja, apontando o símbolo gráfico ao mesmo tempo em que fala as palavras representadas por meio do símbolo.

A partir das experiências das intervenções, foi possível identificar as principais contribuições do uso dos recursos da CA, para a comunicação de Ana e Laura, na compreensão, no planejamento e na produção da fala, conforme apresentação das três categorias analíticas a seguir.

Cenas de atenção conjunta a partir do uso dos recursos da CA

A criança começa a se comunicar quando começa a participar de ações de atenção conjunta com o adulto. Na primeira fase da linguagem, a fala infantil é puramente emocional, com a criança expressando emoções em uma interação diádica (criança-adulto). A fase intelectual da fala é atingida pela criança quando ela passa a conseguir fazer contatos psicológicos com o outro, ou seja, a linguagem passa a ser objetiva, com intencionalidade comunicativa. Quando a criança busca compartilhar a atenção do adulto para algo, trata-se, pois, de uma interação triádica (criança-objeto-adulto) (TOMASELLO, 2003).

Nas sessões de intervenção com Ana e Laura, buscou-se provocar cenas de atenção conjunta em que as crianças interagissem com a pesquisadora com o apoio dos recursos de comunicação alternativa. Os trechos de transcrições 1 e 2 são exemplos das interações.

Exemplo 1 - Contexto: Após a leitura do livro Os 10 sacizinhos, a pesquisadora e Ana folheiam o livro e recontam alguns trechos da história.

Pesq. (T31): Ana, como é o nome desse personagem mesmo? ((Aponta para o personagem do saci))

((A criança fala algo incompreensível))

Pesq. (T32): É o SA (...)

Crian. (T33): SA (...) ((repete a pesquisadora))

Pesq. (T34): SACI

Crian. (T35): “SATI” ((fala com dificuldade))

Pesq. (T36): Saci que usa gorro vermelho, que usa cachimbo

((a criança interrompe e faz um gesto levantando uma mão sobre a cabeça))

Pesq. (T37): Gorro grandão, não é, Ana?

((A criança confirma com a cabeça, depois leva a mão à boca e faz um gesto de fumar))

Pesq. (T38): Ele usa cachimbo. Olha eles aqui no livro.

Crian. (T39): “Comê”, “comê” ((Faz gesto de comer com as mãos))

Pesq. (T40): Eles estão comendo! Estão comendo o quê? Será que é bolo?

Pode-se afirmar, a partir desse trecho de transcrição, que pesquisadora e criança participam de uma cena de atenção conjunta, pois compartilham a atenção uma da outra para a história com a mediação das ilustrações do livro. No turno de fala trinta e seis (T36), a pesquisadora chama a atenção de Ana para as características do personagem da história. Compreendendo a intencionalidade comunicativa da pesquisadora, Ana usa gestos para interagir chamando a atenção para o tamanho do gorro do personagem. Da mesma forma a criança, no turno de fala trinta e nove (T39), usa fala oral e gestos para chamar a atenção da pesquisadora para a ilustração.

Exemplo 2 - Contexto: Laura e a pesquisadora realizam uma atividade sobre o Natal com o apoio do aplicativo aBoard.

Pesq. (T1): O que tu quer ganhar de presente de Natal? ((acessa a opção brinquedos))

((A criança clica no ícone tambor))

Pesq. (T2): Tu quer ganhar um tambor de presente de Natal?

((A criança confirma com a cabeça))

Pesq. (T3): Que legal! E o que mais?

((A criança clica nas opções aviãozinho, carrinho e bola))

Pesq. (T4): Olha! E tu me falou que queria o que bem grande?

((A criança aponta para a boneca na tela))

Pesq. (T5): Aperta.

((A criança clica na boneca))

Pesq. (T6): Uma boneca.

((A criança clica no pictograma videogame))

Pesq. (T7): Tu joga videogame?

((A criança balança a cabeça confirmando))

Crian. (T8): Eu “joga” na televisão.

Pesq. (T9): Tu é muito chique.

Crian. (T10): Mas eu quebrei.

Da mesma forma, o trecho de transcrição da interação com Laura demonstra que se estabeleceram cenas de atenção conjunta, já que criança e pesquisadora, com a mediação do aplicativo da CA, conseguem compreender a intenção comunicativa uma da outra. No primeiro turno de fala (T1), a pesquisadora faz uma pergunta para Laura, compreendendo a intencionalidade comunicativa da pesquisadora. Laura responde clicando em um dos pictogramas do aplicativo. A criança também toma a iniciativa da interação quando clica no pictograma videogame, chama a atenção da pesquisadora para o objeto e reforça, turno de fala (T8), buscando a atenção da pesquisadora com linguagem oral.

