Introdução
A letalidade e a alta transmissibilidade do novo coronavírus (SARS-CoV-2), responsável pela pandemia, iniciada em 2020, levaram os governos a adotarem medidas profiláticas para conter a transmissão, uma vez que, em um primeiro momento, não havia tratamentos, tampouco vacinas para a doença. Devido ao fato da transmissão se dar, entre outras formas, por meio de gotículas contaminadas de secreções expelidas no ar por pessoas contaminadas pela COVID-19, uma das medidas preventivas adotadas pelos países foi o distanciamento social (Aquino et al., 2020). Somada à pandemia, o Brasil vivia em um contexto de crises política e econômica que culminaram em desastrosas medidas de austeridade fiscal, como, por exemplo, a promulgação, em 2016, da Emenda Constitucional (EC) nº 95 (Brasil, 2016), cujo objetivo, grosso modo, foi instituir um “novo” regime fiscal através do congelamento das despesas primárias em termos reais, tendo como base as despesas pagas no ano de 2016, que demarcava o início do limite de gastos pelas próximas duas décadas de todos os poderes da União, do Ministério Público da União, do Conselho Nacional do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, sendo admitida apenas elevar os gastos na base da atualização monetária do Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA). Contudo, a famigerada emenda não congela os gastos com os compromissos da dívida pública, pelo contrário permite as despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes.
Em 28 abril de 2020, em razão da pandemia da COVID-19, o Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer CNE/CP nº 5/2020 (Brasil, 2020c), emitiu sugestão de orientações acerca da reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual. O isolamento social afetou a educação escolar ao passo que colocou-a de frente com o inédito desafio de implementação do ensino não presencial, uma vez que, na maioria das redes de ensino do país, as instituições escolares ficaram fechadas no ano de 2020. Deste modo, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), nesse ano, 99,3% das escolas brasileiras suspenderam as atividades presenciais (Brasil, 2020b).
O escasso investimento no ensino não presencial por parte de muitas redes de ensino - segundo o Inep, mais de 80% não forneceram equipamentos para seus docentes realizarem as atividades remotas e mais de 77% não viabilizaram condições para os discentes (Brasil, 2020b) - somada à inércia da União, que, segundo a Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996 (Brasil, 1996), em relação às demais instâncias educacionais, exerce função de coordenação da política nacional de educação, inclusive normativa - culminaram no aumento da alta taxa de evasão e de baixa aprendizagem. Segundo o Inep, no ano de 2021, “registraram-se 46,7 milhões de matrículas nas 178,4 mil escolas de educação básica no Brasil, cerca de 627 mil matrículas a menos em comparação com o ano de 2020, o que corresponde a uma redução de 1,3% no total” (Brasil, 2021c, p. 16).
Nesse sentido, investigar de que forma, através do financiamento da educação, os governos municipais das regiões Centro-Sul Fluminense e Costa Verde do estado do Rio de Janeiro aplicaram suas receitas no ensino no contexto do distanciamento social, ou seja, no exercício financeiro de 2020, é demasiado importante. Para tanto, este artigo está dividido em três seções: a primeira trata dos aspectos gerais do financiamento da educação básica pública, com ênfase na municipal; a segunda traz a pesquisa acerca da aplicação das receitas do percentual mínimo constitucional pelos governos municipais das regiões Centro-Sul Fluminense e Costa Verde; e a terceira apresenta as conclusões desta pesquisa.
Aspectos gerais do financiamento da educação municipal
No pensamento clássico liberal, a ignorância contribui para a concretização da alienação, que é um fator primordial para a manutenção do status quo social e do modo de produção capitalista (Ferraro, 2009). Sob a égide da promoção da cidadania, através dos tributos, o estado financia a educação, que, para a classe trabalhadora, fica limitada a uma escolarização básica e insuficiente para que os trabalhadores não entendam a totalidade das relações sociais nos seus diversos aspectos e, sobretudo, a forma como o modo de produção capitalista explora e expropria sua força de trabalho.
A classe dominante reforça a tese de que a educação promove o desenvolvimento econômico e social dos cidadãos, como, por exemplo, defendeu Theodore Schultz com a “teoria” do capital humano. É bem verdade que aqueles com nível de escolaridade avançado recebem uma remuneração maior do que os demais, porém o acesso ao ensino superior, por exemplo, perpassa por diversos aspectos econômicos e sociais que tornam-se filtros que permitem mais fácil acesso aos que tiveram boas oportunidades durante o período escolar, tão logo, às classes dominantes. Além disso, o que determina as vagas de emprego são as variantes da economia e não, exclusivamente, o número de profissionais formados.
