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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo abr./jun 2022  Epub 09-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.22001 

Dossiê 61 - Cidades Educadoras

O CENTRO EDUCACIONAL UNIFICADO (CEU) COMO LÓCUS DA FORMAÇÃO DOCENTE EM VISTA DE UMA CIDADE EDUCADORA

THE UNIFIED EDUCATIONAL CENTER (CEU) AS A PLACE OF TEACHER TRAINING IN VIEW OF AN EDUCATING CITY

EL CENTRO EDUCATIVO UNIFICADO (CEU) COMO LUGAR DE LA FORMACIÓN DOCENTE EN VISTA DE UNA CIUDAD EDUCADORA

Adriana de Carvalho Alves Braga, Doutora em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie), Mestre em Integração, Professora1 
http://orcid.org/0000-0002-9729-728X

João Clemente de Souza Neto, Doutor em Ciências Sociais, professor e pesquisador, membro do Socius2 
http://orcid.org/0000-0003-3348-8316

Leandro Alves Lopes, Doutorando e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura3 
http://orcid.org/0000-0003-2819-2932

1Doutora em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie),, Mestre em Integração da América Latina (PROLAM/USP). Professora da Rede Municipal de Ensino de São Paulo.

2Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação EAHC e no Curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro do Socius - Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, líder do Grupo de Pedagogia Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Instituto Catequético Secular São José, da Associação Civil Gaudium et Spes, da Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa, São Paulo, SP, e da rede internacional de Pedagogia Social.

3Doutorando e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como orientador pedagógico de 53 núcleos de atendimento nas áreas da Assistência Social (CCA, CJ, NCI, CEDESP e SAICA) e educação (Creches) no Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto.


Resumo

Este artigo evidencia o papel desempenhado pelo Centro Educacional Unificado (CEU) na oferta de cursos de formação continuada relacionados à Educação para as Relações Étnico-Raciais, entre os anos de 2013 e 2016. Nele, apresentamos os resultados obtidos a partir da pesquisa exploratória no Diário Oficial da cidade de São Paulo e no Portal da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, tais como a quantidade de vagas oferecidas, os CEUs envolvidos nessa política de formação e a consolidação da parceria entre a Coordenadoria dos CEUs e o Núcleo de Educação Étnico-Racial. Relacionamos os eventos oferecidos nos CEUs à política de formação implementada pela Secretaria Municipal de Educação durante o período analisado, sendo que a pesquisa explicita os CEUs como espaços privilegiados de implementação das políticas de formação centradas nas ações afirmativas. O equipamento CEU emerge como espaço privilegiado para viabilizar a formação de educadores a partir do debate conceitual, mas também possibilita a vivência cultural. Essa perspectiva está em sintonia com a Carta das Cidades Educadoras, a qual defende a promoção da diversidade. Enfatizamos que durante a pesquisa as atividades desvelaram as lutas e conquistas dos povos indígenas e negros. A interculturalidade modifica a cultura escolar e o jeito de professores, educandos, gestores e a comunidade se colocarem nas múltiplas relações interpessoais. Por este aspecto, a escola se torna um espaço de encontro de múltiplos saberes.

Palavras-chave: centro unificado; educação para as relações étnico-raciais; formação docente; territórios educativos; cidade educadora.

Abstract

This article highlights the role played by the Unified Educational Center (CEU) in offering continuing education courses related to Education for Ethnic-Racial Relations, between 2013 and 2016. In it, we present the results obtained from exploratory research in the Official Diary of the city of São Paulo and on the Portal of the Municipal Education Department of São Paulo, such as the number of offers, the CEUs involved in this training policy and the consolidation of the partnership between the CEUs Coordination and the Ethnic-Racial Education Nucleus. We relate the events offered at the CEUs to the training policy, implemented by the Municipal Department of Education during the analysed period, and the research explains the CEUs as privileged spaces for the implementation of training policies focused on affirmative action. The CEU equipment emerges as a privileged space to enable the training of educators from the conceptual debate, but also enables cultural experience. This perspective is in line with the Charter of Educating Cities, which advocates the promotion of diversity. We emphasize that during the research the activities revealed the struggles and conquest of indigenous and black peoples. Interculturality modifies school culture and the way teachers, students, managers and the community place themselves in multiple interpersonal relationships. In this regard, the school becomes a space for the meeting of multiple knowledges.

Keywords: unified educational center; education for ethnic-racial relations; teacher training; educational territories; educating city.

Resumen

Este artículo destaca el papel que jugó el Centro Educativo Unificado (CEU) en la oferta de cursos de formación continua relacionados con la Educación para las Relaciones Étnico-Raciales, entre 2013 y 2016. En él presentamos los resultados obtenidos de la investigación exploratoria en el Diario Oficial de la ciudad de São Paulo y en el Portal de la Secretaría Municipal de Educación de São Paulo, como el número de ofertas, los CEUs involucrados en esta política de formación y la consolidación de la alianza entre la Coordinación del CEU y el Núcleo de Educación Étnico-Racial. Relacionamos los eventos ofrecidos en los CEUs con la política de formación implementada por la Secretaría Municipal de Educación durante el período analizado. La investigación explica los CEUs como espacios privilegiados para la implementación de políticas de formación enfocadas en la acción afirmativa. El equipamiento del CEU surge como un espacio privilegiado para posibilitar la formación de educadores desde el debate conceptual, pero también posibilita la experiencia cultural. Esta perspectiva está en línea con la Carta de Ciudades Educadoras, que aboga por la promoción de la diversidad. Destacamos que durante la investigación las actividades revelaron las luchas y conquistas de los pueblos indígenas y negros. La interculturalidad modifica la cultura escolar y la forma en que docentes, estudiantes, directivos y la comunidad se sitúan en las relaciones interpersonales. En este sentido, la escuela se convierte en un espacio de encuentro de múltiples saberes.

