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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.63 São Paulo out./dez 2022  Epub 12-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n63.22808 

Artigos

AS MEIAS VERDADES DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO

THE HALF TRUTHS OF HIGH SCHOOL REFORM

LAS MEDIAS VERDADES DE LA REFORMA DE LA ESCUELA SECUNDARIA

Ramon de Oliveira, Doutor em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-2374-2627

1Doutor em Educação, Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Recife, Pernambuco -Brasil.


Resumo

As justificativas apresentadas para a reforma do Ensino Médio ancoram-se em meias verdades sobre a insatisfação dos jovens em relação à qualidade e ao sentido desse nível da educação básica para suas vidas. Este artigo, a partir de documentação referente à reforma e de literatura pertinente, analisa essas justificativas e demonstra que suas intencionalidades definem as respostas e as conclusões às quais a sociedade deve chegar. Tais justificativas são destituídas, de forma intencional, de análises científicas especializadas sobre a materialização efetiva dessa última etapa da educação básica. Para consolidar a retórica reformista, foi fundamental o silenciamento do pensamento divergente e o apoio da mídia. Os reformadores não quiseram ouvir os sujeitos que vivenciam a escola e nem escutar o que os jovens desejam de suas escolas ou os professores sobre as suas condições para efetivar um Ensino Médio de qualidade e atrativo aos jovens estudantes. Sua retórica, politicamente estruturada a partir de meias verdades e do desprezo da produção acadêmica, intenciona promover sua aceitação pública, efetivando retrocessos na oferta de Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras. A dualidade reafirma-se sob o discurso de uma nova estrutura educacional, de um novo currículo, de um novo papel que a juventude passa a ter na definição de seus projetos de vida.

Palavras-chave: educação; ensino médio; juventude; reforma da educação.

Abstract

The justifications presented for the reform of Secondary Education are anchored in half-truths about young people's dissatisfaction with the quality and meaning of this level of basic education for their lives. This article, based on documentation referring to the reform and pertinent literature, analyzes these justifications and demonstrates that their intentions define the responses and conclusions that society must reach. Such justifications are intentionally deprived of specialized scientific analysis on the effective materialization of this last stage of basic education. To consolidate the reformist rhetoric, the silencing of divergent thinking and the support of the media were essential. The reformers did not want to listen to the subjects who experience the school, nor to listen to what young people want from their schools or teachers about their conditions to implement a high quality education that is attractive to young students. Its rhetoric, politically structured from half-truths and the contempt of academic production, intends to promote its public acceptance, effecting setbacks in the offer of Secondary Education in Brazilian public schools. The duality is reaffirmed under the discourse of a new educational structure, a new curriculum, a new role that youth starts to play in defining their life projects.

Keywords education; high school; youth; education reform.

Resumen

Las justificaciones presentadas para la reforma de la Educación Secundaria están ancladas en medias verdades sobre la insatisfacción de los jóvenes con la calidad y el significado de este nivel de educación básica para sus vidas. Este artículo, basado en documentación referente a la reforma y literatura pertinente, analiza estas justificaciones y demuestra que sus intenciones definen las respuestas y conclusiones a las que debe llegar la sociedad. Tales justificaciones son despojadas intencionalmente del análisis científico especializado sobre la materialización efectiva de esta última etapa de la educación básica. Para consolidar la retórica reformista fue fundamental el silenciamiento del pensamiento divergente y el apoyo de los medios de comunicación. Los reformadores no quisieron escuchar a los sujetos que viven la escuela, ni escuchar lo que los jóvenes quieren de sus escuelas o profesores sobre sus condiciones para implementar una educación de calidad que sea atractiva para los jóvenes estudiantes. Su retórica, políticamente estructurada a partir de medias verdades y el desprecio de la producción académica, pretende promover su aceptación pública, provocando retrocesos en la oferta de Enseñanza Media en las escuelas públicas brasileñas. La dualidad se reafirma bajo el discurso de una nueva estructura educativa, un nuevo currículo, un nuevo rol que los jóvenes pasan a jugar en la definición de sus proyectos de vida.

Palabras clave: educación; escuela secundaria; juventud; reforma educativa.

Introdução

Em tese de doutoramento defendida na Universidade de Buenos Aires em 1998, intitulada “La retorica de la desigualdad: los fundamentos doctrinarios de la reforma educativa neoliberal”, Pablo Gentili desafiou-se a explicar como havia se configurado não só a pedagogia da desigualdade, mas também as características dessa pedagogia, que objetivava pôr fim à existência da escola pública como direito social. Sua investigação explicou por que, em sociedades marcadas por fortes desigualdades sociais, o discurso neoliberal de privatização do público, mais particularmente da educação pública, conseguia aderência inclusive dos mais excluídos do acesso aos direitos sociais, como saúde e educação.

Segundo Gentili, explicar esse fenômeno era relevante porque, mesmo em países latino-americanos nos quais partidos conservadores haviam sido derrotados em pleitos eleitorais, eram presentes projetos reformistas para a privatização dos serviços públicos nas agendas dos governantes eleitos. O autor rechaçava explicações segundo as quais aquele triunfo decorria da utilização de discursos objetivando enganar as pessoas.

Ainda em seu doutoramento, produziu um texto intitulado “Mentiras que parecen verdades: argumentos neoliberales sobre la crisis educativa” (GENTILI, 1996a), posteriormente reformulado e publicado na coletânea organizada pelo próprio Gentili e por Tomaz Tadeu da Silva (GENTILI, 1996b), com o título “Neoliberalismo e educação: manual do usuário”.