Em ambos os casos, os recursos de comunicação alternativa foram importantes mediadores para o estabelecimento das cenas de atenção conjunta. Tanto as crianças conseguiram compreender a intencionalidade comunicativa da pesquisadora como também foi possível serem compreendidas. Mesmo no caso de Ana, que faz pouco uso da linguagem oral e que às vezes produz fala incompreensível, ao utilizar gestos, com o apoio das ilustrações do livro, conseguiu ser compreendida pela pesquisadora, estabelecendo, assim, a interação.

Pode-se, ainda, afirmar que durante as interações houve a inversão de papéis, já que criança e pesquisadora alternaram os papéis de emissor e receptor durante o compartilhamento de conteúdo da conversa. Assim também, as crianças, para chamar a atenção, fizeram uso das mesmas estratégias de comunicação que a pesquisadora utilizou, nesse caso a fala com o apoio dos recursos de comunicação alternativa. Com a estratégia do modelo de uso citado por Massaro (2017), a pesquisadora utilizava os cartões e pictogramas para apoiar a sua fala. Como consequência, as crianças passaram a imitar a pesquisadora utilizando da mesma estratégia para se expressar.

O uso da comunicação alternativa como apoio à compreensão

Embora Ana e Laura, na maioria das vezes, demonstrassem compreender o que lhes falam, houve alguns momentos em sala de aula em que as crianças não responderam aos questionamentos e comentários da professora ou de colegas, o que pode indicar os seguintes pontos: ou as crianças não queriam responder ou não compreenderam a intenção comunicativa. Por isso, a possibilidade de as crianças apresentarem em algum momento dificuldade para a compreensão - função receptiva da linguagem - foi levada em consideração para o planejamento das intervenções.

Sobre isso, Fujihira (2012), em colaboração com adolescentes com Síndrome de Down, elaboraram um manual de acessibilidade para pessoas com deficiência intelectual. Uma das questões levantadas no manual é em relação à compreensão. Nele, consta que é importante para a acessibilidade cognitiva da pessoa com DI que a outra pessoa da interação fale de forma clara e objetiva. Outro recurso citado no manual que auxilia a compreensão é a utilização de imagens na interação. As pessoas com DI apresentam boa percepção visual, por isso a mensagem transmitida por meio de imagens facilita a compreensão.

O que acontece é que, quando o outro da interação fala de forma rápida ou com palavras complexas, cria-se uma dificuldade para a compreensão da pessoa com deficiência intelectual por esta apresentar dificuldades em operar de forma abstrata. Assim, o apoio de imagens pode ajudar na compreensão da fala do outro, já que a imagem em si representa de forma prática um objeto ou realidade. Também demandou atenção para o planejamento das intervenções, para a melhor compreensão das crianças, a linguagem utilizada pela pesquisadora. Foram utilizadas palavras e frases simples e objetivas, evitando linguagem abstrata. O Exemplo 3 demonstra como a utilização da imagem pode colaborar com a acessibilidade cognitiva das crianças com deficiência intelectual.

Exemplo 3 - Contexto: A pesquisadora apresenta um cartão com uma cena composta de uma família (avós, pais e netos) com comidas natalinas nas pernas; há uma árvore de Natal ao fundo. Na imagem, todos estão sentados na janela. A pesquisadora pede para que Laura identifique a data comemorativa.

Pesq. (T12): Que festa é essa?

((A criança fica pensativa por alguns minutos))

Pesq. (T13): É a festa do ...

Crian. (T14): Papai Noel! O Papai Noel tava em cima da minha cama.

Pesq. (T15): O Papai Noel estava em cima da tua cama? E o Papai Noel foi fazer o que na tua cama?

Crian. (T16): “Foi dar” um presente “a” eu.

Pesq. (T17): Eita, que legal! Essa é a festa do Natal.

A observação dos elementos que compunham a cena ilustrada no cartão permitiu que Laura associasse a composição dos símbolos natalinos a outro símbolo, o Papai Noel, embora este não estivesse presente na cena. Com o auxílio da imagem, a criança, que participava de poucos momentos de interação em sala de aula, na intervenção se mostrou participativa, demonstrando que compreendeu, como diz Tomasello (2003): “o que nós estamos fazendo”, ou seja, a criança compreendeu do que se trata a interação entre ela e a pesquisadora e pode tecer comentários, como em (T14): “O papai Noel tava em cima da minha cama”, e (T16): “‘foi dar’ um presente ‘a’ eu”. A utilização de imagens, não só nessa sessão, mas também em todas as outras, permitiu que a criança, que antes se distraía facilmente, se concentrasse melhor, demonstrando mais interesse em interagir.