Palabras clave: centro educativo unificado; educación para las relaciones étnico-raciales; formación de profesores; territorios educativos; ciudad educadora.

Introdução1

As discussões sobre as diversidades humanas têm adquirido especial relevância no debate educacional, especialmente a partir da construção de uma agenda suscitada pelos movimentos sociais. Neste texto, tratamos da discussão racial na formação docente e destacamos as relações entre o constructo dos movimentos sociais e a implementação de políticas públicas voltadas para as ações afirmativas. Situamos a formação continuada como uma das ações afirmativas, pois, na compreensão de Almeida (2020, p. 145), estas [...] são políticas públicas de promoção de igualdade nos setores público e privado, e que visam a beneficiar minorias sociais historicamente discriminadas”, através de ações de reparação histórica, reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dessas populações (BRASIL, 2004, p. 2). A oferta de cursos de formação docente relacionada à Educação para as Relações Étnico-raciais atende a premissa do combate ao preconceito, discriminação e racismo, conforme estabelecem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004, p. 14).

Tratar do racismo nas formações docentes implica reconhecê-lo como um elemento estruturante na formação do Brasil e da América Latina. A esse respeito, apoiamo-nos na interpretação de Quijano (2005, p. 2), que coloca a “[...] classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial [...]”, como um dos eixos da racionalidade imposta pela colonialidade. O racismo é estruturante, porque organiza as configurações sociais e as relações de dominação na modernidade.

O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, junto com as identidades e subjetividades, de tal maneira que divide tudo entre as formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc, acima da linha do humano) e outras formas de seres inferiores (selvagens, bárbaros, desumanizados, etc., abaixo da linha do humano) (GROSFOGUEL, 2019, p. 59).

Para a compreensão do racismo como eixo organizador e estruturador das relações sociais, contribui Almeida (2020, p. 64)), ao inferir que a vida “[...] cultural e política, no interior da qual os indivíduos se reconhecem enquanto sujeitos autoconscientes e onde formam seus afetos, é constituída por padrões de clivagem racial inseridos no imaginário e em práticas sociais cotidianas”. Logo, o debate educacional não pode se alijar dessa condicionante que molda o imaginário social. A formação continuada, contemplando a abordagem da educação para as relações étnico-raciais, é tão necessária, pois, a partir de reflexões sobre a formação histórica do Brasil, os educadores poderão construir práticas pedagógicas antirracistas.

A questão racial faz parte das estruturas sociais nas quais se cria e se reproduz. Daí a importância de se refletir sobre uma cidade educadora cuja proposta seja a desconstrução de práticas racistas, preconceituosas e homofóbicas, que repercutem na convivência humana e empobrecem a democracia. O CEU é expressão da concepção de uma política pública humanizadora, no sentido freiriano. A Carta das Cidades Educadoras contém a proposta de um conjunto de medidas que podem reduzir a desigualdade racial.

No planeamento e governo da cidade tomar-se-ão todas as medidas necessárias para eliminar os obstáculos (incluindo as barreiras físicas) que impeçam o exercício do direito da igualdade. Serão responsáveis por este empreendimento, para além da Administração Municipal, outros organismos da Administração que nela intervêm. Os habitantes envolver-se-ão tanto pessoalmente como através dos vários tipos de associação a que pertençam. https://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/cartacidadeseducadoras.pdf

No Brasil, a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) ganhou destaque a partir da promulgação das Leis Federais 10.639/08 e 11.645/08, que definiram o caráter obrigatório do ensino de história e das culturas africana, afro-brasileira e indígena. Essa concepção de educação se fundamenta na necessidade de revisão da história do Brasil, no sentido de incluir a contribuição de negros e indígenas à formação da sociedade brasileira, de modo positivado. Diversos autores têm-se dedicado a compreender como o preconceito, a discriminação e o racismo se articulam no ambiente escolar, promovendo a invisibilidade de saberes civilizatórios das populações africanas e indígenas, consolidada através da construção epistemológica etnocêntrica e eurocêntrica. A Educação para as Relações Étnico-Raciais propõe o resgate de saberes originários e afro-diaspóricos, e que os mesmos sejam reconhecidos, valorizados e incluídos no currículo escolar.

A discussão da formação continuada relacionada à problemática do racismo tem, por sua complexidade, o potencial de tensionar o debate educacional. Isto exige uma abordagem que considere não apenas a orientação normativa da legislação federal, mas também uma compreensão sobre o papel desempenhado pelos entes federados e seus respectivos sistemas de ensino e garantia dessa formação. Na cidade de São Paulo, é possível fazer essa análise, a partir da oferta de eventos formativos promovidos pelas Secretarias de Educação e Diretorias Regionais de Ensino, através da publicização desses dados no Diário Oficial da Cidade.

O compromisso dos CEUS com a política de formação continuada

Quando refletimos ou problematizamos as questões da ERER e da formação continuada, não podemos nos esquecer de que ambas fazem parte de uma sequência multissecular de reconhecimento de diferentes grupos sociais e culturas, que foram em parte massacradas e que resistiram bravamente, forjando uma nova relação humanitária e uma pedagogia humanizadora.

Neste sentido, discutir os eventos ocorridos nos CEUs não constitui uma simples descrição de atividades, uma simples resposta a exigências burocráticas e nem mesmo um checklist de respostas a exigências legais. A nosso juízo, essas ações expressam um conjunto de expectativas, reclamos e lutas do decorrer da história dos povos indígenas, africanos e latinos, assim como de outros grupos sociais. São resultantes de muitas lutas que vêm modificando as relações de poder e a cultura escolar. Não são ganhos individuais, são conquistas coletivas e humanitárias. Há um século atrás, não se viam circulando pelas cidades negros e índios com a perspectiva humanizadora que temos hoje. Eles são sujeitos da história e contribuem para a construção de uma nova cultura e uma nova pedagogia. “O importante não são os detalhes, mas a visão de conjunto, a nova periodização, a inclusão de temas não estudados ou descartados pela filosofia política eurocêntrica tradicional.” (DUSSEL, 2014, p. 555).