Para efeito do que nos propomos neste artigo, recorremos ao primeiro texto de Gentili (1996a). Nele, o autor destaca que o neoliberalismo promove um projeto de reforma ideológica, objetivando solidificar, pela difusão de suas explicações relativas à crise da escola pública, a aceitação de suas proposições como a saída para essa crise. Os defensores do neoliberalismo intencionaram que suas “soluções” não só para a crise da escola pública, mas para todas as problemáticas enfrentadas na sociedade contemporânea fossem aceitas como soluções naturais e verdades inquestionáveis. Conforme Gentili (1996a, p. 5), “construir ‘verdades’. He aqui el desafio y la función social que competentemente assumieran los intelectuales neoliberales durante los últimos 50 años. Claro que suas ‘verdades’ pertenecen a un uinverso muy específico; son apenas uma ficción de ‘verdad’. Son por llamarlas de alguna manera, ‘mentiras que parecen verdade’”.

Ao nos remetermos a esse texto de Pablo Gentili, objetivando analisar as justificativas contidas no discurso governamental a respeito da atual reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017), intencionamos explicitar que elas, embora não se tenham ancorado em mentiras referentes à insatisfação com a qualidade do Ensino Médio, são destituídas, de forma intencional, de análises cientificamente embasadas sobre a materialização dessa etapa da educação básica nas escolas que abrigam os setores mais pobres da população brasileira. Essas explicações estruturam-se a partir de meias verdades: omitem dados, desprezam informações, secundarizam sujeitos e pesquisas que apontam para a possibilidade de interpretações diferentes e com um alcance explicativo mais complexo.

A forma como se estabeleceu a reforma, via medida provisória, bem como a velocidade de sua transformação na Lei 13.415/2017 evidenciaram o interesse governamental e dos reformadores de plantão em silenciar a divergência e expressaram seu desprezo pela ciência e pelo conhecimento produzido sobre o Ensino Médio e sobre a juventude.

Os reformadores não quiseram ouvir os sujeitos que vivenciam a escola e nem escutar o que desejam os jovens de suas escolas ou os professores sobre as suas condições para efetivar um Ensino Médio de qualidade e atrativo aos jovens estudantes. Veicularam suas explicações como se fossem verdades únicas e inquestionáveis.

São conclusões e argumentos que podem e devem ser questionados na sua própria gênese. As suas intencionalidades definem as respostas e as conclusões a que a sociedade deve chegar. Suas justificativas muito mais se aproximam de inverdades, pois se estruturam desconsiderando o que se produziu academicamente até então. Intencionam construir uma retórica que permita tornar inquestionáveis as suas explicações e as suas saídas para a crise do Ensino Médio.

Na busca da construção de um consenso a respeito da reforma do Ensino Médio, a grande imprensa foi solidária ao governo. Silenciou, o quanto possível, as contestações à ação governamental e criminalizou os movimentos sociais contrários à ação do governo Temer (2016 - 2018). Veiculou a reforma como necessária e já tardia. Como destaca Moraes (2010), em momentos nos quais busca criar o consenso, a imprensa seleciona e enfatiza temas que unifiquem a opinião pública em torno de princípios e juízo de valor.

Podemos dizer que, em relação à reforma do Ensino Médio, ocorreu um movimento em busca do consenso, da aceitação inquestionável dos seus pressupostos. A propaganda massiva do governo federal visou a produzir convicções e crenças, de forma a levar a população a também considerar a reforma como imprescindível à melhoria do Ensino Médio (SILVEIRA; RAMOS; VIANNA, 2018, p. 102).

Tal ação fortaleceu e legitimou um projeto direcionado à consolidação de uma nova ordem, com contornos neoliberais e regressiva no campo dos direitos sociais, haja vista esses mesmos veículos se posicionarem também favoráveis a outras ações do governo, como a reforma da Previdência, a reforma trabalhista e a emenda constitucional para limitar o aumento dos gastos públicos à variação da inflação (PEC 55/2016) (BRASIL, 2016).

Este artigo objetiva analisar algumas justificativas apresentadas pelo governo federal para a reforma do Ensino Médio. Não nos direcionamos a fazer uma crítica mais geral sobre essa reforma, uma vez que já existe uma produção abundante que cumpriu esse papel. Uma busca refinada no site do Google Acadêmico por artigos, dissertações ou teses que tiveram a reforma como objeto de análise aponta para mais de uma centena de trabalhos.

Focamos nossa atenção nas justificativas apresentadas na medida provisória 746/2016 (BRASIL, 2016) pelo governo federal para a realização da reforma. Destacamos aquelas cujos conteúdos sinalizam para os motivos da reforma: baixa qualidade da aprendizagem, necessidade de flexibilizar o currículo em função dos interesses dos alunos, articulação do currículo do Ensino Médio com o recomendado pelas agências internacionais e importância do Ensino Médio para a empregabilidade dos jovens.

Considerando essa delimitação, selecionamos as seguintes justificativas da medida provisória 746/2016:

  • 1. o Ensino Médio não aprofunda os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental e não contribui para formar jovens autônomos;

  • 2. o currículo do Ensino Médio é extenso, tem pouca flexibilidade e não dialoga com os interesses da juventude;

  • 3. há falta de sentido no Ensino Médio, tanto no referente aos projetos de vida da juventude, quando no referente à sua contribuição para os jovens se inserirem no mercado de trabalho;

  • 4. o currículo do Ensino Médio não está alinhado aos interesses do mercado, necessitando modificar-se para preparar uma população economicamente ativa, com qualificação suficiente para contribuir com o desenvolvimento econômico;

  • 5. a má qualidade do Ensino Médio e sua desarticulação com os interesses juvenis são responsáveis pelo fato de os jovens abandonarem a escolarização.

