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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.62 São Paulo jul./set 2022  Epub 12-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n62.23198 

Dossiê: Políticas para o Ensino Médio em tempos de hegemonia conservadora

A PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS E O “NOVO” ENSINO MÉDIO: CURRÍCULO UTILITARISTA E A CENTRALIDADE DA AVALIAÇÃO

THE PEDAGOGY OF SKILLS AND THE “NEW” SECONDARY SCHOOL: UTILITARY CURRICULUM AND THE CENTRALITY OF EVALUATION

LA PEDAGOGÍA DE LAS COMPETENCIAS Y LA “NUEVA” ESCUELA SECUNDARIA: EL CURRÍCULO UTILITARIO Y LA CENTRALIDAD DE LA EVALUACIÓN

Debora Cristine Trindade, Doutoranda em Educação, Graduada em Pedagogia, mestre, Professora pedagoga1 
http://orcid.org/0000-0002-1790-962X

Julia Malanchen, Doutora em Educação Escolar, Pós-doutorado em Educação e Currículo, mestre em Educação, Professora Associada2 
http://orcid.org/0000-0003-0921-0699

1Doutoranda em Educação pela UNIOESTE, campus de Cascavel. Graduada em Pedagogia (2005) e mestre (2020) em Ensino pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus Foz do Iguaçu. Professora pedagoga da rede estadual de ensino no Estado do Paraná

2Doutora em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara. Pós-doutorado em Educação e Currículo no Institute of Education University College London em Londres no Reino Unido. Unioeste/Cascavel, mestre em Educação pela UFSC. Professora Associada no Centro de Educação, Letras e Saúde e no Programa de Pós-Graduação em Ensino na Unioeste/Campus de Foz do Iguaçu


Resumo

O texto apresenta argumentos, indicando que o “novo” Ensino Médio no Brasil e a reorganização curricular via Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem suas vertentes na pedagogia das competências, já utilizadas no final da década de 1990. Para além disso, expõe o viés utilitarista da formação imposta aos anos finais da educação básica, priorizando as demandas do mercado produtivo e a centralidade da avaliação. Logo, o texto foi estruturado em dois momentos. No primeiro momento, explicita as principais políticas dos anos de 1990 para o Ensino Médio e a semelhança com a reforma que está em fase de implantação a partir da Lei n 13.415 (BRASIL, 2018), endossando a premissa de um currículo utilitarista com a centralidade da avaliação. No segundo, apresenta as análises do Banco Mundial sobre a necessidade de mudanças imperativas nas políticas educacionais com o objetivo de melhorar os resultados dos estudantes do país, considerados muito fracos em relação aos de países equivalentes. Por fim, em forma de conclusão do artigo, mas como luta permanente, expõe-se a contrariedade com a reforma do Ensino Médio e a formação esvaziada via BNCC, como reivindicação da Pedagogia Histórico-Crítica, enquanto prática revolucionária que prioriza a apropriação dos conhecimentos científicos e a superação da sociedade capitalista.

Palavras-chave: BNCC; currículo; ensino médio; pedagogia das competências; pedagogia histórico-crítica.

Abstract

The paper presents arguments, indicating that the “new” secondary education in Brazil and the curricular reorganization via BNCC has its aspects in the theory of competences used in the late 1990s. In addition, it exposes its utilitarian side, prioritizing the demands of the market productive, and the centrality of the evaluation. Therefore, the paper was structured in two moments. At first, the text explains the main policies of the 1990s for secondary education and the similarity with the reform that is being implemented from Law n. 13.415 (BRASIL, 2018). In the second moment, the paper explains the World Bank's analyzes on the need for imperative changes in educational policies with the objective of improving the results of the country's students, considered very weak, leading to a whole apparatus of actions to prioritize large-scale evaluations, reorganizing curriculum and teacher work. Finally, by way of conclusion, the opposition to the reform of Secondary school and the BNCC is exposed as a joint struggle with Historical-Critical Pedagogy for the appropriation of scientific knowledge and the overcoming of capitalist society.

Keywords: BNCC; curriculum; new secondary school; theory of competences; historical-critical pedagogy.

Resumen

El texto presenta argumentos que indican que la “nueva” Escuela Secundaria en Brasil y la reorganización curricular a través de la Base Curricular Común Nacional (BNCC) tiene sus aspectos en la pedagogía de competencias ya utilizada a fines de la década de 1990. Además, expone el lado utilitario de la formación impuesta en los últimos años de la educación básica, priorizando las exigencias del mercado productivo y la centralidad de la evaluación. Por lo tanto, el texto se estructuró en dos momentos. En un primer momento, explica las principales políticas de la década de 1990 para la Enseñanza Media y la similitud con la reforma que se está implementando a partir de la Ley n. 13.415 (BRASIL, 2018). En el segundo momento, presenta los análisis del Banco Mundial sobre la necesidad de cambios imperativos en las políticas educativas con el objetivo de mejorar los resultados de los estudiantes del país, considerados muy débiles en relación a países equivalentes. Finalmente, como conclusión del artículo, pero como lucha permanente, se expone la oposición a la reforma de la Enseñanza Media y la formación vaciada vía BNCC, como reivindicación de la Pedagogía Histórico-Crítica como práctica revolucionaria que prioriza la apropiación de los conocimientos científicos, y la superación de la sociedad capitalista.

