Introdução
As pesquisas sobre egressos constituem uma agenda importante do ponto de vista das políticas educacionais. De um modo geral, pesquisas sobre e com egressos importam às Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras, uma vez que possibilitam um retorno, tanto à IES quanto à sociedade, sobre o investimento em educação que, de uma maneira ou de outra, é propiciado pelos cidadãos que pagam os seus impostos.
As pesquisas mais recentes sobre egressos de cursos de licenciatura no Brasil mostram que há significativo abandono do magistério por parte de licenciados de diversas áreas do conhecimento, principalmente nos primeiros anos de atuação. Isso acontece devido às condições de trabalho inadequadas e pouco atrativas impostas à maioria dos professores no país. Mesmo aqueles que permanecem trabalhando como docentes, notadamente motivados por uma atitude positiva em relação à profissão e pela possibilidade contribuir com o aprendizado dos alunos e com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, não apreciam as condições precárias em que trabalham (FURLAN; HOJO, 2008; KUSSUDA, 2012; SILVA, 2012; SOUTO; PAIVA, 2013; AMORIM, 2014; VARGAS, 2016; COELHO, 2017).
O cenário para a formação docente em nosso país também é pouco animador. Um número pequeno de estudantes se interessa pelos cursos de formação de professores em decorrência, principalmente, do baixo prestígio social e das condições precárias de trabalho e de salário encontradas na maioria das escolas brasileiras, que diminuem o status social da carreira do magistério no Brasil. Aqueles que decidem ingressar em cursos de licenciatura, o fazem, muitas vezes, por ser a opção possível, não a desejada (GATTI et al., 2009).
A baixa atratividade da carreira docente, a formação acadêmico-profissional1, que nem sempre corresponde à ideal ou realmente prepara o estudante para os desafios que ele enfrentará, e a escolha arbitrária pela licenciatura são alguns dos fatores que contribuem para que, mesmo tendo concluído o curso, muitos licenciados não trabalhem como professores ou abandonem a carreira depois de algum tempo (LAPO; BUENO, 2003; GATTI et al., 2009; DINIZ-PEREIRA, 2011).
Diante do exposto e das preocupações em relação à trajetória profissional de licenciados, o principal objetivo da pesquisa, relatada neste artigo, foi analisar o destino profissional de egressos de um curso noturno de licenciatura em Ciências Biológicas em uma universidade pública, graduados entre 2007 e 20172. Mais especificamente, buscou-se uma melhor compreensão sobre os motivos que levaram esses egressos a permanecerem na profissão ou a abandoná-la. Aspectos sobre a formação acadêmico-profissional também foram analisados, bem como as características socioeconômicas do grupo de licenciados respondentes.
Carreira docente no Brasil: alguns dilemas
Não nos parece coerente discutir a trajetória profissional de egressos de cursos de licenciatura sem levar em consideração o contexto em que se realiza a docência em nosso país. A docência sofre, há décadas, intensa precarização e isso contribui, de maneira expressiva, para a desvalorização crescente da carreira no magistério da educação básica. Porém, como mostra Fanfani (2005), é necessário reconhecer que os professores pertencem a uma classe heterogênea, ou seja, a categoria docente é diversa no que diz respeito às identidades dos profissionais que a compõem e às condições de trabalho às quais são submetidos. No entanto, como mencionado anteriormente, na maior parte dos casos, a docência no Brasil suscita inúmeros desafios que fazem com que a profissão seja pouco almejada tanto em termos de formação em nível superior quanto de atuação profissional.
Um dos aspectos mais frágeis da carreira docente parece ser a questão do salário oferecido à maioria dos professores da educação básica. O Brasil é um país extenso e diverso com milhares de municípios e dezenas de estados, cada um deles com legislações, fonte de recursos e orçamentos diferentes. Há uma variação na remuneração dos professores pelo país. Entretanto, como apontam Gatti e Barreto (2009), “o salário dos professores em geral tem sido baixo quando comparado a outras profissões que exigem formação superior”. Em estudo mais recente, Hirata et al. (2019) constataram que os docentes brasileiros da educação básica recebem um salário cerca de 53% menor do que o de outros profissionais com o mesmo nível de formação.
