um convite às crianças para fazermos uma experiência com suas visualidades no contexto pandêmico
Para saber é preciso tomar posição. Gesto nada simples. Tomar posição é situar-se pelo menos duas vezes, em pelo menos duas frentes que toda posição comporta, pois, toda posição é, fatalmente, relativa. (Didi-Huberman, 2017, p. 15)
o que as narrativas verbo-visuais de crianças podem nos ensinar sobre a infância?
Em sua obra O olho da história - Quando as imagens tomam posição, Didi-Huberman (2017) nos convida a refletir acerca do lugar da imagem e das condições de uma possível política da imaginação. Através dessa obra pudemos compreender o quanto as imagens trazem consigo uma potência que, dependendo da montagem e do plano sequencial que estas forem dispostas, podem nos interrogar e nos conduzir a caminhar por constelações que recusam os determinismos e armadilhas das análises históricas lineares.
A montagem será precisamente uma das respostas fundamentais para esse problema de construção da historicidade. Porque não está orientada simplesmente, a montagem escapa das teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar ‘uma história’, mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino. (Didi-Huberman, 2017, p. 212)
Orientado por essa perspectiva, este artigo procura expressar algumas visualidades das infâncias, tomando como posição as narrativas verbo-visuais de crianças que participaram da pesquisa de Mestrado - Narrativas audiovisuais e visões de mundo: o que as crianças têm a nos dizer sobre a infância a partir de seus cotidianos?, procurando produzir uma montagem que; no confronto com as narrativas aqui expressas, assuma uma posição que escape dos clichês que reduzem a infância a uma condição de continuum natural da vida...
Há um filósofo de que gosto muito, que se chama Gilles Deleuze, e ele disse uma coisa que adoro: não vivemos numa civilização da imagem - isso não é verdade -, vivemos numa civilização dos clichês. E nosso trabalho é olhar imagens ou criar imagens que desconstruam os clichês. Por isso, interessa-me colocar em relação as imagens entre si através de um recurso constante à ideia da montagem. O importante é colocar em relação as imagens, porque elas não falam de forma isolada. (Didi-Huberman, 2017, p. 12)
Nessa escrita as infâncias são trazidas como espaço/tempo da vida que se dá por irrupções, por diferenças, pela negação de um padrão comum, como possibilidade de nos interrogar sobre o tempo presente. Porque entendemos que com seus ritmos irregulares, as crianças “arrancam estados de espírito que nivelam, estancam e integram todas as coisas” (Didi-Huberman, 2017, p. 175) produzindo políticas de imaginação que “nos ensinam a ver abismos onde estão lugares comuns” (Didi-Huberman, 2017, p. 175). Nesse aspecto Walter Benjamin (2002) nos ajuda a pensar com e sobre as infâncias como uma “tomada de posição” que desmascara a experiência do adulto, produzindo tremores com seus testemunhos de vida.
Benjamim (2002) destaca em seu texto: “Experiência” de 1913, que “a máscara do adulto chama-se 'experiência''' (p. 21), com isso ele quer questionar a ideia de que a experiência seria algo somente possível de ser vivenciado por um adulto e, neste sentido, assumiria um caráter inexpressivo e impenetrável, seria sempre a mesma, distanciando-se cada vez mais do espírito infantil. O filósofo berlinense nos convida a retirar essa máscara para que possamos enxergar que jovens e crianças são capazes de traçar suas próprias experiências. Destacando, em diferentes passagens desse ensaio, que, ao contrário do adulto experiente, que acha que já viveu o que tinha para viver, juventude e infância são “espíritos” curiosos, inventivos, ávidos por descobertas e reinvenções, impelidas para o novo...