A importância de enfrentar essas justificativas reside no fato de que, desde o momento em que a reforma foi posta em andamento, via medida provisória, houve uma intensa ação por parte do governo federal em utilizar os veículos de comunicação de massa como forma de legitimá-la. Jornais, propagandas em rádio e televisão e contratação de youtubers fizeram parte da estratégia do governo federal para garantir que o projeto reformista fosse materializado nas escolas públicas brasileiras. Como destacaram Ortega e Hollerbach (2022, p. 8), essas ações “configuravam-se como uma poderosa ferramenta de manipulação e coerção social capaz de produzir consensos e opiniões formatadas favoráveis à reforma do Ensino Médio, sem que fosse possível contestá-la a partir do senso comum”. Uma ampla aliança do governo federal com os setores empresariais objetivou legitimar a necessidade da reforma e assegurar que a nova legislação referente ao Ensino Médio se concretizasse (GONÇALVES, 2017).

Tendo esse contexto como cenário e articulando-o com o desmando vivenciado pelo Ministério da Educação durante o governo Bolsonaro (2019 - 2022), temos clareza de que as questões mais importantes referentes à implementação de um Ensino Médio realmente vinculado aos interesses dos mais pobres não foram enfrentadas.

Entendemos que se faz necessário confrontar o discurso governamental para combatermos a permanência de um Ensino Médio incapaz de responder satisfatoriamente aos interesses dos alunos, professores, gestores, pais e sociedade de forma mais geral. Tal discurso se apoia na insatisfação generalizada quanto à contribuição do Ensino Médio para uma futura inserção no mercado de trabalho ou no ensino superior.

A nova formatação do Ensino Médio termina por esvaziá-lo no que concerne ao seu papel na formação de um sujeito crítico e comprometido com a emancipação social, política e econômica da maioria da população brasileira.

O método de trabalho consistiu na análise da nova legislação do Ensino Médio (Medida Provisória 746/2016, Lei 13.415/2017, Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (2018), resoluções e portarias referentes ao novo Ensino Médio), tendo como base a interlocução com a produção mais recente sobre o novo Ensino Médio, de forma a evidenciar as meias verdades que estruturaram as recentes políticas para esse nível de ensino.

A análise da nova legislação objetiva negar que o novo formato do Ensino Médio assegura um modelo de formação atento aos interesses juvenis, tanto no referente às suas peculiaridades, quanto no concernente a uma formação coerente com as mudanças ocorridas no mercado de trabalho.

Entendemos que essa análise não ocorre exclusivamente por uma imersão nos textos legais, mas necessariamente pela triangulação entre o investigador, o concreto e o que se pensa sobre o concreto. Esse movimento deve propiciar uma síntese que mais nos aproxime da essência das coisas. Assim, há a possibilidade de nos afastarmos das interpretações que se contentam apenas com o fenômeno, deixando de buscar entender a multiplicidade de fatores que constituem a totalidade do objeto pesquisado.

Com esse movimento de confrontar o discurso governamental e a realidade concreta da política educacional brasileira, mais especificamente a realidade do Ensino Médio, objetivamos evidenciar que as justificativas para a reforma se constituem em artifícios discursivos para implementar um projeto educacional que produz um retrocesso no Ensino Médio brasileiro (MOTTA; FRIGOTTO, 2017).

São argumentos que buscam ir ao encontro do desencanto da população em relação à qualidade da escola pública, mas são emitidos por aqueles que historicamente mostram-se descomprometidos com a construção de uma escola pública voltada aos interesses da maioria da população. Nesse sentido, iniciamos este texto destacando os trabalhos de Pablo Gentili, pois continuamos no enfrentamento das mentiras que parecem verdades.

Enfrentando as justificativas governamentais

Acácia Kuenzer (2000), em texto no qual fez uma análise da reforma do Ensino Médio Técnico, outorgada pelo Decreto 2208/97, chamava a atenção para a impossibilidade de desvincular os conteúdos e as finalidades da reforma do projeto de desenvolvimento do governo que a implementou. Destacava o fato de aquela reforma ancorar-se nos mesmos pressupostos neoliberais do governo, o qual articulava o processo educacional à lógica da pedagogia da produção flexível, bem como o fortalecimento da regulação meritocrática como balizadora das relações sociais.

Segundo Kuenzer (2000), o governo central, ao implementar a reforma objetivando desarticular a formação geral da formação profissional, construiu e propagou um discurso objetivando encontrar ressonância em meio à população. Esse discurso afirmava que, a partir de então, assegurava-se um Ensino Médio articulado à vida da juventude. No entanto, a sua tentativa de criar a consensualidade, semelhantemente ao que fez o governo Temer, ocultava os interesses de classe e de manutenção da histórica dualidade em nosso sistema educacional. Nesse sentido, aquela reforma, tal qual a recente reforma, demandava ser propagandeada para, ocultando seus interesses de classe, legitimar-se perante a opinião pública.

Essa concepção particular, apresentada como consensual, só pode se sustentar pela difusão de um discurso pronto, assimilado individualmente, mas fabricado externamente ao sujeito, isto é, que lhe seja imposto. Para que todos assumam o mesmo discurso, é preciso que ele passe a ser dominante, para o que é decisiva a estratégia comunicacional, no dizer de Dejours, distorcida, na medida em que consiste em uma racionalização construída e difundida para atender a interesses determinados (KUENZER, 2000, p. 17).