Outro elemento de precarização do magistério é a inexistência ou inconsistência dos planos de carreira que, de acordo com Gatti e Barreto (2009, p. 256), “são estruturados de modo a não oferecer horizontes claros, promissores e recompensadores no exercício da docência”. Tais aspectos, na visão das autoras, “interferem nas escolhas profissionais dos jovens e na representação e valorização social da profissão de professor” (p. 256).
Além disso, o aumento do número de professores empregados temporariamente, por meio da assinatura de contratos precários, contribui para a crescente precarização de seu trabalho (OLIVEIRA, 2007). No estado de Minas Gerais, por exemplo, acompanha-se um grave problema de “superdesignação” que afeta fortemente a profissionalidade3 dos professores. Segundo Amorim et al. (2018), cerca de 70% dos docentes da Rede Estadual de Educação encontram-se sob contrato temporário.
Somam-se a esse cenário outros elementos como, por exemplo, a indisciplina e a violência crescentes em sala de aula, que nos ajudam a compreender o aumento da incidência de pedidos de licença entre professores, principalmente para tratamentos de saúde por decorrência do trabalho que exercem, ou o desejo de migrar para outros cargos dentro da escola que não exijam lecionar em sala de aula. A dificuldade de lidar com as novas demandas educacionais provoca reações de adoecimento físico e mental em uma parcela importante dos trabalhadores docentes, como já denunciava Esteve (1999).
O cenário apresentado até aqui associa-se ao crescente desprestígio profissional da carreira de magistério e impacta tanto a procura pelos cursos de licenciatura quanto a permanência em sala de aula. Tal situação dificulta a afirmação da “profissionalidade docente” e empurra o magistério em direção a um quadro de crise generalizada que, em um futuro próximo, poderá resultar em uma fragilização ainda maior do sistema educacional brasileiro.
O curso de Ciências Biológicas e o desprestígio da licenciatura
No caso dos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, diversas pesquisas denunciam a prevalência de um modelo “bacharelesco” em que se prepara um profissional com grande carga horária destinada às disciplinas específicas da Biologia e apenas um “verniz pedagógico” sobre os conteúdos das Ciências da Educação, estes, em geral, descolados das questões sobre as práticas de ensino (DINIZ-PEREIRA, 1996; 2000a; GATTI; BARRETO, 2009; SILVA et al., 2016).
Outro impasse que merece ser destacado é a escolha pela licenciatura e o perfil dos alunos que ingressam nessa modalidade. Vários autores apontam para o fato de que os cursos de formação docente não são escolhidos como primeira opção. O público que entra nas licenciaturas, geralmente pertencente a classes economicamente mais desfavorecidas, o faz ou porque não conseguiu aprovação em outro curso de maior prestígio social ou porque trabalha durante o dia e a licenciatura, muitas vezes oferecida à noite, torna-se a única opção viável. Assim, a licenciatura é muito mais uma possibilidade concreta de obtenção de um título de nível superior do que a realização de um desejo autêntico pela docência (LÜDKE, 1994; DINIZ-PEREIRA, 2000b; GATTI; BARRETO, 2009).
Ao considerarmos as condições salariais e de trabalho em que normalmente se realiza a docência no ensino básico no Brasil, o que contribui, como mencionado anteriormente, para o baixo prestígio da profissão e a consequente baixa atratividade da carreira docente, compreende-se porque a licenciatura não é vista com “bons olhos” em IES em que as modalidades bacharelado e licenciatura coexistem. Nesses casos, aqueles que se destinam ao bacharelado têm maior prestígio do que os que focam na docência ou na pesquisa educacional (DINIZ-PEREIRA, 1996; 2000a).
