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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.62 São Paulo jul./set 2022  Epub 12-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n62.18691 

Artigos

INFÂNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO: QUEM SÃO AS CRIANÇAS BRASILEIRAS?

CHILDHOOD AND INSTITUTIONALIZATION: WHO ARE THE BRAZILIAN CHILDREN?

INFANCIA E INSTITUCIONALIZACIÓN: ¿QUIÉNES SON LOS NIÑOS BRASILEÑOS?

Suzana Pinguello Morgado, Doutorado1 
http://orcid.org/0000-0002-5348-0285

1Doutorado, Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR. Campo Mourão, Paraná - Brasil.


Resumo

Temos como objetivo identificar as crianças brasileiras com a intenção de conhecer quem são os sujeitos que compõem a infância brasileira e entender como se consolida o atendimento, sejam elas institucionalizadas ou não. Partimos da investigação materialista de sociedade, história, cultura e economia, tendo como base as categorias marxianas de análise da realidade social e de uma pesquisa bibliográfica para identificar, compreender e analisar nosso objeto de investigação. Identificamos que a marca social entre as crianças das diversas classes é preponderante para seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos ou não no decorrer da história da educação no país, inclusive para determinar a existência e forma de atendimento ofertado.

Palavras-chave: crianças; infância; institucionalização; políticas para a infância.

Abstract

We aim to identify how Brazilian children with the intention of knowing who are the ones who represent a Brazilian childhood and how they comfort the service, whether they are promoted or not. We start from materialistic research, history, culture and economics, based on the marxists categories of analysis of social reality and a bibliographical research to identify, understand and analyze our research object. Identifying social classes as different classes is preponderant to obtain the knowledge of whether or not the content of the history of education in the country is included, including to determine the existence of a form of care offered.

Keywords: children; childhood; institutionalization; policies for children.

Resumen

Nuestro objetivo es identificar a los niños brasileños con la intención de saber quiénes son los sujetos que componen la infancia brasileña y comprender cómo se consolida el cuidado, institucionalizado o no. Partimos de la investigación materialista de la sociedad, la historia, la cultura y la economía, basándonos en las categorías marxistas de análisis de la realidad social y una investigación bibliográfica para identificar, comprender y analizar nuestro objeto de investigación. Identificamos que la marca social entre los niños de diferentes clases es preponderante para su reconocimiento como sujeto de derechos o no en el transcurso de la historia de la educación en el país, incluso para determinar la existencia y forma de servicio ofrecido.

Palabras clave: niños; infancia; institucionalización; políticas para niños.

Introdução

O entendimento da educação das crianças da primeira infância exige do investigador a compreensão dos múltiplos fatores que compõem essa etapa: desde aspectos de desenvolvimento infantil, garantia de direitos, políticas, movimentos históricos e até mesmo identificação dos sujeitos que são atendidos pela educação infantil. Para tanto, neste trabalho identificaremos as crianças brasileiras com os objetivos de conhecer quem são os sujeitos que compõem a infância brasileira e entender como se consolida o atendimento - seja ele institucionalizado ou não - para essa população.

Em uma análise do contexto histórico, econômico, político e social da garantia de diretos à educação infantil, é preciso identificar os aspectos que se fazem hegemônicos, tanto para essa etapa da educação, quanto para as crianças que estão submetidas a esse processo. Hegemônico, pois, como uma das categorias marxianas aqui adotadas, faz-nos considerar o que se torna predominante, o que é consensuado, reproduzido. Identificamos que a hegemonia pode ser o movimento que faz impor hábitos, necessidades ou costumes de uma sociedade sobre a outra, ou ainda, o que se faz predominante via consenso de classes. Independentemente se imposto ou consensual, a ideia é de que haja um conjunto de valores que se sobrepõe a outros em um movimento de reprodução da sociedade predominante, como indicado por Cury (1985).

Cumprem a nós, pesquisadores que buscam o entendimento das relações macro e micro, estabelecidas socialmente, o desvelamento dos processos hegemônicos que são reproduzidos no país. Para a compreensão da infância e da educação infantil no Brasil pós-década de 1990, consideramos a identidade da criança atendida, como elas existem para o sistema educacional e empreendemos um movimento de entendimento da consolidação histórica da educação da criança no país. A tarefa aqui apresentada de cunho bibliográfico e com base na pesquisa materialista, visa analisar a infância e a educação infantil brasileira, a fim de compreender como se consolida o atendimento educacional às crianças da primeira infância, seja ela institucionalizada ou não. Para isso, organizaremos nosso texto em três momentos1 sendo: no primeiro trataremos da identificação e reconhecimento das crianças brasileiras, posteriormente discutiremos a história da educação dessa criança e a formação da infância no Brasil no século XX até o período de homologação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), para, por fim, identificarmos um referencial de atendimento ofertado à infância brasileira.

2 As crianças brasileiras

Indicar quem são consideradas crianças no Brasil pode aparentar ser simples ao recorrermos ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, segundo o qual, no seu Art. 2º, são crianças todas as pessoas de até 12 anos incompletos. O pressuposto legal para assegurar a garantia de políticas, estabelecido pelo ECA, soluciona a questão jurídica de designação do “ser criança” no Brasil. Porém, o fato de serem consideradas crianças nem sempre significa que o acesso aos direitos destinados a essa população será garantido.

