1 Introdução
A partir de um diálogo estabelecido com recentes estudos voltados à discussão do currículo universitário contemporâneo, esta pesquisa dedica-se ao tema da escrita criativa como prática curricular alinhada às demandas do ensino superior no século 21. Trata-se de um ensaio teórico que objetiva apresentar a importância do tema estudado e discutir a potencialidade de a escrita criativa ser explorada como recurso para implementação e consolidação de currículos acadêmicos que concebem o estudante como cidadão que deve ser integral e humanisticamente formado para participar e intervir em uma sociedade cada vez mais globalizada. Habilidades múltiplas de leitura e escrita - sobretudo em língua materna - são apontadas pelos estudos com os quais dialogamos como fundamentais para que se garantam a implementação e a gradativa expansão de currículos criativos. No que tange ao ensino-aprendizagem1 de língua materna, indicamos a aliança possível e promissora entre escrita criativa e a materialidade literária do vernáculo.
Fundamentada em recenseamento bibliográfico, esta discussão mapeia instigantes diretrizes, percepções e resultados confirmados por recentes estudiosos dedicados à escrita criativa, compreendida também em suas relações com o desenvolvimento emocional e criativo dos estudantes. O inventário elaborado afirma-se como auspicioso caminho para que instituições brasileiras possam beneficiar-se das práticas já experimentadas e consolidadas em países que se revelam avançados no que se refere à implementação de currículos criativos. Embora o estudo esteja delimitado pelo cenário do ensino superior, os insights recuperados sobre o tema podem servir como ponto de partida para reflexões e adaptações pertinentes aos currículos da educação básica e mesmo profissional.
Nosso primeiro movimento analítico compreende a discussão da necessidade contemporânea de serem implementados currículos acadêmicos criativos e lança luz sobre as principais demandas e direcionamentos constatados por autores engajados na teorização sobre educação cidadã global. Em segundo instante, voltamo-nos à escrita criativa, entendida como potencial recurso para a proposição e aprimoramento de encaminhamentos teórico-metodológicos voltados ao ensino-aprendizagem de língua materna, sobretudo via materialidade literária.
2 Educação superior no século 21: em prol de um currículo acadêmico criativo
A investigação das origens sociológicas da universidade moderna, tal como executada por Eric Lybeck (2021), permite-nos compreender mais amplamente os dilemas que o cenário acadêmico contemporâneo mundial tem enfrentado. Ainda que exerçam inquestionável influência sobre a configuração do ensino superior atual, não cabe, no escopo deste estudo, retomar as várias dinâmicas de ordem ideológica, política e econômica apresentadas por Lybeck (2021). Não obstante, uma dinâmica irreversível marca o compasso das práticas didático-pedagógicas contemporâneas: trata-se da constatação de que, a cada dia, mais e mais estudantes têm acesso ao ensino superior e produzem mais e mais conhecimento, ação que gera duplo desfecho. De um lado, mais conhecimento é produzido e esquecido; de outro, também defrontamos mais ignorância, no sentido de que acabamos por reconhecer mais e mais fissuras e lacunas nas diversas áreas do saber. Ponto de comum acordo é que, independentemente da área em que se construa conhecimento, práticas significativas de leitura e escrita criativas são pressupostos à real e à integral formação dos universitários.
Para Arthur B. VanGundy (2005), a criatividade se consolidou como trunfo fundamental em todas as práticas humanas, sendo indispensável a contextos de ensino-aprendizagem característicos por sua incessante mudança. Dia após dia, organizações imersas em uma ordem global - como as universidades - demandam intervenções criativas para que estejam aptas a criar e a entregar produtos e serviços inovadores. Tais iniciativas, que priorizam o desenvolvimento de habilidades criativas, viabilizam exponencial preparação de capital humano, uma vez que fomentam o mapeamento e a exploração consciente de nossas próprias potencialidades (VANGUNDY, 2005).
