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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo jan./mar 2022  Epub 08-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.17262. 

Artigos

ALFABETIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO E POLÍTICA

LITERACY, COLONIZATION AND POLITICS

Manoel Vaz da Silva Neto, Doutor Em Sociologia1 
http://orcid.org/0000-0002-2062-2099

1Doutor Em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba - UFPB. João Pessoa, Paraíba - Brasil.


Resumo

Este ensaio tem como tema central o processo de iniciação da alfabetização enquanto elemento político fundante de percepção e libertação político-cultural da língua e cultura dominantes. Relativizado com o conceito de letramento procura posicionar-se como marco político de consciência e liberdade frente a um processo de letramento que se inscreve ao inscrever o sujeito como produto pacífico e passivo, bem como, sujeito à cultura dominante.

Palavras-chave: política; alfabetização; letramento

Abstract

This essay has as its central theme the process of initiation of literacy as a founding political element of perception and political-cultural liberation of the dominant language and culture. Relativized with the concept of literacy, it seeks to position itself as a political milestone of conscience and freedom in the face of a literacy process that inscribes itself by inscribing the subject as a peaceful and passive product, as well as subject to the dominant culture.

Keywords politics; literacy; beginning literacy

Introdução

Muito se tem tentado equalizar diferenças notadamente conceituais a respeito do que se poderia, grosso modo, entender por alfabetização. E, na esperança de superar tantas diferenças buscou-se esvaziar, ou antes, afastar-se do conteúdo político do processo de alfabetização. Isto significa dizer que as forças determinadas que se enfrentam neste campo específico do saber, em suas substâncias, trazem-nos já todo o conteúdo político de que desejam se livrar. Assim, o conceito de alfabetização, aparentemente, inegociável1 revela muito mais do que gostaria esconder a perspectiva e defesa da noção marxista de classe. Portanto, o conceito difuso2 de alfabetização reflete muito bem o universo no qual estão inseridos seus agentes políticos. Embora haja uma tendência metafórica3 relativa à alfabetização que procura se encaminhar em meio às disputas, às lutas por estabelecimentos conceituais, ela não passa de um modismo. Assim, hoje em dia se fala em alfabetização tecnológica, alfabetização em matemática, em informática, em ciências, alfabetização digital, musical, etc. No fundo, a tentativa de distanciar-se do elemento político inerente a alfabetização impondo-lhe uma redução meramente técnica e linguística é demasiadamente evidente e, quiçá, a tentativa mais séria e contundente deste aparente esvaziamento tenha se dado pelo que hoje se denomina, pelo menos, no Brasil, de letramento.

Assim, o elemento político inerente a alfabetização é a própria anima do campo da alfabetização. Não que haja uma conceituação melhor e outra pior, uma mais completa e outra que se caracteriza indelevelmente por seu caráter de incompletude. As tentativas de despersonalização política aludem para o fato de que não se pode compreender a alfabetização sem lançar mão dos seus fundamentos políticos e sociais específicos. Deste modo, a alfabetização pode estar tanto no campo do reducionismo etimológico4 com o que se verifica em inúmeros pesquisadores com status de autoridade, quanto transcendentalizante figurando este último, por exemplo, em elemento de conscientização descrito por Paulo Freire5. Desta maneira, o conceito de alfabetização não “resolvido” carrega dentro de si uma potência cujo elemento político se infere do seu poder de organizar os diversos sistemas que dele decorre: escolar, social, cultural, político e econômico. Dito de outro modo se há um elemento de classe influindo das determinações de uma possível conceituação universal de alfabetização esta demonstra ser impossível, uma vez que, para que houvesse uma aceitação universal de um conceito de alfabetização as classes deveriam estar reduzidas uma à outra, ou o que dá no mesmo, teriam que deixar de existir contrariamente enquanto realidade prático-política e, assim, diferenças aparentes e substanciais deveriam ter sido superadas.

Da alfabetização ao letramento: Das inversões teóricas às consequências políticas

A mim parece bastante evidente que o terreno no qual nos movemos para tentar fundar uma perspectiva muito sólida sobre a alfabetização não se resolverá nem a médio, nem a logo e muito menos em curto prazo, isto porque não temos como encarar a alfabetização, seu processo, numa comunidade pobre, numa favela do mesmo modo que num bairro burguês. Ou de outro modo, o que para a criança burguesa é uma situação de conforto e de encontro com seu cotidiano, a escola e a alfabetização, para a criança pobre da comunidade o seu encontro com a alfabetização nos padrões que as escolas públicas a oferece é um verdadeiro desconforto e desencontro com o seu cotidiano, pois os seus conteúdos são muito mais frutos de uma imposição severamente sentida do que a oferta de um novo mundo no qual lhe oportunizaria viver melhor o seu próprio mundo. Daí, por exemplo, que a língua não é objeto de nenhuma problematização figurando tão somente como uma imposição a ser vivida pelo dialeto padrão, pelas práticas de leitura e escrita que não revelam a sua experiência, mas a experiência de um universo completamente antípoda ao seu, portanto, que ela não compreende e nem sabe interpretar. O efeito prático sentido pela criança que se alfabetiza desse modo é de negação. É como se ela nunca tivesse sabido falar, é como se o dialeto que fala em sua comunidade devesse ser superado pelo aprendizado de uma língua, de um dialeto que, em suas práticas diárias, cotidianas, sociais, culturais, históricas, devessem ser superadas por seu conteúdo de inaceitação e incompletude diante do mundo. O elemento conceitual, portanto, de alfabetização que anima este processo procura pautar-se por esvaziamento político, profundo e violento representando, nesta violência simbólica6, as marcas políticas de um processo de aculturação e colonização visceral.