Por outro lado, a educação representa uma ferramenta necessária para a transformação social, ou, conforme afirma Freire, "educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo" (1987, p. 87). Para o marxismo, o processo de omnilateralidade do homem nasce no âmago das próprias relações capitalistas de produção (Ferreira Jr; Bittar, 2008). Dessa forma, através da educação, é possível romper o processo de alienação do homem na atualidade, que encontra, na consciência das contradições do atual modelo de sociedade, a possibilidade para refleti-la para além do capital (Mészáros, 2008). Para Gramsci, a escola pode ser o lócus da atuação individual dos professores, no sentido de proporcionar uma educação revolucionária mesmo em um contexto político social fascista e reacionário (Gramsci, 1975).
Após mais de 20 anos de ditadura, com a instalação de uma Assembleia Constituinte, o Brasil iniciou o processo de redemocratização e de discussão da nova Carta Magna. Como assevera Ximenes (2014), o capítulo da educação na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) deve muito aos movimentos que atuaram em defesa da escola pública, a despeito das forças hegemônicas no âmbito do Congresso Nacional. Contudo, o porvir, após a promulgação da Carta Magna, foi de profundas mudanças e alterações em seu texto original, principalmente após o Consenso de Washington (1989), afetando demasiadamente a educação, sobretudo, o seu financiamento.
A educação, segundo os Art. 6º e 205 da CF (Brasil, 1988), é concebida como um direito fundamental de natureza social inalienável e assegurado ao indivíduo e à sociedade como direito mínimo (Duarte, 2007). A EC nº 14/1996 alterou a redação do Art. 211 da CF, determinando que as áreas prioritárias dos municípios são o ensino fundamental e a educação infantil. Segundo a EC nº 53/2006 (Brasil, 2006), que alterou a redação do inciso IV do Art. 208 da CF (Brasil, 1988), a creche, embora não seja de matrícula obrigatória, é um direito que deve ser garantido a quem queira matricular seus bebês. Para assegurar o direito fundamental à educação, a CF determina no Art. 212 (Brasil, 1988) que os municípios deverão aplicar, anualmente, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE). Embora simples, o dispositivo deve ser analisado de maneira cautelosa, sobretudo por pesquisadores e profissionais envolvidos no financiamento da educação.
O percentual determinado é mínimo, e não máximo, ou seja, o governante municipal pode aplicar acima do determinado na CF, inclusive modificando a Lei Orgânica Municipal (LOM) para que se torne um compromisso que deverá ir além do seu mandato. A aplicação do percentual deve respeitar o rol de despesas previstas no Art. 70 da LDB (Brasil, 1996), ou seja, na MDE, e não na educação, que é uma rubrica mais elástica e considera outros tipos de despesas alheias à MDE, como, por exemplo, a alimentação escolar. Compõem o percentual mínimo as receitas oriundas dos juros e as multas dos impostos, da Dívida Ativa de Impostos (DAI), seus juros e suas multas. Os rendimentos financeiros de impostos também devem ser aplicados na MDE, e a sua contabilização (para fins de alcance do percentual mínimo), segundo a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) (Brasil, 2021b), dependerá da interpretação do Tribunal de Contas. O Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) não é claro em relação à contabilização das aplicações financeiras na Receita Líquida de Impostos e Transferências, mas em relação às receitas do Fundeb tais rendimentos são contabilizados (Rio de Janeiro [Estado], 2020).
Em 2006, foi promulgada a EC nº 53 (Brasil, 2006), que criou os Fundos de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), posteriormente regulamentados pela Lei nº 11.494/2007 (Brasil, 2007a) e pelo Decreto nº 6.253/2007 (Brasil, 2007b). De natureza contábil e de âmbito estadual, os Fundos tiveram vigência de 2007 a 2020, sendo substituídos pelos Fundos permanentes, criados pela EC nº 108/2020 (Brasil, 2020a). Destaca-se que esta pesquisa, por tratar do exercício financeiro de 2020, analisará apenas os Fundos criados pela EC nº 53/2006 (Brasil, 2006).