Apesar de que, no caso dos cursos noturnos4, talvez, seja mais remota a possibilidade de o estudante cursar o bacharelado ou ser “recrutado” pela pesquisa acadêmica, muitos alunos do curso noturno de licenciatura em Ciências Biológicas, da instituição investigada, trabalham em laboratórios de pesquisa em Biologia durante o dia. Mesmo que se trate de uma licenciatura - portanto, um curso voltado para a formação de professores da educação básica - muitos fazem conscientemente a opção por esse curso com a intenção de se dedicar integralmente à pesquisa científica no período diurno (DINIZ-PEREIRA, 1996; 2000a). Segundo o relato de egressos participantes do estudo relatado neste artigo, essa lógica de supervalorização da pesquisa em Biologia em detrimento das questões relacionadas à docência, especialmente à docência na educação básica, e que, como vimos, têm raízes na precarização do magistério, permanece na atualidade.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa divulgada por meio deste artigo possui caráter quanti-qualitativo. Os dados foram produzidos em duas etapas, a saber: 1) levantamento de registros dos licenciados; e 2) aplicação de um questionário on-line a egressos do curso noturno, presencial, de licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade pública, graduados entre 2007 e 2017. Dos 680 egressos, formados entre 2007 e 2017, obtivemos resposta de 154 (ou seja, 23% do total).
As respostas às perguntas fechadas foram analisadas por meio de estatística descritiva para determinar numericamente os percentuais, utilizando-se principalmente quadros, tabelas e/ou gráficos para apresentar descrições quantitativas de modo manejável. As respostas às perguntas abertas do questionário, por sua vez, foram analisadas por meio da técnica de análise de conteúdo, proposta por Bardin (2002).
O perfil socioeconômico e a trajetória escolar e acadêmica dos egressos
As respostas à primeira parte do questionário possibilitaram traçar o seguinte perfil de egressos: um grupo oriundo de classes populares, em sua maioria do sexo feminino, com pais pouco escolarizados e com representatividade elevada de pessoas negras (pardas e pretas) em comparação a cursos de maior prestígio social. Esse perfil vai ao encontro do que outras pesquisas apontam (GATTI et al., 2019; LOCATELLI; DINIZ-PEREIRA, 2019).
Em relação ao sexo: dos 154 licenciados respondentes, 69% são mulheres. O grupo de egressos também se mostrou relativamente jovem, uma vez que cerca de 76% têm idade entre 25 e 34 anos. No que tange à cor ou raça, a maioria dos licenciados se declarou branca (56,5%), enquanto 35,7% se declararam pardos, e apenas 7,8% pretos. Em relação à renda mensal familiar, 60,7% encontram-se na faixa de um a seis salários-mínimos.
As respostas à segunda parte do questionário, com perguntas sobre a trajetória escolar e acadêmica dos licenciados, possibilitaram observar as seguintes características: 1) a maioria cursou o ensino fundamental e médio em escolas públicas - respectivamente 63,6% e 57,1%; 2) após o término do ensino médio, o tempo transcorrido até o ingresso na universidade foi, em média, 2,7 anos; 3) a licenciatura como modalidade de curso estava nos planos de apenas 57,2%, isto é, 42,8% não tinham a intenção de ingressar em um curso voltado para a formação de professores, apesar de terem concluído a licenciatura; 4) o perfil de aluno trabalhador conferido aos estudantes do noturno foi confirmado na pesquisa relatada neste artigo, pois, 80,4% dos egressos respondentes precisaram trabalhar durante a graduação - destes, 33,8% já trabalhavam como professores da educação básica antes mesmo de se graduarem, porém, sem nenhum tipo de acompanhamento; infelizmente, algo ainda comum na profissão docente no Brasil.