Palabras clave: BNCC; Currículo; escuela secundaria; pedagogía de las competencias; pedagogía histórico-crítica.

Da década de 1990 ao “novo” Ensino Médio: velhos problemas, velhos discursos

Para entender as reformas educacionais realizadas na década de 1990 se faz necessário visitar as suas raízes, implícitas na “Declaração Mundial sobre Educação para Todos”, que foi proclamada na reunião realizada de 5 a 9 de março de 1990 em Jomtien, na Tailândia e serviu de base para a elaboração dos Planos Decenais para Educação no Brasil.

Segundo Silva (2003, p. 165),

Essa Conferência, convocada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial, contou com a presença de 155 países e traçou os rumos que deveria tomar a educação nos países classificados como E-9 - os nove países com os piores indicadores educacionais do mundo, dentre os quais, ao lado do Brasil, figuravam Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão.

Naquele momento, o Brasil tinha como presidente Itamar Franco que, em atendimento à Conferência de Jomtien, criou o Plano Decenal de Educação para Todos, com o objetivo de promover “... as competências fundamentais requeridas para plena participação na vida econômica, social, política e cultural do País, especialmente as necessidades do mundo do trabalho”. (BRASIL, Plano Decenal, 1993).

Desse modo, a Lei de Diretrizes e Bases- LDB n.° 9.694/1996 (BRASIL, 1996) ratificou o texto constitucional existente, integrando o Ensino Médio à educação básica, estabelecendo no inciso II do Art. 208, a garantia e dever do Estado com “...a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio” (BRASIL, 1996, s/p). Este foi um marco importante para a educação dos jovens no país, considerando que de 3.500.000 matrículas, em 1991, houve um aumento para 9 milhões de pessoas em 2004 (SILVA, 2018, p. 7).

Logo, em 1998, foram publicadas as “Diretrizes Curriculares Nacionais (Parecer CNE/CEB n.º 15, de 1998, e Resolução CNE/CEB n.º 03, de 1998) trazendo como proposta de organização o currículo centrado na formação de competências e habilidades” (SILVA, 2015, p. 372), antecedendo, portanto, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, 1999). Dentre as principais justificativas, em ambos os documentos, estava a necessidade de adequar a formação dos indivíduos às mudanças ocorridas no mundo do trabalho, dadas especialmente pelas transformações tecnológicas, bem como “... superar o quadro de extrema desvantagem em relação aos índices de escolarização e de nível de conhecimento que apresentam os países desenvolvidos” (PCNEM, 1999). Nesse sentido, buscou-se regular os conteúdos e os níveis de ensino, com o que seria o início do trabalho com as atividades de avaliação em larga escala, colocadas como reguladoras de todo o processo educativo.

No entanto, apesar do tensionamento para melhoria dos índices, os PCNEM (BRASIL, 1999) apresentavam um discurso contraditório de formação universal, que deveria oportunizar aos jovens as práticas educativas alinhadas às suas necessidades sociais, políticas e econômicas, de forma conivente com os seus interesses individuais de aprendizagem, garantindo “... a construção de competências básicas, que situem o educando como sujeito produtor de conhecimento e participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como “sujeito em situação” - cidadão” (BRASIL, 1999, p. 10).

Contudo, o principal objetivo era atender a demanda político-econômica que necessitava de um novo perfil de trabalhador. E não estamos falando, aqui, de um sujeito com qualificação integral, mas de pessoas que tivessem facilidade em se adaptarem às mais diversas condições de trabalho. A organização por competências tem um valor “... relacionado à empregabilidade dos trabalhadores pelo fato de referirem à competência de base ampla, normatizadas em sistemas que facilitem sua transferibilidade entre diferentes contextos educacionais” (RAMOS, 2006, p. 87).

Observamos que essa organização curricular estava longe de pensar a formação humana na sua integralidade. Temos, portanto, um nebuloso discurso da formação da autonomia e das capacidades humanas, que escondem a sua verdadeira essência: a hegemonia e ampliação do capital. As “... finalidades do ensino médio são vinculadas à adequação (e subordinação) da escola às mudanças nas formas de organização do trabalho produtivo e justificadas com base na “globalização econômica e na revolução tecnológica” (SILVA, 2015, p. 372), sendo contrários, portanto, às categorias do trabalho como princípio educativo enquanto formação omnilateral do homem. (ZANK, 2020, p. 78).

