Situando o terreno...
Este artigo é parte de uma dissertação que foi produzida no Programa de Pós-Graduação de História, da Universidade Federal do Rio Grande, que teve como objetivo investigar de que maneira as relações entre pedagogias e ensino dos movimentos/danças de entidades espirituais do universo religioso são desenvolvidas em terreiros de Quimbanda1 da cidade de Rio Grande/RS. Para tanto, analisei narrativas de seis sujeitos, quatro homens e duas mulheres, todos(as) residentes do município de Rio Grande/RS. O material foi produzido a partir da metodologia de Investigação Narrativa (CONNELLY; CLANDININ, 1995) com o uso de questionários individuais (GASKEL, 2004) como ferramenta para produção dos dados, a partir de um roteiro estabelecido. Para essa pesquisa, recorri a conexões com o campo dos Estudos Culturais (ESCOSTEGUY, 1998), na sua vertente pós-estruturalista e as análises ficaram centradas em uma Análise Cultural (WORTMANN; VEIGA-NETO, 2001) das narrativas.
As análises foram produzidas, a partir de cinco fases: Realização das entrevistas; Transcrição; Agrupamento por aproximação de significado; Categorização. A primeira fase se refere ao encontro com os sujeitos de pesquisa, dele produzi uma identificação inicial, além das respostas ao roteiro de entrevistas. Neste momento, eles(as) já assinaram os termos de consentimento livre e explicativo. A segunda fase foi a transcrição das entrevistas. Os primeiros textos narrativos, oriundos deste momento, foram enviados aos(as) participantes para que eles(as), caso julgassem necessário, modificassem os dados produzidos, realizassem alguma correção ortográfica, bem como analisassem os usos das narrativas e depois retornassem ao pesquisador. Assim, encaminhei a terceira fase, nela executei um agrupamento das respostas, por aproximação de conteúdos.
Em seguida, retomei as leituras dos dados e grifei os pontos convergentes em cada questão. Alguns dados se aproximavam, mas em questões diferentes, sendo assim, os direcionei aos agrupamentos nos quais havia maior proximidade, apontando que eram de outras questões. Posterior ao agrupamento, li novamente as narrativas e a partir da aproximação significativa elaborei duas categorias, denominadas: recorrências e escapes. Na primeira, agrupei os dados que se aproximaram e que foram recorrentes nas entrevistas. Na segunda, os escapes, referem-se às narrativas que se distanciavam do objetivo geral, mas que mantinham relação com a pesquisa, ou seja, de alguma forma discorriam sobre noções e relações com as danças, ou neste caso, em específico, trata das noções sobre ensino, tanto em relação com a religiosidade, quanto com a temática geral da pesquisa em si.
Este texto, então, tem por objetivo investigar se há relações entre ensino e as danças/movimentações de exus2 e pombagiras3, em terreiros de Quimbanda de Rio Grande/ RS. O trabalho, assim, abarca algumas discussões contingentes acerca dos significados narrados às questões, que formaram as categorias de análises realizadas posteriormente ao trato dos dados produzidos nas entrevistas. Desse modo, destaco que este texto se refere ao agrupamento das recorrências.
A produção deste texto é objetivada na discussão de dois conceitos, a saber: conhecimento histórico e usos do passado. Dentre suas funções, está a de colocar em diálogo conceitos e narrativas dos(as) participantes da pesquisa ao serem indagados(as) sobre: Os movimentos, são ensinados? As movimentações realizadas pelas entidades decorrem de quais processos educacionais, de quais ensinamentos? Como os gestuais das entidades são ensinados aos(as) médiuns? Estas três questões compõem o roteiro base de entrevista e, durante as análises, permitiram uma aproximação de ambas, tendo em vista as respostas dirigidas a elas. Assim, esse texto subdivide-se em três momentos: o primeiro, contextualização, o segundo com discussões sobre conhecimento histórico e usos do passado, em diálogos com as narrativas dos(as) participantes da pesquisa e, por fim, o terceiro tópico, são as considerações. Desse modo, este texto preconiza um convite ao ensino4, a pensá-lo em distintas possibilidades, especificamente em relação às danças de exus e pombagiras, se há ou não, dentro dos terreiros.
Conhecimento histórico e usos do passado... Acionando movimentações de saberes
Durante as visitas aos terreiros e nas narrativas dos sujeitos da pesquisa, fui convidado a pensar nos modos como os saberes são acionados por agentes religiosos. Nas ocasiões, em que tive contato, tanto com os terreiros, quanto com participantes do estudo, fui pensando em como o ensino estava perpassando sujeitos e locais. Percebi, no curso das análises, que o conhecimento histórico aparece como um acontecimento contínuo, metaforicamente, o desenvolver de um rio, o qual, embora se tenha ciência do seu sentido, o curso, o movimento mais sutil das águas implicam registros que forjam ranhuras, tanto nas margens, quanto no centro deste e, a essa descrição, darei outro nome, identidade sobre a qual falarei em outro artigo. Em relação aos usos do passado, ele é decorrente das formas de experimentação dos saberes dos terreiros, no tempo presente (VARELLA; MOLLO; PEREIRA, 2012).