Naquele momento, a autora também destacava o quanto era necessário desnudar a ideologia subjacente à reforma, confrontando-a com o discurso científico.

No momento presente, estamos diante do mesmo desafio de enfrentamento dessa ideologia, tal qual Kuenzer fez anteriormente. Entendemos ser importante confrontar-nos com as justificativas postas no documento governamental, mas também com o que foi propagado pela mídia como forma de legitimar o discurso reformista. Devemos enfrentar a afirmação governamental de que a má qualidade do Ensino Médio e sua desarticulação com os interesses juvenis são culpados pelo fato de os jovens abandonarem a escolarização.

Nesse discurso governamental atribui-se ao Ensino Médio a responsabilização pela saída precoce dos jovens da escola. A ele atribuem-se todos os males e nenhuma virtude. De acordo com esse posicionamento, o mal da educação brasileira estaria na última etapa da educação básica, e nenhuma debilidade residiria no ensino fundamental. A evasão escolar seria uma realidade do Ensino Médio, e no Ensino Fundamental aparentemente tudo estaria em conformidade. No entanto, os dados da realidade não corroboram esse pensamento.

Segundo dados divulgados pelo IBGE (2019) referentes ao ano de 2018, 11,8% dos jovens brasileiros entre 15 e 17 anos estavam fora da escola, totalizando cerca de 1,25 milhão de pessoas. Uma leitura apressada poderia induzir à interpretação que essas pessoas teriam, pelo menos, completado todo o ensino fundamental. No entanto isso não é verdadeiro. Os dados do IBGE revelaram que em 2015, no ano anterior à Medida Provisória 746/2016, dos quase 10,6 milhões de jovens nessa idade, 1,3 milhões evadiram do sistema escolar sem concluir o Ensino Médio. Desse total, 61,4% não haviam concluído o Ensino Fundamental. Por outro lado, os índices relativos à distorção idade/série, ou seja, as pessoas nessa faixa etária que estão pelo menos dois anos atrasadas em relação à serie ideal chegaram a 26,4%. O mais preocupante, mas em nada espantoso, é o fato de que essa distorção, para o primeiro quintil da população, chegou a 40,7%, enquanto para o quinto quintil foi de apenas 8,2% (IBGE, 2016).

Reforçando o quanto a problemática da educação brasileira deve ser entendida a partir do quadro de desigualdade social, a pesquisa também evidencia o fato de as regiões Norte e Nordeste apresentarem os maiores índices de distorção, chegando a 35,9% e 36,4%, respectivamente. Não menos sintomático do quadro de desigualdade é o fato de que, para os brancos, os índices chegam a 18%, enquanto para os negros esse percentual alcançou o estarrecedor valor de 31,4%.

Em nosso entendimento, esses dados evidenciam que, embora a crítica à qualidade do Ensino Médio seja em parte pertinente, isso não implica dizer que esse nível seja o único a demandar uma profunda reestruturação. Muito menos significa dizer que o conteúdo da reforma consegue dar conta das demandas visando a sua reestruturação. A reforma não levou em consideração o quanto as debilidades apresentadas pelo Ensino Médio, em muito, vinculam-se às condições sociais do seu público majoritário; afinal de contas, cerca de 84% do total de matrículas são de escolas públicas estaduais, entre as quais mais de 54% são de negros (INEP, 2020).

Confrontando o discurso disseminado de a má qualidade do Ensino Médio ser culpada pelo fato de os jovens abandonarem a escolarização, questionamos: quais os motivos que o governo considera responsáveis pela saída precoce do Ensino Fundamental? Quais as causas e soluções apresentadas pelo governo para enfrentar os índices de reprovação que promovem a distorção série/idade no Ensino Fundamental? Qual estratégia curricular, no ensino fundamental, pode assegurar melhores índices de aprendizagem e garantir que os jovens evadidos da escola cheguem até os últimos anos da educação básica?

Um outro motivo apresentado pelo governo na Exposição de Motivos (BRASIL, 2016) para o desencadeamento da reforma refere-se ao fato de que há um extenso currículo escolar, e sua desarticulação com os interesses juvenis torna a escola pouco atrativa e sem significado para a juventude.

O discurso governamental ressalta que a reforma traz inovações necessárias para o Ensino Médio tornar-se atrativo para os jovens. No entanto, seja na exposição de motivos da reforma, seja nos espaços os quais o governo ocupou para justificar a reforma, não se apresentou nenhuma evidência empírica sustentadora da afirmação referente ao fato de o “extenso currículo” ser a causa da evasão escolar. Pesquisas com dados empíricos negam essa afirmação (DAYRELL; GOMES; LEÃO, 2010; LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011; TORRES et al. 2013; entre outras).

Ao resumir sua ação a um movimento de reestruturação curricular, o governo brasileiro fechou os olhos para a grande desigualdade social que perdura em nossa realidade e que se refirmou nesses últimos anos. A própria BNCC, aprovada em 2018, mais uma das expressões do autoritarismo das elites no poder, sob um discurso de que as escolas devem ser sensíveis às diferenças dos grupos que frequentam o Ensino Médio, reforça a ideia de que a escola, ao ser reformulada, poderá assegurar as igualdades de aprendizagem, como se as questões de ordem econômica, determinantes de trajetórias distintas de escolarização, pudessem ser minimizadas apenas por uma nova estrutura curricular.