Assumimos como pressuposto a garantia constitucional de direitos e dever do Estado em conceder educação a todos, Art. 3º, inciso IV da CF de 1988. Com as previsões legais, dispostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI, publicadas em 2009 e que atualizam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9.394/1996, atualmente, a educação da criança da primeira infância no Brasil está dividida entre o atendimento de crianças de 0 a 3 anos - geralmente ofertado nas creches - e a educação infantil de crianças de quatro e cinco anos - em pré-escolas. Entretanto, dentre esses dois períodos, somente o atendimento da educação infantil é etapa obrigatória no país, LDBEN (1996), Art. 4º, inciso 1º.

A presente análise requer identificar, como encaminha o título, quais são as crianças atendidas pelas políticas de educação, quais são as outras que recebem auxílio das políticas sociais e, ainda, quais são as que não têm nenhum benefício, as que são invisíveis. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como indicado na pirâmide etária brasileira, cerca de 7,71% da população em 2015 é composta por crianças de zero a quatro anos de idade. Entretanto, não há como precisar esse dado, pois a pesquisa realizada pelo instituto é feita por amostragem, sendo impossível ter um dado absoluto. Ainda sim, há uma estimativa de que, a cada 19 segundos, haja um nascimento no país. Ao considerarmos que em 1 minuto há 60 segundos, a cada minuto nascem cerca de 3,15 crianças, isso em 1 hora representa 189,4 nascimentos e, em um dia, o total de nascimentos estimados para um dia se aproxima de 4.547 crianças.

Estima-se, pelo IBGE, que em 2015, a cada 1.000 nascidas vivas, 13,82 das crianças morrerão até um ano de idade. Se compararmos com a taxa de natalidade esperada, teremos 14,16 nascimentos a cada 1.000 pessoas. Se temos 4.547 crianças nascendo diariamente e, a cada 1.000 delas, 13,82 morrem, é estimado que cerca de 62,83 crianças morram por dia até o seu primeiro ano de nascimento. Em um ano ocorreriam cerca de 1.659.655 de nascimentos e 22.932 mortes estimadas.

Entretanto, o IBGE não considera, por exemplo, as crianças natimortas. Para essa quantificação precisamos consultar outras fontes de dados oficiais, como o caso do sistema de informática do Sistema Único de Saúde (SUS), o DataSUS. Esse índice, por sua vez, não apresenta dados atualizados, além de considerar na mesma base quantitativa das crianças natimortas aquelas que falecem entre zero e seis dias de vida. Outro fator que não é considerado é o de fetos denominados de resíduos de serviços de saúde. Fetos que morrem com menos de 500 gramas, ou menores que 25 centímetros, ou com idade gestacional inferior a 20 semanas, que não tenham valor legal ou científico e que não sejam requeridas pela família são consideradas resíduos e devem ser sepultadas - caso haja autorização municipal - ou incineradas/cremadas. Os dados apresentados no relatório de 2012 do DataSUS não são aplicáveis em todo o país, por isso não há uma quantificação nacional, apenas estão indicados os índices dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal, como informado pelo Ministério da Saúde (2012). Consideramos a seguir, em números absolutos, os nascidos vivos no país com registro de nascimento entre os anos de 2010 a 2013.

Tabela 1 Nascidos vivos, por ano de nascimento, idade da mãe na ocasião do parto, sexo e lugar do registro 

Brasil
Variável = Nascidos vivos registrados no ano (Pessoas)
Idade da mãe na ocasião do parto = Total
Sexo = Total
Ano de nascimento Ano
2010 2011 2012 2013
Total 2.985.406 3.044.594 3.030.364 2.989.981
2013 - - - 2.832.590
2012 - - 2.830.458 49.006
2011 - 2.824.776 61.152 20.933
2010 2.760.961 68.585 29.515 11.909

Fonte: IBGE - Estatísticas do Registro Civil (2014).

A partir desses dados, podemos verificar que existe uma média de registro de nascimentos nos quatro anos indicados e ainda um número expressivo de crianças que não têm seus registros realizados no mesmo ano do nascimento. Contudo, existe um número de crianças que só são contabilizadas nas estatísticas por não possuírem o registro de nascimento. Segundo os dados do Censo Demográfico de 2010, parte das crianças levantadas nos domicílios brasileiros não tinham certidão de nascimento, o documento necessário para ser considerado o sujeito de direitos, que será atendido pelas políticas brasileiras, em específico, as de educação.