Embora este artigo se concentre em uma discussão voltada ao domínio acadêmico, não podemos ignorar o fato de que a condição presente das habilidades de leitura e escrita do corpo discente universitário depende de todas as intervenções (bem-sucedidas ou não) às quais os alunos foram expostos e com as quais interagiram em toda sua jornada escolar. Tal constatação assinala, portanto, outro agente de fundamental importância que também coprotagoniza as práticas de leitura e escrita: o professor dos níveis primários.
A educação de nosso século não pode ser pensada em um território alheio ao da globalização e da diversidade e, por essa razão, pressões e possibilidades têm reconfigurado a prática docente. Para Tony Townsend e Richard Bates (2007, p. 8), “a educação docente tem de desenvolver professores que aprenderam a lecionar com um olho cultural”,2 sendo o domínio fluente de idiomas e a compreensão de diversos cenários religioso-culturais dois requisitos definidos como pontos de partida. Essa observação argumentativa partilhada por Townsend e Bates reforça a importância de serem realizadas iniciativas capazes de fomentar e de articular 1) o uso proficiente de uma língua (sobretudo da materna) e 2) o aprimoramento das habilidades de interpretação, se considerarmos que as múltiplas configurações culturais possíveis são e produzem textos que precisam ser lidos de forma não distorcida e respeitados em suas condições de produção e circulação.
A capacidade de raciocínio crítico e o domínio das tecnologias em desenvolvimento compõem também o inventário de demandas para professores, estudantes e futuros profissionais do século 21, que devem ser formados para “se tornarem aprendizes por toda a vida, com habilidades de pensamento crítico, mente aberta, criatividade e senso de responsabilidade” (TOWNSEND; BATES, 2007, p. 18).3 Para a sólida construção desses perfis docente e discente, pesquisadores como John Loughran (2007) advogam insistentemente em favor do aprimoramento das habilidades de pesquisa, uma vez que os complexos movimentos cognitivos exigidos por essa prática tornam viável a autonomização de importantes partes do processo, dentre as quais destacamos a análise das próprias intervenções pedagógicas levadas a cabo. Trata-se de uma estratégia prioritária, no que se refere à mobilização de habilidades metacognitivas, essenciais para que os próprios alunos acompanhem, explorem e compreendam seus processos mentais (LOUGHRAN, 2007, p. 589).
A argumentação de Loughran dialoga diretamente com o estudo de Maree Gosper e Dirk Ifenthaler (2014), que, ao mapear as demandas curriculares para o século 21, enfatiza a necessidade de se modificar o perfil do estudante, de modo que ele assuma ativamente o protagonismo do processo. Habilidades como “realizar discernimentos”, “aplicar conhecimento” e desenvolver a reflexão crítica são apontadas como prioritárias para o desenvolvimento integral da “comunidade de aprendizes” (GOSPER; IFENTHALER, 2014, p. 1-2). Ao raciocínio de Gosper e Ifenthaler (2014) importa acrescentar a constatação de que, em um ambiente acadêmico contemporâneo, não somente um ou outro agente (seja aluno ou docente ou gestor, a depender da forma de análise escolhida) deve reconhecer-se protagonista - concepção que pode implicar hierarquização dos indivíduos envolvidos: concebemos que todos compõem, em posição de igualdade, uma comunidade científica de aprendizagem norteada por relações interpessoais. O currículo, nesse sentido, deve ser compreendido como um processo em permanente construção e validação, que tem como principal objetivo promover o autoconhecimento, o pensamento crítico e o desenvolvimento integral do ser humano.
Traduzir os processos criativos, sobretudo em linguagem escrita, desponta como uma das principais dificuldades enfrentadas por alunos em formação e mesmo por docentes que já concluíram seus estudos formativos iniciais (JACKSON, 2006). Para que os estudantes encontrem incentivo e meios para desenvolverem suas potenciais tendências criativas, é indispensável que os professores treinem as próprias habilidades que lhes permitem elaborar estratégias eficazes de aprendizagem (JACKSON; SINCLAIR, 2006).