Nada é mais odioso ao filisteu do que os “sonhos da juventude” [...]. Pois o que surge nesses sonhos é a voz do espírito, que também o convocou um dia, como a todos os homens, mas ele não foi. A juventude será a lembrança eternamente incômoda dessa convocação. Por isso ele a combate. O filisteu fala daquela experiência cinzenta e prepotente, e aconselha o jovem a zombar de si mesmo. [...] Mais uma vez: conhecemos uma outra experiência. Ela pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos florescentes. No entanto, é o que existe de mais belo, de mais intocável e inefável, pois ela jamais estará privada de espírito se nós permanecermos jovens. [...] O filisteu realiza a sua “experiência”, eternamente a mesma expressão de ausência de sentido. O jovem vivenciará o espírito, e quanto mais difícil lhe for a conquista de coisas grandiosas, tanto mais encontrará o espírito por toda parte em sua caminhada e em todos os homens. (Benjamin, 2002, p. 24-25)
Para Benjamin (2002, p. 102), “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’. Transformação da experiência mais comovente, em hábito” , desta forma o autor traça uma diferença entre as experiências infantis e as experiências dos adultos, rompendo com a hierarquia entre gerações, enquanto o adulto narra suas experiências como verdades de alguém que “já vivenciou tudo” as crianças consolidam suas experiências por meio de uma repetição que produz diferença. Assim como Caio que ao ser convidado a enviar uma mensagem para sua professora, sobre o que tem feito durante a pandemia, escolhe mostrar como tem se “equilibrado em duas rodas”, experimentando múltiplas possibilidades de se movimentar e até mesmo “ir longe”, ao ponto de seu pai, preocupado, lhe solicitar que volte. Movimentos que pendem o seu corpo ora para um lado, ora para o outro, equilibrando-se e desequilibrando-se, mas conseguindo se manter de pé, se divertindo. Caio mostra, através de seu brinquedo, que tem inventado e reinventado possibilidades de deslocamentos, na sua experiência com a Pandemia:
Caio nos leva a pensar as diferentes infâncias como forças que apontam para diferentes modos de “ser infantil” (Corazza, 2011, p. 10), atores da história contemporânea que, segundo Corazza (2011, p. 10), têm a sua ação comparada a fenômenos da natureza que foram batizados como: El Niño e La Niña. Crianças que, quando livres de uma educação docilizadora de seus corpos e da manipulação do adulto, brincam com o planeta e interferem na sua estrutura climática atingindo diretamente todos que habitam a Terra:
El Niño é tão terrível e monstruoso, que uma de suas últimas estripulias é desacelerar a rotação da Terra. Ele faz com que, no último ano, cada dia de nossas vidas sofra um acréscimo de 6 décimos de milésimo de segundo. La Niña é sua irmã. Para falar dela é preciso antes saber quem é El Niño, porque ela não existe sem ele. Há quem a chame de Anti-El Niño. A Menina resfria as águas do oceano, trazendo mais secas e inundações, só que em regiões trocadas do Planeta. (Corazza, 2011, p. 10)
Prever a natureza passou a ser questão de "vida ou morte"! Saber os passos de El Niño e de La Niña mobilizou estudos que tinham como objetivo preservar a vida frente a seu poder de devastação por sua imprevisibilidade, sua falta de padrão e suas intensidades. Como territórios completamente desconhecidos para os homens, assim são, também, os caminhos da infância, ou melhor definindo; das infâncias! Pois cada criança traz consigo uma gama de experiências e modos de estar no mundo, vínculos sociais e afetivos, formas de perceber a vida. Nessas percepções elas trazem consigo o cotidiano vivido por suas famílias, as tantas vozes que falam nela, nos impossibilitando de apontar apenas uma única infância.
Em seu recado ao mundo Thábata fala um pouco de si usando o Kwai, um aplicativo para celular de criação de vídeos com layout pronto no qual o usuário tem a possibilidade de personalizar os modelos disponíveis. Mais do que mostrar seu domínio no uso do aplicativo, Thábata expõe suas escolhas, seus valores frente às vozes do mundo que falam para ela. Thábata nos aponta que tem escolhas próprias, mesmo quando as circunstâncias lhe colocam frente a situações que limitam suas alternativas entre um sim ou um não. A menina não nega um cotidiano que a faz transitar pela cidade de transporte público, mas isso não a impede de andar de Montanha Russa e conhecer outros países, mesmo sem pisar nesses chãos. Ela demonstra saber que imaginar é ter imagens.