Na tentativa de não apresentar cortes na história, no entanto, sem alongar o debate, destacamos que a educação passou por mudanças expressivas conjuntas às alterações no cenário político nacional, a partir do ano de 2003, com o início do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que permaneceu até meados de 2016. As apostas, já no início do primeiro mandado, “... eram de mudanças substantivas nos rumos do país com a perspectiva de um governo democrático e popular” (FRIGOTTO, 2012, p. 22). Nesse contexto, os interesses progressistas começaram a ser levantados no Decreto n.º 5.154/2004, que trata da retomada da educação profissionalizante, e a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em 2012. Os dois documentos apresentaram como prioridade o Ensino Médio Integrado, direcionando o currículo baseado nos princípios do trabalho, da ciência, da cultura e da tecnologia.

Ramos (2008, p. 15) considerou o Decreto n.º 5.154/2004, que reestabeleceu a Educação Profissional vinculada ao Ensino Médio, como um marco na história da educação do país, considerando “... um horizonte do ensino médio seja na consolidação da formação básica unitária e politécnica, centrada no trabalho, na ciência e na cultura”, se fundamentando numa relação mediata com a formação profissional e os princípios de uma educação integral. Segundo a autora, este foi o primeiro grande passo enquanto política contra-hegemônica para a educação.

No entanto, a educação com a base na transformação social só pode estar alicerçada no trabalho como princípio educativo e isso não pode ocorrer apenas na letra da lei; precisa estar em conjunto com a expressão da prática social, ou seja, por si só não bastariam mudanças na educação sem as mudanças estruturais que seriam base para pensar em mudanças realmente efetivas para uma educação transformadora, com o objetivo da superação do capitalismo (FRIGOTTO, 2012).

Assim, a história vai ganhando curso e outro documento importante para a organização do “novo” Ensino Médio tem bastante destaque: o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014), que deveria entrar em vigor no ano de 2011, substituindo o então vigente até 2010. Considerando o atraso para sua aprovação, que demorou mais de três anos, sendo promulgado sob a Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, este documento estabeleceu vinte metas para a educação, a serem cumpridas durante o período entre 2014-2024. Dentre as justificativas pelo atraso estava o fracasso do plano anterior, pois não conseguira resolver os problemas educacionais aos quais se propôs, o que resultou na repetição de várias metas, além das dificuldades em relação aos valores e destinação do financiamento para a educação (VALENTE, 2012, p. 9).

Em relação ao Ensino Médio, especificamente, a meta três, que dispõe sobre a universalização; e a meta onze, que se refere à formação profissional, conforme o Caderno “Planejando a próxima década - Conhecendo as vinte metas do Plano Nacional de Educação”, publicado pelo MEC em 2014:

Meta três: universalizar, até 2016, o atendimento para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento). (MEC, 2014, p. 24).

Meta onze: triplicar as matrículas da educação profissional técnica (EPT) de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansão no segmento público. (MEC, 2014, p. 39).

Entendemos assim que, apesar de a LDB ter estabelecido o Ensino Médio como parte da educação básica, obrigatória para todos os estudantes, não conseguiu a universalização da escola para essa faixa etária, justificando, portanto, a meta três. Segundo pesquisa do IBGE, em 2013, aproximadamente 80% (oitenta por cento) dos jovens com idade entre quinze e dezessete anos efetivaram matrículas em instituições escolares, sendo que apenas 55% (cinquenta e cinco por cento) dos jovens que frequentavam o Ensino Médio tinham idade entre quinze e dezessete anos, ou seja, muitos ainda estavam frequentando o Ensino Fundamental. A meta onze, por sua vez, está em consonância ao disposto na LDB (Lei n.º 9.394/1996, favorável às diferentes formas de educação profissional, reiterando o “... objetivo do PNE de colocar em curso políticas e ações que ampliem não só a escolaridade, mas também a formação profissional dos estudantes brasileiros” (BRASIL, 2014, p. 187).

O golpe parlamentar sofrido pela presidenta Dilma Roussef (PT) e a entrada de Michel Temer (PMDB) na Presidência da República, no ano de 2016, deu início a uma espécie de frenesi de reformas e decretos em curto espaço de tempo, dos quais a “... educação e a escola pública foram submetidas a um conjunto de ataques e mudanças que as atingiram de maneira direta e indireta, comprometendo decisivamente o ensino, a pesquisa e a socialização dos conhecimentos”. (ORSO, 2020, p. 25). Assim, fora publicada a Medida Provisória n.° 746 (BRASIL, 2016) sobre a reforma do Ensino Médio. A urgência desse documento foi muito questionada pela comunidade escolar (professores, estudantes). No entanto, passou a vigorar na forma da Lei n° 13.415 (BRASIL, 2017), no ano seguinte, apresentando como justificativa diminuir o número excessivo de disciplinas, adequar a formação necessária ao mundo de trabalho emergente e a dispor de opções formativas em áreas do conhecimento ou formação profissional. Havia, inclusive, o indicativo em articular os quatro pilares da educação desenhados por Jacques Delors: aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a conviver e aprender a fazer.

Silva (2018, p. 2) expõe que o discurso utilizado para a reformulação do Ensino Médio nada mais é do que a retomada das políticas educacionais da década de 1990 e das “... normativas curriculares daquele período”, ou seja, responde às características de velhos discursos e propósitos formativos. Uma prova disso está na própria BNCC, terceira versão aprovada em 2018, na qual “... encontramos o vocabulário relacionado às competências completamente assumido. São definidas dez competências globais (...) a partir das quais são elaboradas as competências específicas de cada área” (BITTENCOURT, 2018, p. 565).