Ao investigar o cenário multilinguístico, multitecnológico e multicultural ao qual pertencemos e dentro do qual produzimos e consumimos conhecimento, Norman Jackson (2006) busca delimitar que práticas curriculares devem ser, então, priorizadas na universidade para que todas essas distintas variáveis encontrem um ponto de equilíbrio capaz de favorecer o objetivo último da educação universitária, qual seja, a formação de um sujeito para a cidadania global. Segundo o autor, não pode ser concebida uma educação para o século 21 sem que as práticas do currículo priorizem a criatividade, que também é responsabilidade das universidades. Sua defesa é em prol de um currículo imaginativo, sustentado por estas premissas: 1) ajudar as pessoas a serem criativas é humanizador; 2) as pessoas ficam mais satisfeitas quando são criativas; 3) a criatividade é indispensável para enfrentarmos as demandas de adaptação impostas pelo mundo; 4) uma educação de qualidade implica associar habilidades acadêmicas mais tradicionais com habilidades criativas; e 5) a criatividade é a base de qualquer empreendimento acadêmico, já que também opera pela dinâmica da localização e solução de problemas.
Na mesma direção segue a argumentação de Michael Fullan (2003, p. 18), para quem o propósito moral último da educação é “fazer a diferença na vida dos alunos”, de modo que a persistência da cultura da perfeição se abrande, possibilitando a criação de espaços de ensino-aprendizagem criativos que lidem de forma mais tolerante com supostas falhas. Ao desenvolver seu argumento a respeito da aprendizagem ativa e de sua relação com a criatividade, Kayo Matsushita (2018, p. 29-30) comenta que um currículo baseado em intervenções ativas promove profundo engajamento, o que é por ele entendido como um estado de fluxo/imersão capaz de promover real felicidade e significado.
“A criatividade,” escreve Anna Craft (2006, p. 19), “não é mais vista como um extra opcional” e deve ter reservado seu espaço central em meio às iniciativas educacionais contemporâneas, mesmo quando levado em consideração que o ensino superior, de forma abrangente, ainda não se mostra apto à criação de espaços de aprendizagem que valorizem a criatividade dos estudantes (EDWARDS; McGOLDRICK; OLIVER, 2006) e que aprimorem seus domínios cognitivo, afetivo e psicomotor (NERANTZI, 2019).
A pesquisa de Marilla D. Svinicki e Wilbert J. McKeachie (2014) comprova que o recurso à criatividade, em qualquer contexto de ensino-aprendizagem, estabelece aliança entre a motivação extrínseca e intrínseca dos alunos, sendo esta última a responsável por experiências mais significativas. A partir dessa dupla motivação, a própria criatividade (por sua vez) é retroalimentada:
A motivação intrínseca tem comprovado que promove o crescimento da compreensão conceptual, da criatividade, do envolvimento e da preferência [discente] pelo desafio. Pesquisas baseadas na aprendizagem de alunos universitários têm indicado que os estudantes com orientação intrínseca estão mais inclinados a usar estratégias cognitivas, tais como elaboração e organização, o que resulta em um processamento mais profundo dos materiais […] (SVINICKI; McKEACHIE, 2014, p. 140).
Portanto, práticas curriculares que se norteiam pela criatividade e que compreendem a importância assumida pelas artes no perímetro universitário garantem reformulação e flexibilização da visão de mundo, de modo que o caos, a diversidade, a complexidade e a divergência de pontos de vista se tornem integrados.4 A partir de tal perspectiva, temos a incerteza como sendo autóctone aos espaços de elaboração do conhecimento, inclusive do conhecimento epistemológico, que não se conforma a uma estabilidade cumulativa:
[Tal dinâmica] deve ser completamente apreendida pelos elaboradores do currículo e autores, dada a importância deste tópico da incerteza; o problemático e as contendas em face de assuntos e preocupações cambiantes tornam as orientações político-[curriculares] e o material de apoio curricular muito difíceis de serem desenvolvidos (LOUGHRAN, 2007, p. 592).