As conquistas sociais forjaram a pedagogia da libertação, a filosofia da libertação, a teologia da libertação, a psicologia da libertação e, poderíamos dizer, uma ciência da libertação, um acervo teórico e metodológico que fundamenta uma perspectiva humanizadora solidária. Os temas propostos pela Secretaria da Educação Municipal apropriados pelos CEUS estão circunscritos nas lutas populares e nesse acervo teórico e metodológico.

Em um artigo dedicado a investigar o quantitativo de vagas em eventos de formação continuada em ERER oferecidos pela Rede Municipal de Ensino de São Paulo (ALVES; HADDAD, 2020), foi possível aferir que os Centros Educacionais Unificados (CEUs) eram apontados como espaços significativos na consolidação da política de formação implementada entre os anos de 2013 e 2016, nas publicações do Diário Oficial. Em 2014, através da Portaria Intersecretarial SME/SMPIR/SMDHC/SMC Nº. 1/2014, foi constituída uma Comissão Organizadora das Atividades de Formação, Difusão Cultural e Currículo (SÃO PAULO, D.O. de 20/05/2014, p. 8). A comissão era responsável por organizar as Mostras Culturais Agosto Indígena nos CEUs, Novembro Negro nos CEUs e Dezembro Imigrante nos CEUs. Observa-se, aí, a centralidade desse equipamento público na formulação da política de formação. Além do aspecto formativo e pedagógico, esse conjunto de eventos contribuiu para a construção de uma prática que fortaleça a convivência humana sem racismo, nas instituições e na cidade como um todo.

A comissão organizadora das atividades foi composta por servidores que atuavam nas quatro secretarias que formalizaram a parceria intersecretarial, sob a coordenação da Assessora de Programas Especiais/Coordenação dos CEUs e pelo Coordenador do Núcleo de Educação Étnico-Racial. Além de coordenar os trabalhos, os dois setores foram responsáveis por direcionar a agenda formativa, voltada à implementação das leis federais 10.639/03 e 11.645/08, atuando na formulação, planejamento, execução e avaliação das ações formativas.

No organograma da Secretaria Municipal de Educação, a Assessoria de Programas Especiais/Coordenação dos CEUs foi responsável por desenvolver as ações dos CEUs. Ao Núcleo de Educação Étnico-Racial, cabia a política de formação relacionada às legislações mencionadas, através da oferta de cursos e demais eventos de formação. Ambos os setores atuavam em parceria com as Diretorias Regionais de Educação (DREs).

O papel dos CEUs na oferta de cursos de formação relacionados a ERER, entre os anos de 2013 e 2016, os resultados obtidos a partir da pesquisa exploratória no Diário Oficial e a relação dos eventos oferecidos à política de formação implementada pela Secretaria Municipal de Educação durante o período analisado são objeto deste artigo.

Quando os saberes e as experiências se encontram, a educação é direito e não privilégio

Os cursos de formação realizados nos CEUs, durante o período citado, foram uma estratégia para compreensão do modo como se estruturou a política de formação da RMESP, que recebeu aportes significativos resultantes da incorporação desses equipamentos. De acordo com o portal da Secretaria Municipal de Educação, até o momento, já foram construídos 46 CEUs, destinados a promover a educação integral, democrática, emancipatória, humanizadora e com qualidade social, integrando as atividades de educação, cultura, esporte, lazer e recreação, para o desenvolvimento do ser humano como um todo. O complexo arquitetônico e social do CEU tem uma implicação dialógica permanente com a comunidade/cidade, implicação na qual também se insere a formação docente. O projeto pedagógico do CEU tem como pressuposto uma pedagogia humanizadora.

Humanização e desumanização dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. Mas ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação da sua humanidade negada (FREIRE, 2005, p. 32).

A defesa incondicional da liberdade e da justiça é um meio de combater a opressão. A proposta de humanização da ERER para a recuperação da humanidade negada perpassa a formação docente e o projeto político pedagógico da escola, da cidade e da nação. O CEU é um espaço de múltiplos encontros, como fica patente na entrevista a seguir:

Considerando-se esta multiplicidade de espaços educativos existentes no CEU e a diversidade dos sujeitos envolvidos faz-se necessário compreender sua localização num território: não um mero local neutro de práticas sociais ou simples cenário, onde várias ações e relações são desenvolvidas permanentemente, mas sim o espaço onde as ações e relações sociais são condicionadas pelo contexto territorial, no reconhecimento do “eu” pelo “outro” e do “outro” pelo “eu”, processo este que determinará as relações sociais que ali se desenvolvam, em razão também da articulação da equipe nesse espaço para constituir novas práticas sociais, para contribuir com o desenvolvimento dos sujeitos (Maria Aparecida Perez, Secretária Municipal de Educação entre os anos de 2003 e 2004 e responsável pela implementação dos CEUs na cidade de São Paulo, in ROGGERO E BIOTO-CAVALCANTI, 2017, p. 22).

A perspectiva de local de encontro entre sujeitos faz do CEU um lócus de formação cidadã e exercício democrático, que potencializa as relações no território. Dotado de espaços físicos denominados “blocos”, o bloco esportivo e cultural e o bloco didático, propicia nos teatros uma programação variada para o público.