Para o IBGE (2014), somente são consideradas as pessoas que residem em domicílio, sejam eles próprios, alugados, albergues, casas coletivas, centros de acolhimento, assentamentos ou orfanatos. As crianças que são moradoras de rua ou populações itinerantes, por exemplo, não são contadas pelo Censo Demográfico. Além de não existir um dado oficial com o número de crianças moradoras de rua, não é possível saber se elas têm ou não certidão de nascimento e nem se têm acesso às políticas sociais. Considerando a obrigatoriedade do registro de nascimento, temos como regulamentação atual a lei que define a garantia do Registro Civil, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

Tabela 2 Pessoas de 10 anos ou menos de idade, por existência e tipo de registro de nascimento, segundo a situação do domicílio e a idade 

Brasil
Variável = Pessoas com até 10 anos de idade (Pessoas)
Situação do domicílio = Total
Ano = 2010
Idade Existência e tipo de registro de nascimento
Com registro de nascimento Sem registro de nascimento
Total 32.070.083 169.829
Menos de 1 ano 2.640.166 69.886
Menos de 1 mês 205.050 14.826
1 ano 2.667.905 24.384
2 anos 2.707.865 16.568
3 anos 2.775.921 12.362
4 anos 2.857.985 9.726
5 anos 2.921.135 8.277

Fonte: IBGE - Censo Demográfico (2013).

Os números aqui apresentados podem ser considerados altos se levarmos em consideração que a lei de gratuidade da certidão de nascimento para os declaradamente pobres existe desde 1997, Lei n. 9.534/97. Entretanto, eles podem ser ainda maiores se levarmos em consideração os moradores de rua - ou ainda os acampados e os moradores das fronteiras - embora esses não entrem na contagem do IBGE. Em 2008, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em conjunto com a Organização das Nações Unidas para Educação a Ciência e a Cultura (Unesco), fez um levantamento por amostragem nas grandes regiões brasileiras. As estimativas levantadas sugerem que, na época, 0,06% da população era moradora de rua, em números reais cerca de 50 mil pessoas. Mas esse dado não leva em consideração crianças e adolescentes, portanto, os números, para o período, eram maiores do que os estimados, como indicado pelo MDS (2008).

Outro dado relevante na consideração de quem são as crianças brasileiras são os óbitos infantis, pois essas informações são ainda mais nebulosas e difíceis de localizar do que as de registro de nascimento. Somente em 2010, sob a Portaria Ministerial n. 72, do Ministério da Saúde, torna-se obrigatória, nas redes de saúde públicas ou privadas que integram o SUS, a notificação de óbitos fetais. A portaria apresenta em suas considerações introdutórias a dificuldade de identificação de óbito fetal pelas práticas de subnumeração e subregistros de mortes comuns nos municípios do país.

Tabela 3 Óbitos, por ano de ocorrência, natureza do óbito, sexo, idade, local de ocorrência e lugar do registro 

Brasil
Variável = Número de óbitos registrados no ano (Pessoas)
Ano de ocorrência = Total
Natureza do óbito = Total
Sexo = Total
Local de ocorrência = Total
Idade do(a) falecido(a) Ano
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Menos de 1 ano 38.117 35.606 34.850 34.192 32.188 32.617 32.066 32.341 32.100
Menos de 7 dias 19.373 17.718 17.745 17.266 16.683 16.673 16.306 16.247 16.364
1 a 4 anos 7.832 7.368 7.093 6.900 6.572 6.459 6.407 6.252 6.003
5 anos 1.080 1.002 978 951 900 876 828 783 808

Fonte: IBGE - Estatísticas do Registro Civil (2014).

Não podemos fazer análises simplistas sobre o número de óbitos fetais ou crianças natimortas, pois envolvem vários fatores desde biológicos e genéticos a sociais, que podem envolver alimentação, saneamento e fatores ambientais. Entretanto, podemos obter duas situações distintas a respeito da Portaria Ministerial n. 72, do Ministério da Saúde: 1- o efeito promovido pela portaria foi automático e possibilitou - nos anos posteriores a 2010 - a regularização dos registros de óbitos infantis; ou 2- a referida portaria não produziu efeitos consideráveis, pois a média de registros foi mantida; conforme as crianças crescem, suas chances de sobreviver são maiores, por isso há um número menor óbitos de crianças com quatro e cinco anos de idade.

O entendimento de que se efetivou a segunda situação, ou seja, de que a portaria não possibilitou efeitos consideráveis, se faz mais sólido ao observamos os dados de óbitos da Estatística do Registro Civil para os anos de 2006 a 2009. Nesses dados é identificada uma média de registros que não se diferencia daqueles posteriores à portaria ministerial. Há uma redução nos registros de óbitos que podem representar certos avanços em algumas políticas sociais, porém não podemos afirmar que estão registrados todos os óbitos infantis ou natimortos no país. Se compararmos os registros de óbitos de 2006 e 2014 e as estimativas de 2015 de mortes em crianças de até um ano de ano idade, identificamos uma redução de aproximadamente seis mil registros nesse intervalo de nove anos e uma estimativa de que em um ano a redução fosse de dez mil óbitos por ano. O olhar para o registro de óbitos infantis deve ser cauteloso, pois, embora sejam dados oficiais, eles podem não representar a totalidade dos casos no país, e muito menos nos dirão sob quais circunstâncias tais óbitos ocorrem. Os registros demonstram diminuição no número de óbitos informados, entretanto, ao considerarmos os dados de 2013 e 2014 para as crianças menores que sete dias de nascimento, houve aumento do número de óbitos de 117 registros. O mesmo ocorreu com as crianças de cinco anos, para essas, o aumento foi de 25 mortes registradas.