Além dessa consciência diante dos desafios ininterruptos de nossa contemporaneidade, a criatividade pessoal foi apontada pelo documento “Pedagogy for Employability Group” (2004, recuperado por JACKSON, 2006, p. 6) como um dos requisitos mais frequentemente indicados como imprescindíveis à contratação de egressos dos mais variados cursos. O desenvolvimento da criatividade pessoal é visto como primordial para que os estudantes (ou seja, futuros profissionais) lidem bem com adaptações, tenham disposição em aprender e autonomia, saibam trabalhar em grupo e sob pressão, administrem bem o tempo e a tomada de decisões. Todavia, é outro ponto do texto de Jackson (2006) que merece especial atenção aqui: a criatividade também foi indicada como habilidade intransferível que garante, aos egressos, boa comunicação oral, boa comunicação escrita e sofisticados letramentos. A despeito da existência de toda uma gama de recursos tecnológicos cuja promessa é simplificar (para não dizer alienar) os processos de leitura e escrita, ambas as habilidades permanecem essencialmente intelectuais e, portanto, demandam espaços para compreensão e prática.
Em adição, como argumenta a filósofa Martha Nussbaum (2002), a educação de nosso século deve ser uma educação cosmopolita, reconhecedora de que todo cidadão possui responsabilidades transnacionais, mesmo que, na prática, muitas demandas de intervenção ainda permaneçam problemáticas e suscitem discussões de ordem ética. Esses impasses indicam a incompletude do campo, embora seja consensual a ideia de que o ensino superior pode e deve contribuir com a tomada de consciência de todos os sujeitos que, direta ou indiretamente, participam de sua rotina e de suas propostas de intervenção.
Em prol de uma educação cidadã global, a universidade tem de formar seus estudantes para compreenderem que a validação do conhecimento produzido é uma questão política e para vivenciarem abertura a múltiplos ângulos interpretativos sobre a realidade (PARMENTER, 2018). Embora haja muito a ser construído para que a educação cidadã seja uma realidade em todos os países (RICHARDSON, 2008), toda universidade que busque direcionar suas práticas educacionais por esse caminho deve partir do princípio de que a educação fundamentada na cidadania intercultural está na pauta do dia - o que torna imprescindível o diálogo entre grupos com diferentes idiomas e culturas (BYRAM, 2011).
Autores como Edda Sant e Gustavo González Valencia (2018), e Simon Marginson (2016) reconhecem que a principal tensão instalada em decorrência dos movimentos de globalização das últimas três décadas diz respeito aos impasses alojados entre uma educação voltada a demandas nacionais e uma educação atenta a imperativos globais, ou seja, aos entraves estabelecidos entre o global e o local, que, gradativamente, têm suas fronteiras diluídas. Por conseguinte, importa que a configuração de toda iniciativa didático-pedagógica leve em consideração essa via de duplo trânsito para que possa assegurar formação integral aos seus protagonistas, que não podem perder as redes transnacionais do horizonte, mas também não devem planificar as experiências culturais de sua realidade imediata.
Ao mapear os princípios a serem priorizados por uma instituição escolar voltada à cidadania global, Robert Hattam (2018) sintetiza seis pontos cruciais: 1) a diversidade cultural deve ser valorizada como um trunfo; 2) o trabalho com a língua materna é fundamental à ampla formação dos estudantes (qualquer que seja o nível educacional ao qual pertençam); 3) a identidade cultural individual deve ser valorizada; 4) o espaço das práticas educacionais deve garantir o acolhimento de todos; 5) as relações entre estudantes, professores e líderes precisam manter-se horizontalmente; e 6) a polifonia inerente à sala de aula (distintas vozes de múltiplos interlocutores) deve ser valorizada e a ela deve ser garantida visibilidade.