O CEU é uma iniciativa que traduz uma concepção filosófica e social circunscrita numa pedagogia democrática que vai de Anísio Teixeira a Paulo Freire e se alinha a uma perspectiva de cidade educadora. O projeto do CEU contribui para a redução da desigualdade social de gênero e etnia, na linha de uma educação integral como direito e não como privilégio. A implantação do CEU obedece a uma lógica diferenciada em relação à ideia precedente, pela qual os equipamentos educacionais ficavam nas regiões mais centrais. Observa o “Mapa da Exclusão/Inclusão Social”, que define as áreas mais periféricas e pobres, necessitadas da presença do poder público, dentro de um modelo democrático de gestão e de uma arquitetura funcional que leve em conta as exigências pedagógicas. Esse conjunto de elementos ajuda a qualificar os processos educativos.

Os CEUs não se destinam apenas aos alunos matriculados nas suas três unidades educacionais e não se limitam ao saber formal e escolar. Eles oferecem oportunidades educacionais não-formais para um conjunto maior de pessoas das camadas populares, historicamente excluídas. A população que os frequenta tem vivenciado experiências educacionais antes só oportunizadas aos mais privilegiados socialmente. Os CEUs possibilitam a apropriação e a produção de bens culturais. Com eles, a comunidade tem tido a oportunidade de aprender com concertos musicais, peças de teatro, festivais de dança, de cinema, além de também ensinar com suas produções culturais e esportivas. O projeto educacional dos CEUs defende uma educação de abraços, de sensibilidade e valorização da autoestima, de espaços de organização das camadas populares, de voz aos excluídos. Isso tem um grande valor humano e histórico (PADILHA e SILVA, 2004, p. 18).

Por esse ângulo, o CEU influencia o desenvolvimento local e desperta uma discussão sobre temas fundamentais para a existência humana, tais como ética, cultura, democracia, políticas públicas, saúde, lazer e questões ambientais. São temas importantes para a formação dos professores, dos alunos e da comunidade, dentro de práticas pedagógicas que buscam superar as práticas autoritárias de gestão, relacionamento e processos de apropriação e aprendizagem. Esta dinâmica gera possibilidades de ações coletivas alterativas, passíveis de superar dificuldades cotidianas de convivência humana, de relação entre a comunidade e a escola, e ajuda a transformar experiências em conhecimento. Em síntese, produz uma pedagogia criativa, propícia à resolução e aprofundamento de saberes, pela qual o professor ensina e aprende simultaneamente.

Paulo Freire adverte para o aspecto relacional da formação, da interação entre o professor, o aluno e o contexto. O respeito ao outro está circunscrito numa razão ética da abertura, dentro de uma estética que se desvela na dinâmica do encontro,

[...] na experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História (FREIRE, 1996, p. 69).

O encantamento do projeto de formação do CEU está nas experiências que conduzem o sujeito a se apropriar de novas realidades, a se abrir para o mundo, interpretá-lo e transformá-lo. Este desenho pedagógico influencia professores, educadores, lideranças comunitárias, gestores e educandos.

Entre os anos de 2013 e 2016, a agenda responsável por executar a Meta 58 do plano de governo municipal, observando o descritivo das atividades ofertadas no período, destacou o protagonismo dos CEUs enquanto lócus de formação. As mostras culturais foram realizadas majoritariamente nos CEUs, na linha de uma pedagogia humanizadora decolonial, de sustentação freiriana.

A vinculação entre os CEUs e a discussão de um currículo pautado na educação para as relações étnico-raciais decorre da compreensão de que a reflexão crítica sobre a sociedade e a valorização das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas é um dos mecanismos para superar a narrativa hegemônica. A revisão educacional proposta por essa abordagem tem operado mudanças significativas, no que se refere à revisão curricular e da própria leitura da cultura escolar. O foco está na valorização da diversidade cultural aportada nas identidades étnicas e raciais, por uma perspectiva de problematização e positivação dos grupos historicamente alijados da produção do conhecimento. O currículo é um dos mecanismos de conservação das marcas coloniais (SILVA, 2017, p. 101).

Os pressupostos pedagógicos fazem do CEU um espaço privilegiado de vivências sociais de valorização dos sujeitos, um lócus de educação para a diversidade étnica e racial, ao incluir na sua agenda atividades relacionadas à valorização e ao fortalecimento das identidades raciais negras e indígenas. No que diz respeito às identidades racializadas e à educação, geralmente os projetos e as políticas educacionais “têm dificuldade de reconhecer saberes produzidos pelos movimentos sociais, pelos setores populares e pelos grupos sociais não hegemônicos” (GOMES, 2017, p. 42). Neste sentido, há relevância em considerarmos essa política de formação institucionalizada através dos CEUs.

É possível educar para a diversidade em uma sociedade marcada pelo colonialismo, pelo capitalismo, pelo machismo e pelo racismo? Se os movimentos sociais reeducam a sociedade e a escola, que saberes eles têm trazido para o campo educacional? Qual tem sido o lugar ocupado por esses saberes no cotidiano da escola, dos currículos e das políticas educacionais no século XXI? (GOMES, 2017, p. 43).

O protagonismo dos CEUs nesse processo educativo libertador dialoga com o questionamento de Gomes (2017), na medida em que a política educacional proposta fornece elementos para o mapeamento das intencionalidades políticas de valoração das experiências sociais evidenciadas pelo processo formativo identificado com a ERER. Ainda sobre a institucionalização dessa agenda formativa, é relevante considerarmos que

[...] a questão fundamental que se coloca hoje é o reconhecimento oficial e público dessas diversidades, que ainda estão sendo tratadas desigualmente no sistema educacional brasileiro, além de os portadores dessas identidades de resistência serem também vítimas dos preconceitos e da discriminação racial, até da segregação racial de fato (MUNANGA, 2013, p. 22).

Um processo formativo focado na difusão não hegemônica de saberes subsidia o reconhecimento oficial e público das diferenças, propiciando o rompimento com a perspectiva monocultural de currículo. Neste aspecto, as atividades formativas propostas pela Secretaria Municipal de Educação cumprem esse papel de institucionalização.