Assumindo, portanto, o conceito de alfabetização reduzida à aprendizagem e manejo da técnica de ler e escrever somos obrigados a aceitar que o uso social da leitura e escrita, seja ele individual ou coletivo, estrutura-se em torno, politicamente, dos escritos dominantes e que não conseguem representar o universo simbólico da criança e do adolescente e mesmo do adulto periféricos cujas vivências práticas, isto é, experiência em sua comunidade, em seu bairro periférico em nada dialoga em suas realidades senão para negar uma a outra. Assim, os conteúdos políticos das diversas textualidades que lhe são apresentadas na escola, sobretudo, os de caráter literário, para eleger uma parte bastante significativa do problema, representam o universo simbólico de uma classe social antípoda à sua. Neste caso, portanto, o que aparentemente estava vazio de caráter político revela-se, profundamente, matizado por tais características. O professor Moacir Gadotti comentando sobre a alfabetização e o letramento a este respeito nos diz que,

Emília Ferreiro nega-se a aceitar esse “retrocesso conceitual” 7. Em vez de se curvar a esse anglicismo, ela traduz literacy por “cultura escrita”, e não por letramento. Mas não se trata só de um retrocesso conceitual. Trata-se, lamentavelmente, de uma tentativa de esvaziar o caráter político da educação e da alfabetização [...] (GADOTTI, 2019, p. 1). O grifo em negrito é meu.

Como venho tentando demonstrar o conceito de alfabetização não pode, dado o campo, isto é, a própria natureza substancial em que ele deve atuar ser conceituado, universalmente, porque convergem, claramente, para a sua cientificidade elementos de classe, perspectiva de classe, enfim, fundamentos políticos de classe que não são comuns no campo de disputas. De outro modo, não se pode querer negar ao letramento os fundamentos políticos que ele põe em ação para constituir-se e constituir o seu universo próprio e que só se distancia da perspectiva de Paulo Freire por ser-lhe antípoda e, portanto, no Brasil, inaugura uma nova dimensão epistemológica para encarar a realidade. O fato de os defensores do letramento não ‘problematizarem’ politicamente a alfabetização vendo, portanto, nesse último o processo pelo qual se atinge a excelência da técnica decodificadora e disto, consequentemente, resultar em um dispositivo adequado de inserção do sujeito no mundo da leitura e escrita e de suas funcionalidades sociais, não implica subsumir que não haja politicamente, isto porque as práticas de leitura e as de escrita, na dimensão de seus conteúdos, não podem fugir aos elementos políticos fundantes e imediatos e transcendentalizados de sua classe e que estão ali grafados em forma de texto. Daí se assume que a perspectiva política e intrínseca ao próprio texto dominante deve ser aceita universalmente8.

Portanto, a escolha por um ou outro termo, isto é, por alfabetização como um espectro conceitual de alcance muito mais amplo do que o aprendizado, manejo, domínio da codificação e decodificação e do letramento como universo que, supostamente, amplia-o e supera é uma questão de escolha política, de determinar em que espaço discursivo se age, como age e por que age. Não há, enfim, que se propor, a meu juízo, uma unidade conceitual9 por complementação em torno de um ou outro termo, porque eles não são redutíveis um ao outro politicamente, pois demarcam, ideologicamente, práticas determinadamente diferentes. Também não penso como Emília Ferreiro10 que fosse possível de se por “em votação” os termos e aí se decidisse por qual usar11. A mim me parece que se por letramento devemos compreender apenas a capacidade anódina de uso da escrita em contextos sociais indiferenciados, culturais, o conceito de alfabetização em Paulo Freire - na perspectiva de uma conscientização política - combina exatamente com aquilo que penso sobre a alfabetização, isto é, como o processo que leva o sujeito à transcendentalização de si e do mundo em busca não apenas de sua transformação, mas da instituição de um mundo completamente novo e, neste caso, alfabetização expressa melhor a situação de sujeição do sujeito periférico desde o ponto de vista político e sua busca por superação. Mais do que, então, amenizar o confronto entre alfabetização e letramento na perspectiva de Magda Becker Soares devemos mesmo é considerar a dimensão e natureza ideológica de cada um e, assim, conforme os agenciamentos os agentes políticos a lidar neste campo específico que se decidam política e ideologicamente onde se situarem. Este campo não se fecha em torno de uma ideia, sua realidade é mesmo o confronto.