Em relação à continuação dos estudos por meio de cursos de pós-graduação, 35,7% concluíram ou ainda cursam algum tipo de especialização (pós-graduação lato sensu); enquanto, em relação à pós-graduação stricto sensu, em nível de mestrado e doutorado, o percentual respectivo é de 51,9% e 27,2% entre os que concluíram ou que ainda estão com os cursos em andamento. Entretanto, ainda que parte importante dos licenciados tenha continuado os seus estudos na pós-graduação, apenas cerca de 23% desses cursos de pós-graduação (lato sensu e stricto sensu), cursados ou em andamento, são no campo da pesquisa em educação e/ou ensino. Vale apontar que a pós-graduação, nesse contexto, revelou-se para alguns egressos uma oportunidade de “fuga” das condições precárias de trabalho e de carreira oferecidas aos professores da educação básica. Trata-se, na verdade, de uma estratégia, no sentido bourdieusiano do termo, para pleitear vagas como professores da educação superior, carreira potencialmente melhor posicionada economicamente e socialmente, se comparada à docência na educação básica.
Os licenciados participantes da pesquisa integram um grupo, de modo geral, relativamente jovem, oriundo de escolas públicas, composto por uma maioria feminina, com representação considerável de pessoas negras, que não ingressou na universidade imediatamente após o término do ensino médio, que precisou trabalhar ao mesmo tempo em que cursava a graduação, com renda familiar pouco representativa e pais pouco escolarizados. Nem todos os licenciados respondentes ingressaram nesse curso porque era a primeira opção, sendo a licenciatura, como discutido anteriormente, para muitos, um caminho alternativo e, às vezes, o único possível.
O destino profissional dos licenciados
Em relação à trajetória profissional, dos 154 egressos que responderam ao questionário, 70% (108) declararam possuir um emprego no momento da pesquisa. Destes, somente 36% tinham a docência como atividade principal - o que corresponde a 67 % (39 de 58 licenciados) dos egressos que trabalhavam como professores e 23% do total de egressos (39 de 154 respondentes).
Entre os licenciados que não tinham a docência como trabalho principal (45% do total de egressos respondentes), 15% declararam atuar como servidores públicos, 12% disseram ser pesquisadores, 10% biólogos, 9% trabalhavam como assistentes administrativos e 9% como técnicos de laboratório. Outras atividades também foram citadas, porém, em menor proporção, como o trabalho como oficial militar (três egressos), como perito criminal (dois egressos), como auxiliar de informática (dois egressos), vendedor (dois egressos), agente de combate a endemias (dois egressos) e coordenador pedagógico (dois egressos), dentre outras atividades.
Sobre os diferentes perfis de trajetórias profissionais identificadas na pesquisa relatada neste artigo, destacamos três: Perfil 1 - Licenciados que nunca trabalharam como professores; Perfil 2 - Licenciados que ingressaram no magistério e abandonaram a carreira depois de um tempo; e Perfil 3 - Licenciados que ingressaram e permanecem na docência.
Dos 154 egressos participantes desse estudo, 39% (60 licenciados) não chegaram a atuar como docentes em momento algum (Perfil 1); 23% (36 licenciados) trabalharam como docentes, no entanto, depois de algum tempo, abandonaram a carreira (Perfil 2); e 38% (58 licenciados) trabalhavam como professores (Perfil 3), ainda que temporariamente afastados da sala de aula, seja para a continuação dos estudos ou por outros motivos. Cabe informar que, dois desses 58 licenciados que atuam como docentes ensinam idiomas, não lecionando, portanto, em sua área de formação.
A preocupação em relação a esses dados centra-se principalmente no que diz respeito ao percentual de egressos que não trabalhavam como professores, profissão para a qual foram formados. Se somarmos o número de egressos que jamais lecionaram ao de egressos que abandonaram a docência, temos um percentual de 62% (ou seja, 96 egressos!). Assim, mais da metade dos egressos, participantes da pesquisa, não atuava em conformidade com a sua formação acadêmico-profissional. Mesmo considerando somente aqueles que não trabalharam como docentes depois da graduação, as proporções continuam, de maneira relativa, altas, uma vez que, examinando somente esse grupo, mais de um terço dos licenciados seguiu outros caminhos profissionais sem sequer passar pelo magistério na educação básica.