Pensando na centralidade da atuação do educador, são relevantes as contribuições de Shulman (2014) a respeito das bases de conhecimento mobilizadas no oficio de ensinar. Quanto aos aspectos do raciocínio pedagógico, o autor afirma que é esperado que os professores “[...] entendam o que ensinam e, quando possível, entendam-no de muitas maneiras. Devem entender que uma ideia dada se relaciona com outras ideias dentro do mesmo assunto e também com ideias de outros assuntos” (SHULMAN, 2014, p. 217). Logo, as reflexões sobre as bases de conhecimento não tergiversam dos propósitos educativos, nem da compreensão sobre o conteúdo a ser ensinado, e é na articulação entre a especificidade do conteúdo e o saber pedagógico mais amplo que esses aspectos vão se revelando.

[...] a chave para distinguir a base de conhecimento para o ensino está na interseção entre conteúdo e pedagogia, na capacidade do professor para transformar o conhecimento de conteúdo que possui em formas que são pedagogicamente poderosas e, mesmo assim, adaptáveis às variações em habilidade e histórico apresentadas pelos alunos (SHULMAN, 2014, p. 217).

A compreensão de uma apropriação dos saberes e intencionalidades do ensino pode contribuir para a percepção da articulação entre os objetos de conhecimento como porosos a outras áreas, não apenas a disciplina na qual é especialista, e também considera as especificidades do grupo discente.

O imaginário sobre os grupos racializados, negros e indígenas, influencia diretamente o modo como os saberes desses grupos são incluídos ao currículo. É imprescindível que se considerem os laços de colonialidade que ainda persistem na construção da subjetividade. A problematização dos estereótipos deve ser acompanhada de subsídios conceituais e práticos que contribuam para o reconhecimento do papel desempenhado por esses grupos na formação da sociedade brasileira e de recursos para a construção de uma base de conhecimento.

Por trás da produção da invisibilidade dos saberes de negros e indígenas, opera uma lógica homogeneizante, articulada aos projetos políticos de constituição dos estados nacionais na América Latina, ainda no século XIX. A compreensão desse processo histórico não recai apenas sobre o espectro político, fundamenta-se em intencionalidades culturais. No contexto de homogeneização cultural, a educação escolar exerceu o papel de difundir e consolidar uma cultura ocidental e eurocêntrica, silenciando e/ou inviabilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades” (CANDAU e RUSSO, 2010, p. 154). Mas o tensionamento social dos últimos anos apresenta potencial para transgredir essa lógica homogeneizante, frente à compreensão histórica do entranhamento dos laços de colonialidade que ainda permanecem e moldam essa instituição. A perspectiva pedagógica do CEU e seu alinhamento com a concepção de cidade educadora propõem a ruptura de uma pedagogia colonizante do professor.

Procedimento de coleta de dados e descrição

Para proceder à coleta de dados, cujos resultados discutimos neste artigo, utilizamos como fonte de pesquisa o Diário Oficial da Cidade de São Paulo. Realizamos uma investigação de base exploratória, com os descritores que julgamos pertinentes para atender aos nossos objetivos: CEU, Lei 10.539/03, Lei 11.645/08, étnico-racial e étnicorracial, NEER (Núcleo de Educação Étnico-Racial), ERER (Educação para as Relações Étnico-Raciais), história e cultura indígena, história e cultura africana e afro-brasileira, culturas latino-americanas, Agosto Indígena, Novembro Negro e Dezembro Imigrante. Além da base documental, incluímos uma pesquisa iconográfica como elemento enriquecedor do texto, realizada em páginas do Facebook e no portal da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. O material coletado evidencia o compromisso dos CEUs com a agenda formativa e o conteúdo apropriado pelos educadores.

O recorte do período tem por base a constatação de que, entre 2018 e 2005, há uma irregularidade na oferta de formação continuada, quando analisamos os dezoito anos dessa série histórica.

É pertinente ressaltar que, no âmbito do executivo municipal, o investimento em formação continuada em Educação para as Relações Étnico-Raciais compunha o Plano de Metas do prefeito Fernando Haddad (Meta 58), o que justifica a expressividade na quantidade de vagas de formação oferecida aos educadores da rede municipal de Ensino de São Paulo.

Para sistematizar os resultados da pesquisa, a estratégia utilizada foi a tabulação dos dados numéricos em quadros. Dessa forma, o estudo compreende o quantitativo das ações formativas oferecidas no período de 2013 a 2014, com destaque para o quantitativo de eventos e vagas disponibilizadas nos CEUs. A seleção dos dados a partir das DREs e seus respectivos CEUs permitiu identificar a atuação dos territórios na oferta dos eventos de formação.

Os CEUs constituem um espaço privilegiado de execução das políticas de formação centradas nas ações afirmativas, para além dos cursos habituais de formação e dos eventos oferecidos para educadores. Um exemplo disso é a realização da Semana do Hip Hop, protagonizada pelos movimentos sociais que oferecem à comunidade atividades de música, dança e arte. O contrato de prestação de serviço artístico relacionado à Semana do Hip Hop foi publicado no Diário Oficial de 22 de março de 2014 (p. 99), no valor de R$ 154.540,00. As atividades deveriam ser realizadas no CEU Paz, CEU Jaçanã e CEU Vila Rubi.

O investimento na formação do educador dos profissionais da educação sinaliza o compromisso de uma educação de qualidade, no sentido de articular a educação com as questões sociais. Os temas da diversidade cultural não se referem tão somente à unidade escolar, dizem respeito a cada pessoa, à cidade e às estruturas sociais. O professor, por sua vez, cumpre o papel de formador de opinião pública. Por essa perspectiva, ganham relevância os eventos voltados à formação sobre questões raciais, de gênero, geracionais e de classe. Em relação aos eventos de formação continuada, apresentamos a seguir os resultados da pesquisa sobre o quantitativo de cursos, seminários e oficinas relacionados à ERER, entre os anos de 2013 e 2016.