Em seu texto Experiência e pobreza de 1933, Benjamin retoma o conceito de experiência:
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. (Benjamin, 1987, p. 114)
Nesta passagem observa-se que a experiência assume uma condição de sabedoria e não de verdade, transmissão de um legado, uma herança deixada como abertura para o futuro e não como uma informação arrogante aprisionada na temporalidade de um “eternamente ontem”. O que Benjamin (1987) nos ensina por meio de uma narrativa memorável, é que não é no tempo de “espera do outono” que a experiência se dá, mas sim no momento da frutificação. Quando nos apropriamos de um “conselho” como uma “sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (1987, p. 200).
Curioso é que Rafaela parece ter entendido a importância de um conselho, quando convidada a narrar sua experiência durante a pandemia, ao escolher a casa de sua avó, nos mostrando seus espaços, guiando nossos olhos para lugares que ao olhar desavisado do adulto, podem parecer banais, mas para ela habitam histórias (a delegacia e a escola que a casa já foi um dia), como um legado. São tantos detalhes que ela quer mostrar, que a deixa com a sensação de ter “esquecido algo”.
De forma atenta, as duas meninas nos retratam seus cotidianos, mas não como algo já dado. Elas se dizem e contam para o mundo que a vida é muito mais do que aquilo que se vê. Thábata e Rafaela mandam um recado para seus amigos de turma e para sua professora revelando os detalhes que habitam suas infâncias e como vêm resistindo e se reinventando diante do isolamento físico da escola, imposto pela pandemia.
Em seus textos da década de 1930 Experiência e pobreza (1933) e O narrador (1936), Benjamin (1987) recupera o conceito de experiência (Erfahrung) como possibilidade do presente lançar mão do passado para se tornar “senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história” (Benjamin, 1987, p. 231). Com isso, o filósofo alemão nos coloca sob o desafio de recuperar a potência dessa experiência transformadora frente à sua extinção na modernidade:
Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. (Benjamin, 1987, p. 119)
Seguindo o conselho do sábio alemão, acreditando na condição do infante como “promessa de futuro” (Bakhtin, 2017), a infância aqui, é apresentada como possibilidade, tempo de experiência que nos faça acreditar que:
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Mesmo os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, jamais podem ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre hão de mudar (renovando-se) no processo do futuro desenvolvimento do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em um novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (Bakhtin, 2017, p. 79)
Destacando o sentido de incompletude, força geradora de eterna renovação, Bakthin (2017) aponta que cada enunciação revela apenas uma pequena variação de um mar repleto de interações dialógicas que dão origem a outras, sempre novas e aí mora sua força: na capacidade de carregar enunciados antigos e novos das tantas vozes que se fazem presentes no discurso, já que a “palavra do outro se transforma, dialogicamente, para tornar-se ‘palavra-alheia’ com a ajuda de outras - ‘palavras do outro’-, e depois palavra pessoal.” (Bakhtin, 1992, p. 405). Assim, a vida humana apresenta-se no diálogo repleto de palavras e signos e é por meio da palavra, desta coleção de palavras, que os sujeitos se constituem, somos na e pela palavra. Nesse sentido essas crianças se revelam através da apropriação da palavra, identificam-se, inventam-se, pois, no discurso nos dizemos, nos apresentamos ao mundo.
As escolhas do que contar para a sua turma, num momento de isolamento social, envolve uma imersão na própria história, no próprio cotidiano, uma curadoria dos fragmentos da história que os três alunos julgaram importante destacar, propondo uma apresentação de si para o grupo, as crianças mandam um recado iniciando um fio condutor, inventando uma forma de se dizer dentro deste contexto pandêmico, criando uma estrutura narrativa da própria história e elencando os pontos de relevância a serem mostrados num movimento inventivo de construção midiática.
