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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo abr./jun 2022  Epub 09-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.22154 

Dossiê 61 - Cidades Educadoras

CIDADES EDUCADORAS E POLÍTICAS PARA IMIGRANTES: O CASO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO - SP

EDUCATING CITIES AND POLICIES FOR IMMIGRANTS: THE CASE OF THE SÃO PAULO - SP

CIUDADES EDUCADORAS Y POLÍTICAS PARA INMIGRANTES: EL CASO DEL MUNICIPIO DE SÃO PAULO - SP

Lucia Maria Machado Bógus, Professora titular, Coordenadora do Observatório1 
http://orcid.org/0000-0002-3431-7298

Luís Felipe Aires Magalhães, Professor Visitante do Bacharelado em Ciências Econômicas, Coordenador-Adjunto, Pesquisador2 
http://orcid.org/0000-0002-5839-786X

1Professora titular do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC - SP). Coordenadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo São Paulo (PUC - SP). Pesquisadora sênior do CNPq.

2Professor Visitante do Bacharelado em Ciências Econômicas da Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenador-Adjunto do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO - Unicamp). Pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo São Paulo (PUC - SP).


Resumo

Este artigo discute a importância de políticas públicas voltadas à inclusão de grupos sociais vulneráveis, focalizando os grupos de imigrantes internacionais e de refugiados na cidade de São Paulo, sede da maior região metropolitana brasileira e pioneira na formulação e implementação de políticas de acolhimento. Ali, tanto a Prefeitura como as redes institucionais religiosas ou laicas têm exercido um importante papel na inclusão desses grupos, que fogem de guerras e perseguições religiosas, respeitando sua diversidade e suas especificidades. No momento em que as guerras e perseguições político-religiosas, assumem dimensões inimagináveis para a realidade contemporânea, este estudo adquire especial importância, subsidiando reflexões e alertando para a urgência de políticas públicas transformadoras e inclusivas. Para subsidiar a análise parte-se do conceito de Cidade Educadora, tendo em vista demonstrar que as práticas de inclusão social propostas pelas políticas públicas, devem ter uma abrangência para além de grupos e instituições e perpassar as relações sociais urbanas em todas as suas dimensões, com a participação efetiva do estado e das instituições públicas municipais. O conceito de Cidade Educadora foi elaborado a partir de teorias que ampliam a prática educativa para além dos muros da escola e da família, configurando uma cidade cujo papel é educar os cidadãos por meio da participação em decisões coletivas, buscando a construção de consensos em relação aos direitos de cidadania e ao acesso aos benefícios da vida urbana. A superação das desigualdades, das formas perversas da segregação espacial, do preconceito e da xenofobia, estão na raiz dessa proposta de cidade.

Palavras-chave: cidades educadoras; migração internacional; políticas migratórias; São Paulo.

Abstract

This article discusses the importance of public policies aimed at the inclusion of vulnerable social groups, focusing on groups of international immigrants and refugees in the city of São Paulo, home of the largest Brazilian metropolitan region and a pioneer in the formulation and implementation of reception policies. There, both the City Hall and the religious or secular institutional networks have played an important role in the inclusion of these groups, who flee wars and religious persecution, respecting their diversity and their specificities. At a time when wars and political-religious persecutions assume unimaginable dimensions for contemporary reality, this study acquires special importance, subsidizing reflections and alerting to the urgency of transforming and inclusive public policies. To support the analysis, we start from the concept of the Educating City, in order to demonstrate that the social inclusion practices proposed by public policies must have a scope beyond groups and institutions and permeate urban social relations in all their dimensions, with the effective participation of the state and municipal public institutions. The concept of the Educating City was developed from theories that expand the educational practice beyond the walls of the school and the family, configuring a city whose role is to educate citizens through participation in collective decisions, seeking to build consensus in relation to citizenship rights and access to the benefits of urban life. Overcoming inequalities, the perverse forms of spatial segregation, prejudice and xenophobia, are at the root of this proposal for a city.

Keywords: educating cities; international migration; migration policies; São Paulo.

Resumen

Este artículo discute la importancia de políticas públicas que tienen como reto grupos de personas en situación de vulnerabilidad en especial los migrantes y refugiados en la ciudad de São Paulo, cabecera metropolitana de Brasil y pionera en la elaboración e implantación de políticas de acogida. En São Paulo, tanto el Ayuntamiento como las instituciones religiosas son importantes como redes institucionales y de inclusión. En tiempos en que las guerras y persecuciones políticas-religiosas tienen dimensiones inimaginables para la realidad contemporánea, este estudio pasa a tener especial importancia, planteando reflexiones y alertando sobre la urgencia de políticas públicas transformadoras e inclusivas. Para sustentar el análisis, partimos del concepto de Ciudad Educadora, considerando que las prácticas de inclusión de propuestas sociales por parte de las políticas públicas, deben abarcar mucho más que los grupos e instituciones y permear como relaciones urbanas en todas sus dimensiones, con la efectividad de instituciones estatales y municipales. El concepto de Ciudad Educadora se desarrolló a partir de teorías que expanden la práctica educativa más allá de los muros de la escuela y de la familia, configurando la ciudad cuyo rol es formar ciudadanos a través de la participación en las decisiones colectivas, buscando construir consensos en relación a los derechos de ciudadanía y el acceso a los beneficios de la vida urbana. La superación de las desigualdades, las formas perversas de segregación espacial, los prejuicios y la xenofobia, están en la raíz de esta propuesta de ciudad.