Esta tentativa de esvaziamento político do processo de alfabetização e seu consequente reducionismo etimológico12 pelo de letramento enquanto uso sócio-cultural da leitura e da escrita parece-me atender melhor a perspectiva daqueles que sonham ser possível o ensino puro da língua, do dialeto padrão, sua gramática, suas regras, indicando suas variações linguístico-dialéticas, procurando evitar o preconceito linguístico, eufemisticamente, seus usos sociais, enfim. É quase uma ingenuidade imaginar que a alfabetização possa, de fato, estar reduzida ao ensino e a aprendizagem de habilidades e técnicas13 de codificação e decodificação da língua escrita e que o letramento14 consiga dar conta de todo o resto, isto porque se decidíssemos como propõe Emília Ferreiro, por votação dos termos e o letramento ganhasse em que isto mudaria a realidade política do escrito e de sua leitura, ou antes, em que isto mudaria a realidade social, política, econômica da realidade vivida por indivíduos assim assujeitados, a viver violentamente esta condição? Em que isto mudaria a realidade de ensino da língua enquanto uma dimensão política e enquanto expressão político-social da classe dominante? Não é por votação15, nem por reduções etimológicas que se resolverá a respeito das terminologias conceituais empregadas sobre a alfabetização. Evidentemente, a língua que se deseja ensinar como uma universalidade ôntica está carregada de singularidades notadamente ontológicas: singularidades culturais, sociais, históricas, econômicas, políticas.

Ao que parece, então, a língua não se impõe aos sujeitos como desejam os linguistas, a exemplo, de Ferdinand Saussure16 que a define mais como um objeto de estudo especificamente linguístico17 do que como a expressão imediata de uma realidade prática18, contextualizada, social, cultural e, sobretudo, política, como, a exemplo, procura explicar Pierre Bourdieu através do que ele denominou de “língua legítima”. Se levássemos a cabo, assim, e tivéssemos por parâmetro conceitual a alfabetização a partir de uma perspectiva estritamente linguística, como de resto parece ser o que ocorre aos defensores do letramento, a alfabetização reduzir-se-ia apenas a seu aspecto etimológico, isto é, a aquisição processual do manejo de sua technê de ler e escrever e, neste caso, Magda Becker Soares teria razão ao reduzir a alfabetização à aquisição mecânica das técnicas de ler e escrever19. Mas, se, no entanto, aquela objetividade linguística pretendida do objeto apresentado por Saussure transformara-se no ensino de um dialeto padrão que se confunde com a noção própria de língua a ser universalmente aceita e legitimada por todas as classes sociais20, então, não há dúvida de que estamos em face não apenas de um engodo linguístico-científico, mas de uma imposição linguístico-simbólica das produções simbólicas de uma determinada classe sobre outra e, neste caso, a sua processualidade, indubitavelmente, mira para a construção de indivíduos politicamente dóceis21 em um processo de colonização muitíssimo violento.

O dialeto falado por determinados sujeitos de uma determinada comunidade social não se reduz ao padrão da língua, à norma padrão que, como todos os demais dialetos, em tese, deveria ser apenas mais um. No entanto, este dialeto22 se confunde com a noção própria de língua23e por ela responde enquanto padrão, portanto, politicamente dominante. De outro modo, é padrão e é dominante porque é a variação linguística ou o dialeto da classe dominante que a/o impõe porque a/o domina. E, evidentemente, os elementos simbólicos e inconscientes que ela carrega ou traz em sua interioridade patrocina enquanto constructos sociais, valor, e, assim, eternizam-se identicamente como superiores muito embora não se possa encontrar no tecido social, cultural nenhuma relação entre as produções simbólicas24 e sua quase natural aceitação de superioridade senão enquanto histórica e politicamente fundada. Não se pode aceitar, portanto, este reducionismo da alfabetização a um perspectivismo notadamente linguístico, padrão e que parece desconhecer ou fazer vistas grossas aos elementos políticos fundantes que possibilitaram estabelecer o dialeto da classe dominante como o padrão da língua. Não se pode e nem se deve aceitar e menos ainda naturalizar a alfabetização como o domínio técnico para ler e escrever, pois a alfabetização enquanto conceito tem uma abrangência muito maior e descreve toda uma fenomenologia social e política que se fundamenta pela luta de classes, pelo menos, enquanto logos específico. E aqui, claramente, a classe dominante impõe o seu dialeto e o faz confundir mesmo com a noção de língua e o resultado prático desta imposição é, obviamente, a sujeição e dominação de uma classe sobre a outra.