Diante deste contexto podemos pontuar o conceito de cognição que segundo Kastrup (1999, p. 18) “extrapola o processo de solução de problemas”, ponto que ancora os movimentos de construção e desenvolvimento de processos de aprendizagem na escola, e começamos a transitar pelo que a autora chama de “invenção de si e do mundo”. Nesta perspectiva o sujeito mergulha num movimento de criação e até mesmo de criação (e não de solução) de problemas, pois, como aponta Kastrup (2001, p. 18) “a aprendizagem começa quando não reconhecemos, mas, ao contrário, estranhamos, problematizamos”. Esse movimento de invenção de problemas, a “experiência de problematização que se revela através de breakdowns, que constituem rupturas no fluxo cognitivo habitual” (Kastrup, 2004, p. 8) marcam fortemente os processos de cognição.
Ao serem solicitados a produzirem narrativas imagéticas sobre seus cotidianos no período da pandemia, as crianças foram desafiadas a inventar modos de se expressar. Diferentemente das solicitações recorrentes nos contextos escolares, não estávamos propondo uma solução para problemas, como exercício de uma cognição representacional. Essas crianças parecem ter compreendido isto. Em seus retornos elas nos oferecem enigmas que criam planos de imanência, cartografando, com a criação de imagens, territórios existenciais de suas infâncias, que não são tangíveis de serem interpretados por uma perspectiva representacional. Nos mostrando como têm habitado inventivamente e constituído esses territórios existenciais, basta olhar para o topete de João Marcelo.
o adulto e a necessidade de “infantilizar” a infância
El Niño e La Niña são fenômenos da natureza capazes de alterar os rumos climáticos do planeta, talvez essas metáforas nos ajudem a compreender a recusa do adulto em permitir que as crianças falem por si. Afinal essas vozes podem abalar a natureza das verdades que nós “adultos experientes” (Benjamin, 2002, p. 24-25) inventamos para recusarmos as incertezas da vida. Portanto, há de se questionar a forma como nos colocamos frente a este ser infantil. As relações entre adultos e crianças, emergem e podem se apresentar de formas antagônicas, ora, reconhecidamente, vemos no tempo/infância força geradora/criadora e suas especificidades, ora surge o desejo de moldar, configurar, estruturar, ensinar para que possam aprender a ser exatamente como nós e assim abandonem seus modos infantis de ser e estar no mundo e aqui podemos destacar os marcos tão reproduzidos pela escola de: “Acabou a brincadeira! Agora é sério! ” Quando a criança ingressa no Ensino Fundamental após sua experiência na Educação Infantil. A carta de Caio, nos soa muito mais como denúncia desse estado de coisas. Ele parece nos falar sobre como a escola, muitas vezes, silencia e procura conter os arroubos da infância com o apoio da família, achando que estão lhes proporcionando um bem.
É necessário problematizar o incansável trabalho empregado em findar a infância com inúmeras preparações, aprendizagens e ensinamentos com o intuito de prepará-las para a vida adulta ou de transformá-las em pequenos adultos, eliminando as características que nos separa, crianças e adultos, dada a nossa dificuldade de lidar com a diferença. Corremos em busca da unicidade, da homogeneidade e surge o desejo de se ver revelado, na infância, características do “Sujeito-Verdadeiro” que, segundo Corazza (2011) é um lugar discursivo, uma referência para a forma como o sujeito deve ser e para tanto surgem diferentes “mecanismos disciplinares” para garantir tal feito.
Temos marcado, na cultura ocidental, o ser infantil tendo como parâmetro o fato de “estar submetido, pelo controle e pela dependência, ao Sujeito-Modelo, ao Sujeito Padrão, que é o Adulto” (Corazza, 2011, p. 7) e é na característica de ter sua imagem refletindo a imagem do adulto que reside a fragilidade e, por conseguinte, a falta de uma autonomia infantil que insiste em conferir às crianças uma identidade infante a partir de um olhar adultocêntrico, ou seja, uma condição que lhes destitui o direito de se dizerem e serem ouvidas naquilo que elas são.