Palabras clave: ciudades educadoras; migración internacional; políticas migratorias; São Paulo.

Introdução

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a importância de políticas públicas voltadas à inclusão de grupos sociais vulneráveis, com foco nos grupos de imigrantes internacionais e de refugiados, que vem ganhando grande visibilidade nas cidades ao redor do mundo, com o aumento das guerras e perseguições políticoreligiosas. Nosso foco será a cidade de São Paulo, sede da maior região metropolitana brasileira e pioneira na implementação de políticas de acolhimento. Ali, tanto a Prefeitura como as redes institucionais religiosas ou laicas têm exercido um importante papel na inclusão desses grupos, respeitando sua diversidade.

Para subsidiar nossa análise partiremos do conceito de Cidades Educadoras, buscando demonstrar que as práticas de inclusão social, previstas nas políticas públicas, devem ter uma abrangência para além de grupos e instituições e perpassar as relações sociais urbanas, em todas as suas dimensões, com a participação efetiva do estado e das instituições públicas municipais.

A proposta das Cidades Educadoras, de caráter essencialmente transformador, nasce da associação de um conjunto de cidades, na AICE (Associação Internacional de Cidades Educadoras), em 1994. Essa associação está hoje presente em todos os continentes, reunindo 473 cidades, em 37 países. Propõe-se a apoiar os municípios que dela participam, na construção de uma nova forma de conhecimento e de atuação, cujos preceitos básicos são a cidadania e a solidariedade1.

O município de São Paulo, faz parte dessa rede e já obteve relevantes avanços na elaboração de propostas voltadas aos objetivos da Associação, com ações do poder municipal no estabelecimento de parcerias e incentivos à uma educação inclusiva, inclusive no que diz respeito à educação dos imigrantes, sejam crianças, jovens ou adultos.

O conceito de Cidade Educadora foi elaborado a partir de teorias que ampliam a prática educativa para além dos muros da escola e da família, configurando uma cidade cujo papel é educar os cidadãos por meio da participação em decisões coletivas, buscando a construção de consensos em relação aos direitos de cidadania e ao acesso aos benefícios da vida urbana. A superação das desigualdades, das formas perversas da segregação espacial, do preconceito e da xenofobia, estão na raiz dessa proposta de cidade.

Essa concepção passa, necessariamente, por uma transformação nos modelos e nas práticas de gestão pública. Trata-se de um novo paradigma, que pensa uma cidade em rede e constituída por redes, fundada na diversidade e aberta às manifestações multiculturais, à interculturalidade e à construção de novas identidades fundadas na participação e no respeito às diferenças.

Conforme aponta Cabezudo (2004), a constituição de uma cidade educadora depende da adesão dos governos locais, pois é necessário o compromisso político e o espírito público que incentivem e garantam a participação popular e o engajamento político de grupos de pessoas com o mesmo objetivo.

As ações educativas que têm lugar no quadro de uma cidade educadora deverão integrar o conhecimento e a vivência do meio urbano: suas características, vantagens, problemas e soluções. O Objetivo prioritário é, na realidade, formar cidadãos conhecedores de seus direitos e obrigações com respeito à sociedade e que, a partir do conhecimento e da identificação com a própria cidade, empreendem uma ação participativa e transformadora desta (CABEZUDO, 2004, p. 11).

O debate das Cidades Educadoras remete também a Paulo Freire (1978; 1991; 1997), Brandão (2006) e Gadotti (1998 e 2006) e à concepção libertadora de educação, construída a partir da práxis humana e social, que vai muito além dos muros da escola. Suas bases teóricas seguem os princípios da educação popular e suas propostas revolucionárias, por vezes de difícil implementação. O pensamento de Boaventura de Souza Santos atualiza e enriquece esse debate e nos permite perceber que estamos frente a um novo paradigma de cidade, num intrincado diálogo entre a globalização, multiculturalismo e conhecimento (2001; 2003; 2007).

Assim, a disposição dos municípios se engajarem nas propostas das Cidades educadoras constitui um passo fundamental em direção à mudança e a passagem de uma cidade excludente para uma cidade acolhedora e democrática, onde a educação para todos, com participação e ampliação de direitos, é o elemento chave da transformação.

Nesse novo paradigma a cidade é entendida como agente (sujeito) e objeto da educação, voltada à participação e à educação integral dos cidadãos num ambiente democrático e que busca a redução/superação das desigualdades sociais. De fato, conforme Castells,

As cidades que têm sido agentes, simultaneamente, de conhecimento e inovação, à medida que apoiam instituições e indústrias culturais e eventos interessantes que aí acontecem. As cidades que têm sido capazes de combinar esta adaptabilidade com a condição social da solidariedade, são cidades que se comprometeram com a informação e a participação ativa dos cidadãos (CASTELLS, 2002)

Nesse sentido, todos os cidadãos e todos os segmentos do poder público são responsáveis pela construção desse novo ambiente social, de todos para todos, com a superação dos mecanismos de exclusão e a organização de formas efetivas de participação social. E, nesse processo, as instâncias políticas municipais ocupam lugar central, como protagonista na construção de um trabalho em rede.