É mais do que necessário que comecemos a descrever as estratégias pelas quais o letramento, pelo menos, no Brasil, veio obnubilar a alfabetização enquanto processo de transcendentalização do sujeito para impor demandas classistas, isto é, de seus produtos culturais, político-econômicos, enfim, de poder. E faz isto, primeiramente, porque ao impor o seu dialeto como padrão da língua goza politicamente dos constructos simbólicos e de valor e, assim, através deles consegue dominar criando toda uma atmosfera teleológica de superioridade. Dessa maneira, falar quanto escrever ortograficamente25 a partir do dialeto padrão tornou-se o principal mecanismo político-social de divisão de classes e o instrumento legitimador de suas diferenças e divisão. Ler bem e bonito, assim como, saber escrever bem e bonito inscreve politicamente a situação quanto a posição dos sujeitos determinados no jogo das relações de força e poder. A busca pela cientificidade linguística não conseguiu anular o fato político que permeia as relações cotidianas dos sujeitos falantes. O padrão normativo, dessa maneira, não nasce da necessidade natural de se estabelecer uma realidade comunicativa perfeita, mas da necessidade política de se estabelecer a partir de um parâmetro determinado um tipo de comunicação também bastante específica. Neste caso, “optou-se” por aquele dialeto falado entre os que politicamente dominavam ou dominam. Sua gramática, portanto, expressa o nível de sujeição a que todos os falantes de outros dialetos devem ou deveriam submeter-se salvo não haver comunicação alguma. E esse salvo comunicação alguma, leia-se, refere-se, exatamente, àquela classe dominante que só dominando seu próprio dialeto, por uma questão de elevado valor e distinção simbólico-cultural, não poderia comunicar-se, por fundamento de distinção linguística, no dialeto dos assujeitados à sua realidade e poder. A escola, então, enquanto uma instituição de Estado surge, justamente, para amenizar o fosso linguístico, discursivo entre as classes dominantes e as dominadas e a estabelecer, como regra de ouro, todo um processo ortopédico e colonizador não apenas em aspecto estritamente linguístico, mas, sobretudo, a imposição dos produtos desse mercado linguístico-cultural, seu uso forçado enquanto prática adequada.

O professor Luiz Carlos Cagliari em um artigo intitulado “Algumas questões de linguística na alfabetização” toca no assunto, contudo, descaracterizando o elemento político fundante das relações dialeto/sujeito, língua/padrão normativo. Diz-nos ele que,

Como a criança ao entrar na escola, achava que já sabia falar sua língua, não consegue entender o porquê de tudo, de repente, ficar confuso, errado e difícil em sua mente. Essa é a realidade de inúmeras crianças pobres e menos favorecidas social e economicamente, ao entrarem para a escola. A adaptação delas ao modelo escolar não acontece da noite para o dia. Na verdade, elas deverão trilhar um longo caminho de adaptação e de aprendizagem, porque tudo o que diz relação à linguagem é sempre muito complexo e a aquisição de novas habilidades não ocorre no mesmo tipo de contexto em que ocorre a aquisição da linguagem, quando a criança aprende a falar (CAGLIARI, 2005, p. 74) Os grifos em negrito são meus.

As intempéries encontradas na escola não estão associadas a quaisquer crianças, mas, restritivamente, às crianças pobres26. Ao que parece antes de “entrar na escola” a segurança linguística de seu dialeto falado em sua comunidade não lhe trazia, à criança, nenhum desequilíbrio ou desconforto e, portanto, os fatos narrados por Cagliari (2005) não poderiam ser objeto de nenhuma preocupação nem pela comunidade de falantes deste dialeto, menos ainda pela criança que inserida nesta comunidade e comunicando-se por este dialeto tinha a sua segurança linguístico-dialetal assegurada. Ao que me parece e se faço boa leitura da leitura de Cagliari (2005) é que ele também parece aceitar, embora negando, a noção de língua à noção de dialeto padrão, isto porque se no dialeto da comunidade em que a criança pobre aprende a falar e, portanto, seu dialeto é proficiente em transmitir naquela comunidade sua mensagem em que isto implicaria que “a linguagem é sempre muito complexo (SIC)”? Que linguagem é complexa e em relação a quem? Essa linguagem é complexa em relação a crianças burguesas que convivem desde o berço com esse dialeto? Admitindo-se que o aprendizado do dialeto padrão às crianças pobres só se faz por imposição da escola e que, tais crianças já aprenderam o dialeto da comunidade cultural onde vivem, não é de se esperar que este novo dialeto se transforme em seus pesadelos escolares, isto porque este novo aprendizado não se faz, natural e processualmente, como o aprendizado do primeiro que se impõe naturalmente a partir das experiências de seu cotidiano na comunidade dialetal.

Resta, pois, a Cagliari (2005) admitir, ao menos, eufemisticamente, que essa aprendizagem necessita ser adaptada (imposta) à criança pobre. É preciso ser “adaptada” porque mesmo não dizendo explicitamente em seu texto implicitamente Cagliari (2005) não pode negar o elemento político fundante desse processo escolar de alfabetização. De sua “adaptação” a este novo meio - linguístico - dependerá a sua sobrevivência política nas instâncias de mando, bem como, seu conforto econômico desde um ponto de vista das relações de produção. No entanto, o “melhoramento” linguístico subsumido pelo dialeto padrão em relação à criança pobre não se estabelece por meio de uma seleção natural, mas em detrimento de o indivíduo assujeitar-se ou não a este conjunto normativo-linguístico - dialeto padrão - que a escola impõe como único caminho para o sucesso e como a melhor forma de expressão espiritual da língua. No entanto, o conteúdo dessa adaptação não pode soar mais falso. Não se garante que o domínio do dialeto padrão imposto pela escola também se garanta a segurança política, econômica e cultural daqueles que, extemporaneamente, são empurrados para forçadamente27 aprender este dialeto. Assim, a mecânica deste tipo adaptativo de aprendizado estabelece não apenas as regras de seu aprendizado como determina a latitude de seu fracasso.