Os Fundos eram compostos por 20% da maioria dos impostos e das transferências estaduais e pela maioria das transferências municipais. Além dessas receitas, contavam com uma complementação da União, que baseava-se em, segundo a Lei do Fundeb, no mínimo, 10% do total dos recursos dos Fundos. A aplicação das receitas dos Fundos seguia a regra de, no mínimo, 60% para a remuneração dos profissionais do magistério, que estivessem em efetivo exercício nas redes públicas da educação básica, e até 40% das receitas dos Fundos poderiam ser aplicadas em despesas da MDE previstas no Art. 70 da LDB. A receita da aplicação financeira também deveria ser aplicada conforme a lógica de distribuição dos Fundos. Destaca-se que mesmo com a orientação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) acerca da aplicação dos rendimentos financeiros, alguns governos não declararam tal receita, como, por exemplo, o governo de Comendador Levy Gasparian. Não ter recebido receitas oriundas dos rendimentos financeiros só seria possível se, quando as transferências à conta do Fundeb fossem realizadas, fossem gastas imediatamente, o que não ocorreu, inclusive, porque o governo declarou ter tido superávit financeiro em 2020. Algumas hipóteses são de que tais rendimentos tenham sido contabilizados como receita patrimonial e, por isso, não foram contabilizados nas receitas para o ensino, ou foram desviados pelo governo municipal.
Cabe ressaltar que os Fundos têm um caráter redistributivo baseado no alcance do valor mínimo nacional aluno/ano, sendo assim, dentro desta lógica, algumas redes perdem receita, enquanto outras ganham. O que determina a redistribuição de receitas aos Fundos são: a estimativa de receita, os fatores de ponderação e o quantitativo de matrículas. É importante destacar que os ganhos com o Fundo não devem ser contabilizados para fins de alcance do percentual mínimo do ente que os recebeu. Isso também vale para os entes que recebem a complementação federal via Fundo. Por outro lado as perdas são contabilizadas dentro do percentual mínimo do ente que perdeu.
Os Fundos devem ter um conselho criado por lei, e respeitando a composição prevista na Lei do Fundeb, para realizar o acompanhamento e controle social. Esse conselho, entre outras atribuições, deve emitir um parecer anual sobre as contas do Fundeb e este será incluído na prestação de contas que o governo enviará ao TCE-RJ. Ressalta-se que muitos governos das regiões Centro-Sul e Costa Verde, embora tivessem aplicado as receitas do Fundeb indevidamente, em 2020, receberam parecer favorável às contas por parte do conselho. Isso denota o caráter pouco técnico dos conselheiros no acompanhamento e controle social e tais receitas, além de refletir a pouca ou nenhuma formação para atuar nesse conselho ou até mesmo a conivência com as irregularidades do poder executivo local.
Isso ocorreu, por exemplo, com o conselho do município de Mendes, pois, embora receitas do Fundo, em 2020, tenham sido utilizadas para despesas de pessoal de 2019, o que é proibido pela Lei nº 4.320/1964 (Brasil, 1964), o conselho emitiu parecer favorável às contas. Outro aspecto é que a Lei do Fundeb permite que até 5% do total do Fundo possam ser aplicados no primeiro trimestre do exercício subsequente por abertura de crédito adicional. No município de Mendes, o resultado financeiro apontou um superávit de R$ 447.223,15, em 2019, porém, as despesas empenhadas no mesmo período com pessoal, e não pagas, registraram um valor de R$ 497.017,58, ou seja, ficou R$ 49.794,43 acima do superávit, fazendo com que o TCE determinasse o ressarcimento desse valor pelo governo (Rio de Janeiro[estado], 2020). Afora tudo isso, a ilegalidade denota uma fragilidade na inscrição de restos a pagar (processados e não processados) pela contabilidade do governo municipal. O desequilíbrio financeiro do Fundeb indica que o governo empenhou despesas em exercícios anteriores em montante superior aos recursos recebidos.
Há muitas pesquisas que apontam as fragilidades da atuação do conselho do Fundeb, devido às suas limitações e pelo caráter patrimonialista do Estado brasileiro, dificultando em muito o processo de democratização da sociedade. Porém, ao analisar a atuação do conselho do Fundeb em Itaboraí, Lamarão, entre outras coisas, conclui que a representação de trabalhadores da educação nessa instância pode "potencializar a ação na luta por conquistas materiais para estes, como também ser importante expediente no democrático e necessário combate ao mau uso da verba pública” (2013, p. 25).