O protagonismo do CEU na agenda formativa da cidade de São Paulo

O quadro a seguir evidencia o envolvimento dos CEUs com uma pedagogia e uma prática humanizadoras, pela perspectiva da formação dos profissionais da educação.

Quadro 1 Relação das vagas de formação em ERER entre os anos de 2013 e 2016 

2013 2014 2015 2016 Total
Eventos 11 57 58 29 155
Vagas 1.777 10.695 13.428 9.081 34.981
Eventos CEU 2 31 19 5 55
Vagas CEU 850 6.940 1.510 2.025 10.875

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados coletados no Diário Oficial da Cidade de São Paulo.

Como podemos observar, no ano de 2014, cerca de 65% das vagas foram oferecidas nos CEUs, sendo esse o maior percentual no período analisado. Um elemento que contribui para a compreensão sobre o papel dos CEUs na oferta de formação é a geolocalização. É importante ressaltar que a distribuição dos CEUs pela cidade de São Paulo não é equânime, uma vez que, no período da coleta dos dados para este estudo, tínhamos DREs com apenas um CEU (Jaçanã/Tremembé), DREs com dois CEUs (Freguesia/Brasilândia) e DREs com uma quantidade superior de CEUs, como é o caso da DRE Campo Limpo. Além disso, a capacidade de lotação dos teatros dos CEUs, que varia entre 180 e 450 lugares, interfere nessa amostragem. Outro dado relevante é a inexistência de teatro no CEU Paulistano, o que impossibilita a realização de atividades de grande porte nesse equipamento.

Quando observamos um conjunto de variáveis, verificamos possibilidades e impossibilidades na apropriação dos conteúdos formativos ofertados pela Prefeitura, desde a condição da unidade escolar até à situação do professor. Não estamos diante de uma realidade homogênea, mas heterogênea e complexa, de encontro e desencontro, pela qual algumas unidades absorveram mais vagas do que outras. Os dados deixam entrever que existe uma cultura de formação de professores no CEU, não somente por parte da direção, como também pelos coletivos formativos dos professores e educadores.

A primeira publicação sobre evento formativo da ERER em CEU, no período analisado, foi o Seminário Lei 10.639/03: Avanços e Desafios, promovido pela DRE São Miguel e realizado no CEU Vila Curuçá, nos dias 18/11/2013 e 22/11/2013, com duração de 12h e oferta de 450 vagas. O Seminário tinha como objetivo compreender a importância de se considerar os aspectos culturais de sociedades africanas no contexto escolar e refletir sobre possíveis ações e intervenções que favoreçam um currículo que contemple as questões étnico-raciais. junto ao projeto político pedagógico das escolas.

No quadro seguinte, apresentamos de forma detalhada a quantidade de vagas oferecidas em cada CEU, entre os anos de 2013 e 2016.

Quadro 2 Relação das vagas de formação em ERER distribuídas nos CEUs (2013 e 2016) 

DRE 2013 2014 2015 2016
Butantã Butantã (400) Uirapuru Uirapuru (50) Butantã (40) Uirapuru (35)
Campo Limpo Casa Blanca (90) Paraisópolis (100) Casa Blanca (200) Paraisópolis (50)
Vila do Sol (170) Cantos do Amanhecer (180)
Campo Limpo (85)
Feitiço da Vila, 50
Vila do sol (50)
Casa Blanca (100) Paraisópolis (50)
Capela do Socorro Cidade Dutra (450)
Freguesia do Ó/ Brasilândia Paz (400) Paz (35)
Guaianases Inácio Monteiro (450)
Lajeado (200)
Lajeado (35)
Ipiranga Caminho do Mar (300)
Meninos (400 vagas)
Heliópolis (150) Caminho do Mar (35)
Itaquera Azul da cor do Mar (150) Aricanduva (50) Aricanduva (50)
Jaçanã/ Tremembé Jaçanã (590)
Penha Quinta do Sol (730) Tiquatira (120) Tiquatira (200)
Pirituba Perus (210)
Vila Atlântica (1.500) Parque Anhanguera (180)
Parque Anhanguera (50) Perus (50)
Vila Atlântica (550)
Pêra Marmelo (100)
São Mateus Alto Alegre (340) Alto Alegre (50)
São Rafael (400)
São Miguel Vila Curuçá (450) Vila Curuçá (450) São Carlos (400) Vila Curuçá (450)
Santo Amaro Caminho do Mar (150)

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados coletados no Diário Oficial da Cidade de São Paulo.

Analisando o quadro, podemos identificar que a DRE Pirituba/Jaraguá foi a que recebeu o maior quantitativo de oferta de vagas, 2.640, assim distribuídas: CEU Vila Atlântica, 2.050; CEU Perus, 260; CEU Parque Anhanguera, 230; CEU Pera Marmelo, 100. De modo geral, pelo menos um CEU de cada DRE foi palco de atividades de formação, ainda que essa distribuição seja díspar. Podemos identificar a diversidade na proposta dos eventos, bem como a aceitação por parte dos educadores. Ao todo, 26 CEUs receberam atividades de formação sobre ERER, no período de 2013 a 2016. Os dados nos fazem crer que esta ação poderia constituir um dos caminhos de resistência ou desconstrução do racismo estrutural.