Todas essas constatações estabelecem um ponto de partida para que sejam criados “novos espaços para possibilidades sociais e educacionais” (ABDI; SHULTZ, 2008) dedicados, principalmente, ao estímulo da “sensibilidade intelectual para participação política e para a precoce indução da juventude em uma tradição de prática democrática” (ISAACS, 2018, p. 163) - ideal educacional sintetizado por Tracey I. Isaacs que faz ressoar o que John Dewey já havia amplamente sinalizado e discutido em obras como How we think ([1910]/1933), Democracy and education ([1916]/1930), Experience and nature ([1925]/1929) e Art as experience ([1932]/1980), sem jamais deixar de discutir também a relevância das artes para a formação integral dos estudantes.
3 A escrita criativa como recurso criativo ao currículo universitário e ao ensino-aprendizagem de língua materna
Os pontos teóricos delimitados na seção anterior fundamentam a cosmovisão deste estudo, assim como sugerem propostas de encaminhamentos teórico-metodológicos capazes de sustentar a implantação e a execução de práticas curriculares criativas no âmbito do ensino superior. Norteados pelos estudos mapeados, sustentamos a ideia de que o desenvolvimento de práticas curriculares que contribuam, de forma criativa, com o aperfeiçoamento das habilidades de leitura e de escrita dos universitários pode ser conquistado a partir dos fundamentos teóricos e estratégicos da escrita criativa.
David Morley (2007) expõe-nos os pressupostos desse campo que, embora apresente objetivos que não sejam historicamente recentes,5 a partir das últimas décadas tem chamado sobremaneira a atenção da universidade como um todo, dadas as contribuições que a compreensão dos processos criativos de leitura e escrita é capaz de estender aos estudantes de qualquer área do conhecimento, sobretudo no que se refere à percepção metacognitiva e aos múltiplos processos de representação e metaforização cotidianos.
A escrita criativa é um caminho promissor e aprazível para que estudantes e interessados se aproximem e explorem os mais variados continentes culturais das múltiplas geografias literárias, quer sejam regionais ou universais. Ainda que essa incursão no universo literário assegure a fruição de relevantes tesouros - como a ampliação do repertório textual dos leitores e escritores -, a busca principal refere-se à formação de participantes críticos, que conseguem expressar de forma mais clara seu raciocínio, tornando-se mais hábeis ao ler e escrever. Para Morley (2007, p. 23), o estudo e a prática da escrita criativa facilitam a descoberta e o aprimoramento de “nossas próprias potencialidades”, o que fortalece aquelas habilidades criativas que, como mencionamos, são fundamentais à educação do século 21.
Importante benefício assinalado pelo autor corresponde, especialmente no meio acadêmico, ao gradativo reconhecimento da voz autoral dos participantes, os quais aprendem a se manifestar de modo mais genuíno em sua produção textual. O exercício no território da escrita criativa serve também como profícuo contraponto para a aprendizagem de gêneros textuais marcadamente acadêmicos, como o ensaio ou a resenha (MORLEY, 2007), uma vez que facilita o trânsito entre a crítica e a criação, contribuindo assim com a apreensão racional dos processos criativos e, consequentemente, com as habilidades de valoração dos estudantes.
Arthur VanGundy (2005, p. 88) chama-nos a atenção para o fato de que a escrita criativa promove expansão de nossa visão de mundo, já que viabiliza “considerar nova informação e perspectivas que podem ter passado despercebidas”. Para o autor, a adoção de metodologias criativas estimula, sobretudo, o trabalho de criação de ideias - trunfo humano que não pode deixar de ser explorado por iniciativas de ensino-aprendizagem, tendo em vista que a capacidade de realizar associações não pode ser delegada a máquinas, ainda que o desenvolvimento destas se caracterize, contemporaneamente, por seu rápido avanço. Mais do que exigir a memorização de informações, o contexto universitário atual deve contribuir para que os alunos aprendam a localizar padrões e a realizar associações criativas e inovadoras (VANGUNDY, 2005).