De acordo com a BNCC, para que o Ensino Médio atinja suas finalidades, “é necessário, em primeiro lugar, assumir a firme convicção de que todos os estudantes podem aprender e alcançar seus objetivos, independentemente de suas características pessoais, seus percursos e suas histórias” (BRASIL, 2018, p. 465). Se é verdade que a escola deve estar atenta à diversidade do público juvenil, ela, por si só, não é capaz de assegurar as condições para as aprendizagens serem exitosas. Como demonstram várias pesquisas que avaliaram os motivos pelos quais os jovens abandonaram a escolarização, são as condições de ordem econômica as principais determinantes desse insucesso. Isso não quer dizer que o currículo escolar não mereça ser discutido e revisado, mas resumir a problemática educacional brasileira a uma questão de ordem curricular é mais uma vez atribuir às escolas e aos seus professores a culpa pelo nosso fraco desempenho educacional.

Esquece-se que o governo central e seus parceiros estaduais são os responsáveis por garantir boas condições de financiamento das escolas, promover políticas de valorização dos profissionais da educação e assegurar as condições de infraestrutura para os alunos terem reais condições de aprender mais e melhor. No entanto, em relação ao financiamento da educação, os defensores da reforma fazem um grande e irresponsável silêncio.

O descaso com as pesquisas produzidas nos diversos programas de pós-graduação, em cursos de mestrado e de doutorado, bem como com os trabalhos disponíveis em sites de observatórios e de grupos de pesquisas no Brasil voltados à escolarização juvenil só pode ser entendido como uma forma de silenciamento do pensamento divergente, como desprezo pelo contraditório. A “meia verdade” só se impõe como total, por não permitir aos destinatários de suas mensagens a possibilidade de conhecer o divergente, o contraditório e outras formas de olhar e explicar o mundo.

Fruto da intencionalidade governamental de não enfrentar problemas relativos às condições de infraestrutura que definem a qualidade do Ensino Médio, o conjunto de modificações e inovações promovidas pela reforma muito pouco enfrentam as insatisfações que os setores juvenis apresentam em relação à escola.

Entre as principais mudanças que a reforma efetivou, destacamos:

  • ampliação da carga horária de 800 para 1400 horas/ano (prazo máximo de 5 anos para chegar a 1000 horas/ano);

  • retirada das disciplinas de Filosofia, Sociologia e Espanhol;

  • divisão da formação em cinco itinerários formativos (Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Formação Técnica e Profissional), tendo em comum a Base Nacional Comum Curricular (BNCC);

  • Matemática e Português como disciplinas obrigatórias em todo o Ensino Médio;

  • Língua Inglesa obrigatória, sem carga horária definida;

  • BNCC não superior a 1800 h;

  • possibilidade da contratação de profissionais de notório saber para o exercício de magistério no itinerário “Formação técnica e profissional”;

  • possibilidade da contratação de profissionais graduados, desde que realizem uma complementação pedagógica.

Nada indica uma modificação na concepção de cidadão que se quer consolidar para o país. Muito menos se vislumbra algo a ser modificado nas escolas, considerando os interesses juvenis. O governo, através da reforma, consolida um modelo de Ensino Médio reafirmador da dualidade no seu interior, precariza o trabalho docente, empobrece a formação, com a retirada de disciplinas, e rompe com a exigência de profissionais licenciados para o exercício de magistério. Mas sobre tudo isso houve um verdadeiro silenciamento por parte da imprensa e dos grupos empresariais; estes últimos, os principais beneficiários da reforma.

Na prática, o modelo de reforma instaurado empobrece o Ensino Médio e não põe em perspectiva a melhoria da qualidade do ensino. Se um dos motivos apregoados pelo governo para sua realização é o de que o Ensino Médio não vem cumprindo sua função, prevista na LDB, de aprofundar os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental e formar jovens autônomos, menos ainda essa possibilidade se concretizará pelo esvaziamento do currículo.

O estabelecimento de itinerários formativos aponta para a dimensão da fragmentação curricular e da reafirmação de um padrão formativo coerente com o taylorismo-fordismo. Retrocede no projeto de formação integral, cujo pressuposto foi a integração entre a formação técnica e a formação geral. Assim como é de ordem política emancipatória a defesa do Ensino Médio integrado, pois objetiva “superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e ação de pensar, dirigir ou planejar” (CIAVATTA, 2005, p. 85), a dimensão política dessa reforma vai no sentido de retroceder e de reafirmar a dualidade no âmbito educacional, sob o discurso de que a escola deve se adequar aos novos interesses do setor produtivo e das juventudes. Essa reforma, como é destacado na exposição de motivos, alinha-se às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância - Unicef.

Segundo o governo, as ações desencadeadas objetivando criar uma nova identidade para o Ensino Médio têm como base de sustentação a pesquisa citada na exposição de motivos da Medida Provisória 746, intitulada “O que pensam os jovens de baixa renda sobre a escola” (TORRES et al., 2013). Essa pesquisa, embora apresente insatisfações dos jovens em relação a alguns aspectos relativos às escolas em que frequentam o Ensino Médio, em nenhum momento conclui que esses estudantes têm interesse em abandoná-la, em virtude de fatores inerentes ao modelo curricular ainda em vigor. Insatisfações são registradas, mas dizem respeito também a fatores diretamente relacionados às condições de funcionamento das escolas e não apenas à estrutura do Ensino Médio. Em última instância, poderíamos dizer que, segundo essa pesquisa, os estudantes mostram-se mais insatisfeitos com problemas relacionados à gestão escolar do que com o modelo de formação por eles vivenciado.