Nossa maior preocupação, para além da padronização, especialmente pela centralidade do currículo nas avaliações externas, está na “... fragilização do direito à educação básica e compõem o cenário de retrocessos a que estamos assistindo no país” (SILVA, 2017, p. 45).

Para enuviar o verdadeiro objetivo de uma formação pragmática e utilitarista, faz-se críticas ao atual modelo de ensino médio referentes a ter uma única trajetória formativa e a sobrecarga de treze disciplinas. No entanto, observa-se que essas críticas estão alicerçadas no esvaziamento das disciplinas e no currículo justificado pelo desinteresse do aluno e no discurso da escola como ultrapassada. Segundo Frigotto (2016), a verdade que está sendo escondida tem relação com os problemas que a escola pública vem enfrentando ao longo dos anos: o sucateamento das escolas e o desmonte do funcionalismo público. Ora, parece ser mais fácil implementar mudanças nos âmbitos do currículo, construindo sujeitos com prioridades nas necessidades do mercado e com o discurso de responsabilização dos indivíduos singulares dos problemas ao invés de analisar os entraves relacionados à formação institucional. Dentre eles, podem-se citar a precariedade dos materiais didáticos, a degradação dos espaços escolares, a falta de valorização do trabalho educativo e do professor, a ausência de segurança social, a formação continuada utilitarista etc.. Para além disso, as condições materiais de vida dos jovens em uma sociedade classista não permite igualdade de direitos de acesso ou permanência na escola de forma universal, considerando a diversidade de situações por quais passam os estudantes, especialmente os que frequentam a escola pública, variando desde a necessidade do emprego para auxiliar no sustento da família, gravidez na adolescência, problemas com a logística, doenças etc.

A própria argumentação contida no Guia de Implementação do Ensino Médio diz que a juventude precisa ser dona do seu futuro e de suas escolhas, ofertando oportunidade de optar pela sua formação, observando sua área de interesse, resultando, assim, no seu “... desenvolvimento integral, por meio do incentivo ao protagonismo, à autonomia e à responsabilidade do estudante por suas escolhas no futuro”. (BRASIL, 2018, p. 6).

Ao fazer algumas considerações sobre o “novo” Ensino Médio e a BNCC, consideramos falsa a afirmação de protagonismo ou escolha de estudantes por dois motivos principais: está disposto em lei que os itinerários serão escolhidos conforme disponibilidade pelos sistemas estaduais de ensino e, portanto, não há garantia de opções, sendo que “... em nenhum momento a obrigatoriedade de existência de mais de uma possibilidade nas escolas é estabelecida pela Lei”. (ANDES, 2017, p. 19); outra questão importante é a aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional PEC n.° 241 ou 95 (dependendo da casa legislativa), que congelou os investimentos públicos por 20 (vinte) anos, inclusive, para o sistema educacional, o que impossibilita universalização da educação ou a implantação de qualquer tipo de mudanças ou reformas nas escolas.

Entende-se, portanto, que o currículo baseado na Pedagogia das Competências, seja ele embasado nos PCNEMs (1990), ou na BNCC (2018), apresenta um discurso padronizador, sendo que a negação da objetividade e da racionalidade são considerados principais, conforme salienta Malanchen (2016):

A realidade é construída de fragmentos, e as relações do ser humano com o mundo são fortuitas. Em termos sociopolíticos, isso resulta na impossibilidade de elaboração de projetos e estratégias de ação coletiva no enfrentamento da lógica do capital. (2016, p. 82).

Pensando assim, formar a juventude a partir de um currículo utilitarista e emaranhando no discurso do desenvolvimento de competência e habilidades específicas tem objetivo não apenas de atender o mercado produtivo enquanto mão de obra, mas também incutir um determinado discurso nos indivíduos dessa sociedade. Trata-se, portanto, de uma estratégia para a reprodução e manutenção da sociedade capitalista e a ausência de perspectivas de superação, gerando conformidade.

Essa ideia de apaziguamento da sociedade civil, que passa a ter sujeitos com papéis provisórios e, não, sujeitos que fazem parte da história, com anulação da possibilidade de transgressão e o aceite livre da lógica do capital, é central e muito assustador. Tal pedagogia, é considerada por Duarte como relativista, com o aspecto da “... ausência da perspectiva de superação da sociedade capitalista e, por conseguinte, uma concepção idealista das relações entre educação e sociedade” (2008, p. 1). Em linhas gerais, mesmo com críticas a alguns aspectos do capitalismo, acabam sendo neutralizadas por acreditarem ser possível a resolução de problemas educacionais sem o aporte da superação radical do modelo de organização social. Conforme acrescenta Orso:

Esse idealismo provoca uma série de consequências. A partir dele ocorre a absolutização e onipotência das ideias, a crença do poder ilimitado da razão do homem; aparência e essência se confundem; dispensa-se a ciência enquanto instrumento de conhecimento, de ação e de transformação (2003, p. 30).