Os dados apresentados corroboram alguns trabalhos de pesquisa que indicam um percentual elevado de licenciados que não se dedicam ao magistério. Nunes et al. (2009, p. 162) informam que “na média, menos de 50% dos egressos das faculdades trabalham na profissão para a qual estudaram”. Rocha (2013), em sua pesquisa com egressos de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas, encontrou um percentual de mais de 70% de licenciados que não atuavam profissionalmente no magistério. Coelho (2017) também constatou um percentual considerável, 57%, de egressos de um curso de licenciatura em Geografia de uma universidade pública brasileira que não exercia a docência.
Diversos são os motivos que, segundo esses licenciados, influenciaram na decisão de não trabalhar como professores (Perfil 1) ou de abandonar a carreira depois de um tempo (Perfil 2), sendo que o componente salarial foi o mais citado. Alguns licenciados até apresentavam o desejo de atuar como docentes, mas desistiram tendo em vista a oferta de empregos que garantiam maior remuneração, como pode ser constatado no seguinte relato de um egresso:
Quando me graduei, [eu] já havia entrado na carreira militar por necessidade de trabalhar enquanto estudava. Próximo à colação de grau, passei no concurso da prefeitura, colei grau, tomei posse, mas não pude dar continuidade, pois o salário não me permitia desfazer do meu emprego de militar. E, como não era possível acumular dois cargos devido à extensa carga horária, (inclusive tendo à época um filho de três anos de idade), desisti. (L145, F, 40-445).
É compreensível a dificuldade em abandonar as carreiras em outras áreas e se dedicar exclusivamente ao magistério da educação básica quando este não proporciona um retorno financeiro que contemple as necessidades do indivíduo, principalmente, se ele possui compromissos financeiros pré-estabelecidos e/ou dependentes.
O baixo retorno financeiro, como mencionado anteriormente, é um dos fatores que contribuem para a baixa atratividade da profissão docente. Todavia, apesar de possuir uma relevância importante, o salário não foi o único motivo citado pelos licenciados, como pode ser visto no Gráfico 1.
A dificuldade de inserção no mundo do trabalho, as condições precárias de atuação oferecidas aos professores e o interesse pela pesquisa e pela pós-graduação com vistas a ingressar na carreira universitária também foram elementos importantes que apareceram nas respostas dos egressos como justificativas para o abandono da profissão docente.
Em relação ao tempo de permanência no magistério, nenhum dos professores agrupados no Perfil 2 demoraram muito tempo até deixar o magistério, não trabalhando mais que oito anos antes de abandonar a carreira docente. A maior parte desses licenciados (69%) abandonou a profissão docente nos dois primeiros anos de trabalho, quando a carreira ainda estava no início, enquanto 25% declararam ter trabalhado como professores cerca de três até cinco anos antes de abandonar a carreira docente. Nesse perfil, somente dois egressos lecionaram na educação básica por mais de cinco anos. Portanto, 94% dos egressos participantes da pesquisa em questão, e que abandonaram o magistério, desistiram antes de completar cinco anos de trabalho.
É justamente nessa fase inicial do trabalho docente, momento importante e decisivo no desenvolvimento profissional dos professores, que ocorre o chamado “choque de realidade” (HUBERMAN, 2000). Os professores iniciantes, por vezes isolados, têm suas concepções e expectativas confrontadas pelo cotidiano da escola e da sala de aula e, muitas vezes, com pouco auxílio de pessoal mais experiente, são inseridos nas escolas para trabalhar sob as piores condições enfrentando situações demasiadamente desafiadoras. O que acontece é que muitos docentes em início de carreira desistem “e o fazem por estarem insatisfeitos com seu trabalho devido aos baixos salários, a problemas de disciplina com os alunos, à falta de apoio, e às poucas oportunidades de participar da tomada de decisões” (GARCIA, 2009, p. 128). A pesquisa relatada neste artigo apresenta dados que corroboram esse cenário. De acordo com Paz (2013, p. 45), “parece sempre existir, num certo momento, um conflito entre aquilo que o professor projetou para a sua carreira profissional e a realidade encontrada no contexto de trabalho”. A afirmação a seguir, feita por um egresso participante do estudo em questão, confirma o que foi discutido até aqui.