Ao considerarmos os óbitos fetais, os números apresentados pelos dados do Registro Civil são ainda menores. Como indicamos anteriormente, por mais que exista uma portaria ministerial que assegure o registro do óbito, muitos deles ainda são considerados resíduos de serviço de saúde, como recomendado pelo Ministério da Saúde (2015). O número de registros de óbitos fetais fica dentro da variação de 1.000 ao ano, havendo diminuição entre os anos de 2006 a 2010, e aumento progressivo desde então. As análises ficam mais claras quando comparamos os dados do Registro Civil com os do DataSUS.

Tabela 4 Óbitos fetais, ocorridos no ano, por mês do registro, sexo, local de nascimento, número de nascidos por parto, idade da mãe na ocasião do parto e lugar do registro 

Brasil
Variável = Número de óbitos fetais ocorridos e registrados no ano (Unidades)
Mês do registro = Total
Sexo = Total
Local do nascimento = Total
Número de nascidos por parto = Total
Idade da mãe na ocasião do parto = Total
Duração da gestação em semanas Ano
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Total 26.068 24.762 24.968 24.412 23.771 24.892 25.620 25.744 25.748
Menos de 22 semanas 1.711 1.646 1.573 1.334 1.278 1.518 1.571 2.113 1.796

Fonte: IBGE - Estatísticas do Registro Civil (2014).

Enquanto a Tabela 4 apresenta os dados do Registro Civil, ou seja, as informações que foram declaradas pelas famílias sobre os óbitos fetais e, assim, foram oficialmente registradas, a Tabela 5 indica os registros dos hospitais vinculados ao SUS. Ao compararmos os números totais, temos uma diferença entre os dados do Registro Civil e os do SUS, que variam entre seis mil e oito mil óbitos. Podemos perceber que, em 2013, por exemplo, ocorreram seis mil óbitos no período de gestação, nos hospitais que integram o SUS, que não foram informados ao Registro Civil. Os dados sobre as mortes de fetos com menos de 22 semanas também demonstram aumento. No decorrer dos anos, a diferença entre os registros oficiais e os dados do DataSUS, em 2006, por exemplo, era de aproximadamente 100 óbitos, enquanto em 2013 passou para 1.258. Ou seja, dos 3.054 óbitos anotados pelo SUS, somente 1.796 obtiveram registro civil.

Tabela 5 Óbitos fetais, por residência, segundo região, duração da gestação e período 

Óbitos fetais
Duração da gestação em semanas Ano
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Total 33.434 32.165 32.065 32.147 30.929 31.613 32.229 31.981
Menos de 22 semanas 1.864 1.745 1.508 1.626 1.573 2.551 2.985 3.054

Fonte: Elaborado a partir de dados obtidos no portal do DataSUS (2016).

Somente após a superação das estatísticas de óbito fetal e infantil, do reconhecimento pelo Estado brasileiro como cidadão, via certidão de nascimento, falamos do acesso das crianças, na garantia de direitos educacionais. Ao considerarmos o número de crianças que vão para a escola, temos os dados absolutos do Censo Demográfico, portanto, dados de 2010.

Tabela 6 População residente, total e a que frequentava escola ou creche, por grupos de idade - Resultados Gerais da Amostra 

Ano = 2010
Brasil e Grande Região Grupos de idade Variável
População residente (Pessoas) População residente que frequentava escola ou creche (Pessoas)
Brasil 0 a 3 anos 10.938.914 2.575.954
4 ou 5 anos 5.801.583 4.647.011
6 anos 2.891.614 2.746.435

Fonte: IBGE - Censo Demográfico (2013).

Constata-se que, quanto mais nova é a criança, menor é o seu acesso às instituições de educação infantil e/ou creches, essa observação pode representar um entendimento, por parte dos pais, de que são muito pequenas para frequentar instituições escolares; ou, por deter certo poder aquisitivo, podem preferir educá-las em casa ou deixar com familiares; ou pelo fato de não existirem vagas ou instituições suficientes para o atendimento. O que observamos nesse contexto é que as etapas da educação que são obrigatórias acabam por se aproximar da totalidade de crianças que deveriam frequentar as instituições educativas.

Houve duas mudanças recentes na LDBEN, Lei n. 9.394/1996, que alterará, no próximo Censo Demográfico, os dados dos números de crianças na escola: a de 2006, que promoveu as crianças de seis anos para o ensino fundamental, Art. 32 da Lei nº 11.274, de 2006). E a de 2013, que tornou obrigatória a educação infantil para as crianças de quatro e cinco anos, Art. 29 da Lei nº 12.796, de 2013. Os dados considerados aqui são os do Censo Escolar, atualizado até 2013, e, além do censo, são utilizados dados amostrais da PNAD, o que não os consolida, dessa forma, como dados absolutos.