O financiamento da educação nos governos das regiões Centro-Sul Fluminense e Costa Verde do RJ
Esta pesquisa analisa duas regiões do estado do Rio de Janeiro: a Centro-Sul Fluminense, composta por dez municípios com baixa densidade demográfica (Três Rios, Areal, Comendador Levy Gasparian, Paraíba do Sul, Sapucaia, Vassouras, Paty do Alferes, Mendes, Miguel Pereira e Engenheiro Paulo de Frontin). A região tem um produto interno bruto (PIB) abaixo da média estadual e um nível de pobreza superior. A despeito de Três Rios, os demais municípios têm baixa atividade econômica. A segunda região pesquisada é a da Costa Verde, composta por três municípios (Angra dos Reis, Mangaratiba e Paraty). A região é marcada pela forte atividade turística e pelas atividades naval e portuária atreladas aos estaleiros e ao porto de Sepetiba (Ceperj, 2022). É importante salientar que esta pesquisa foi realizada nos 92 governos municipais do estado do Rio de Janeiro e estão expostas em outros artigos científicos considerando as regiões administrativas para facilitar a exposição dos dados (Souza, 2022; Souza, 2023).
A Tabela I apresenta os 13 governos municipais, seguido da Receita Líquida de Impostos e Transferências (RLIT); as despesas pagas na MDE (inclui o Fundeb) e, na 4ª coluna, o percentual aplicado pelo governo municipal na MDE. Nas contas de 2020, o TCE-RJ adotou a assertiva medida de considerar, para fins de alcance do percentual mínimo, as despesas pagas e não as empenhadas e liquidadas, haja vista que estas podem ser canceladas.
É importante ressaltar que a RLIT é afetada negativamente, a depender dos generosos benefícios e incentivos fiscais concedidos às empresas, tais como imunidade, isenção, anistia, remissão, renúncia e redução. Além disso, como destaca Julião (2021), a impossibilidade que os municípios enfrentam de se autogerirem com seus próprios tributos denota um centralismo fiscal no federalismo brasileiro que termina por fortalecer o ente nacional. É bem verdade que a instituição do sistema de transferências atenua tal dificuldade, mas não resolve o desequilíbrio financeiro entre as diferentes esferas de governo, mesmo porque os entes municipais acumulam muitas responsabilidades entre os demais entes federados (Massardi; Abrantes, 2016).
Por outro lado, os autores apontam que a preguiça fiscal, estimulada pelas transferências intergovernamentais, afeta negativamente a arrecadação dos municípios. No caso dos municípios fluminenses, a preguiça fiscal tem ainda um forte estímulo devido às volumosas receitas oriundas das participações governamentais pela exploração e produção dos recursos naturais (petróleo, gás natural, hídricos e minerais). Por fim, os ajustes fiscais assentados na lógica neoliberal conduzem governos a não aumentarem os investimentos sociais a despeito de arcarem com compromissos da dívida pública. Em relação às despesas pagas com MDE, uma prática recorrente adotada por muitos governos é de inflar o percentual mínimo com despesas alheias à MDE, de modo alcançá-lo, ou ultrapassá-lo, e, como veremos adiante, com isso, dar a impressão à sociedade de que mantém compromisso com a educação.
Os seguintes governos municipais descumpriram o Art. 212 da CF (Brasil, 1988): Angra dos Reis, Areal, Comendador Levy Gasparian, Paraíba do Sul e Três Rios. O TCE-RJ fez vistas grossas para essa ilegalidade dos governos municipais, justificando que a suspensão das atividades escolares interrompeu os investimentos no ensino e a queda das despesas inviabilizou o cumprimento do percentual mínimo previsto na Constituição Federal. Por fim, o Tribunal justificou que a redução nos gastos com ensino deve ser considerada como preservação e não desperdício. O órgão não considerou o não alcance do percentual mínimo de impostos na MDE como irregularidade, mas apenas como uma impropriedade.
Em abril de 2022, foi promulgada a EC n. 119/2022 (Brasil, 2022), cuja finalidade é impossibilitar a punição administrativa, civil ou criminal dos gestores estaduais, distrital e municipais que, devido à pandemia de COVID-19, não alcançaram o percentual mínimo de impostos na MDE durante os exercícios financeiros de 2020 e 2021. Os gestores que não alcançaram o percentual mínimo em 2020 e/ou 2021 terão até 2023 para aplicarem a(s) diferença(s). A proposta que culminou na EC n. 119/22 foi construída pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) que, em nota publicada em seu sítio eletrônico, defendeu a proposta, pois, devido à suspensão das aulas presenciais, houve redução das despesas educacionais, de modo que a proposta tem caráter transitório e excepcional. A CNN afirmou ainda que os gastos com alimentação escolar cresceram, embora estes não devam ser computados para fins de alcance do percentual mínimo de impostos na MDE (CNM, 2021).