Na pesquisa foram apontados como itens de insatisfação dos jovens em relação à escola: disciplinas e temas estudados em classe; postura dos professores em sala de aula; o não uso de recursos tecnológicos; a má infraestrutura; a falta de segurança; a má conservação da escola. São itens que não dizem respeito, nem exclusivamente nem principalmente, ao modelo de formação adotado. Dizem respeito ao bom funcionamento das escolas, para não dizer ao financiamento das escolas.

Importante dizer que, apesar das insatisfações apontadas, 91,3% dos entrevistados não pensavam em abandonar a escola. Mais de 80% dos estudantes participantes da pesquisa e matriculados no Ensino Médio consideravam importante estar na escola para aprender coisas importantes para sua vida e para seu futuro. É significativo também pensar que esse percentual é praticamente o mesmo para os jovens inseridos no mercado de trabalho. Daí a pesquisa, em sua dimensão quantitativa, ter registrado que os jovens, ao expressarem o motivo do abandono escolar, basicamente só se reportaram às questões de ordem econômica.

Também se registrou que 82,2% dos pesquisados consideraram as disciplinas importantes, embora nem todas fossem consideradas igualmente importantes para sua formação. De qualquer forma, os dados expressam não fazer parte do discurso majoritário juvenil a ideia de o currículo ser anacrônico e extenso. A própria pesquisa destaca a possibilidade de avanços se, metodologicamente, a escola se reestruturasse para tornar os conteúdos mais significativos, novas metodologias fossem utilizadas, explicitando certos conteúdos na formação dos estudantes e, assim, permitindo que eles visualizassem a finalidade das disciplinas e do Ensino Médio. Não à toa a pesquisa enfatizou a importância de maior utilização de recursos tecnológicos no processo de ensino-aprendizagem (TORRES et al., 2013).

No discurso governamental, uma das marcas da reforma é assegurar que o Ensino Médio seja flexibilizado para garantir a liberdade de escolha dos alunos. A garantia reside na existência dos itinerários formativos.

A ideia de flexibilização pautando essa reforma é a separação entre a formação geral e a formação profissional. O governo, ao procurar legitimar sua posição recorrendo à pesquisa anteriormente citada, considerou sua conclusão coerente com o modelo neoliberal que busca levar adiante. Cerca de 87,6% dos jovens pesquisados entendem que a idade ideal para entrar no mercado de trabalho seja por volta dos 17 anos. Segundo os pesquisadores, embora esses jovens sejam pessoas de condição econômica precária, tal qual expressa o título da pesquisa, a decisão e o desejo de inserir-se precocemente no mercado de trabalho são de caráter individual, não definido por sua condição de classe (TORRES et al., 2013). Para os analistas, o desejo de acessar bens de consumo para vivenciar a condição juvenil é o fator determinante dessa opção, a qual só pode ser concretizada mediante algum tipo de trabalho.

Essa conclusão silencia qualquer tipo de interpretação considerando a dimensão de classe, pois, como nos alertou Frigotto (2004), quando nos reportamos a esses jovens, não estamos falando de uma juventude no abstrato, mas de uma juventude que tem cara, tem história e define-se, fundamentalmente, por sua condição de classe. Ou seja, “não se trata [..] de sujeitos sem rosto, sem história, sem origem de classe ou fração de classe. Os sujeitos a que nos referimos são predominantemente jovens e, em menor número, adultos, de classe popular, filhos de trabalhadores assalariados ou que produzem a vida precária por conta própria, do campo e da cidade” (FRIGOTTO, 2004, p. 57).

A conclusão da pesquisa reforça uma perspectiva individualizante e pouco atenta aos condicionantes sociais definidores da “escolha precoce” de entrar no mercado de trabalho. Como já nos alertava Kliksberg (2006), os jovens de condições econômicas mais desfavoráveis se veem obrigados a ingressar precocemente no mercado de trabalho. À grande maioria desses jovens, é imposto um trabalho precarizado e de pouca produtividade, quadro bem distinto daquele vivenciado pelos jovens de estratos econômicos superiores, que podem postergar essa inserção, conjugando-a à qualificação adquirida nos cursos de nível superior.

O falso discurso da flexibilização estrutura-se a partir da compreensão de que todos têm as mesmas possibilidades de concretizar seus projetos de vida. Não considera que as condições concretas de sobrevivência são estruturantes das práticas do presente e das aspirações e projeções de futuro. Nesse sentido, ingressar precoce e precariamente no mercado de trabalho não se configura como a concretização de um desejo, de um sonho. Não é a realização pessoal, mas sim a negação da possibilidade de alçar uma outra trajetória profissional e de vida.

Negando que o novo Ensino Médio acirra a dualidade na educação brasileira e que ele amplia a possibilidade de a escola articular-se à formação profissional precoce e precária dos jovens, a BNCC fortalece as inverdades e alimenta o discurso individualista e neoliberal, segundo o qual, a partir da nova configuração curricular, o Ensino Médio garantirá:

[...] o desenvolvimento de competências que possibilitem aos estudantes inserir-se de forma ativa, crítica, criativa e responsável em um mundo do trabalho cada vez mais complexo e imprevisível criando possibilidades para viabilizar seu projeto de vida e continuar aprendendo, de modo a ser capazes de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 2018, p. 465-466).