Tabela 7 Número de Matrículas na Educação Infantil e População Residente de 0 a 3 e 4 e 5 Anos de Idade - Brasil - 2007-2013 

Ano Matrículas na Educação Infantil População por Idade
Total Creche Pré-Escola 0 a 3 anos 4 e 5 anos
2007 6.509.868 1.579.581 4.930.287 10.956.920 5.928.375
2008 6.719.261 1.751.736 4.967.525 10.726.657 5.765.405
2009 6.762.631 1.896.363 4.866.268 10.536.824 5.644.565
2010 6.756.698 2.064.653 4.692.045 10.925.892 5.802.254
2011 6.980.052 2.298.707 4.681.345 10.485.209 5.698.280
2012 7.295.512 2.540.791 4.754.721 10.553.268 5.516.458
2013 7.590.600 2.730.119 4.860.481 ... ...
∆% 2012/2013 4,0 7,5 2,2 ... ...

Fonte:BRASIL; INEP (2014).

Se compararmos os dados apresentados nas Tabelas nº 6 e nº 7 para o ano de 2010, perceberemos uma diferença de quase 500 mil crianças matriculadas nas creches. O número do Censo Demográfico - da quantidade de crianças que foram declaradas como matriculadas em 2010 - é maior que o educacional. Outra inconsistência é a diferença entre as crianças da educação infantil, novamente há uma diferença de quase 50 mil crianças, havendo um número maior de crianças matriculadas no censo educacional do que as declaradas no censo demográfico.

Embora essas inconsistências possam agregar certa dubiedade aos dados coletados tanto pelo IBGE quanto pelo MEC, existe outra diferença ainda mais preocupante: a quantidade de crianças fora das instituições escolares. Ainda com os dados de 2010, temos mais de dez milhões de crianças, entre zero e três anos, e, dessa quantidade, aproximadamente oito milhões estão fora das creches. Quando consideramos as crianças entre quatro e cinco, essa diferença cai para aproximadamente um milhão, das que estão fora para as que frequentam instituições educacionais. Somadas às crianças de zero a cinco anos no Brasil, segundo os dados de 2010 do Censo Demográfico, no período existiam 16.740.497 crianças, dessas, 7.222.965 estavam matriculadas em creches ou pré-escolas e, portanto, havia fora da escola 9.517.532 crianças.

Em outros termos, 57% das crianças entre zero e cinco anos em 2010 estavam fora da escola. Onde elas estavam? Elas se evadiram? Estavam em casa? Eram cuidadas? Trabalhavam? Estavam no tráfico? Esmolavam nas ruas? A única afirmação concreta que podemos fazer neste momento é que os dados oficiais não dão conta das crianças residentes no país. Esses dados apresentados até o momento não nos esclarecem quais crianças são atendidas pelas políticas, mas nos concedem bases para reconhecer as que não são. Entretanto, na própria organização histórica da educação do país, já encontramos indícios de quem eram essas crianças e precisamos considerar esses acontecimentos neste momento do texto.

3 Consolidação histórica da educação da criança no Brasil

A ausência de ações educacionais às crianças não é legado exclusivo do século XXI, e, ao revisitarmos a história do Brasil, é possível reconhecermos qual função a educação da criança ocupava no cenário nacional. O binômio cuidado/educação se faz presente de forma fragmentada, em muitos momentos, no processo de institucionalização educacional da criança, como o período marcado pela criação da Casa dos Expostos no século XVIII, que recolhia as crianças abandonadas, como afirma Drewinski (2001). As instituições que as abrigavam estavam ligadas às instituições religiosas que visavam dar proteção e abrigo, e “[...] desde 1726 a situação dos “expostos” era terrível, com casos de crianças abandonadas à beira da praia para serem levadas pelas águas, ou em ruas desertas, onde morriam de fome” (DREXEL; IANNONE, 1989, p. 23).

A situação de abandono de crianças no século XVIII, no Brasil, era cotidiana. Filhos de escravas eram deixados para morrer de fome em terrenos vazios para que suas mães pudessem ser vendidas como amas de leite. Decorre daí a necessidade de uma instituição que abrigasse essas crianças. A Casa dos Expostos, por esse motivo, foi até meados do século XIX a única forma de atendimento à infância, que, aos poucos, se transformou em asilos infantis. As creches são criadas, nesse contexto, na tentativa de minimizar os problemas decorrentes do grande número de mães e crianças em situação de extrema miséria, a maior parte das crianças atendidas em regime de internato nas creches, por exemplo, eram órfãs ou abandonadas, conforme Merisse (1997).

A partir da segunda metade do século XIX, torna-se possível pensar em instituições de educação infantil. Essa primeira forma de organização era destinada às mães operárias que não tinham onde deixar seus filhos e marcou o início das creches e das escolas maternais no Brasil, como indica Merisse (1997). As instituições de educação infantil foram denominadas jardins de infância, influenciadas por Friedrich Froebel (1782-1852), conforme Kuhlmann (2000).