[Eu] não tinha experiência real em sala de aula, como docente. Ao iniciar, senti um pouco deixado [de lado], sem uma orientação na escola. De repente, estamos em sala e temos que dar conta da complexidade da profissão rapidamente, com carga horária extensa etc. (L137, M, 25-296).
Nessa direção, as respostas à questão sobre como os egressos foram recebidos nas escolas, em seus primeiros anos de atuação, apontam para uma total ausência de uma política de acompanhamento dos professores iniciantes. Poucos tiveram experiências de serem supervisionados ou acompanhados, e mesmo aqueles que declaram ter sido bem recebidos na escola, no sentido da cordialidade dos colegas, disseram não ter presenciado nenhum tipo de apoio institucional, tendo que aprender a “caminhar sozinhos”. Ainda em casos em que o acompanhamento inicial existia, a maioria das experiências parece não ter sido satisfatórias, transformando-se em uma maneira de controle e de regulação do trabalho dos licenciados.
Apesar de ter sido constatado o desamparo no início da carreira, e esse fator ter sido citado por alguns egressos como o um dos motivos que influenciaram na decisão de abandonar a docência, na maioria das respostas, percebe-se que tal elemento, apesar de ter importância, não foi decisivo. A responsabilidade maior, para grande parte desses licenciados, é conferida, principalmente, aos baixos salários, à indisciplina dos alunos e às condições precárias de carreira oferecidas no magistério, em especial, aos professores iniciantes, muitos deles sob regime de contrato temporário. Somente dois egressos, entre aqueles que abandonaram a docência depois de um tempo de atuação possuíam cargo efetivo.
Embora a questão salarial apareça como uma das principais causas, o abandono do magistério também está associado, no caso do grupo investigado, a outros fatores como o trabalho regido por contratos precários e temporários, o comportamento considerado indisciplinado e o desinteresse dos alunos em sala de aula, bem como a desvalorização da figura do professor. Esses elementos são potencialmente mais estressantes quando o professor está aprendendo a ensinar e se inserindo no magistério. Essas constatações corroboram o que mostraram diversos estudos sobre a trajetória profissional de licenciados e o abandono do magistério, como é o caso dos trabalhos de Lapo e Bueno (2003), Kussuda (2012), Paz (2013), Coelho (2017) e Carlotto et al. (2019)7.
As condições aviltantes de trabalho às quais são submetidos os professores, e que não são exclusivas aos respondentes da pesquisa relatada neste artigo, mas uma realidade que afeta diversos docentes por todo o Brasil, certamente, como discutido anteriormente, contribui para o abandono do magistério. Mesmo os licenciados, participantes do estudo em questão, e que trabalham como professores, já pensaram em desistir da carreira em algum momento devido à precariedade em que normalmente se exerce a docência na educação básica em nosso país.
Se o contingente de licenciados em Ciências Biológicas, egressos do curso noturno, que se encontra, de fato, trabalhando como docente parece baixo (38%), constatamos ainda que cerca de 18% desses professores não pretendem continuar lecionando nos próximos cinco ou dez anos. Provavelmente, inicia-se entre esses professores um processo de desistência e abandono da carreira. Segundo Carlotto et al. (2019), esse processo começa justamente com a intenção de abandonar a profissão.
Entretanto, ainda que alguns egressos professores pretendam deixar a profissão, existem aqueles que desejam permanecer nela. No caso da pesquisa relatada neste artigo, 82% dos egressos professores (Perfil 3) manifestaram o desejo de permanecer lecionando nos próximos dez anos. Destes, cerca 73% apontaram como motivo o sentimento positivo em relação ao magistério, notadamente por seu papel social.