Por outro lado, em nota conjunta assinada por diversas instituições, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) rechaçou a medida (Fineduca, 2021), argumentando, entre outras coisas, que o percentual mínimo de impostos no ensino historicamente é marcado por lutas daqueles que defendem o financiamento da educação pública e, além disso, dos 5.120 governos municipais que entregaram suas declarações ao Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope), 94% alcançaram o percentual mínimo, em 2020. A nota explica que, se houve queda na RLIT, também houve queda do montante de receitas para o ensino. No que se refere à queda das despesas como justificativa para o não alcance do percentual mínimo, a nota explica que, no contexto da pandemia, em tese, os gastos deveriam ter sido elevados, haja vista as demandas para a implementação do ensino não presencial, além das demandas para a melhoria da educação estabelecidas nas metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (2014-2024), ainda, em sua maioria, longe de serem alcançadas.
Municípios | RLIT | MDE | % | |
---|---|---|---|---|
Angra dos Reis | 567.609.083,21 | 115.690.642,96 | 20,4 | |
Areal | 43.024.513,30 | 10.726.395,59 | 24,9 | |
Comendador Levy Gasparian | 32.148.636,21 | 7.857.268,76 | 24,4 | |
Engenheiro Paulo de Frontin | 40.618.419,71 | 12.626.569,35 | 31,1 | |
Mangaratiba | 184.558.091,98 | 51.686.035,33 | 28,0 | |
Mendes | 41.996.800,78 | 13.236.352,71 | 31,5 | |
Miguel Pereira | 60.585.149,88 | 15.972.280,15 | 26,4 | |
Paraíba do Sul | 70.980.271,03 | 13.390.200,42 | 18,9 | |
Paraty | 117.675.485,10 | 33.632.754,91 | 28,6 | |
Paty do Alferes | 54.212.116,01 | 13.861.643,62 | 25,6 | |
Sapucaia | 58.511.369,71 | 15.704.752,56 | 26,8 | |
Três Rios | 155.256.814,26 | 37.395.611,40 | 24,1 | |
Vassouras | 67.849.992,40 | 19.329.455,29 | 28,5 |
Fonte: Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ, 2022). Tabela elaborada pelo autor.
O TCE-RJ glosou algumas despesas que não considerou manutenção e desenvolvimento do ensino. A despeito do governo de Paty de Alferes, que teve glosada a despesa com juros de contribuição patronal, a maioria se trata de despesas de pessoal de exercício financeiro anterior. A seguir, apresentam-se as despesas que foram consideradas ilegais e inadequadas para um contexto de escolas fechadas para aulas presenciais, na maior parte do ano letivo, devido à pandemia.
O fornecimento de energia elétrica e água destaca-se pelo fato de que as escolas, em 2020, estavam fechadas e algumas abriram, excepcionalmente, para distribuição de kits alimentação e material impresso. O governo de Angra dos Reis gastou mais de R$ 660 mil com energia e quase R$ 100 mil com água e, ao comparar com as despesas pagas em 2019, os valores com essas despesas foram, aproximadamente, R$ 1,3 milhão e R$ 70 mil, respectivamente. O governo de Areal pagou R$ 22,6 mil, em 2020, e R$ 47,7 mil, em 2019. O governo de Comendador Levy Gasparian gastou, em 2020, mais de R$ 158 mil, em 2019, gastou R$ 198 mil. Já o de Miguel Pereira cometeu a ilegalidade de pagar despesa de energia elétrica de 2019 com receitas de 2020. O governo pagou, em 2020, R$ 46 mil; em 2019, R$ 113 mil. O governo de Paraty pagou R$ 185 mil, em 2020, com energia e quase R$ 78 mil de água; em 2019, pagou R$ 215 mil de energia e R$ 39 mil de água. O governo de Sapucaia gastou, em 2020, R$ 33 mil de energia e R$ 15 mil de água; em 2019, mais de R$ 81 mil com energia e quase R$ 25 mil de fornecimento de água.
Como a maioria dos governos gastou valores, em 2020, bem próximos dos valores de 2019, de modo que é possível que haja pago energia e água de outros órgãos, pois, como já dito, as escolas estavam fechadas para aulas presenciais na maior parte do ano letivo de 2020. É importante destacar que tais despesas podem ter sido custeadas, tanto em 2019 como em 2020, com outras receitas da educação, ficando impossível ter os valores totais com precisão, uma vez que o relatório analítico restringe-se apenas a uma amostra das despesas do percentual mínimo de impostos, e não das demais receitas, tais como: participações governamentais sobre a exploração de recursos naturais (petróleo, gás natural, água e minérios); salário-educação; transferências do FNDE; convênios, entre outras menos significativas no que se refere ao volume de recursos.