Assim, para além dos mesmos problemas em relação a formação em nível médio, como falta de estrutura, salas superlotadas, evasão etc., os problemas advindos da organização econômica e social do capitalismo, como falta de emprego, sociedade de classes, etc., ainda perpassamos pelo retorno do discurso e do currículo baseado em competências e habilidades presente na década de 1990. Este currículo tem organização extremamente utilitarista, preenchendo as lacunas e necessidades do mercado de trabalho, mesmo que com o discurso do protagonismo, bem como a demanda pragmatista, com a organização de conteúdos e a reconfiguração da formação e do trabalho docente com o objetivo de melhorar os índices nas avaliações em larga escala, mascarando, portanto, os problemas da escola pública, esvaziando as disciplinas dos conteúdos científicos próprios para entendimento de mundo e, principalmente, esvaziando o direito ao desenvolvimento da crítica e propondo a reprodução social.

Na sequência, apresentaremos elementos para justificar os motivos de estarmos afirmando que a formação via BNCC e a reforma do Ensino Médio, para além de um currículo utilitarista, está articulado a exigência em melhorar os índices nas avaliações em larga escala.

“Gastos” com educação e a corrida para elevar os índices nas avaliações em larga escala

Não por acaso, o governo federal requereu junto ao Banco Mundial, em meados do ano de 2016, uma “... análise aprofundada dos gastos do governo para identificar alternativas para reduzir o déficit fiscal a um nível sustentável” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 1). Dentre as principais conclusões do documento está a crescente despesa com educação pública e o número decrescente de matrículas, além de afirmar que o sistema público é caracterizado pela “... baixa qualidade dos professores e pelos altos índices de reprovação” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 121). Segundo ele, esses fatores só podem resultar na ineficiência significativa dos gastos públicos.

Sem perder muito tempo, em 2018, o Banco Mundial apresentou um documento com propostas às políticas de educação para superar a crise de aprendizagem no país (BANCO MUNDIAL, 2018). Dentre as considerações apresentadas, afirmou que os resultados do Brasil eram muito fracos, se comparados com os números internacionais1, sendo necessário intervir rapidamente para a mudança nesse quadro. Nesses termos, assinalaram que os níveis de aprendizagem relativo aos gastos com educação estão muito abaixo do esperado, apesar de os gastos públicos com educação “... cresceram rapidamente nos últimos anos, acima do nível observado em países comparáveis” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 3).

Considerando os problemas que envolvem a alfabetização, a formação inicial e a seleção de professores, o próprio currículo do ensino médio desconectado das prioridades do mercado de trabalho, o documento discorre sobre algumas propostas para superar a “crise de aprendizagem”, dentre elas: (i) estabelecimento da Base Nacional Comum Curricular BNCC-; (ii) a reforma do Ensino Médio com prioridade no desenvolvimento das habilidades socioemocionais; (iii) tornar as escolas responsáveis pelos resultados de aprendizagem; (iv) priorizar a prática pedagógica nos programas de formação de professores inclusive com formação continuada baseada nas habilidades de ensino; (v) responsabilização do professor, introduzindo avaliações padronizadas e recompensas por bom desempenho. Todas essas medidas precisam estar atreladas ao uso eficiente e equitativo dos gastos públicos, as quais discutem diminuir a contratação de professores, aumentar o número de alunos atendidos por professor sendo “... uma condição necessária para obter melhores resultados educacionais” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 18).

Em relação ao Ensino Médio, expõe ainda o baixo índice de conclusão, considerando que os estudantes terminam essa etapa em média aos 19 (dezenove) anos, acima, portanto, da média dos países em comparação estrutural ou regional. Em linhas gerais, “... os altos índices de reprovação e evasão escolar observados no Brasil resultam em um percentual surpreendentemente alto de alunos que não concluem o Ensino Médio antes dos 25 anos de idade” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 126). Esses números indicam o motivo do custo tão elevado por formando no país, o que prossegue até o ensino superior.

No entanto, para o BM, a “... baixa qualidade dos professores é o principal fator restringindo a qualidade da educação” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 127), sinalizando assim, o desprestigio da profissão docente, os baixos requisitos para ingresso nos cursos de licenciatura, a má qualidade na formação e a necessidade de vincular os salários ao desempenho. Dentre as sugestões está a diminuição do número de professores por aluno com indicativos maiores nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país, sendo sugerido a não reposição dos professores que estão se aposentando, por um longo período. Outro problema encontrado em relação ao professor refere-se às faltas constantes, indicando que a “... desvinculação entre desempenho, estabilidade e remuneração, e mecanismos frágeis de monitoramento e controle fazem com que professores tenham pouco incentivos a manter frequência adequada” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 130). As propostas para resolver esse “problema” vão desde a introdução de bônus por frequência até a ameaças de demissão em caso de número excessivo de ausências.