Ao reconhecer a relevância dos estudos atuais vinculados à área da inteligência emocional, a pesquisa de Kateryna V. Keefer, James D. A. Parker e Donald H. Saklofske (2018) confirma que também a dimensão emocional do estudante não pode ser desconsiderada pelas práticas curriculares contemporâneas. Nesse sentido, o ensaio de Marina Fiori e Ashley K. Vesely-Maillefer (2018, p. 26), para além de reforçar tal constatação, elucida as quatro dimensões da inteligência emocional que devem se articular com o auxílio de propostas curriculares criativas, a saber: 1) autopercepção de emoções; 2) compreensão das emoções; 3) gerenciamento das emoções; e 4) facilitação do raciocínio via emoções. O equilíbrio entre esses quatro blocos recebe importante respaldo de práticas de escrita - sobretudo em língua materna -, que se apresentam como recurso para consolidação e integração do autoconhecimento emocional do estudante, como relatado por Janine Montgomery et al. (2018).
A escrita criativa organiza o currículo de modo que o estudante assuma papel protagonista em sua aprendizagem e, além disso, o trabalho com textos literários ratifica a relevância das áreas das humanidades, que tocam questões de complexo julgamento, tais como “tópicos éticos”, “preocupações sociais”, “julgamento” e o “reconhecimento da agência humana” (MARTIN, 2003, p. 301).
Para Philip W. Martin (2003, p. 303), as humanidades demandam contínua interpretação e contínua revisão - o que implica o desenvolvimento e manutenção de habilidades hermenêuticas complexas - porque lidam, sobretudo, com constructos passíveis de reelaboração. De forma específica, a literatura angaria especial valor humanístico, principalmente porque promove o confronto do estudante com alteridades. Tal interação, argumenta Martin (2003), prepara o aluno para questionar o próprio conhecimento estabelecido, bem como para atuar em um mundo de alta complexidade. Assim sendo, currículos criativos devem ser valorizados, de modo a sustentar uma “sala de aula de habilidades mistas”, uma vez que, nesse espaço de ensino-aprendizagem, “assunções causais sobre conhecimento cultural, tão prevalentes [em disciplinas das humanidades], não podem mais ser estabelecidas” (MARTIN, 2003, p. 322). Portanto, a escrita criativa, associada ao domínio das artes, é caminho de destaque para o desenvolvimento do pensamento crítico do estudante.
John Adair (2007) advoga em favor do uso da escrita como recurso fundamental para a descoberta e consolidação de ideias criativas, e aponta também que a escrita crítica e criativa - que pode ser bem desenvolvida no espaço universitário em benefício da consolidação das habilidades de leitura e escrita em língua materna - é indispensável para a elaboração e fundamentação de discernimentos críticos. Tais premissas estabelecem sintonia com o estudo de Matsushita (2018), para quem a escrita é recurso indispensável ao engajamento dos estudantes, condição primeira para que possam ser desenvolvidas iniciativas de aprendizagem ativa.6
Bronwyn T. Williams (2013, p. 25) reforça a possibilidade de a escrita criativa ser um recurso promissor para o trabalho com gêneros textuais não ficcionais, dentre os quais se destacam o ensaio e produções da esfera jornalística:
A não ficção criativa situa seu poder em nossos desejos por conhecimento e narrativa. Escrever não ficção criativa é unir o relato de eventos, pessoas e lugares, que são a província dos jornalistas, historiadores e biógrafos, a técnicas narrativas e ferramentas líricas de romancistas e poetas.
O ponto de vista sustentado por Williams comprova a amplitude das vantagens da prática de escrita criativa no perímetro acadêmico e, mais adiante, o teórico corrobora o principal desses benefícios, qual seja, o auxílio à delimitação da posição e voz autorais. O aprimoramento de técnicas narrativas, via escrita criativa, contribui inclusive para que o autor, ao perceber a dinâmica intrincada e complexa existente entre fato e representação, não perca de vista o horizonte ético do que se dispõe a narrar.