Outras despesas que não se justificam no contexto de pandemia referem-se ao transporte escolar, ao combustível e à locação de veículos, uma vez que o distanciamento social fez com que as crianças e os jovens não fossem às escolas na maior parte do ano letivo de 2020. Essas despesas estiveram presentes nos governos de Angra dos Reis e Areal (que, inclusive, pagou transporte universitário, mesmo com as universidades em trabalho remoto. Além disso, a educação superior não é nível de atuação prioritária dos governos municipais), Comendador Levy Gasparian, Mendes, Paraíba do Sul, Paraty, Paty do Alferes e Sapucaia.
A despesa com aluguel de salas ou prédios para atenderem às demandas dos alunos também não se justificam, uma vez que este serviço não foi utilizado em 2020. Sendo assim, os contratos poderiam ter sido rescindidos por interesse da administração pública, devido ao princípio da economicidade. O governo de Areal, inclusive, pagou aluguel de sala utilizada como dependência da Biblioteca Municipal e cometeu dois erros: o primeiro de pagar uma despesa da cultura com verbas do ensino; e o segundo, por não ter rescindido o contrato de locação. Os governos de Miguel Pereira e Sapucaia também pagaram despesas com locação.
Uma despesa comum a alguns governos foi o repasse para instituições do terceiro setor, destacando-se a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Os governos de Comendador Levy Gasparian, Mendes e Sapucaia pagaram essa despesa, em 2020, com receitas do ensino. Os repasses ao Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) também chamaram a atenção, pois esta empresa atua na mediação entre o empregador e os alunos-estagiários. Como não houve aula presencial na maior parte do ano letivo, essa despesa se apresenta como desnecessária.
A despesa com alimentação escolar é expressamente proibida com receitas da MDE, segundo o § 4º do Art. 212 da CF/88 (Brasil, 1988) e o inciso IV do Art. 71 da LDB (Brasil, 1996). O mais espantoso é que o TCE-RJ considera a despesa de alimentação escolar como despesa do ensino e, com isso, desrespeita o texto constitucional e a histórica luta por parte de parlamentares e instituições que buscaram proteger o percentual mínimo de despesas alheias ao ensino. Para tanto, há receitas das demais fontes da educação que devem custear a alimentação escolar. A despeito dos governos de Mangaratiba e Vassouras, os demais aplicaram receitas volumosas do percentual mínimo do ensino com alimentação escolar, ou com despesas relacionadas à alimentação escolar, tais como preparo, transporte e cartões para aquisição de gêneros alimentícios. Cabe destacar que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro adotou um posicionamento contrário às despesas com cartão para aquisição de alimentos alegando que a natureza da despesa é assistencial e não educacional.
Houve despesas consideradas inadequadas com receitas do percentual mínimo, mas que não foram comuns a todos os governos. O governo de Angra dos Reis gastou mais de R$ 4 milhões com serviço de manutenção preventiva e corretiva de imóveis próprios municipais. Estranhamente o contrato, segundo o site da transparência do governo, está assinado pelo secretário-executivo de serviços públicos e não pelo secretário de educação. Além disso, o Termo de Contrato nº 123/2018 e seus aditivos preveem o valor total de quase R$ 50 milhões, tendo como fonte de pagamento as receitas dos royalties, recursos próprios, salário-educação. Os valores previstos para serem pagos pelos recursos próprios (o único que poderia contabilizar para o percentual mínimo no ensino, embora o governo não detalhe a fonte de receita) não alcançam o valor pago pela secretaria de educação. Não foi possível encontrar o Termo de Referência e, portanto, ter acesso aos serviços que foram prestados à educação pela empresa. O governo de Angra dos Reis contabilizou o superávit financeiro do Fundeb de 2019 nas despesas correntes pagas de 2020, porém a contabilização dessa receita já tinha sido realizada no exercício de 2019 (Angra dos Reis, 2018). Essa dupla contabilização, além de ser ilegal, permite uma maquiagem contábil para inflar o percentual mínimo do ensino.
O governo de Paty do Alferes gastou R$ 126 mil com equoterapia, mas, segundo o § 4º do Art. 212 da CF/1988 (Brasil, 1988), esta despesa não é permitida com receitas do percentual mínimo de impostos, pois se caracteriza como assistência à saúde. A equoterapia é um tipo de terapia com cavalos, sobretudo, para tratamento de pessoas deficientes.