Ser cidade educadora é um compromisso de todos (municípios e sociedade civil pública e privada) na construção de uma Cidade mais educadora, cidadã, democrática e solidária (...) afirmando o local num mundo global, aberta a outras cidades e outros projetos, numa construção e valorização de um trabalho em rede nacional e internacional (CMP, 2009, p. 7).

Nesse cenário é importante analisar as relações do poder local com as diferentes instâncias da sociedade civil e instaurar um modelo de parcerias, adequados a cada lugar, a cada cidade em particular. Isso requer a cooperação público-privada; o associativismo como prática política e a busca de otimização dos recursos existentes para colocá-los a serviço de todos, minimizando desigualdades sociais e territoriais.

Cabe então indagar, no caso específico de São Paulo, em que medida as propostas do Movimento das Cidades Educadoras ampliaram as possibilidade de transformar as relações sociais urbanas e, a partir de políticas públicas, sobretudo municipais, viabilizaram as possibilidades dessa mudança, com base na participação política e no exercício da cidadania. Em suma, até que ponto a cidade de São Paulo, como membro integrante da Associação e do de Cidades Educadoras, tem viabilizado a implementação de políticas de participação e inclusão social, sobretudo em relação aos imigrantes internacionais e aos refugiados?

Desenvolvimento: a cidade educadora ante a vulnerabilidade social extrema

A definição do conceito de “cidade educadora” (Cabezudo, 2004) e a reflexão crítica sobre o percurso dela no âmbito da implementação de políticas públicas específicas aos grupos sociais mais vulneráveis na cidade de São Paulo nos motivam a refletir sobre se e como a capital paulista tem se constituído enquanto uma cidade educadora para imigrantes internacionais. Para tal, nos parece fundamental analisar o histórico das políticas públicas para esse grupo social na cidade.

A cidade de São Paulo ocupa, historicamente, uma posição de grande importância na dinâmica das migrações, tanto internas como internacionais, no Brasil (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018). De pólo de recepção e de encaminhamento de imigrantes internacionais no último quartel do século XIX (Baeninger, 2012; Bassanezi et al, 2008), ela converte-se em destino para milhões de imigrantes internos durante o período mais intenso da industrialização brasileira (Singer, 1998), nas décadas de 1940 a 1970. Em que pese a desconcentração produtiva e industrial (Cano, 2008) ter impactado também em desconcentração populacional, a capital paulista, nas últimas décadas, se constituiu novamente como destino e como etapa de trânsito para novos imigrantes internacionais (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018). Dos fluxos mais tradicionais e consolidados, concentrados que estão na cidade, como bolivianos, peruanos e paraguaios (Silva, 2008) aos fluxos mais recentes, menos concentrados e mais dispersos pelo território brasileiro, como haitianos (Magalhães, 2017), venezuelanos (Silva, 2018), São Paulo é um ponto de referência importante, influenciando os percursos e os projetos migratórios.

Segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiro (SINCRE/SISMigra), da Polícia Federal, agrupados e sistematizados pelo Banco Interativo do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO - Unicamp), há 1.504.736 registros de estrangeiros no Brasil, dos quais 367.043 apenas na cidade de São Paulo (24,39% do total nacional). Em outras palavras, um a cada quatro registro de estrangeiros no país se localiza na capital paulista. A maior parte de imigrantes registrados na capital paulista é de países do Sul Global (Baeninger et al, 2018): Bolívia, China, Haiti, Peru, Colômbia, Argentina e Paraguai, o que indica a predominância da modalidade migratória das Migrações Sul - Sul (Baeninger et al, 2018), constituindo uma situação de superposição de vulnerabilidades, dos chamados “periféricos na periferia” (Basso, 2015).

Na Tabela 1, apresenta-se os principais países de origem dos registros de imigrantes internacionais na cidade de São Paulo, entre 2000 e 2020.

Tabela 1 Registros de Imigrantes Internacionais na cidade de São Paulo (segundo país de origem, 2000 a 2020) 

País Registros de Imigrantes % do Total
Bolívia 99933 27,23
China 26039 7,09
Haiti 20042 5,46
Peru 17250 4,70
Estados Unidos 17097 4,66
Colômbia 12887 3,51
Argentina 12411 3,38
Paraguai 10396 2,83
Japão 10235 2,79
França 9950 2,71
Demais países 130803 35,64
Total 367043 100,00

Fonte: SINCRE/SISMigra, Observatório das Migrações em São Paulo (Nepo, Unicamp), 2022.

A presença de imigrantes internacionais na cidade de São Paulo implica em novos processos de produção social do espaço urbano (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018). Sua concentração espacial se dará tendo em vista as redes migratórias (Truzzi, 2008) já constituídas e a oferta de serviços de saúde, educação, trabalho e acolhimento a imigrantes. Esta estrutura está, ainda, bastante concentrada nos distritos centrais, o que explica a própria concentração de imigrantes nesses distritos (Mapa 1).