É bom lembrar que o movimento “Todos pela Educação”, grande defensor da reforma, realizou uma pesquisa denominada “Repensar o Ensino Médio” com 1.551 jovens entre 15 e 19 anos, em sua maioria (87%) matriculados no Ensino Médio. Nela constatou-se que, para 41,7% dos jovens pesquisados, a maior dificuldade para prosseguir nos estudos decorria de problemas financeiros. Em segundo lugar, vinha a dificuldade de conciliar estudo e trabalho (13,8%). Se considerarmos os dois itens juntos, uma vez que ambos estão relacionados a questões de ordem financeira, chegamos à conclusão de que, para cerca de 55% dos jovens, a questão financeira representava a maior dificuldade para continuar a escolarização. No caso de alunos do curso noturno, esse percentual chegava a quase 70% (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2017).

Também foi constatado nessa pesquisa que, para 70,2% dos jovens matriculados no Ensino Médio em escolas públicas, a motivação principal de estarem cursando o Ensino Médio era o desejo de se prepararem melhor para entrarem no ensino superior. Apenas 16,5% pensavam no Ensino Médio como uma formação básica para arranjar um emprego. Esses dados evidenciam o disparate de qualquer conclusão procurando minimizar a importância da problemática social como um dos principais determinantes do abandono precoce da escolarização. Os jovens querem continuar estudando e são as condições materiais que determinam, para muitos deles, a impossibilidade de concretizarem o ingresso no ensino superior.

Considerando as exceções, a entrada precoce no mercado de trabalho não é uma escolha individual estabelecida no abstrato, mas é, fundamentalmente, determinada pela condição de classe. Os jovens são obrigados a ingressarem no mercado de trabalho para desfrutarem de bens materiais e não materiais que seus pais não podem prover. A entrada precoce no mercado de trabalho é a possibilidade, dentro dos limites da condição social, de viver a juventude (DAYRELL, 2007).

No discurso reformista, a dimensão econômica é também ressaltada e afirma-se que um dos motivos para a efetivação da reforma é o fato de o currículo do Ensino Médio não estar alinhado aos interesses do mercado, necessitando modificar-se para preparar uma população economicamente ativa, com qualificação suficiente para contribuir com o desenvolvimento econômico.

Numa lógica que se estrutura tendo como referência a teoria do capital humano, articula-se crescimento econômico, aumento do número de postos de trabalho e diminuição de desemprego, daí ter sido tão valorizada pela mídia a existência de um itinerário formativo que “assegura” a formação profissional aos estudantes do Ensino Médio.

A atual crise do emprego que, em muitos países, não tem sido revertida e que, no Brasil, afirmou-se de forma dramática, coloca em discussão a possibilidade de a certificação escolar assegurar o acesso ao emprego. Como já destacou Canário (2008), a discrepância entre o número de pessoas que passaram pela escolarização, inclusive em nível superior, e a oferta de empregos nos coloca em um contexto bem diferente daquele de pleno emprego. A escola vive diante do desafio de justificar-se em um cenário no qual o emprego é incerto (FRANCO, 1999) e pouco se permite à juventude fazer planos de futuro em função da escolarização obtida. Daí o desencanto e o sofrimento.

O contraditório na realidade brasileira é o fato de os formuladores da reforma do Ensino Médio estruturarem seus discursos de legitimação fingindo desconhecer esse contexto. Estrutura-se um discurso justificador da importância da formação profissional como um dos itinerários formativos, como se as juventudes trabalhadoras tivessem empregos à sua disposição. Reconfiguram promessas incapazes de serem cumpridas. Ao mesmo tempo, por tratarem o Ensino Médio como um momento de passagem para o ingresso no ensino superior ou para o ingresso imediato no mercado de trabalho, silenciam os movimentos voltados a fazer do Ensino Médio um momento único no processo de conquista da autonomia da juventude, tal qual preconizava Gramsci (1985).

Vale destacar que esse movimento de formação profissional compulsória, escamoteada pela ideia de escolha, de opção, de flexibilização curricular, configura-se como uma nova forma de elitização do processo educacional. A dualidade reafirma-se sob o discurso de uma nova estrutura educacional, de um novo currículo, de um novo papel que a juventude passa a ter na definição de seus projetos de vida.

A existência de escolas privadas e de escolas públicas já expressa uma dualidade do sistema educacional estruturado a partir da existência de classes sociais e tende a se aprofundar em função da ofensiva neoliberal na educação (FREITAS, 2014; GENTILI, 1996a; 1996b; NEVES, 2005; entre outros). Como podemos apreender a partir da leitura de Gramsci (1985), a elitização e a dualidade recompostas nessa reforma instauram-se fundamentalmente por estarem a serviço de um projeto educacional legitimador da desigualdade escolar, a partir de uma distribuição desigual do conhecimento, ratificando a existência de escolas diferenciadas em função das posições que as pessoas vão ocupar na divisão social do trabalho. Daí evidenciarmos o fato de não haver nada de democrático nessa reforma, não só por sua forma de implantação, como também por suas finalidades.

A reforma repete a mesma pseudodemocracia criticada por Gramsci na realidade italiana. Para ele, não seria pela ampliação da oferta de cursos voltados à profissionalização que se democratizaria a educação, tal qual apregoam os atuais reformistas, ao dizerem que estão viabilizando aos mais pobres a possibilidade de uma formação profissional mais cedo.