A ideia da importância do papel do professor no sentido de agir em prol da transformação da sociedade por meio da educação foi algo recorrente nas repostas dos egressos professores (Perfil 3). A maioria desses licenciados não menciona as dificuldades encontradas ao longo do exercício do magistério. Alguns mencionam o fato de que, apesar de algumas tribulações, mencionadas de maneira bastante sutil, a docência é algo que traz, para eles, realizações profissionais e, sobretudo, pessoais, principalmente relacionadas ao desejo de ensinar. Gazzotti e Vasques-Menezes (1999) notaram que, de modo geral, o gosto e/ou o desejo pelo ato de ensinar mantém, em grande parte dos casos, o professor na docência superando desafios e impasses relativos ao seu trabalho. Aparentemente, no caso da pesquisa relatada neste artigo, é isso que sustenta o interesse dos professores pela continuidade na carreira docente.
Atrelado aos motivos supracitados, muitos professores apontam alguns caminhos que tornam mais recompensadores o trabalho como professor. Dentre esses caminhos, destaca-se o ingresso no mestrado ou no doutorado como uma maneira de permanecer lecionando, mas em níveis de ensino mais reconhecidos socialmente e/ou com condições mais favoráveis de salário e de trabalho, como na educação superior. Outro caminho citado é a possibilidade de conciliar as aulas com outro tipo de trabalho. Alguns egressos professores (Perfil 3), por se realizarem na profissão, lecionam paralelamente a outras atividades profissionais que complementam a sua renda e garantem o seu sustento. Como mencionado anteriormente, pelo menos 33% dos egressos professores realizavam outros trabalhos além de lecionar. Outros pesquisadores, como Fanfani (2005) e Gatti e Barreto (2009), também mostraram que não é incomum a conciliação da docência com outras atividades remuneradas.
Julgamos importante ressaltar, também, que mesmo entre os egressos que trabalhavam como professores e que desejavam continuar lecionando nos próximos anos (Perfil 3), parecendo ter muita convicção da sua função social como docentes, havia aqueles que já pensaram, em algum momento, em desistir da carreira - um total de 54%. As razões para isso concentram-se, em ordem de importância, segundo as respostas dos egressos, nos baixos salários, nas condições precárias de trabalho ofertadas ao professor, na desvalorização crescente da carreira e nas relações conturbadas com os alunos e seus pais. Esses motivos foram citados, também, pelos egressos professores que desejavam deixar a profissão em um futuro próximo e são semelhantes às motivações dos egressos que abandonaram a docência depois de algum tempo de trabalho (Perfil 2).
Os dados apresentados até aqui permitem afirmar que um percentual relativamente baixo de licenciados, no caso do grupo investigado, torna-se docente, sobretudo da educação básica, e permanece na profissão. Levando em consideração dados apresentados em outras pesquisas sobre a trajetória profissional de egressos, citadas anteriormente neste artigo, aparentemente esse é um problema que assola a docência de modo geral, atingindo também outras licenciaturas. A baixa atratividade da carreira no magistério afeta não somente os que decidem não ingressar no magistério após o término da licenciatura como também aqueles que trabalham como professores e abandonam a carreira, ou que não a abandonaram, mas pensam em fazer isso em breve.
Satisfação com o exercício do magistério: a docência em si mesma versus as condições em que ela se realiza
É possível notar, ao considerar o que foi apresentado e discutido até aqui, que a atitude positiva em relação à docência, marcada, sobretudo, pelo desejo de lecionar ou pela crença no papel da educação e do professor na transformação social, é um fator importante no sentido de manter os professores no magistério, ao menos por certo tempo. Em contrapartida, as agruras da profissão, ou seja, as condições objetivas e estruturais em que a docência se desenvolve, contribuem para o sentimento de insatisfação e de frustração com a profissão que “escolheram” e fazem com que o desejo de abandono da carreira esteja presente. Obviamente, esses dois fatores não são os únicos, pois, outros elementos também perpassam o desenvolvimento profissional dos egressos. No entanto, os aspectos supracitados merecem especial atenção.