Nas primeiras décadas do século XX no Brasil, com as creches instituídas, dois movimentos foram preponderantes na organização da educação da criança: a puericultura e a eugenia. Kuhlmann (2000) indica que havia preocupação com os cuidados às crianças e às mães, com partos, amamentação, atendimento médico, cuidado físico e demais aspectos do desenvolvimento saudável. O autor afirma que o embate contra o trabalho infantil era presente nas primeiras décadas do século XX, mas que a cultura social e escravocrata do país reproduzia esse tipo de exploração de trabalho.

O tratamento dado às crianças abandonadas no Brasil segue, no decorrer da história de atendimento, cinco períodos: filantrópico, em que as famílias beneméritas assumiam a criação de crianças abandonadas de 1500 a 1874; filantrópico-higienista, em que o papel do médico passa a ter supremacia na decisão predominante sobre o destino das crianças expostas, de 1874 e 1922; assistencial, entre 1924 a 1964, período de surgimento do primeiro código de menores e tutela do Estado sobre as crianças que tinham a oportunidade de trabalhar; institucional pós-64, criação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - Febem e do Código de Menores de 1979, de 1964 a 1990; e, a partir de 1990, de desinstitucionalização na mudança ideológica promovida pela CF, de 1988, e pelo ECA, como indica Silva (1997).

Diferentemente do XIX, no século XX a educação infantil passou a ter espaço e ser reconhecida nas legislações da área. A primeira medida presidencial que assegurava o cuidado tanto com os menores delinquentes, quanto com as crianças que eram abandonadas do Estado-Nação, era a Lei Orçamentária Federal nº 4.242/1921. A referida lei criava o Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada Delinquente e, posteriormente, foi regulamentada pelo Decreto nº 16.272/1923, com a criação do “[...] Juizado Privativo para os Menores Abandonados e Delinquentes [...]” (MÜLLER; MAGER; MORELLI, 2011, p. 78).

Com auxílio policial, o Poder Judiciário tornou-se responsável por guardar a criança e o adolescente até que, em 12 de outubro de 1927, com o Decreto nº 17.943/A, conforme Passetti (1999), foi constituído pela primeira vez o Código dos Menores. Quase de forma irônica, o primeiro Código dos Menores foi aprovado justamente no dia 12 de outubro, dia em que se comemora o dia das crianças, na época, recém-instituído no Decreto nº 4.867/1924 por Arthur da Silva Bernardes.

Quando acionamos o decreto que institui o dia 12 de outubro como a comemoração da criança, percebemos que o sujeito já é reconhecido em 1924. A partir do momento em que há um decreto presidencial como documento nacional que reconhece a criança, só podemos entender qualquer outra forma de não reconhecimento, apresentada nos demais documentos, como nos Códigos de Menores, por exemplo, é uma ação intencional.

Em 1923, foi criada a Inspetoria de Higiene Infantil - IHI com características médico-higienistas, conforme Wanderbroock Jr. (2007), para assegurar o desenvolvimento saudável das crianças. Apenas com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 foi iniciada uma mudança, tanto na nomenclatura das instituições que atendiam à infância como na percepção do que se entendia por educação infantil. O Movimento Constitucionalista de 1932, imbuído do sentimento de reação à crise de 1929, e somado ao Movimento dos Pioneiros da Educação Nova, possibilitou a ampliação das discussões de laicidade e separação do Estado e da Igreja e da ampliação dos direitos à educação.

O que cumpre entendermos naquele período, e que Passetti (2002) destaca é que não se falava no país, necessariamente, em ‘direito da criança’, uma vez que a ideia de direito é consolidada com a promulgação da CF de 1988. Existia o atendimento escolar para as crianças ricas ou pobres de um lado e de outro, o atendimento das crianças abandonadas. Para essas, não se falava sobre direitos e sim sobre a correção de comportamento dos denominados menores infratores.

Desde o Código de Menores de 1927, em que o Estado brasileiro assumia os abandonados e se responsabilizava pelo pátrio poder, até a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, ou o Código de Menores de 1979, Lei Federal nº 6.697/1979, o país se valeu da prática de internações para crianças e adolescentes. Foi somente com a CF de 1988 e, posteriormente, com o ECA, que passamos a falar em direitos a todos e nominar os menores de idade como crianças e adolescentes.

As transformações históricas da década de 1930, ocorridas no Brasil, não se consolidaram somente nas mudanças constitucionais e na garantia de conquistas educacionais, a ideia acerca das instituições que atendiam à infância também passava por alterações. De um lado, em 1934, a Inspetoria de Higiene Infantil foi substituída pela Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância e renomeada novamente para Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância, por outro lado, o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública passou a ter uma nova nomenclatura em 1937, Ministério da Educação e Saúde.

Além do Departamento Nacional da Criança (DNCr), houve a criação do Serviço de Assistência a Menores - SAM em 1941, vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores que atendia a delinquentes e abandonados, menores de 18 anos. Merisse (1997) indica que essa instituição existiu até 1964, quando foi substituída pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem). Uma das características da educação da criança na década de 1940, no Brasil, é a divisão dos custos em atendimentos educacionais com as entidades privadas, além da ênfase nas práticas de puericultura, como uma reedição do higienismo da década de 1920, na tentativa de diminuir a mortalidade infantil.