O aprendizado deste dialeto por crianças pobres impõe funcionalidade protética, isto é, ele tem o condão de ser um substitutivo protético. Isto significa dizer que enquanto elemento substitutivo o dialeto padrão não procurará apenas substituir um dialeto por outro, mas todo um universo cultural-simbólico que surge em detrimento disto. A consequência imediata, prática, na escola, bem como em sua comunidade dialetal de origem, é que crianças pobres que antes se comunicavam com seus iguais começam, rapidamente, a reproduzir contextos de preconceitos linguísticos e violência linguística. Começa-se a estruturar contextos de injúrias que antes não ocorriam. A noção de certo e errado no falar, no comunicar começa a ganhar corpo e densidade e mais tarde noções de “bom” e “mau” para classificar expressões culturais especificas estruturam-se como elementos de negação de narrativas culturais determinadas28. Lembro que em uma turma de 5º. ano, ano final do 1º. Ciclo da Educação Básica (brasileira) pedi para que um aluno lesse um pequeno texto. Apesar de proceder a leitura no dialeto padrão uma “falha” o fez ler o verbo “levantou” por “alevantou”. Imediatamente, toda a turma levantou-se em chacota, em zombaria ante sua leitura em seu dialeto comunitário. Em artigo de 1985 intitulado “As muitas facetas da alfabetização” a professora Magda Becker Soares, assim, como Cagliari (2005) admite a essencialidade do processo de alfabetização ser linguístico e nos diz que,

[...] o processo de alfabetização é também e, essencialmente, um processo de natureza linguística. [...] Do ponto de vista propriamente linguístico, o processo de alfabetização é, fundamentalmente, um processo de transferência da sequência temporal da fala para a sequência espaço-direcional da escrita, e de transferência da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita (Cf. Silva, 1981). (SOARES, 1985, p. 22) Os grifos em negrito são meus.

A aparente naturalidade acrítica com que se afirma a processualidade alfabetizadora em contexto linguístico é rompida e superada por Soares (1985) quando afirma que,

Para as classes dominadas, o significado meramente instrumental atribuído à alfabetização, esvaziando-a de seu sentido político, reforça a cultura dominante e as relações de poder existentes, e afasta essas classes da participação na construção e na participação do saber. (SOARES, 1985, p. 23) O grifo em negrito é meu.

Em um artigo de 2004 Magda Becker Soares retoma aquele texto de 1985 “As muitas facetas da alfabetização” para contrapô-lo ao conceito que se instalou de letramento. Trata-se agora de trabalhar as facetas do letramento em relação às da alfabetização. O elemento político-linguístico já não aparece neste novo texto e todo o seu esforço está concentrado para fundar uma conciliação hermenêutica entre os significados conceituais que se devem admitir em relação à alfabetização enquanto processo de aquisição da mecânica de funcionamento da língua escrita e o letramento enquanto uso prático da escrita nos mais variados contextos sociais e culturais. Apesar de complementares ou interdependentes, insiste Soares (2004), eles descrevem interior e exteriormente realidades distintas o que, em tese, justifica o uso complementar de um em relação ao outro. Neste caso, já não se alude para o fato de que o aprendizado instrumental da alfabetização, bem como, seu uso prático nos contextos sociais da escrita significaria a sujeição e dominação do indivíduo ao status quo dominante e, assim, Soares (2004) afirma que,

Na França, como esclarece Lahire, em L’invention de l’illettrisme (1999), e Chartier e Hébrard, em capítuloincluído na segunda edição de Discours sur la lecture (2000), o illettrisme - a palavra e o problema que ela nomeia - surge para caracterizar jovens e adultosdo chamado Quarto Mundo que revelam precário domínio das competências de leitura e de escrita, dificultando sua inserção no mundo social e no mundo dotrabalho. (SOARES, 2004, p. 6) O grifo em negrito é meu.

Soares (2004) ameniza a ideia de dominação usada por ela em texto anterior29 fazendo uso agora do termo “inserção” como neste novo texto30. A menos, claro, que se queira acreditar que o domínio técnico do letramento faria demolir, apenas por ele mesmo, as estruturas de sujeição e dominação que o universo linguístico normativo ajudou a construir e trabalha para que se mantenha o status de sua dominação quanto de sua manutenção o conceito de alfabetização na perspectiva de Paulo Freire amplia a disputa entre as classes e as forças que exercem de uma em relação a outra conscientizando para a libertação das classes dominadas. As consequências são, para a maior parte dos indivíduos, contrárias. A justificativa, assim, de um processo de alfabetização pautado pelo aspecto linguístico-normativo cria a condição, por imposição, a uma “inserção”, sobretudo, em aspecto profissional ou o que eu prefiro chamar na perspectiva de Michel Foucault de disciplinamento31. De outro modo, deixou-se de lado, identicamente, a ideia de participação da classe dominada na construção do saber como se isso fosse mesmo possível como aludido no texto de 1985. O que hoje tem se falado é que o sujeito constrói o seu saber e a mim o que toca ao ler isto é entender que o sujeito (dominado) interioriza o saber do outro (dominante) para marginalizar seu próprio saber (dialeto próprio e seu universo cultural de origem) e assegurar uma pseudo participação na escrita do mundo que o inscreve como sujeito dominado.