Constatou-se, na pesquisa relatada neste artigo, que os egressos que ainda trabalhavam como professores demonstravam-se, de modo geral, mais satisfeitos com a docência quando a consideravam em si mesma, ou seja, quando consideravam o seu objetivo e o seu papel, do que quando levavam em consideração as características objetivas e estruturais de sua realização. Tal constatação vai ao encontro do que foi discutido anteriormente, demonstrando que os professores apreciam a docência e, muitas vezes, por isso permanecem nela, apesar dos desafios, sendo notável também a contribuição das condições às quais os professores são expostos para a rejeição à profissão.
Conclusão
A hipótese inicial era de que nem todos os licenciados teriam, de fato, ingressado no magistério e que um número ainda menor permaneceria trabalhando como professor, especialmente da educação básica. Essa hipótese, em termos quantitativos, foi confirmada, pois a pesquisa mostrou que, apesar de 77% dos licenciados respondentes terem ingressado, em algum momento, no magistério, apenas 38%, pouco mais de um terço dos egressos, trabalhavam como docentes no momento da realização desse estudo.
Uma das principais conclusões da pesquisa em questão, portanto, é que boa parte dos licenciados do curso noturno de Ciências Biológicas, participantes dessa investigação acadêmica - e suspeitamos que isso possa ser uma tendência em diversos outros cursos de licenciatura -, migra para outros campos de atuação ou se dedica por muito pouco tempo ao magistério da educação básica. Isto acontece, principalmente, em virtude da insatisfação com os salários oferecidos nesse nível de ensino que, comparado a outras profissões, são incompatíveis com a formação em nível superior que receberam e das condições precárias de trabalho em que a docência, normalmente, acontece em nosso país.
Embora a docência em si mesma, isto é, aquilo que o magistério parece ser e representa, em sua essência, seja apreciada pelos licenciados, as condições objetivas e estruturais concernentes à carreira na educação básica são pouco atrativas - ou seja, o contexto em que a docência se realiza não agradou/agrada os egressos. Talvez, por isso o desejo expresso por muitos em trabalhar em universidades como professores e/ou pesquisadores, tendo em vista o fato de que a docência universitária, especialmente em instituições públicas de ensino, possui maior prestígio social e oferece melhores condições de trabalho e de salário.
Apesar do contexto geralmente desfavorável para quem exerce a docência na educação básica em nosso país, existem, no entanto, aqueles que pretendem continuar lecionando, seja porque apreciam o trabalho ou porque acreditam na função social dessa profissão. A motivação para tal, decorre, especialmente, a uma atitude positiva em relação ao magistério. Pesquisas futuras que se concentrem em investigar, de maneira mais aprofundada, esses casos podem contribuir para uma melhor compreensão da relação dos professores que permanecem motivados com a docência, mesmo depois de um tempo, e de como se equilibram na dinâmica dos desafios inerentes à sua vida profissional. Talvez, isso possa oferecer um arcabouço teórico que possibilite a definição de estratégias e políticas visando a motivação dos professores para o exercício da sua profissão.
Parece evidente, então, que algo precisa ser feito para que o magistério da educação básica se torne atrativo, não somente para os jovens no momento da “escolha” de um curso superior, mas também aos licenciados para que estes desejem realmente trabalhar como professores nesse nível de ensino.
Por fim, o discurso da “vocação” para lecionar ainda permanece forte na lógica política e social da profissão docente, como se, apesar das condições desfavoráveis, ela bastasse e “amar a profissão” fosse uma prerrogativa para exercê-la. Faz-se urgente a necessidade de melhoria das condições salariais e de trabalho oferecidas aos docentes, visto que a carreira não pode continuar se sustentando apenas por meio da motivação intrínseca dos professores que acreditam em sua função social e a tomam como base para continuar insistindo no seu trabalho. Se nada de relevante for feito, o abandono continuará sendo expressivo e recorrente e isso, claramente, deve impactar negativamente a educação em nosso país, tornando-a ainda mais fragilizada. Os professores formam a base do sistema educacional, portanto não é possível pensar uma educação de qualidade sem oferecê-los formação e condições adequadas para a sua atuação profissional.