Embora a comunicação alternativa tenha a função principal de auxiliar a linguagem expressiva dos sujeitos com impedimentos comunicativos, nesta pesquisa os recursos compostos por imagens puderam também ajudar na função receptiva da linguagem, colaborando com a acessibilidade cognitiva das crianças.

O uso da comunicação alternativa como apoio ao planejamento e à produção da fala

As avaliações das habilidades comunicativas de Ana e Laura demonstraram que em alguns momentos das interações em sala de aula elas compreendiam o que lhes falavam, porém não eram compreendidas. No caso de Ana, os gestos por ela utilizados para se comunicar são dependentes da interpretação que o interlocutor faz, o que dá margem a interpretações equivocadas, e os balbucios (linguagem oral), muitas vezes, são incompreensíveis. Já Laura participava de poucos momentos de interação e se distraía facilmente; quando produzia fala, às vezes era descontextualizada, demandando esforço do interlocutor para a interpretação.

Dessa forma, para o planejamento das intervenções, considerou-se o uso da comunicação alternativa como apoio ao planejamento e à produção da linguagem expressiva das crianças. Os exemplos 4 e 5, recortes das intervenções com Ana e Laura respectivamente, demonstram como os recursos da CA contribuíram para que as crianças conseguissem se expressar.

Exemplo 4 - Contexto: Ana e a pesquisadora abrem o aplicativo aBoard na seção pessoas. Está disponível na primeira tela os pictogramas: eu, você, mamãe, papai, menino, menina, ele, mulher e homem.

Pesq. (T1): Ana, mostra pra tia nesse ((se referindo ao aBoard)) quem é que mora com Ana aqui. Tu mora com quem? Com mamãe, com papai, com quem?

((A criança clica no pictograma papai e o aplicativo vocaliza a palavra))

Pesq. (T2): Com papai e com quem mais? Tu tem irmã?

((A criança clica no pictograma irmã))

Pesq. (T3): Tem, não é, Ana? E quem mais?

((A pesquisadora abre a segunda tela da seção pessoas, nela consta bebê, professor, tia, avó, avô e alguém))

Pesq. (T4): Mora com vovó?

((A criança clica na opção vovó))

Pesq. (T5): Agora aperta aqui pra repetir com quem você mora. ((Refere-se à opção do aBoard Falar; o aplicativo vocaliza os personagens que a criança escolheu: papai, irmã e vovó))

Pesq. (T6): Papai e quem mais?

Crian. (T7): Papai ((Aponta para o pictograma papai))

Pesq. (T8): Irmã

Crian. (T9): IMÃ ((Pronuncia com dificuldade e aponta para o pictograma irmã))

Pesq. (T10): e vo...

Crian. (T11): vovó. ((Aponta para o pictograma vovó))

Na intervenção, Ana consegue responder às perguntas da pesquisadora clicando e apontando pictogramas disponíveis no aBoard. Como é possível observar no recorte de transcrição, Exemplo 4 após a criança selecionar os pictogramas relacionados aos membros da sua família a pesquisadora solicita que a criança clique no recurso Falar do aBoard; posteriormente, com o auxílio da pesquisadora, a criança começa a repetir o nome dos membros da família, turnos de fala (T7), (T9) e (T11).

Ambas as crianças conseguiram se expressar com o auxílio dos recursos da CA em todas as sessões de intervenção, tanto com os recursos de alta tecnologia como com os simples, de baixa tecnologia. Ana, que utilizava mais a linguagem gestual e alguns balbucios, usou da CA unida aos gestos, o que possibilitou ampliar sua linguagem. A criança pode expressar ideias, dar respostas, narrar fatos, entre outras situações que antes, apenas com os gestos, não conseguia.

Pensamento e linguagem têm raízes diferentes quando falamos de desenvolvimento infantil, porém, diz Vigotski (2001), no momento em que o desenvolvimento dessas capacidades se cruza, o pensamento se torna verbal e a fala se torna intelectual, ou seja, a criança começa a descobrir a função simbólica das palavras, começa a internalizar os sistemas de signos produzidos culturalmente, como a linguagem. Para o referido autor, as crianças não nascem com pensamento verbal; não é uma forma natural e inata de comportamento, mas, sim, histórico-social.