Paulo Freire em sua “Pedagogia do oprimido” nos ensina que uma das estratégias do poder é instalar-se no âmago das comunidades dominadas32, fazê-las aderir a seu projeto e, a partir disto, impor a estas comunidades um processo de vivência, experiência dual com o capital simbólico. Ou seja, vivendo a própria miséria o pobre deseja alcançar a vida do rico por este estimulado a tal fim não percebendo que é o rico ou a classe dominante, burguesa, a que pertence o rico, a verdadeira responsável por seu estado de miséria. Assim, inculca-se na cabeça da criança pobre, periférica, a noção de que estudar - elemento simbólico e inconsciente - lhe retirará daquela situação miserável. Não faço aqui uma crítica ao conhecimento e à sua apropriação, mas, ao tipo de pedagogia liberal e bancária que, aparentemente, “não” há como vencer. Portanto, as análises críticas de que a escola é reprodutora33 e divisora34 atualizam, nesta perspectiva conceitual, a relevância de tratar a alfabetização como um elemento político fundante cujo escopo e intenção é a libertação do sujeito, sua conscientização e transcendentalização. Temos perdido de vista essa condição da escola e, sobretudo, da alfabetização ao apostar apenas que o letramento daria/dará conta de resolver problemas que, ao que parece, não lhe confere a responsabilidade instrumental para tal fim. Temos visto com notável preocupação o fato de que o processo de escolarização não tem patrocinado contextos de libertação. Muito ao contrário, este processo tem como sua principal função inserir jovens e adultos no mercado de trabalho. E esta inserção significa dizer a sua aceitação pacto-contratual nos moldes que apresentam as classes dominantes.

Habilidades de leitura e competências técnicas de escrita sozinhas não dão conta de objetivar um mundo novo sob o domínio de novas condições de existência. No máximo, elas mantêm a estrutura e a função do logos específico que faz surgir as relações de força e poder35. Portanto, como bem lembra o professor Moacir Gadotti não se trata apenas de instituir uma nova terminologia, mas de negar o conteúdo ideológico com que o conceito de alfabetização se fundamenta desde a perspectiva de Paulo Freire. Os resultados de diversas avaliações que medem habilidades e competências de nossos estudantes têm soado ano a ano os alarmes a respeito da má qualidade de nossa educação36. Busca-se todo tipo de falsa explicação que vai do físico ao metafísico, do global ao local, do econômico ao instrumental, mas nenhum relaciona os dados ao seu caráter fundante, isto é, político-alfabético. Digo isto, porque, como pouco antes já havia considerado o elemento político-linguístico que institui a norma, o dialeto padrão, confere aos sujeitos inicialmente não alfabetizados nesse dialeto profundos contextos de alienação37 e aculturação dado que no contexto escolar, de sua produção, o indivíduo não se encontra, nem consegue se objetivar e objetivar o mundo que o rodeia restando-lhe negar-se na tentativa de encontrar-se num mundo que jamais será seu38. Em “Manuscritos econômico-filosóficos” Karl Marx nos põe a seguinte questão sobre o processo de alienação,

O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadoria; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens (MARX, 2004, p. 80).

Se o sistema escolar produzisse cada vez mais e melhor educação39 o resultado não seria um estado de igualdade social, política, econômica, cultural, isto porque ou o indivíduo seria destruído antes ou teria que destruir o Estado depois para não ser por ele destruído. Do ponto de vista econômico as forças de trabalho decairiam em valor potencial e econômico pelo idêntico valor cultural e técnico e pelas baixíssimas demandas por mão de obra mais qualificada40, pois estas adquiririam qualificação idêntica em igualdade de condições escolares; do ponto de vista cultural as classes dominantes perderiam qualquer status de distinção cultural distinguindo-se civilizatoriamente apenas por seu caráter de poder econômico41. Portanto, a mim me parece que a estratégia mais profícua é a que está em curso. Alimenta-se um sistema com a promessa de que é possível uma igualdade (cultural, econômica, política) inatingível oferecendo àqueles que sonham em “vencer na vida”, isto é, viver como vivem os burgueses. Contudo, sabe-se que a função social da escola e do tipo de educação e conhecimentos técnicos que ela propõe é para cada vez mais aumentar o contingente de seus exércitos de reserva de demanda através de deficitários meios de transferência de conhecimentos e de uma economia educacional que não atinge o seu fim, ou antes, que mantém a classe dominada distante de alcançar tal finalidade. Portanto, o que este processo de alfabetização desideologizado a que chamam letramento propõe é antípoda à concepção política de alfabetização encontrada em Paulo Freire e, assim, se por um lado promove contextos de alienação pela promoção e produção educacionais excessivamente deficitários, por outro, favorece o elemento aculturação desses indivíduos que jamais alcançarão, senão, uma inserção “social”, quando muito, em território estrangeiro e profissional como recruta entre milhões. Assim, uma criança de origem pobre que passe por este sistema de ensino jamais se tornará uma leitora se em sua comunidade se o habitus de leitura não for uma realidade; jamais será um escritor ou um intelectual se os padrões culturais de sua comunidade que fazem uso da escrita dispensá-lo ao mínimo necessário em relação a este fim. Não importam as pressões, as seduções que, estrategicamente, serão armadas para concretizar tal finalidade. Esta criança jamais deixará sua comunidade, nem a comunidade a ela, salvo, raríssimos casos. Daí que a escola precisa refletir a própria comunidade em que está inserida e não ser o espelho de uma comunidade que se presentifica apenas metaforicamente.