É importante refletir que o conceito de “periféricos na periferia” (Basso, 2015) não se restringe a uma interpretação física ou geográfica de periferia. Em razão da própria polissemia do conceito de “periferia”, esta noção tanto engloba uma dimensão geopolítica (a partir da qual, por exemplo, se classifica a China como um país do Sul Global, isto é, fora do centro político-ideológico do capitalismo global, historicamente ocidentalizado) como uma dimensão humanitária, civilizatória, de acesso a direitos, na qual, por outro lado, é possível haver periferias no centro, isto é, distritos caracterizados pela vulnerabilidade mesmo na região central da cidade (Pasternak e Bógus, 1998).

Assim, percebe-se, do Mapa 1, não apenas essa concentração maior nestes distritos (Brás, Pari e Bom Retiro, principalmente), como também em um eixo de deslocamento para a Região Leste e em outro eixo de deslocamento para a Região Sul.

Fonte: Levantamento de campo no âmbito de Pesquisa Pós-Doutoral (Observatório das Metrópoles, 2020).

Mapa 1 Concentração espacial de imigrantes internacionais na cidade de São Paulo - SP 

A centralidade exercida pela cidade na dinâmica das migrações internacionais no Brasil (Tabela 1) não é apenas decorrente do fato de haver, nela, maiores oportunidades de trabalho (OIT, 2017). Este é um elemento importante mas que não explica, por exemplo, a concentração na cidade de contingentes migratórios não necessariamente de trabalhadores, bem como não explica como a cidade, não obstante ter taxas de desemprego superiores às observadas nos pólos de recepção de imigrantes do Sul do país, receba imigrantes que passaram por essa região (Magalhães, 2017). A importância reside também, e principalmente, nas redes migratórias (Truzzi, 2008) que se foram constituindo mais fortemente na cidade, bem como à estrutura de acolhimento e acompanhamento de imigrantes.

A constituição de São Paulo enquanto uma “cidade educadora” para imigrantes (e pessoas em situação de refúgio) é parte, portanto, de um processo histórico, que se vincula, de um lado, às redes migratórias (Truzzi, 2008), conceito que expressa as relações e interações sociais estabelecidas no interior dos grupos étnicos, que envolvem Igrejas, associações migrantes, coletivos culturais, empresas e redes de contratação, dentre outras formas de organização, e de outro, aos serviços públicos de acolhimento e acompanhamento de imigrantes. Nesse sentido, trata-se de um processo que esteve em grande medida obstaculizado enquanto esteve vigente o chamado Estatuto do Estrangeiro (Lei 8.615/1980). Este estatuto, resquício da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), vinculava o imigrante à Lei de Segurança Nacional, indicando não apenas quais seriam os imigrantes desejáveis do ponto de vista sócio ocupacional, os qualificados (e, por consequência, caracterizando os demais como não desejáveis) como também proibindo o exercício de manifestação e organização político-sindical (Assis, 2018). Esta Lei, substituída apenas em 2017 por novo regimento jurídico (que introduzia o princípio do acolhida humanitária e derrubava a proibição de manifestação e organização político-sindical, entre outras mudanças), atuou, na prática, como um impeditivo legal para que um eixo importante da “cidade educadora”, a mobilização dos imigrantes e pessoas em situação de refúgio, pudesse se constituir e consolidar. Até 2017, portanto, o acúmulo de mobilizações, ações, dispositivos e iniciativas capazes de produzir uma “cidade educadora” para migrantes, em São Paulo e em todo o país, se deu apesar, e não em razão, do marco legal que regulava a questão imigrante no Brasil.

A consolidação de redes migratórias (Truzzi, 2008) e o crescimento das migrações e do refúgio) na capital paulista no século XXI, bem como o crescente anacronismo do Estatuto do Estrangeiro em relação à realidade (Assis, 2018), são processos importantes que explicam o surgimento de iniciativas e políticas para migrantes em São Paulo, que vão a aproximando da condição de uma “cidade educadora”.

Já na primeira década deste século, importantes mobilizações de imigrantes, especialmente bolivianos (Silva, 2008), foram atendidas no Projeto de Lei 1.664-D, a chamada Lei da Anistia Migratória. Esta anistia, aprovada pelo Congresso Nacional em 2007, permitiu a milhares de imigrantes indocumentados obter a residência provisória no Brasil. Tratou-se de um avanço importante na incorporação destes grupos sociais beneficiados pela medida à ações de cidadania e acesso à direitos. No bojo desse ascenso das mobilizações migrantes, em 2013 ocorre, em São Paulo, a primeira Conferência Municipal de Políticas Para Imigrantes, organizada pela recém - criada Coordenação de Políticas para Migrantes (vinculada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania). Os debates realizados no âmbito desta primeira Conferência se estruturaram em quatro eixos:

  • I - promoção e garantia de acesso a direitos sociais e serviços públicos;

  • II - promoção do trabalho decente;

  • III - inclusão social e reconhecimento cultural;

  • IV - legislação federal e política nacional para as migrações e refúgio;

Todos estes eixos possuem não apenas uma aderência direta com as condições de vida da população migrante em São Paulo, como também dialogam concretamente com os princípios da “cidade educadora” (Cabezudo, 2004). Estas mobilizações, inclusive, detinham inegável caráter pedagógico, tendo em vista que buscavam orientar ações estaduais e federais, de modo a se criar um ambiente favorável à outras “cidades educadoras” para migrantes, que não apenas São Paulo. Neste sentido, esta Conferência apresentou ampla participação da sociedade civil (foram 14 entidades da Sociedade Civil que atuaram de sua organização), protagonismo migrante (a conferência somente foi possível em razão da atuação destacada que o Fórum Social Pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil2 e a Rede Interinstitucional em Prol do Imigrante3 tiveram) e preocupação nacional - tanto que se deriva dela a organização da 1ª COMIGRAR - Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio, com participação do Governo Federal, no ano seguinte.