Nessa direção, em 2014, a Prefeitura do Município de São Paulo promoveu a I Mostra Cultural Agosto Indígena nos CEUs, através da Portaria Intersecretarial SME/SMPIR/SMDHC/SMC nº. 1/2014, que constituiu a Comissão Organizadora das Atividades de Formação, Difusão Cultural e Currículo (SÃO PAULO, D.O. de 20/05/2014, p. 8. A agenda formativa da Mostra Cultural abrangeu a cidade, possibilitando o acesso aos saberes, à cultura e à história dos povos indígenas de São Paulo.

O protagonismo dos representantes indígenas na cidade de São Paulo incentivados pelas ações do Programa Pindorama e do evento Agosto Indígena ganha maior relevância ao objetivar a aplicação da Lei nº. 11.645/08, tendo em vista o pioneirismo da elaboração de cursos para o Ensino de História e Cultura Indígena planejada e ministrada pelos próprios indígenas. (CARDOSO; GUARANI, 2019, p. 10).

A relevância dessa amostra está nos pressupostos pedagógicos que valorizam e desencadeiam o protagonismo dos representantes indígenas. A imagem 1 é o cartaz de divulgação da I Mostra Cultural Agosto Indígena, que mobilizou 22 CEUs, de todas as DREs, com uma programação destinada a proporcionar a visibilidade das populações indígenas, implementando a lei federal 11.645/08.

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

Imagem 1 Cartaz de divulgação da I Mostra Cultural agosto Indígena nos CEUs (2014) 

No Quadro 3, sistematizamos as informações que constam no cartaz de divulgação, detalhando os locais e datas onde ocorreram os cursos, seminários, oficinas e demais atividades relacionadas ao evento.

Quadro 3 Programação da mostra cultural “agosto Indígena nos CEUs-2014” 

CEU Datas Atividades
Alvarenga 11/08 a 15/08 Apresentação “Xondaro” (Guarani), Artesanato Xavante, Oficina de Peteca, Seminário “A presença indígena na cidade de São Paulo”, Mostra de cinema Guarani.
Alto Alegre 18/08 a 22/08 Ritual da Tucandeira (Saterê-mauê), Oficinas de Zarabatana e Peteca (Guarani), Curso “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de Cinema Guarani
Aricanduva 18/08 a 21/08 Canto e dança Pankararé, Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Azul da Cor do Mar 19/08 Artesanato Kariri-xocó, Oficina “Língua Guarani”, Mostra de cinema Guarani
Butantã 21/08 a 28/08 Canto e dança Kariri-xocó, Artesanato Pankararé, Curso “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de Cinema Guarani
Cidade Dutra 20/08 Artesanato Xavante, Mostra de cinema Guarani
Inácio Monteiro 14/08 a 21/08 Canto e dança Pankararé, Artesanato Fulni-ô, Artesanato Kariri-xocó, Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Jaçanã 16/ a 23/08 Canto e dança Pankararé, Oficina “Língua Guarani”, Artesanato Kariri-xocó, Curso “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Jardim Paulistano 13/08 a 15/08 Canto e dança Pancararé, Artesanato Fulni-ô, Artesanato Pankararé, Mostra de Cinema Guarani
Meninos 26/08 e 27/08 Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Paraisópolis 12/08 a 15/08 Ritual da Tucandeira (Saterê-mauê), Artesanato Kariri-xocó, Artesanato Xavante, Seminário “A presença indígena na cidade de São Paulo”, Mostra de cinema Guarani.
Parelheiros 26/08 Oficina de Peteca, Mostra de cinema Guarani
Parque Bristol 20/08 a 22/08 Canto e dança Xavante, Mostra de cinema Guarani
Tiquatira 18/08 a 20/08 Artesanato Fulni-ô, Canto e dança Kariri-xocó
Três Lagos 13/08 Canto e dança Xavante, Mostra de cinema Guarani
Três Pontes 19/08 Artesanato Fulni-ô, Artesanato Pankararé, Mostra de cinema Guarani
Quinta do Sol 19/08 a 24/08 Artesanato Kariri-xocó, Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Uirapuru 27/08 Artesanato Kariri-xocó
Vila Atlântica 13/08 a 15/08 Apresentação “Xondaro” (Guarani), Oficina “Língua Guarani”, Artesanato Kariri-xocó, Seminário “A presença indígena na cidade de São Paulo”, Mostra de cinema Guarani.
Vila Curuçá 19/08 a 22/08 Canto e dança Kariri-xocó, Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani
Vila Rubi 07/08 Seminário “A presença indígena em São Paulo”, Mostra de cinema Guarani

Fonte: Sistematização dos autores a partir da imagem 2 (Cartaz de divulgação da Mostra Cultural Agosto Indígena).

Observa-se, no Quadro 3, um conjunto de atividades que desvela os múltiplos saberes indígenas, por meio de diferentes linguagens. A nosso juízo, o evento aproximou as culturas dos povos urbanos e indígenas, não somente pela perspectiva de acolher ou compreender a cultura indígena, mas no sentido de integrar as culturas, de um grupo se descobrir no outro. Aqui se realizam as práticas de uma pedagogia decolonial ou uma proposta pedagógica da interculturalidade.

A prática de encontro entre os diferentes nos ajuda a descobrir que somos vocacionados para a humanização e temos que desconstruir a desumanização, que são as distorções registradas pela história. Esta é uma das ideias presentes na Pedagogia da esperança, de Freire. Apesar da simplicidade, esse tipo de evento questiona e propõe qual é o modelo de ser humano, de sociedade e de escola que queremos, e como podemos resistir aos processos de desumanização. O sonho pela humanização é uma condição humana que mobiliza os sujeitos a fazer e a refazer: sabemos que, “como seres fazedores de seu caminho, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao caminho que estão fazendo e que, assim, os refazem, também” (FREIRE, 1994, p. 97).

Durante o mês de agosto de 2014 os CEUs se converteram em espaços de visibilidade das culturas indígenas de São Paulo. Além dos cursos e seminários, a população paulistana se beneficiou de diversas atividades formativas, aproximando-se dos saberes, história e cultura indígena.