É interessante analisar que os documentos do BM colocam em evidência o trabalho do servidor público, seja ele do setor educacional, da segurança ou da saúde, dentre outros, como se fossem os responsáveis pelos problemas do Estado. Desconsidera-se, portanto, a falta de funcionários, comedida pela quase inexistência de concursos públicos, a precariedade do trabalho e de investimento no setor tecnológico, bem como as condições estruturais dos prédios, como escolas, postos de saúde e demais órgãos públicos. Chama a atenção quando o próprio BM apresenta o problema da “... alta incidência de corrupção” (BANCO MUNDIAL, 2018b, p. 7) nos órgãos públicos. Estes, na nossa leitura, têm verdadeiramente aumentado os gastos do setor. No entanto, a sugestão que se apresenta é de que a “contratação de empresas privadas para o fornecimento de serviços de educação poderia melhorar o desempenho e a eficiência dos gastos públicos com educação” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 137). Isso, sem dúvidas, pode estar impulsionando a privatização e a terceirização bem como a desresponsabilização do Estado que, provavelmente, deve recorrer à organização de novas leis federais, estaduais e municipais, permitindo e normalizando as - Parceria Público-Privado (PPPs) na educação básica de forma abrangente.

Logo, outra questão que se destaca como recomendação do Banco Mundial é a Reforma de Estado, sinalizando que, apesar do crescimento do Estado, este mantém serviços públicos com baixa qualidade. Segundo os documentos não há resposta qualitativa em relação ao gasto público, sendo mais que necessária a “... participação privada para melhorar a prestação de serviços, desde que a regulamentação seja aprimorada” (BANCO MUNDIAL, 2018b, p. 2). Sugere-se, para além da redução da rigidez orçamentária e a melhoria da gestão sobre o investimento público, a avaliação constante e premiação por desempenho do funcionalismo público.

No que se refere a educação, Tarlau e Moeller (2020, p. 554) trazem o debate de consenso por filantropia referindo-se ao uso por fundações privadas de recursos materiais, produção de conhecimento, mídia e redes sociais para obter “consenso entre múltiplos atores sociais e institucionais em apoio a uma determinada política pública”. É o exemplo da Fundação Lemann, que teve papel determinante na organização, divulgação e aprovação da BNCC, participando diretamente de todas as etapas e discussões e se tornando parte do próprio Estado. Abre-se, portanto, caminho para “expandir a lógica de mercado e aumentar os lucros corporativos” (TARLAU & MOELLER, 2020, p. 556). Dentre os objetivos implícitos na reforma educacional com centralidade no currículo, é possível afirmar o seu uso para melhorar os resultados nos testes padronizados, bem como modificar o trabalho do professor, conforme Tarlau e Moeller (2020):

A promoção de padrões nacionais curriculares e de aprendizagem, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil, pode ser usada para aumentar os testes padronizados, as avaliações de professores e o pagamento por mérito, além de introduzir aulas roteirizadas - e tudo isso é parte integral de um modelo educacional voltado para o mercado (2020, p. 558).

Além disso, os altos custos que têm as reprovações são apresentados como “... falta de apoio dirigido aos alunos com desempenho mais fraco - geralmente de famílias desfavorecidas” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 126). Nosso questionamento está em compreender se entendem que apenas aulas de reforço e/ou a utilização de recursos diferenciados no ambiente escolar são necessárias para melhorar o desempenho, considerando que se está falando em reprovação e aprendizagem. Inclinamo-nos a dizer que, sim. Desconsidera-se, portanto, toda a condição material de vida dos estudantes, muitas delas precárias, com escolas longe de casa, além da “... necessidade de contribuir para a renda familiar” (FERRETI, 2018, p. 27), especialmente quando se fala em alunos do ensino médio.

Com o uso estratégico de recursos econômicos e o amplo apoio para essa iniciativa política, a Fundação Lemann, endossou a justificativa para a reformulação curricular do ensino médio, com base nos baixos índices alcançados pelos alunos nas avaliações externas de Língua Portuguesa e Matemática. Conforme verificamos na avaliação do BM (2017) sobre o nível de gasto por aluno e os resultados do PISA:

O Brasil obteve melhoras significativas na prova de matemática do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). A nota média brasileira passou de 68% para 79% da média da OCDE entre 2002 e 2012. Contudo, desde então, os resultados caíram para 77% em 2015 (o mesmo nível de 2009). Quando se controla pelo nível de gasto por aluno, os resultados do PISA ainda são decepcionantes. O desempenho brasileiro medido pela prova de matemática do PISA em 2012 foi somente 83% do esperado para países com o mesmo nível de gasto por aluno (Figura 87). Países como a Colômbia e a Indonésia, por exemplo, atingiram pontuações semelhantes no PISA gastando bem menos por aluno. Já países como Chile, México e Turquia gastam valores similares ao Brazil e obtêm melhores resultados. (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 124).