O caráter pedagógico desta Conferência está presente no seu relatório final, no qual se afirma que:

a Conferência Municipal é uma conquista importante dos movimentos sociais de imigrantes e sua construção envolveu o esforço e dedicação de diversas pessoas e entidades do governo e da sociedade civil. Espera-se que ela se constitua como marco histórico da mudança de paradigma - da segurança nacional aos direitos humanos - que se iniciou na cidade de São Paulo e que seja o ponto de partida de uma série de conquistas para efetivar a migração como um direito fundamental de todo ser humano (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2013, p. 64).

O mais importante desdobramento da 1ª Conferência Municipal de Políticas Para Imigrantes foi a criação da Política Municipal para a População Imigrante (PMPI), incorporada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). A PMPI responsabilizou-se por realizar levantamentos sobre a questão imigratória e de refúgio na capital paulista, subsidiando a SMDHC e o executivo municipal como um todo a elaborar políticas públicas específicas para a população imigrante. Nesse sentido, a PMPI foi um importante avanço na constituição de São Paulo enquanto uma “cidade educadora”, aproximando os grupos migrantes do poder público, elaborando projetos de Lei e ações públicas voltadas diretamente ao acolhimento de imigrantes e à mitigação de sua situação de vulnerabilidade social.

A PMPI foi essencial, por exemplo, para o planejamento e criação, em 2014, do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes, o CRAI4. O CRAI, segundo descrição da própria Prefeitura Municipal de São Paulo (2022), “é um equipamento público municipal de referência na atenção especializada à população imigrante da cidade de São Paulo, independentemente de sua situação migratória e documental. Seu objetivo geral é promover o acesso a direitos e a inclusão social, cultural e econômica das pessoas migrantes no município” (Prefeitura Municipal de São Paulo, 2021). O CRAI atende a toda a população imigrante da cidade de São Paulo, estando ela residente ou em trânsito, independente de situação migratória, de seu amparo legal de permanência e de sua nacionalidade. Ele confere maior atenção à população em situação de vulnerabilidade, principais demandantes dos serviços oferecidos. Constituem objetivos importantes da atuação do CRAI:

Ofertar atendimento especializado e multilíngüe ao público imigrante com orientações para regularização migratória e acesso a direitos sociais, orientação jurídica e do serviço social e encaminhamento de denúncias de violações de direitos humanos;

Articular, com a rede de políticas públicas e com organizações e movimentos da sociedade civil, atendimentos itinerantes em regiões com presença da população imigrante no município, além de estruturar fluxos de atendimento e garantir atenção completa e qualificada a suas demandas;

Promover oficinas, seminários ou palestras de capacitação e sensibilização em serviços da rede de políticas públicas da administração municipal; a servidores públicos, em parceria com a CPMIgTD; e outros grupos na temática da mobilidade humana, direitos dos imigrantes e acesso à educação, saúde, assistência social e outros;

Produzir e compilar informações sobre a população imigrante atendida, de forma a subsidiar a formulação de políticas em âmbito municipal, estadual e federal;

Trabalhar conjuntamente com a CPMigTD e com outros órgãos públicos para responder prontamente a demandas emergenciais ocasionadas pela eventual chegada de grandes contingentes de imigrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade;

Organizar a demanda de cursos de português, oficinas e palestras para imigrantes (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2022).

Além de ter sido fundamental para a criação do CRAI, à PMPI coube, também, organizar o Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM), que ocorreu na capital paulista em Julho de 2016, com representantes de instituições públicas, órgãos da sociedade civil e associações migrantes de todo o mundo. A abertura do Fórum Social Mundial das Migrações se deu com a assinatura, pelo então Prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do Projeto de Lei nº 142/2016, que instituiu a Política Municipal para a População Imigrante, não mais como uma iniciativa de governo, mas como um órgão permanente da administração pública municipal (Migramundo, 2016). Desta forma, mesmo com as mudanças na gestão do executivo municipal, a Prefeitura Municipal de São Paulo, especialmente pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, manteve-se envolvida com a resolução das demandas imigrantes, sobretudo em razão das pressões constantes envolvidas pelo Conselho Municipal de Imigrantes.

De acordo com o Decreto Lei que institui a política, os seus principais objetivos eram:

  • I - garantir ao imigrante o acesso a direitos sociais e aos serviços públicos;

  • II - promover o respeito à diversidade e à interculturalidade;

  • III - impedir violações de direitos;

  • IV - fomentar a participação social e desenvolver ações coordenadas com a sociedade civil.