Alice revela em seu discurso preocupações importantes a respeito dos cuidados em tempo de pandemia com relação ao isolamento social, questiona o movimento cotidiano dentro deste contexto e expõe seus sentimentos mandando um recado para a professora se posicionando dentro do contexto histórico em que toda a sociedade está imersa.
A carta de Alice se contrapõe a “necessidade” de uma incessante adultificação deste sujeito, já que o infante, através dos séculos, vem sendo caracterizado como “carente, primitivo, secundário, incompetente, ignorante, incapaz, irracional, amoral” (Corazza, 2011, p. 8), nesta perspectiva um ser que precisa ser ensinado, guiado, treinado, a aluna nos mostra uma total conexão com momento histórico do qual faz parte.
Muitos contextos podem surgir envolvendo as formas de expressão infantil, e quando esse sujeito tem a oportunidade de se dizer, de falar de si na presença de um adulto, corre o risco de ser “dirigido”, como um ator em um set de filmagem, roteirizado e ensaiado.
Eloah tem 3 anos e manda um recado para sua professora sobre os seus sentimentos no tempo de pandemia, período em que ficou afastada da escola. Para tanto conta com o auxílio da sua mãe que segura o celular e conduz sua narrativa por trás das câmeras. Eloah nos envia três cartas que são etapas diferentes da mesma composição imagética, tentativas de fazer chegar até sua professora um recado, ela convida “Titiene” pra dançar, diz que quer ir para sua casa, diz que sente saudades e a chama para brincar de Barbie e na carta 2 insiste: - Deixa eu falar com ela!.
Neste caso, mesmo o adulto não aparecendo na imagem sua presença é forte e protagoniza a cena, o que nos revela que “por meio da imagem e da palavra adulta” a criança “assume uma identidade infante” como própria, dizendo: “Onde o Grande era, Eu Pequeno hei de vir” (Corazza, 2011, p. 8-9). Em sua narrativa Eloah afronta o Sujeito-Verdadeiro que não deixa alternativa para o infante a não ser a da identificação, negando sua forma tão diferente e distante do adulto. Em seu convite para uma dança nesse caos pandêmico, ela se nega a aceitar que ainda está por vir a ser, que ainda vai se tornar alguém e se afirma, como presença no mundo.
É importante destacar que quem tem necessidade deste “espelho”, como delibera Corazza (2011), é o adulto, que deseja sempre conquistar e domar o diferente e assim acaba por inventar infâncias sem vida, que já vem ao mundo “Natimorta”, (Corazza, 2011) e que existe para fazer sempre viva a necessidade de renovação do Sujeito-Verdadeiro que deseja perpetuar-se através da sua imagem-modelo refletida para o infante. Mas, mesmo diante do controle de sua mãe na condução de sua carta, La Niña Eloah, muda o script de filmagem, roteirizado e ensaiado por sua mãe, e convida sua professora para o movimento, mesmo em tempos de paralisia...
O fim da infância é apontado por Corazza (2011) como fim do tempo como experiência, como acontecimento. O tempo como experiência vai perdendo espaço para a normatividade, para a representação da realidade, do que já está posto. Seria o fim da inventividade? Sendo o fim da infância uma necessidade do adulto, talvez o exercício seja deixar de produzir a fome de infância, permitir que as infâncias tenham a possibilidade de apenas ser e estar no mundo. É chegada a hora de repensar as formas como fomos “subjetivados como infantis” (Corazza, 2011, p. 11) e assim abrir espaço para novas formas de pensar a ação das infâncias no mundo.
Rafaela guia nossos olhos apresentando sua casa, seu cotidiano, sua família. Chega ao quarto da avó e assume: - Tenho arrepio de lugares escuros! O inesperado se revela na narrativa da menina, como destaca (Kohan, 2007, p. 57) o “intempestivo”! A cena interrompe a previsibilidade do desenrolar de sua narrativa. A menina se depara com seus medos, afinal esse relato se dá em tempos de pandemia, mas a infância se faz presente em sua potência e Rafaela se reinventa para dar continuidade ao que suas imagens têm a nos dizer!