Esses resultados, considerados insuficientes, validaram as discussões sobre a baixa qualidade dos professores e a necessidade da organização de um currículo comum para garantir a aprendizagem igualitária. Em linhas gerais, o “... discurso da educação como direito social e dos baixos índices nas avaliações nacionais e internacionais acabam norteando as justificativas que a educação de qualidade depende na reforma curricular” (BARREIROS, 2017, p. 5).

Considerando a grande relevância dada a esses resultados e o desempenho dos estudantes em nível nacional e internacional, Saviani (2016) adverte que os caminhos adotados pela BNCC (BRASIL, 2018) “... tudo indica que a função dessa nova norma é ajustar o funcionamento da educação brasileira aos parâmetros das avaliações gerais padronizadas” (SAVIANI, 2016, p.75), ou seja, a elaboração de um novo currículo tem a função principal de organizar os conteúdos e o trabalho docente, objetivando atender à necessidade de melhores resultados nas provas padronizadas de avaliação externa.

Freitas (2012), em uma citação de Jones & Hargrove (2003), indica que as avaliações podem gerar tradições, alterando o trabalho dos professores, administradores e estudantes. Nesse sentido, é possível que os professores dediquem sua atenção aos conteúdos valorizados nos exames, mais propriamente os relacionados à leitura e à matemática, e deixem outros fora de alcance dos estudantes. (FREITAS, 2012. p. 389). Mais do que isso, com a centralidade da avaliação e a pressão sobre os resultados, o professor estará propício a alcançar e cumprir as metas sociais pré-estabelecidas, garantindo boas práticas e promovendo o sucesso do aluno. Não longe disso, “... há a esperança de que a avaliação demonstre a qualidade do trabalho desenvolvido pelo professor, livrando-o da vergonha e redimindo-o da culpa...” histórica pelos maus resultados dos estudantes nesse tipo de teste (MACEDO, 2014, p. 1553).

Logo, esse cenário que impõe as avaliações externas como obrigatórias, também a utiliza como mecanismo de controle das atividades desenvolvidas pelo professor que se vê em uma verdadeira encruzilhada, especialmente em relação à sua autonomia (SILVA, 2017). Já se pode observar esse encaminhamento expressivo em alguns estados do país, com destaque do estado do Paraná, que conseguiu instituir um padrão de avaliações periódicas para todas as escolas da rede pública. Com o nome de “Prova Paraná”2, o instrumento começou a ser instituído em 2019, com a aplicação de testes de Língua Portuguesa e Matemática; em 2020, houve uma ampliação das disciplinas/áreas avaliadas, que passaram a integrar, além de Língua Portuguesa e Matemática, as provas, como é o caso da disciplina Língua Inglesa. Já em 2021, após o retorno gradual das aulas presenciais3, em setembro, foi aplicada a Prova Paraná em dois dias: no primeiro, das disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa e, no segundo dia, os estudantes do Ensino Fundamental realizaram provas de Ciências da Natureza, Geografia e História. No Ensino Médio, froam examinadas as Ciências da Natureza (Química, Física e Biologia) e Ciências Humanas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia).

Para 2022, a Secretaria da Educação e do Esporte do Paraná aprimorou a ferramenta, passando a aplicar as avaliações em todos os trimestres, intensificando assim a cobrança por melhores resultados a cada edição, tanto de professores como dos diretores. Segundo a política estadual, a Prova Paraná “... é um instrumento de avaliação elaborado com o objetivo de identificar as dificuldades apresentadas, bem como as habilidades já apropriadas pelos estudantes durante o processo de ensino e aprendizagem”4. Esse panorama já tem levado alguns professores a trabalharem estritamente os conteúdos desses testes (que começaram a ser previamente divulgados via descritores de aprendizagem), inclusive, a considerarem-na como parte da avaliação trimestral dos estudantes.

Além do esvaziamento de conteúdos, via essa corrida pela melhoria de resultados, questiona-se se os gastos com todo esse movimento, a contar pelo grupo contratado para organizar essas provas, impressões, logística e um aplicativo de celular para correção, que resulta em relatórios para professores e diretores. É impossível olhar esse contexto e não pensar o quanto esse investimento seria melhor revertido se aplicado nas condições efetivas do trabalho docente, acesso dos estudantes, materiais pedagógicos de melhor qualidade, formação continuada para além do pragmatismo etc. Acaba que é uma política pensada distante do planejamento do professor, mas que precisa ser incorporada por ele e que, de forma subjetiva e objetiva, vem se inserindo na realidade escolar.

Nesse sentido, com o currículo voltado apenas a atender os conteúdos das avaliações externas, há restrição de conhecimento, especialmente aos filhos da classe trabalhadora, que dependem exclusivamente da escola para fazê-lo. Pensar que, em relação ao Ensino Médio, a partir da reforma (BRASIL, 2017), apenas 60% (sessenta por cento) do currículo está reservado às áreas do conhecimento, já caracteriza por si só o esvaziamento de conteúdos. Afinal, quais foram os escolhidos para permanecerem no currículo? Quais foram as prioridades? Com a preocupação exposta na BNCC (BRASIL, 2018), com desempenho nas avaliações de larga escala, a resposta não é diferente da prioridade para as disciplinas e conteúdos de Língua Portuguesa e Matemática, presentes nas provas, que são, não por coincidência, os únicos componentes curriculares obrigatórios a partir da reforma do Ensino Médio (ZANK, 2020).