É importante registrar que a Lei considerava como imigrante, sujeito portanto dos direitos por ela descritos, “todas as pessoas que se transferem de seu lugar de residência habitual em outro país para o Brasil, compreendendo imigrantes laborais, estudantes, pessoas em situação de refúgio, apátridas, bem como suas famílias, independentemente de sua situação imigratória e documental” (Prefeitura Municipal de São Paulo, 2016). A referência ao Brasil, em uma Lei Municipal, de um lado atesta a compreensão da vista centralidade exercida pela cidade de São Paulo no âmbito da dinâmica migratória no país, e de outro pressionava o Executivo Nacional (a esta momento nos estertores do Governo Dilma Rousseff) a sancionar o projeto de Lei 13.445/2017, que institui a Nova Lei de Migração, dando fim, com isso, ao entulho autoritário que significava o Estatuto do Estrangeiro (Assis, 2018). Esta promulgação veio a ocorrer em Maio de 2017.

É inegável, portanto, que as ações públicas voltadas para imigrantes e as mobilizações das associações migrantes e de grupos da sociedade civil que atuam diretamente com e para imigrantes tiveram uma importância decisiva não apenas para a instituição da Política Municipal para a População Imigrante (PMPI) na capital paulista mas também para a mudança no regimento jurídico federal para as migrações, não obstante a conjuntura política desfavorável, a partir de 2016, para as pautas sociais e a crescente xenofobia na sociedade brasileira. Isto reforça o caráter pedagógico da “cidade educadora” para imigrantes, e sua capacidade de influenciar inclusive o cenário nacional.

Com a instituição da PMPI enquanto um órgão da administração pública na capital paulista, abriu-se caminho para a criação do mais importante e arejado espaço de participação dos imigrantes junto ao poder público, qual seja, o Conselho Municipal de Imigrantes, o CMI. Este Conselho não é um órgão deliberativo, mas sim consultivo, aproximando ainda mais as demandas da população imigrante ao exercício do poder público. Ele é formado por 32 conselheiros, dos quais 16 titulares e 16 suplentes, em composição paritária, isto é, oito membros são representantes do poder público municipal e oito membros são representantes da sociedade civil. Estes últimos podem, por sua vez, representar os seguintes segmentos:

  • - Coletivos, associações e organizações de imigrantes;

  • - Coletivos, associações e organizações de apoio a imigrantes;

  • - Pessoas físicas imigrantes.

Ao Conselho cabe “participar da formulação, implementação, monitoramento e avaliação da Política Municipal para a População Imigrante”, estruturando-se em cinco eixos ou Grupos de Trabalho: (i) Regimento Interno, (ii) Estratégias para a Integração Local da População Imigrante, (iii) Plano Municipal de Políticas para Imigrantes e (iv) Comunicação (Prefeitura Municipal de São Paulo, 2022). Ao redor destes eixos, os membros do Conselho propõem ações que são decisivas para as condições de saúde, trabalho, documentação, cultura e habitação de imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo.

A PMPI organizou, ainda, a 2ª Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes, que ocorreu em 2019, seis anos após a 1ª Conferência. Esta segunda edição contou, também, com intensa participação de entidades da sociedade civil que atuam diretamente com imigrantes e de associações e organizações migrantes. É o primeiro grande evento sobre migrações já sob a Nova Lei de Migrações, o que, na prática, resultou em pressões ainda maiores para o cumprimento dos dispositivos de acolhida humanitária (Ramos, Vedovato e Baeninger, 2020). A complexidade desta segunda Conferência, que contou com etapas preparatórias através de Conferências Livres propostas por órgãos da sociedade civil, a amplitude de organizações de atuação nacional, continental e inclusive global que dela participaram e a preocupação, ao longo de todo o processo, que todas as etapas tivessem, pelo menos, metade mais um de sua composição formada por imigrantes, são expressões do quanto a questão imigratória havia se expandido nos últimos anos, contribuindo para isso com a constituição de São Paulo como uma “cidade educadora”.

Desta 2ª Conferência, decorreu a elaboração do 1° Plano Municipal de Políticas para Imigrantes de São Paulo. Este Plano, válido de 2021 a 2024, tem como propósito orientar a construção de políticas públicas e de participação social de imigrantes, o que ocorre nos seguintes eixos:

  • - Eixo 1: Participação Social e Protagonismo Imigrante na Governança Migratória Local;

  • - Eixo 2: Acesso à assistência social e habitação;

  • - Eixo 3: Valorização e Incentivo à Diversidade Cultural;

  • - Eixo 4: Proteção aos direitos humanos e combate à xenofobia, ao racismo, à intolerância religiosa e a quaisquer formas de discriminação;

  • - Eixo 5: Mulheres e população LGBTI+: acesso a direitos e serviços;

  • - Eixo 6: Promoção do trabalho decente, geração de emprego e renda e qualificação profissional;

  • - Eixo 7: Acesso à educação integral, ao ensino de língua portuguesa para imigrantes e respeito à interculturalidade e;

  • - Eixo 8: Acesso à saúde integral, lazer e esporte.

Em que pese a importância de São Paulo para a dinâmica migratória brasileira, sua experiência não tem, a rigor, sido amplamente seguida por outras cidades brasileiras. Até a elaboração deste artigo (março de 2022), experiências regionais amparadas na existência de um serviço público para imigrantes (Centro de Referência para Imigrantes) só existem em Porto Alegre - RS, Florianópolis - SC (já extinto, pois criado a partir de convênio com data de validade) e Curitiba - PR. Nas demais, especialmente nas maiores metrópoles, há iniciativas restritas à atuação dos órgãos da sociedade civil.