No entanto, esta realidade parece estar muito distante. A escola só pode espelhar a moral e o valor da classe dominante consubstanciada, portanto, no lirismo nacional, numa espécie de ufanismo, pelo qual responde o dialeto padrão e sua gramática. Assim, o dialeto padrão deixaria de ser tomado enquanto a própria língua quando transcendentalizado o sujeito dele fizesse uso, instrumento de humanização e libertação de sua comunidade, objetivando para si e para sua comunidade este mister. Portanto, o dialeto padrão tornar-se-ia o espaço do confronto onde a lógica sistemática de espaço de construção simbólico-cultural dever-se-ia ser desmontada a conta-gotas e respeitado os edifícios culturais a que, em seu dialeto próprio se expressa e, histórico-socialmente, fora construído. Desta maneira, ler Machado de Assis ou Fiódor Dostoievski, Clarice Lispector ou Émile Zola não mais figuraria como elemento distintivo de uma nobreza civilizatória e intelectual em detrimento de uma classe dominada, acéfala, burra, ágrafa, inconsciente, explorada, por fim, dominada, mas o elemento imprescindível de desmonte da própria classe dominante pela dominada. Qualquer sentimento de superioridade ou distinção, portanto, deveria ser desfeito e o impulso político pela conquista dos títulos como elementos distintivos não poderia elevar-se para além do nível de uma prazerosa gargalhada.

O processo de alfabetização que ignorar esta realidade de coisas não apenas produzirá indivíduos deficitariamente alfabetizados42, bem ao gosto da classe dominante brasileira, mas também mão de obra igualmente deficitária a alimentar mercados e postos de trabalho que não exijam desse indivíduo perícia técnica em leitura e escrita. Isto significa dizer que ocuparão aqueles postos de trabalho que não garantirão a sua dignidade de cidadão, menos ainda lhe dará alguma segurança econômica, política, social e cultural. Estes indivíduos, assim, estarão sujeitos às determinações intempestivas das classes dominantes colonizadoras sem ao menos poder bem compreender o que fazem, como fazem e por que fazem determinadas coisas restando-lhes apenas, como nos lembra Paulo Freire, assumir a fatalidade produzida para sua existência, sem direito a nenhuma objetivação de si e do mundo, sem direito a sua pronúncia e pronunciação do mundo. Assim, quanto menos alfabetizado for o indivíduo mais distante ele se torna do patrimônio cultural da humanidade passando a ser tratado apenas como uma engrenagem que pode ser, facilmente, substituída por outra. Deste modo, com toda esta supervalorização do dialeto padrão que responde pela noção própria de língua e que o indivíduo deficitariamente alfabetizado não domina, resulta em sua desvalorização enquanto indivíduo e o inscreve nas relações de classe e poder como um sujeito dominado.

Considerações finais

Para mim a alfabetização, enquanto elemento ideologicamente pensado e estruturado, consegue traduzir melhor o conceito marxista de luta de classes e quando questionado em sua interioridade ele consegue nos lançar para instantes muito mais longe no tempo quando a questão dos dialetos, isto é, diversos, inúmeros dialetos da língua ainda não era, especificamente, uma questão nacional, mas muito mais de classe, porque do ponto de vista das mentalidades e dos comportamentos43, portanto, o elemento psicológico das classes dominantes e dominadas, não se distinguindo tanto se procurou distingui-los. Portanto, a língua, isto é, o dialeto padrão só muito recentemente aparece como uma questão nacional ali entre os séc. XVI e XVIII e de comunicação interclasse. Ele, enfim, parece ser o resultado de uma gramática muito maior que a de um dialeto específico que tomou o lugar de toda a centralidade da língua e que nele irá desaguar como, por exemplo, a língua portuguesa no Brasil, que é a do comportamento. Portanto, bem antes de um padrão linguístico-dialético ser a preocupação geral das classes dominantes, sócio-historicamente fundado, como forma de dominação da classe dominada urgia antes estabelecer as regras sociais, comportamentais, psicológicas que serviriam de base, digamos estrutural, para elevar-se e produzir, por assim dizer, toda uma economia simbólica superestrutural que procuraria muito mais do que um dialeto padrão estruturar a sociedade em termos de comportamentos e, neste caso, o dialeto padrão serviu como ponte estruturante de comportamentos estruturados. É só mais tarde quando os comportamentos sociais, culturais, civilizatórios, em suma, começam a diferenciar-se entre as classes que o dialeto da aristocracia, por conseguinte, herdado pela burguesia, isto é, de sua classe média européia civilizada, culta, começa a ser pensada, via de regra, como potencial padrão. Em ensaio futuro pretendo abordar com maior consistência os elementos que influenciaram na construção cultural, sócio-psicológica e civilizatoriamente a distinção entre as classes.