Em 2016, foi realizada a I Jornada Municipal de Educação para as Relações Étnico-Raciais (JMERER), e os CEUs acolheram diversas das atividades da programação em sua agenda. De acordo com o Plano de trabalho e/ou Metas 2016, da Secretaria Municipal de Educação, a JMERER compunha a Meta 3, e tinha como propósito programar ações pedagógicas, didáticas e culturais voltadas para os alunos, profissionais da RME e comunidade escolar. Cabe salientar que, na composição do Plano de Trabalho, as ações vinculadas ao escopo da Educação para as Relações Étnico-Raciais compunham o Programa de Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação para Imigrantes.

Na Imagem 2, destacamos uma das atividades da programação da Jornada ERER. Trata-se de um Cineclube realizado no CEU Tiquatira (DRE Penha), com a presença do produtores Luciano Onça e do ator Denilson Mamani/Choco. Na ocasião, foi exibido o documentário 100% boliviano, mano e os educadores tiveram a oportunidade de refletir sobre a presença de estudantes imigrantes nas escolas a partir do diálogo com Mamani, um jovem artista boliviano.

Fonte: Acervo dos autores. Data: 10 de setembro de 2016.

Imagem 2 Debate sobre audiovisual no CEU Tiquatira 

Também em 2016 a Secretaria Municipal de Educação realizou uma série de seminários relacionados à História e Cultura da América Latina, sendo que os CEUs foram utilizados para acolher tais atividades.

Um exemplo dessa série de atividades é o Seminário Brasil Latino: Revelando a América Latina para a Educação Paulistana, organizado pela DRE São Miguel, que teve a oferta de 450 vagas no CEU Vila Curuçá. De acordo com o comunicado de divulgação, o evento teve por objetivos proporcionar a discussão sobre a história e cultura da América Latina, promover o diálogo intercultural, discutir o fluxo de informações referentes à América Latina e apresentar a musicalidade latino-americana. Além de palestras e debates, contou com apresentação musical do grupo Tarancón, o que demonstra a potência do CEU enquanto equipamento de formação e vivência artística.

Fonte: Página do Facebook do Grupo Tarancón.

Imagem 3 Apresentação do grupo Tarancón na programação da I Mostra Cultural Brasil Latino 

Ao olhar para os quadros, imagens e temas por uma perspectiva dialética de aparência versus essência e seu oposto, estamos diante de um debate sobre o lugar social do sujeito e da produção de uma nova epistemologia, que não tem a ver

apenas com valores sociais na produção de conhecimento e nem com o fato de o nosso conhecimento ser sempre parcial. O essencial aqui é o lócus da enunciação [...] e o corpo-político do sujeito que fala. Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da análise. [...] O lugar epistêmico ético-racial [...] e o sujeito enunciador encontram-se sempre desvinculados. (GROSFOGUEL, 2010, p. 408).

No desenvolvimento das temáticas abordadas nos CEUs, podemos perceber que sujeitos a quem foi negado o direito de fala aparecem como protagonistas, como sujeitos de direitos e produtores de conhecimento, cultura e solidariedade. Pela ótica da desreificação ou descoisificação, este processo de produção coloca em novo patamar as relações humanas.

Considerações finais

Mensurar a efetividade da formação continuada para a melhoria da qualidade no processo ensino-aprendizagem é um exercício de difícil definição, porque se trata de um tema que envolve diversos fatores e que está entrelaçado na complexidade dos processos formativos dos sujeitos. Contudo, acreditamos que o investimento na formação continuada de educadores é um forte indício do comprometimento dos sistemas de ensino na elevação dessa qualidade.

Ao examinarmos as ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para garantir o acesso à formação, pudemos constatar que entre os anos de 2013 e 2016 houve um forte investimento nas ações formativas identificadas com o Programa de Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação para Imigrantes.

As atividades de formação analisadas neste artigo explicitam que os Centros Educacionais Unificados adquiriram especial relevância como lócus que oportunizaram não apenas o acesso aos debates conceituais, mas possibilitaram que educadores pudessem vivenciar as culturas que, na formação brasileira, passaram por um processo de invisibilização. Os saberes construídos pelas populações negras, indígenas e imigrantes foram compartilhados e adquiriram centralidade nos espaços dos CEUs. Notamos ainda que o investimento financeiro reverberou diretamente na quantidade de vagas oferecidas nos mais diversos eventos formativos, e que esse momento ímpar de debate foi possibilitado pelo planejamento atuante de diversos atores responsáveis pela formulação das políticas públicas educacionais.

Uma questão que ainda permanece é: como os professores se apropriaram desses momentos de formação continuada? Nesse sentido, acreditamos que o trabalho de balanço quantitativo é importante, contudo, há a necessidade de aprofundarmos a pesquisa, identificando de que modo a política de formação oferecida se constituí como diferencial no que diz respeito à reflexão e a construção de propostas pedagógicas que incluem essas diversidades ao currículo escolar.

É necessário observar como a cultura escolar acolhe os saberes e reclamos dos novos sujeitos que adentram a escola, bem como atua na formação dos profissionais da educação. Um dos desafios é até que ponto as vozes e ações desses sujeitos transformam a cultura escolar e interferem na produção de uma nova epistemologia.

1Este artigo é um subproduto do Projeto “Lidando com novos espaços: crianças e adolescentes na apropriação do complexo arquitetônico do CEU Butantã (São Paulo, Brasil)”, financiado pelo Mackpesquisa; é vinculado aos Grupos de Pesquisa em Pedagogia Social e de Estudos de História da Cultura, Sociedades e Mídias, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em parceria com as Universidades de Singer e Alanus, da Alemanha, e a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Conta com a colaboração de pesquisadores de outras Universidades nacionais e internacionais.

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