Considerações finais

Como vimos ao longo deste artigo, a constituição de São Paulo enquanto uma cidade educadora (Cabezudo, 2004) é um processo que passou, de forma decisiva, por diversas instituições da sociedade civil, que se empenham há anos em pressionar o poder público, a buscar torná-lo mais aberto às reivindicações dos imigrantes, de modo a possibilitar a criação de políticas públicas específicas a estes grupos sociais. Destas instituições, é possível destacar a Missão Paz, a Cáritas Arquidiocesana, o Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante (CAMI) e o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC). A estas instituições, somam-se, logicamente, as associações e organizações criadas pelos próprios imigrantes, como a União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), a Associação de Residentes Bolivianos (ADRB) e a África do Coração, que reúne imigrantes e pessoas em situação de refúgio de países da África, em São Paulo. Em apoio às instituições da sociedade civil e às entidades migrantes, é fundamental também o papel exercido por grupos acadêmicos na pressão do setor público pela criação de políticas para imigrantes. Destacam-se, neste sentido, o CEM (Centro de Estudos Migratórios), vinculado à Missão Paz, o Cosmópolis (Projeto de Extensão da USP), o Grupo Veredas (da PUC - SP) e o Pró-Migra (USP)5.

As pressões exercidas por essas instituições foram de fundamental importância para criação e consolidação de serviços públicos e de políticas públicas para imigrantes na cidade de São Paulo, isto é, foram decisivas no acúmulo de iniciativas para a configuração de uma “cidade educadora” de e para imigrantes. Isso não significa, no entanto, que não haja dificuldades, discriminação e violência. Não obstante tantos esforços, a inserção laboral de imigrantes e suas interações sócio-culturais seguem sendo caracterizadas por informalidade (OIT, 2017) e vulnerabilidades (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018). Questões históricas seguem urgentes: o não reconhecimento de diplomas e formações técnico-profissionais e o racismo estrutural de nossa sociedade ainda submetem a população imigrante, especialmente a negra, a condições precárias de trabalho (Magalhães, 2017); a inexistência de Programas e auxílios a moradia forçam os imigrantes, tendo em vista suas dificuldades de documentação e bancarização, a procurar moradias precárias em circuitos de aluguel informal, onde não se exige necessariamente fiador, mas nos quais a violência é uma constante mediadora dos negócios firmados (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018b); o encarecimento das moradias mesmo nesse sistema atua como uma força que desloca os imigrantes para as periferias (os eixos à Região Leste e Sul da cidade, vistos no Mapa 1), onde se distanciam da oferta de trabalho formal, de serviços de acolhimento, documentação, saúde e educação (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018b). Neste contexto, de habitação precária, super adensada, e de trabalho informal, potencializou-se, entre os imigrantes, o impacto da pandemia da Covid-19 (Bógus e Magalhães, 2020; Silva et al, 2020). A pandemia revelou não apenas a situação de maior risco e exposição à doença em razão de habitações precárias e trabalho informal (que não pode ser realizados de modo remoto), e mesmo de trabalho formal, em situações de precarização das condições de trabalho, como na construção civil, na limpeza pública e no trabalho em frigoríficos, considerados atividades essenciais e que portanto não pararam mesmo nos momentos mais dramáticos da pandemia.

Há que destacar que os principais registros de casos - as Autorizações de Internação Hospitalar, AIH’se de óbitos - as Declarações de Óbitos, DO’s - não possuem o campo “nacionalidade”, de forma que se torna impossível avaliar, diretamente, o impacto da Covid-19 entre imigrantes (Silva e Magalhães, 2020). Desconhecendo esse impacto, é impossível, também, levantar informações precisas, capazes de subsidiar a elaboração de políticas públicas de saúde específicas para imigrantes. Sob essa “xenofobia estrutural”, muitos têm sido os imigrantes que, por estarem indocumentados, sentem-se constrangidos em procurar atendimento médico-hospitalar e mesmo em vacinar-se (Azenha, 2022), o que traz efeitos letais para esses grupos.6 É urgente, portanto, que a cidade de São Paulo esteja novamente aberta às pressões dos imigrantes, construindo junto ao Governo Federal uma nova anistia migratória, que regularize a situação dos imigrantes ainda indocumentados.

Por fim, destacamos um aspecto importante da “cidade educadora” de e para imigrantes em que São Paulo tem se constituído: ali, pela concentração dos serviços públicos e das entidades, da sociedade civil, de imigrantes e da academia, que pressionam pela criação de políticas públicas, as informações sobre os direitos sociais de imigrantes são mais conhecidas. Pesquisa recente realizada pelo Observatório das Migrações em São Paulo (Nepo - Unicamp) e pelo Grupo Distribuição Espacial da População (GEDEP, da PUC - Minas) para avaliar os impactos da pandemia de Covid-19 entre a população imigrante no Brasil7, destacou, entre outras questões, que a rede migratória opera na prática um serviço de auto-proteção migratória. De fato, na RMSP, onde os serviços de acolhimento e acompanhamento de imigrantes estão mais concentrados, 85,46% dos imigrantes pesquisados informaram conhecer seus direitos sociais. Já entre os imigrantes que residem no interior do Estado de São Paulo e que participaram da pesquisa, o porcentual dos que conhecem seus direitos sociais cai para quase metade, 45,32% (Fernandes e Baeninger, 2020).