Para o autor italiano, a democracia real garantiria a todos, independentemente da condição social, a possibilidade de passar por uma escola que permitisse aos alunos desenvolver sua autonomia intelectual. Trata-se de romper com a lógica que reproduz as diferenças de classe pela manutenção dos pobres na condição de dirigidos e ricos na condição de dirigentes. Como dizia Gramsci (1985, p. 137), “a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao fim de governar”.

Considerando o empobrecimento da formação estabelecida pela atual reforma e articulando-a ao seu discurso de objetivar formar uma mão de obra mais bem qualificada, é pertinente questionar o quanto ela promoverá a formação de capital humano, objetivo perseguido nas reformas anteriormente edificadas para o Ensino Médio (Lei 5692/71 e Decreto 2208/97). Como destacam Motta e Frigotto (2017), não é a expansão do quantitativo de trabalhadores qualificados e competitivos que está em jogo. Não é, como se justifica a reforma, pelo objetivo de formar capital humano, ainda que esse intuito em si mereça ser confrontado, pelo seu caráter ideológico e falseador da realidade (FRIGOTTO, 1989).Não nos enganemos, não é amor à Escola do Trabalho. É um movimento político de acomodação social e de exploração de mão de obra jovem” (NOSELLA, 2011, p. 1053).

O fim, o objetivo, é a precarização da qualidade dessa formação, para formar profissionais de segunda categoria e pouco qualificados, inviabilizando a contribuição da escola para elevar a economia brasileira ao patamar de maior competitividade econômica.

Tomando Gentili (1996b) como referência, devemos lembrar que é no próprio mercado de trabalho que se produzem as desigualdades, não podendo a educação reverter aquilo que se estrutura externamente a ela. Ainda que a educação possa contribuir no sentido de aumentar a empregabilidade, é na própria dinâmica do mercado que se define o sucesso ou o insucesso dos jovens à procura de um emprego. Responsabilizar a escola pelo alto desemprego juvenil, o qual, segundo o IBGE, alcançou no Brasil, entre os jovens de 18 a 24 anos, o índice de 27,1% no primeiro trimestre de 2020, mais de duas vezes superior à taxa de desocupação da população em idade de trabalhar (IBGE, 2020), é mais uma das meias verdades instauradas como verdades inquestionáveis.

Considerações finais

A reforma, em nenhum sentido, aponta para uma melhoria da qualidade do Ensino Médio. Muito pelo contrário, não encontramos, em nenhuma das medidas tomadas, qualquer indício de que a escola se tornará mais atrativa para os alunos e passará a cumprir o previsto na LDB.

Tanto no referente à formação dos alunos, quanto no exercício do trabalho docente, identificamos um intenso e profundo processo de precarização, o qual, articulado a outros retrocessos impostos pelo governo Temer (2016 - 2018), constituem a reafirmação dos interesses do capital, só possível de seguir adiante através de uma profunda e intensa propaganda. Para tanto, as estratégias midiáticas em torno da reforma do Ensino Médio, bem como outras intervenções da grande imprensa apoiando e legitimando outras reformas impostas pelo governo mostraram-se fundamentais na efetivação de uma nova pedagogia da hegemonia do capital e das elites brasileiras.

Além de evidenciar o quanto as justificativas de realização da reforma do Ensino Médio ancoram-se em pressupostos falsos, ficou patente o quanto a imprensa foi um dos principais aparelhos privados de hegemonia, voltados à consolidação do poder burguês (MORAES, 2010) e à legitimação da reforma.

A televisão, os jornais, as rádios e demais aparelhos privados de hegemonia articularam-se ao papel que o Estado capitalista é chamado a desenvolver no sentido de assegurar a nova hegemonia burguesa. Essa pedagogia da conservação, embora estruturada a partir de categorias novas, tais como: empreendedorismo, formação por competências, flexibilização, objetiva atualizar/conservar o poder burguês no contexto da produção flexível.

De forma concreta, a nova pedagogia busca silenciar os discursos estruturados a partir da denúncia da desigualdade de classe. Exalta-se o individualismo, a competição, a meritocracia, secundarizando-se o papel do Estado enquanto garantidor dos direitos sociais. Constitui uma perspectiva de cidadania, cuja caraterística central é a capacidade de consumir, e obscurece qualquer perspectiva coletiva questionadora da ordem burguesa.

Para consolidar a retórica reformista, foi fundamental o silenciamento do pensamento divergente e o apoio da mídia. Ao dar total apoio às propostas do governo Temer, entre as quais a reforma do Ensino Médio, a grande imprensa reafirmou princípios do liberalismo, objetivando “construir uma consciência política que não permita ao indivíduo entender sua real função social no mundo a partir da sua posição nas relações de produção” (SANFELICE, 2011, p. 115). Ou seja, mostrou-se como um agente importante na materialização de uma pedagogia estruturada a partir da desigualdade social e da afirmação da reprodução do capital em escala ampliada.

Essa pedagogia solidifica ideias, valores e práticas voltadas à manutenção das desigualdades sociais. Seu enfrentamento demanda o compromisso ético e político de denunciar e desconstruir as suas meias verdades, para que tenhamos uma escola de Ensino Médio voltada aos interesses da maioria da população e não aos interesses da desconstrução da escola pública. Perseguir esse desafio implica defender não só uma escola pública e democrática, mas também com qualidade, para construirmos, como nos alertou Gentili (1996b), uma hegemonia que sustente, nos planos material e cultural, uma sociedade democrática e igualitária.

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Recebido: 29 de Agosto de 2022; Aceito: 07 de Dezembro de 2022

Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editor Científico: Profa. Dra. Adriana Aparecida de Lima Terçariol

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