A tentativa de diminuição da mortalidade infantil, a partir do século XX, foi fonte de inúmeras ações governamentais, Telarolli Júnior (1997) nos mostra que, nos países considerados pobres, as ações vinculadas à saúde pública que visem ao saneamento básico, são essenciais para reduzir o índice de mortalidade entre crianças. Com o fim da II Guerra Mundial, o Brasil passa a acessar novas tecnologias em medicamentos como antibióticos e procedimentos médicos que auxiliam na queda da mortalidade infantil. Processo esse auxiliado pela Legião Brasileira de Assistência - LBA, criada para atender às necessidades básicas de mães e crianças pobres, pelo Decreto-Lei nº 4.830/1942, conforme Müller, Mager, Morelli (2011).

Outra conquista do ano de 1943 foi a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que obrigava as empresas, com mais de 30 mulheres como funcionárias, a oferecerem lugar apropriado para os filhos dessas durante a jornada de trabalho. As mudanças ocorridas na década de 1940, com o fim da II Guerra Mundial, promoveram também o encerramento do Estado Novo com a possibilidade de redemocratização e liberdade política. Na década de 1950, conforme Merisse (1997), esses acontecimentos promoveram aumento dos movimentos sociais, tanto urbanos quantos rurais e, ao aproximar-se da década de 1960, mais intensas ficavam as manifestações e insatisfações com a crise política nacional.

Müller, Mager e Morelli (2011) indicam que, na década de 1950, crescia um consenso nacional sobre a necessidade de se readequar o Código de Menores, como resposta da violência crescente entre os jovens. Isso é justificado com um discurso de marginalização da juventude brasileira e periculosidade de crianças e adolescentes denominadas de carentes. Merisse (1997) afirma que, para essas crianças e adolescentes entendidos como carentes, caberia uma educação compensatória na tentativa de superar uma possível deficiência ou insuficiência, denominada de carência cultural, resultante da condição social dessas crianças e adolescentes. Abramovay e Kramer (1984) indicam que a instituição escolar, naquele período, fundamentada nas teorias da psicanálise e de desenvolvimento infantil, junto dos estudos antropológicos e linguísticos, começava a incorporar a ideia da necessidade de superação da privação cultural:

[...] Esta [privação cultural] veio a fundamentar e fortalecer a crença na pré-escola como instância capaz de suprir as “carências”, “deficiências” culturais, lingüísticas e afetivas das crianças provenientes das classes populares. Vista dessa forma, a pré-escola, com função preparatória, resolverá o problema do fracasso escolar que afetava principalmente as crianças negras e filhas de migrantes [...] (ABRAMOVAY; KRAMER, 1984, p. 29).

A ideia de privação cultural é utilizada principalmente ao indicarmos as classes sociais menos favorecidas dos países subdesenvolvidos, nos quais existe um preconceito em relação às crianças pobres, um mascaramento da existência da divisão das classes sociais e uma crença de que a escola seria capaz de possibilitar a superação das carências culturais, como apresentado por Abramovay e Kramer (1984). Por meio de um processo de “adestramento”, as crianças seriam capazes de adquirir habilidades e superar suas carências infantis, por isso as instituições educativas que atendiam a crianças nas décadas de 1960 e 1970 eram consideradas compensatórias.

Além da anunciada crise política, a década de 1960 foi marcada por uma forte concentração de renda. Os que se beneficiaram desse período, conforme Telarolli Júnior (1997), puderam considerar o momento histórico como o “Milagre Brasileiro”, mas, para a maioria da população do país, representou um empobrecimento da classe trabalhadora. No período, a população pobre se tornou 20% mais pobre e, entre as crianças, as mais vulneráveis dessa relação, com alto índice de mortalidade infantil.

Como já indicado anteriormente, a forma de controle encontrada pelo Estado brasileiro, antes da promulgação do ECA, na década de 1990, era o país deter o poder pátrio sobre aquelas crianças e adolescentes destituídos do poder familiar e, na tentativa de contornar a situação de violência crescente na década de 1960, o SAM foi substituído pela FUNABEM, pela aprovação da Lei n 4.513/1964, mas, como apresentam Müller, Mager e Morelli (2011), mantiveram-se os mesmos problemas em relação à qualidade de atendimento que o SAM detivera. Não podemos nos esquecer de que, no período em que falamos - a partir da década de 1960 -, a necessidade de controle social aumentava, na mesma medida em que avançava o Estado ditatorial.

Em 1967, em virtude do escasso número de instituições que atendiam à educação infantil e à educação primária, foi consolidado um programa de criação de escolas pelo DNCr, e isso foi possível a partir das mobilizações sociais no período, como indica Kuhlmann (2000). Entretanto, os recursos para a ampliação da educação no período eram parcos e, para se garantir um mínimo de atendimento educacional, surgiam “programas emergenciais” para remediar o déficit de investimento com a confecção artesanal de brinquedos a partir de sucatas. Kuhlmann (2000) ressalta que, por mais que existissem esses programas de assistência, era a sociedade civil, articulada com as igrejas, as principais responsáveis pela educação. O período de ditadura militar agravou ainda mais os investimentos em educação, provenientes do Governo Federal. E problemas como a má formação profissional, a desvalorização da ação docente e o sucateamento do ensino ficaram evidentes.