O TCE-RJ, em análise das contas do Governo Estadual, não aceita as despesas com pensões e aposentadorias para fins de alcance do percentual mínimo de impostos. Em 2020, o órgão glosou mais de R$ 1,1 milhão das despesas pagas com aposentadorias e pensões do governo de Japeri e solicitou o ressarcimento à conta do Fundeb do valor aplicado ilegalmente, pois a Lei do Fundeb proíbe expressamente esses gastos no inciso I, do Art. 22 (Brasil, 2007), ao definir a destinação dos recursos dos Fundos para o pagamento da remuneração dos profissionais do magistério da educação básica “em efetivo exercício na rede pública”. Contudo, o Tribunal fez “vista grossa” para os quase R$ 10,4 milhões gastos pelo governo de Três Rios na mesma despesa. Embora a LDB (Brasil, 1996) não proíba expressamente, o inciso I do Art. 70 permite o pagamento de remuneração com as receitas do percentual mínimo, mas os aposentados recebem proventos e os pensionistas recebem pensão, benefícios que devem ser pagos pela previdência social (SOUZA, 2019). Em dezembro de 2020, a EC n. 108 (Brasil, 2020), ao incluir o § 7º no Art. 212 da CF/1988 (Brasil, 1988), proibiu expressamente o pagamento de aposentadorias e pensões com receitas do percentual mínimo de imposto e do salário-educação.
O governo de Sapucaia pagou por uma consultoria em financiamento da educação pública cerca de R$ 31 mil. O mais inusitado é que, mesmo com uma empresa para prestar consultoria em financiamento, o governo gastou mais de R$ 300 mil de forma ilegal com alimentação escolar. O que denota que, ou os consultores não tinham competência para prestar o serviço contratado, ou o governo, mesmo sendo informado pelos consultores, incorreu no crime de aplicar receitas do ensino em uma despesa ilegal.
Município | Descrição | Valores |
---|---|---|
Angra dos Reis | Combustíveis | 314.361,03 |
Energia elétrica | 660.008,96 | |
Fornecimento de água | 99.834,88 | |
Locação de veículos para atender a prefeitura | 595.922,09 | |
Preparo, transporte e distribuição de alimentação escolar | 2.329.692,95 | |
Superávit financeiro de 2019 | 1.089.159,88 | |
Manutenção preventiva e corretiva de próprios municipais | 4.178.000,00 | |
Total | 9.266.979,79 | |
Areal | Transporte universitário | 59.326,26 |
Energia elétrica | 22.645,20 | |
Locação de sala para dependência da Biblioteca Municipal | 12.582,00 | |
Gêneros alimentícios | 85.158,75 | |
Combustíveis | 13.403,58 | |
Total | 193.115,79 | |
Comendador Levy Gasparian | Folha de pagamento de 2019 (TCE) | 44.127,33 |
Combustíveis e lubrificantes | 24.974,33 | |
Energia elétrica | 158.026,25 | |
APAE | 84.000,00 | |
Gênero Alimentício | 299.722,40 | |
Total | 610.850,31 | |
Engenheiro Paulo de Frontin | Gastos com pessoal 2019 (TCE) | 1.031.201,24 |
Cartão alimentação | 564.800,00 | |
Total | 1.596.001,24 | |
Mangaratiba | Folha de pagamento 2019 (TCE) | 6.491.702,60 |
Total | 6.491.702,60 | |
Mendes | Gasto com pessoal 2019 (Fundeb) (TCE) | 811.247,95 |
CIEE | 10.205,80 | |
Transporte de alunos | 46.618,56 | |
APAE | 202.500,00 | |
Bolsa auxílio e auxílio transporte de estagiários | 64.805,66 | |
Combustíveis | 14.657,99 | |
Gêneros alimentícios | 44.018,03 | |
Total | 1.194.053,99 | |
Miguel Pereira | Energia elétrica 2019 (TCE) | 25.071,71 |
Energia elétrica | 46.263,04 | |
Locação de creche para o programa Minha Creche Meu Amor | 195.000,00 | |
Gênero alimentício | 14.251,35 | |
Aluguel para escola | 78.766,95 | |
Cartão Programa Merenda na Mão | 807.021,20 | |
Total | 1.166.374,25 | |
Paraíba do Sul | Folha de pagamento 2019 (inclusive com receita do Fundeb) (TCE) | 2.119.748,63 |
Gênero alimentício | 123.038,87 | |
Combustíveis | 67.650,00 | |
50% tarifa transporte público para alunos | 109.211,20 | |
Empresa para administrar auxílio alimentação | 2.163.836,62 | |
Total | 4.583.485,32 | |
Paraty | Energia elétrica | 185.138,09 |
Fornecimento de água | 77.758,13 | |
Transporte coletivo de alunos | 97.487,40 | |
Combustíveis | 133.891,53 | |
Gêneros alimentícios | 550.662,21 | |
Transporte marítimo | 43.066,74 | |
Total | 1.088.004,10 | |
Paty do Alferes | Juros de contribuição patronal (TCE) | 25.394,30 |