1Desde um ponto de vista de classe.

2Cf. Adeline Seurat, 2012;Karine Chrétien Guillemette, 2007.

3Cf. Berta Braslavsky, 2003.

4Que conceituam a alfabetização como a aprendizagem e o manejo da técnica de ler e escrever como, de resto, figurado na Base Comum Curricular Brasileira (BNCC).

5Cf. Freire, 1987.

6Cf. Pierre Bourdieu, 1989.

7Gadotti se refere ao conceito de letramento como substitutivo de alfabetização.

8O mesmo não ocorre com aqueles textos que são, pelo status quo dominante, considerados marginais.

9Como tentara a professora Magda Becker Soares. Cf. Magda Soares, 2004.

11Visto que diferenças sociais, políticas, culturais que expressam o uso dessas terminologias não se resolvem por uma votação entre experts.

12Cf. Magda Soares, 1985.

13Reducionismo etimológico.

14Na perspectiva conceitual que se faz dele no Brasil.

15Mesmo porque quem seriam os arautos nessa dimensão a decidir por qual termo usar? Correr-se-ia sempre o risco desta eleição ser posta sob suspeição e tudo recomeçaria no campo das batalhas uma vez mais.

17Sua preocupação, por exemplo, no Curso Geral de Linguística em definir seu objeto de estudo e, portanto, estabelecer bases sólidas para este objeto, a língua, não distensiona a realidade prática dos indivíduos em seus universos linguísticos-prático daquela busca científica por estabelecimento universal desse mesmo objeto, a língua.

18Cf. nota de roda-pé nº. 5.

19Cf. nota de roda-pé nº. 9.

20Mas que não é produzida no interior e pelo interior de todas as classes sociais.

21Pois se “aceita” que haja um dialeto certo e outro errado. O estabelecimento entre certo e errado invisibiliza, na fonte, o confronto político pelo estabelecimento de um padrão normativo a que todos “indiscriminadamente” devem manejar.

22O padrão dominante.

23Pelo menos é assim ensinado na escola brasileira o dialeto dominante enquanto língua portuguesa e, neste caso, o dialeto responde pela língua e a língua se reduz ao dialeto padrão.

24Senão politicamente fundante.

25Este é o elemento fundante que a Base Comum Curricular Brasileira (BNCC) traz como conceito de alfabetização. Cf. BNCC, 2018.

26Um fato de natureza político-econômica, a pobreza, transforma-se também em pobreza simbólico-cultural e linguística, uma vez que, o dialeto linguístico falado por estes indivíduos não consegue traduzir a riqueza linguística de que goza os falantes do dialeto padrão, menos ainda, postular-se em escrito constituindo, assim, obras de natureza artístico-literária ou científica.

27Amenizam-se muito quando os documentos oficiais trocam o forçadamente por obrigatoriamente. A obrigação admite uma pactuação, uma espécie de contrato, até mesmo como se refere Ferdinand Saussure a um pacto linguístico e lhe atribui um conteúdo moral. O forçadamente, pois, alude para o jogo das relações de forças e dominação e, portanto, atribui-lhe um conteúdo político.

28Não à toa que a noção de “boa música”, por exemplo, contrasta com os elementos culturais produzidos pela periferia, pela comunidade.

29Cf. nota de roda-pé nº. 11.

30Trata-se, pois de consideração a respeito de imigrantes que não dominam o sistema de leitura e escrita francês, no entanto, suas conclusões são, igualmente, válidas quando relativizada para o contexto brasileiro de alfabetização.

32Neste caso, a instituição escolar, a escola, cumpre um especial papel. Cf. Freire, 1987.

34Cf. Baudelot-Establet, 2004.

35Daí ser imprescindível uma educação problematizadora, distante da realidade bancária, depositária como a de nossa realidade e, fundamental e politicamente, antiliberal.

36O que para a realidade político-burguesa e liberal soa como música a seus ouvidos.

37Econômico, político, histórico, cultural.

38O mundo burguês.

39Para a classe dominada.

40Pois aí todos já teriam atingido os mesmos patamares de qualificação.

41Cf. Elias, 1994.

42A este respeito basta consultar os números publicados pelo Instituto Paulo Montenegro sobre o Indicador de Alfabetização Funcional - INAF - de 2018 em que se registra apenas 12% da população brasileira plenamente alfabetizada.

43Cf. Elias, 1994.

Referências

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Recebido: 21 de Maio de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2020

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