A possibilidade de trabalho articulado entre escrita criativa e outras artes é ratificada pela pesquisa de Harriet Edwards e Julia Lockheart (2013), que enfatizam o caráter experimental da prática de escrita criativa, assim como o amplo suporte oferecido pelos recursos tecnológicos atuais. As autoras refletem sobre o contexto em que desenvolveram diversas atividades com escrita criativa e sublinham que os seguintes elementos facilitaram o protagonismo automotivado dos participantes, sendo eles: ludicidade, espontaneidade, trabalho colaborativo e abertura à interpretação de novos pontos de vista.
Jeri Kroll (2013) dispõe-se a refletir sobre a crescente formalização escolar - sobretudo no ensino superior - das práticas de escrita criativa, e seu texto não deixa de recuperar um ponto já mencionado: para a autora, é inegável a demanda de professores com excelentes habilidades leitoras e escritoras em qualquer nível educacional (primário, secundário ou terciário). Essa necessidade é por ela vinculada também às novas configurações educacionais do cenário global em que vivemos, o qual tem muito de que se beneficiar com as intervenções focalizadas em escrita criativa.7
Um lúcido estado da arte é-nos apresentado no estudo de Graeme Harper (2013), que também registra previsões para o futuro da escrita criativa. Essas conjecturas para o século 21 podem ser condensadas em três pontos principais: 1) o número de envolvidos com a escrita criativa será ampliado - decorrência das facilidades garantidas pela dinâmica das novas tecnologias, que estabelece relações mais diretas entre autor e leitor; 2) a escrita criativa, cada vez mais, receberá formalização dentro de contextos educacionais; e 3) a criatividade estimulada pela imaginação permanecerá como importante diferencial das pessoas e a “escrita criativa será mais bem vista como parte de um intercâmbio colaborativo de muitas atividades criativas humanas” (HARPER, 2013, p. 431). Logo, a universidade que busque aliar-se às tendências da educação contemporânea deve considerar implantar (ou ampliar) os espaços de trabalho com práticas de escrita criativa.
4 Conclusões
Imersa nos movimentos globalizantes que acentuadamente caracterizam o século 21, a educação universitária tem sido interpelada a reinventar-se, de modo a, gradativamente, substituir paradigmas obsoletos e currículos que não garantem espaço e atenção à questão da criatividade no meio acadêmico. Em meio a uma contemporaneidade fundada em demandas de tensão global e local/regional, o espaço universitário deve, com urgência, buscar caminhos para que sejam implementadas e consolidadas práticas curriculares criativas e que se aliem a uma concepção de estudante que o entenda como um ser humano em formação para exercer a cidadania global.
A escrita criativa viabiliza trabalho significativo com a língua materna, sobretudo a partir da materialidade literária, e ampara intervenções que favorecem o desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais dos aprendizes - demandas de igual valor em nossa contemporaneidade.
Todos os estudos indicados apresentam-se como instigantes pontos de partida para que cada professor, ciente dos potenciais e limitações de seu contexto de trabalho, possa beneficiar-se dos insights e resultados positivos registrados e chancelados academicamente. Ainda que cada perímetro sociocultural tenha de haver-se com suas idiossincrasias, o que torna impossível a exata replicação de intervenções didáticas e pedagógicas, confiamos em que a partilha de experiências reconhecidas como frutíferas nesta ou naquela comunidade é iniciativa básica para que provocações nos alcancem e nos façam refletir tanto sobre possibilidades imediatas quanto futuras, assim como nos provocam a considerar, de forma consciente e sensata, os elementos do caminho que facilitam nosso progresso e os elementos do percurso que devem sair de cena porquanto impeditivos, retrocedentes.