Outro elemento que se evidencia na educação infantil, entre as décadas de 1970 e 1980, é uma educação para as crianças cujo norte era a compensação da carência cultural. No Brasil, essa ideia se vinculou à Doutrina de Segurança Nacional (DSN) que entendia necessário conceder uma educação compensatória com a finalidade de atender às crianças que não aprendiam na escola e, ao mesmo tempo, combater o avanço do comunismo. Vinculava-se à DSN, pois o governo brasileiro entendia que era preciso combater a pobreza, um dos elementos que davam brecha para o avanço do comunismo, conforme Rosemberg (1999, 2002).

A luta social por instituições de educação infantil começa a ser ampliada no fim da década de 1970 com o apoio do movimento feminista e com o Movimento de Luta por Creches, como indicado por Merisse (1997). Em São Paulo, isso representou a criação do Projeto Centros Infantis que, além de práticas psicopedagógicas e socioeducativas, promovia ações de higiene, saúde e nutrição. Na década de 1980, principalmente próximo ao período da luta empreendida pela sociedade brasileira, essa conquistou inúmeros direitos assegurados no texto constitucional mais cidadão de todos. Um dos mais significativos para a infância brasileira, conforme Müller, Mager e Morelli (2011), foi o Movimento de Meninos e Meninas de Ruas, de 1985, sediado em Brasília e que contava com o apoio de profissionais da educação e demais sujeitos da sociedade brasileira, incluindo as crianças de rua.

Considerações finais

Chegamos ao final do debate com a evidência de uma luta social dos educadores e defensores da infância, durante oito décadas do século XX, na tentativa de reconhecimento do sujeito criança nos documentos oficiais. Mesmo assim o Estado nacional, em documentos oficiais, chamava esses sujeitos de ‘menores’ até a aprovação do Texto Constitucional de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.

Destacamos que, no contexto de luta da década de 1980, muitos direitos foram conquistados pela infância brasileira, como a inclusão de dispositivos no texto constitucional, que proporcionaram as garantias de direitos consolidadas no período. Porém, o que podemos entender, a partir desse breve histórico da criança do século XXI e da consolidação da infância no século XX, é que, quando houve garantia de direitos, ela só ocorreu mediante a luta social. Por mais que o Estado a considerasse como criança em 1924, ela era o “menor” - muitas vezes, delinquente - durante a maior parte do século. Os autores aqui mencionados evidenciaram a oscilação entre as políticas de cuidar e educar. Chegamos a um ponto em que compreendemos que, se existe algum direito assegurado na atualidade, é em virtude de muitas lutas que não se encerraram no período, existem até hoje.

Com os dados apresentados até o momento, podemos entender que a luta a qual o ser humano deve ultrapassar se inicia muito cedo em sua vida. Primeiramente, a criança deve superar as estatísticas de óbito fetal e infantil para garantir sua sobrevivência. Com vida, a batalha seguinte é a de assegurar que o Estado brasileiro reconheça a sua existência, por meio da documentação oficial: a certidão de nascimento. Sem o referido documento, tal criança não existe para o Estado e, com isso, não é possível garantir nenhuma forma de direitos a ela. Somente após essas etapas superadas, podemos falar do acesso das crianças na garantia dos direitos educacionais.

Entretanto, não são atendidas as crianças que não têm certidão de nascimento que, para o Estado, sequer existem. Não são consideradas as que vivem nas ruas, afinal, não se sabe os seus atuais endereços. Não são olhadas as crianças que morrem no decorrer do seu primeiro ano de vida, pois são pequenas demais para se gerar uma expectativa de vida a elas. Não são contadas, para as políticas de educação, as crianças natimortas ou aquelas denominadas de resíduos de serviços de saúde. Para todas essas crianças não há política de educação, pois a elas esse direito foi negado. Direta ou indiretamente, essas são crianças invisíveis. Somam-se a elas as que vivem nas fronteiras, as que trabalham, as que vivem em acampamentos, em quilombos, aldeias indígenas, no semiárido brasileiro. Para essas não há garantia de direitos.

Existem aquelas crianças que não conseguem o acesso ao direito à educação pela falta de instituições, de profissionais e de vagas, para essas são destinadas as ações focalizadas de compensação de direitos. Essas margeiam a extrema pobreza e a pobreza, elas são vulneráveis e, com isso, consideradas na contabilização do avanço das políticas sociais no país. O que se evidencia é que, independentemente, se a criança é a do século XXI ou vivia na transição do XIX para o XX, sempre haverá uma marca de classe predominante que as divide e as assegura ou não os direitos constitucionais.

1Este artigo trata-se da adaptação da segunda seção da Tese de doutoramento apresentada em 2016 para obtenção do título de Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PPE, na linha de História e Historiografia da Educação, da Universidade Estadual de Maringá - UEM.

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Recebido: 13 de Novembro de 2020; Aceito: 27 de Maio de 2021

Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editor Científico: Prof. Dr. Mauricio Pedro da Silva

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