Assim, o desenvolvimento da lógica na criança é uma função direta de sua linguagem socializada, por isso a necessidade de estimulação precoce da linguagem para as crianças com deficiência intelectual, a fim de que seja potencializado tanto seu desenvolvimento comunicativo quanto o cognitivo.

Congregando da mesma ideia, Luria (1987) diz que a palavra dá ao homem um novo nível de consciência, que esta, fundamentalmente, é o elemento que caracteriza a ação do pensar. Dessa maneira, quanto mais oportunidades têm as crianças de interagir, de dialogar, de se comunicar, mais capacidade de abstração podem desenvolver.

No caso de Ana, por exemplo, em que a linguagem era prioritariamente gestual, e que às vezes não era compreendida por seus colegas e professoras, ela fazia uso dos gestos em seu significado individual, ou seja, em seu sentido. O gesto, quando era compreendido, tinha seu sentido preso naquele momento específico; eram gestos semelhantes à mímica, mais ligados a vivências afetivas da criança, sendo difíceis de serem compreendidos em outras circunstâncias, pois não faziam parte de um sistema cultural, como a Língua de Sinais.

Para Vigotski (2001), o pensar é a fala interiorizada; a fala para si mesmo e não fala para o outro. Ela planeja o comportamento, já a fala social visa ser escutada pelos outros, portanto tem a função comunicativa. No caso de Ana e Laura, sujeitos desta pesquisa, a utilização dos recursos de comunicação alternativa permitiu que as crianças construíssem melhor o pensar - a fala interiorizada, e assim planejassem melhor o que queriam expressar. Dessa forma, permitiu também que as crianças, com o apoio dos cartões, das ilustrações, dos pictogramas em tablet, entre outros recursos da CA, produzissem melhor a fala social, sendo melhor interpretadas pelo interlocutor.

O uso dos recursos de comunicação alternativa ajudou as crianças a evoluírem no processo de internalização do significado das palavras. O apoio das imagens permitiu que houvesse progressos na construção de sentido pelas crianças e na ampliação do repertório mental de palavras, o que contribuiu para que elas elaborassem melhor o pensamento e, consequentemente, planejassem e produzissem falas mais efetivas e funcionais.

4 Considerações finais

Esta pesquisa empenhou-se em investigar como a mediação da comunicação alternativa pode contribuir para a comunicação da criança com deficiência intelectual na etapa da Educação Infantil. Para isso, as discussões foram apoiadas na teoria histórico-cultural que considera a linguagem como uma aquisição cultural desenvolvida historicamente a partir das trocas comunicativas com sujeitos mais experientes.

Como resultado, as intervenções demonstraram que o uso dos recursos de comunicação alternativa contribuiu significativamente para a comunicação das crianças. Permitiu que criança e pesquisadora compartilhassem atenção nas atividades desenvolvidas; auxiliou a compreensão, estimulando as crianças a participarem ativamente das interações; também possibilitou às crianças planejar e produzir linguagem mais significativa e funcional. Assim, a mediação dos recursos ajudou as crianças a progredirem no desenvolvimento da linguagem, diminuindo o uso dos gestos e ampliando a fala.

Os achados desta pesquisa trazem uma discussão importante no que se refere à inclusão da criança com deficiência intelectual no âmbito escolar. Sabe-se que por muito tempo as pessoas com DI foram estigmatizadas como incapazes de aprender. A escola tradicional, com suas práticas homogeneizadoras, reforçava ainda mais a deficiência, excluindo essas crianças.

As ações interventivas com tecnologias assistivas, como o uso de comunicação alternativa, devem ser implantadas desde cedo. A estimulação precoce pode fazer toda a diferença no desenvolvimento das crianças com deficiência, pois como afirma Vygotski (1997, p. 117): “o bom aprendizado é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento”.

No caso do desenvolvimento comunicativo, a pesquisa demonstrou que o uso de comunicação alternativa unido a atividades pedagógicas de estímulo à linguagem oral, ainda na Educação Infantil, podem potencializar a aquisição e o desenvolvimento da linguagem das crianças com deficiência intelectual, o que, em sala de aula, pode permitir que as crianças com DI tenham tantas oportunidades de desenvolvimento quanto as demais crianças sem deficiência.

1O aBoard é uma ferramenta de Comunicação Alternativa desenvolvida pelo Grupo Assistive, da UFPE. Esta pode ser instalada gratuitamente em qualquer dispositivo móvel, como tablets.

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Recebido: 21 de Outubro de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2020

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