Juros de contribuição patronal (Fundeb) (TCE) | 20.926,27 | |
Aluguel de creche | 249.800,00 | |
Equoterapia | 126.000,00 | |
Energia elétrica | 130.968,16 | |
Combustível | 209.347,22 | |
Gênero alimentício | 17.100,00 | |
Total | 779.535,95 | |
Sapucaia | Transporte escolar | 59.381,14 |
CIEE | 120.614,54 | |
Combustível | 55.000,00 | |
APAE | 88.701,22 | |
Energia elétrica | 33.453,66 | |
Fornecimento de água | 15.404,29 | |
Gênero alimentício | 304.475,10 | |
Locação de creche | 19.506,06 | |
Total | 696.536,01 | |
Três Rios | Pagamento de inativos | 10.379.797,12 |
Gêneros alimentícios | 785.760,51 | |
Total | 11.165.557,63 | |
Vassouras | Folha de pagamento de pessoal de 2019 (TCE) | 436.260,54 |
Total | 436.260,54 |
Fonte: Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ, 2022). Tabela elaborada pelo autor.
A despeito dos volumosos gastos ilegais e inadequados constatados nesta pesquisa, as despesas pagas com ensino não presencial foram pífias e, no caso de alguns governos, sequer existiram. Os governos de Engenheiro Paulo de Frontin, Mangaratiba, Mendes, Paraíba do Sul, Três Rio e Vassouras não aplicaram receitas do percentual mínimo de impostos em despesas para a implementação do ensino não presencial. Daqueles governos que aplicaram, a maioria utilizou as receitas para prestação de serviços de locação de impressoras e equipamento de informática para as unidades escolares, além de serviços de internet para a rede de ensino. As despesas com impressão também estiveram presentes, demonstrando que a principal estratégia adotada pelas redes foi a de distribuição de material impresso.
Município | Descrição | Valores |
---|---|---|
Angra dos Reis | Acesso à internet através de link para atender as unidades escolares | 135.977,33 |
Locação de duas impressoras | 6.178,61 | |
Total | 142.155,94 | |
Areal | Folhas de papel A4 | 10.950,00 |
Comendador Levy Gasparian | Equipamento de informática | 81.500,00 |
Engenheiro Paulo de Frontin | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Mangaratiba | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Mendes | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Miguel Pereira | Resma de papel A4 | 30.084,43 |
Paraíba do Sul | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Paraty | Xerox | 76.214,64 |
Link de internet via rádio | 27.755,80 | |
Total | 103.970,44 | |
Paty do Alferes | Fornecimento de internet para creches | 49.960,00 |
Locação de copiadora | 187.880,00 | |
Folhas de papel A4 | 35.400,00 | |
Manutenção de equipamentos de informática (contrato 229/2019) | 239.040,00 | |
Total | 512.280,00 | |
Sapucaia | Configuração e conexão de dados | 9.694,53 |
Três Rios | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Vassouras | Não houve despesas com ensino não presencial | 0,00 |
Fonte: Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ, 2022). Tabela elaborada pelo autor.
Aspectos conclusivos
Os resultados desta pesquisa apontam para uma aplicação ilegal e inadequada de parte significativa das receitas do percentual mínimo de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino pelos 13 governos municipais das regiões Centro-Sul e Costa Verde do estado do Rio de Janeiro no contexto da pandemia de COVID-19, especificamente, em 2020, ano que as escolas estavam fechadas para as aulas presenciais na maior parte do período letivo. Além disso, a pesquisa constatou que os investimentos em ensino não presencial foram insuficientes e sequer colaboraram para atender às demandas impostas aos professores e aos alunos, tal como os gastos com equipamentos e formação para a implementação do ensino remoto. A distribuição de material impresso tornou-se a principal estratégia adotada por alguns dos governos investigados para o ensino não presencial. Isso significa que os custos do ensino remoto, principal prática adotada na pandemia pelas unidades escolares, recaíram sobre os docentes, os educandos, os pais e/ou responsáveis. Os resultados dos desinvestimentos e da falta de articulação e apoio entre os entes federados para minimizar os efeitos da pandemia na educação agravaram a já tão combalida educação fluminense.