Algumas considerações

A BNCC e a reforma do Ensino Médio alavancaram inúmeras pesquisas sobre a formação da juventude e o caráter pragmatista direcionado a atender as avaliações em larga escala, bem como o sentido utilitarista do currículo, com o enfoque no desenvolvimento de competências e habilidades, beneficiando o mercado produtivo. Destacamos, portanto, que o resultado não poderá ser diferente da ampliação das desigualdades sociais, ao longo do território nacional, conforme assevera, Silva (2015):

Certamente está no horizonte que a Base Nacional Comum Curricular se instituirá como estratégia de controle também por meio das avaliações e, uma vez mais, não apenas irá reiterar as desigualdades como também poderá reforçá-las. Os exames atualmente incidem diretamente sobre as escolhas em termos de currículo. Agora, a Base Nacional Comum Curricular passaria a determinar os conteúdos dos exames. Esta é uma das justificativas para sua existência: garantir maior fidedignidade às avaliações. (SILVA, 2015, p. 375).

Uma reforma dessa amplitude não tem por objetivo oportunizar a apropriação, pela juventude, dos conhecimentos históricos que foram desenvolvidos pela humanidade, e, sim, transformar a escola em espaço de legitimação burguesa e do pensamento pós-moderno, objetivado na fragmentação necessária para o mundo do trabalho na sociedade capitalista. É o relativismo dado à “...experiência individual, [a]o conhecimento tático, [a]o cotidiano, à realidade imediata” (MALANCHEN, 2016, p. 19).

O que queremos enfatizar é que um currículo apenas com o objetivo de atender às avaliações externas não tem condições mínimas para a apropriação necessária ao entendimento da realidade histórica pelos indivíduos que frequentam a escola. Esse esvaziamento de conteúdos atende especificamente à demanda do sistema produtivo, que não entende como necessidade a formação para compreensão da sociedade em sua totalidade, considerando a disposição de trabalho polivalente e a necessidade de profissionais adaptáveis a uma organização econômica completamente instável. Daí, o foco no cotidiano, na experiência e, claro, nos resultados rápidos, conforme expectativa das avaliações em larga escala.

Outra questão bastante explicita é a mercantilização da escola pública, via de regra o incentivo de convênios com instituições de educação à distância, o acirramento na busca por apostilas a fim de compor melhor resultados nas provas, bem como a oferta de cursos que serão integralizados ao Ensino Médio. (SILVA, 2018). Assim, o “novo” Ensino Médio também irá imprimir mudanças expressivas nas políticas de formação de professores, e na própria carreira docente.

Consideramos, portanto, a reforma contrária aos interesses dos filhos da classe trabalhadora, pois, ao esvaziar a escola dos conhecimentos científicos, privam-se as novas gerações do entendimento da realidade, do desenvolvimento da capacidade crítica e retira-se o direito de pensar e organizar uma sociedade diferentemente da organizada pelo capital. Desse modo, tanto o currículo, quanto o “novo” Ensino Médio se apresentam como uma maneira de desmembrar a luta por uma sociedade mais justa e é por isso que precisamos estar em constante defesa da escola pública, legitimando sua função, como alertam Fonte e Loureiro (2011):

Por um lado, o desafio de fortalecer a única chance que os filhos e filhas da classe trabalhadora tem de acessar conhecimentos elaborados; por outro consiste em concretizar o processo sinalizado por Marx no qual o conhecimento teórico passa a ter força material, isto é, ganha vida à medida que é apropriado e potencializa a luta contra a miséria e a barbárie social (2011, p. 190).

De modo efetivo, portanto, resta a nós professores e pesquisadores, lutar na contramão do processo e não nos deixarmos levar por políticas hegemônicas que degradam o nosso trabalho e destroem a formação dos jovens e a escola pública. Para tanto, entendemos que a Pedagogia Histórico-Crítica, fundamentada no Materialismo Histórico e Dialético, posiciona-se em defesa da classe trabalhadora e, portanto, “... alinha um posicionamento explícito perante a luta de classes” (DUARTE, 2011, p. 7), entendendo que cabe à educação a formação da consciência revolucionária. E isso não é feito de forma voluntária, mas, sim, por meio da apropriação dos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos de forma sistematizada, permitindo a formação do homem de forma consciente e universal.

1O Brasil melhorou significativamente no exame de matemática do PISA: de 68% da média da OCDE para 79% entre 2002 e 2012; mas, desde então, caiu para 77% em 2015 (nível de 2009). Embora o acesso à educação tenha melhorado, o progresso dos resultados de aprendizagem tem sido limitado (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 3).

3O ano letivo de 2020 e parte de 2021 foi realizado remotamente devido à pandemia mundial do Covid-19.

Referências

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Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editor Científico: Prof. Dr. Mauricio Pedro da Silva

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