Depreende-se daí que a maior presença, nos contextos urbanos metropolitanos, das entidades, organizações e grupos citados acima, tornam as informações sobre os direitos sociais dos imigrantes mais ou menos presentes, a exemplo do que ocorre na região metropolitana e no interior paulista. Nesse sentido, a realização, ainda que parcial, dos objetivos da “cidade educadora” aponta para os resultados importantes da experiência paulistanas e cobra pela criação de serviços de acolhimento e acompanhamento dos imigrantes internacionais recentes também nas cidades do interior paulista, onde a presença desses grupos é crescente.

1

O Movimento “Cidades Educadoras” iniciou-se em 1990, por ocasião do I Congresso de Cidades Educadoras, realizado em Barcelona. nesse Congresso, um grupo de cidades representadas por seus governos locais, estabeleceu um pacto com o objetivo de trabalhar em conjunto em projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes, em conformidade com Carta de princípios aprovada na ocasião- Carta das Cidades Educadoras, disponível em http://www.bcn.es/edcities/espanyol/séc_charter.html.

Em 1994 o Movimento foi formalizado no II Congresso Internacional de Bolonha, tendo como objetivos norteadores:

-Trabalhar a escola como espaço comunitário;

- trabalhar a cidade como grande espaço educador;

-aprender na cidade, com a cidade e com as pessoas;

-valorizar o aprendizado vivencial;

- priorizar a formação de valores.

2O Fórum Social Pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil era, quando da Conferência, constituído pelos seguintes órgãos da sociedade civil: Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante - CDHIC, Central Única dos Trabalhadores - CUT/SP, Equipe de Base Warmis-Convergência das Culturas, Instituto pela Reintegração do Refugiado - ADUS, Associação dos Empreendedores Bolivianos da Rua Coimbra - ASSEMPBOL, Presença da América Latina - PAL e Asociación Japayke.

3A Rede Interinstitucional em Prol do Imigrante era, quando da Conferência, constituída pelos seguintes órgãos da sociedade civil: Patronato INCA CGIL, Missão Paz, União dos Estudantes Angolanos em São Paulo, Casa das Áfricas, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania - ITTC, Centro de Apoio e Pastoral do Migrante - CAMI e Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

4O CRAI tem os seus serviços oferecidos pelo SEFRAS, o Serviço Franciscano de Assistência Social. Em 2021, ele passa a se chamar “CRAI Oriana Jara”, em homenagem à socióloga, psicóloga, escultora e ativista chilena Oriana Jara, histórica militante dos direitos de imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo, falecida em 2020.

5A estes grupos, nós, enquanto pesquisadores do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO - Unicamp) e do Observatório das Metrópoles - Núcleo São Paulo (PUC - SP) buscamos contribuir não apenas com pesquisas sobre as condições de vida, trabalho, saúde e interação sócio-cultural de imigrantes, como também com ações de extensão, seja para os próprios imigrantes, seja para a sensibilização de gestores públicos e de professores de ETECs e FATECs sobre o tema da imigração e do refúgio. Como parte destas ações de extensão, já organizamos 5 capacitações para professores de ETECs e FATECs do Estado de São Paulo e três capacitações para gestores públicos da Região Metropolitana de São Paulo. Estas capacitações envolveram parceiros como o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Centro Paula Souza, o CRAI Oriana Jara e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico de Cajamar - SP. Para um histórico sobre essas capacitações, sugerimos acessar o site do Observatório das Migrações em São Paulo: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/cps.php

6Importante reportagem de Manuela Azenha, do UOL Tab, de 04/03/2022, revela como a indocumentação tem constrangido imigrantes, especialmente bolivianos, a não se vacinarem. “‘Morro de medo que ele pegue covid-19. Sempre digo para não esquecer de usar a máscara’, diz ela [Daniela, nome fictício], em espanhol. Tanto Daniela quanto os três filhos não tomaram nenhuma dose da vacina contra covid-19. Em situação irregular no Brasil desde que chegaram, há um ano, não tinham CPF nem comprovante de residência, documentos que foram exigidos pelo agente de saúde no local de vacinação próximo a onde vivem, no extremo leste da periferia da cidade de São Paulo, em setembro de 2021” (AZENHA, 04/03/2022). Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/03/04/morro-de-medo-imigrantes-sem-documentacao-regular-ficam-sem-vacina-em-sp.htm

7Pesquisa “Impactos da Pandemia de Covid-19 nas Migrações Internacionais no Brasil”, realizada de Maio a Julho de 2020 em municípios selecionados de todos os Estados do Brasil. Nela, foi aplicado um questionário on-line, respondido por 2.475 imigrantes internacionais no Brasil, dos quais 743 imigrantes de 31 nacionalidades na RMSP, com destaque para haitianos (50,87% do total de imigrantes que responderam a pesquisa na RMSP); e venezuelanos (28,53% do total). Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/livros/impactos_pandemia/COVID%20NAS%20MIGRA%C3%87%C3%95ES%20INTERNACIONAIS.pdf

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