E os usos do passado estão alicerçados, principalmente, nos documentos, imagens, histórias dos terreiros. Eles se mantêm enquanto intermediários dos saberes, ao mesmo tempo em que informam, formam, ou nesse caso, educam, ensinam. Ao serem utilizados, para o fim específico de ensinar a dançar, os usos do passado, operacionalizam fatos do presente, ao narrar os do passado, ocorre uma transposição de utilidade, mas não de utilitarismo, uma vez que são saberes que constituem fatos e acontecimentos, que geram os conhecimentos históricos produzidos nos terreiros (HARTOG; REVEL, 2001). Ocorre um tipo de inserção em tempos diferentes que ocasiona transmutações de significados e/ ou sentidos aos saberes, materializados ou oralizados, um passado mítico, dentro dos terreiros, que oportuniza identificação, ao mesmo tempo em que legitima as danças produzidas, realizadas no presente, tendo em vista que é nele, no presente, que se define o passado.
Ao acionar o passado, os sujeitos da pesquisa, estão interessados(as) presentificar um processo histórico vivido. Isso porque, eles(as) articulam as histórias de vida, com as histórias religiosas, articuladas com as histórias dos terreiros, a partir e, também, por meio das danças, com os atos de dançar ou, mais especificamente, com as danças dos exus e das pombagiras. Arrisco a dizer que é um tipo de uso político do passado, que é acionado para construir identidades que culminam em reconhecimento, um estabelecimento de relações de poder por meio das danças. São usos que referem/reforçam passados míticos que, de alguma forma, garantem legitimidade religiosa à cosmologia quimbandeira e, portanto, aos modos de dançar.
O conhecimento da dança é atribuído ao passado de uma geração. Ao passado da ‘ancestralidade’, em diálogo, ao passado da ‘entidade’ (nesse caso, mítico). Entram no jogo, muitas temporalidades sobrepostas no presente, são inúmeros passados sendo acionados e construídos. Nessa construção do passado (que se faz no presente) através das memórias (das entrevistas), há elementos que devem ser lembrados e outros esquecidos (ou silenciados).
Retomando o conhecimento, ele requereu que eu o pensasse em relação a algo, alguém, mais especificamente, ao “entre”. Desse modo, minha compreensão sobre o conhecimento assentou-se neste termo como:
Algo parecido com o traçado de um devir, que implica, ao mesmo tempo, experimentá-lo de diversos modos. Sem começo e sem fim. Um meio denso de estar atento à diferença e de afirmarmos, cada vez mais, a potência de nos diferenciarmos daquilo que somos. Devir é um meio e uma singularidade, não de nos diferenciarmos dos outros, mas, sobretudo de nós mesmos. O desafio de saber encontrar no acontecimento aquilo que nos força a pensar e nos tira da repetição do mesmo, impulsionando-nos para o próprio ato da potência de existir. (...) Diríamos, em princípio, que são estilos não conformados de pensar e de fazer formação e escola. Tais estilos expressam um agenciamento de como se dá o processo de criação de uma pesquisa no entre lugar da escola básica e da universidade. Assim, gaguejamos entre pesquisa e formação e escola e professores e alunos e práticas de diferenciação que evidenciam o que nos passa nestes entre territórios5 que se mostram como trajetórias de feituras e de conheceres (DIAS, PELUSO, BARBOSA, 2013, p. 225).
“(...) o conhecimento vai se dando no desenvolver da casa e do médium, todos os dias se aprende e se muda, embora tenha os fundamentos. Quando tu lida com gente, tens que saber que as pessoas mudam o tempo todo, elas querem coisas diferentes, daqui a pouco querem o mesmo de antes, um vai e volta, sem fim e nisso, tens que estar disposto a lidar e aprender o tempo todo, entre uma coisa e outra, e as coisas que tu sabe, os fundamentos vão mudando, tu sempre vai usar eles, mas tens que saber que as coisas mudam, daí tu usa as coisas que tu aprendeu, a partir do que precisa” (ROBERTO do PANTERA NEGRA, 24 de mai. de 2018)6.
A palavra entre, sugere sempre relação. Esta, por sua vez, dialoga com noções de agenciamento, o qual difere sujeito de objeto. Assim, ainda que a relação possa ser com objetos, no caso específico deste texto, ela se coloca na direção entre sujeitos, que são agenciados por diferentes situações, movências que os deslocam a todo tempo, como expressou um dos sujeitos da pesquisa. Ainda que seja ele - Roberto - o responsável pela doutrina do terreiro, o mesmo afirma a necessidade de estar disposto a aprender e, esse aprendizado, ocorre pelas relações com os sujeitos que frequentam sua casa. Existe uma direção do saber ensinado no terreiro, mas este é movido no sentido de compor algo específico, as dinâmicas do local.
É algo como expressa Félix Guatarri, em relação ao seu trabalho com Deleuze “(...) Não trabalhamos juntos, trabalhamos entre os dois. Nestas condições, a partir do momento em que existe esse tipo de multiplicidade, trata-se de política, de micro-política7” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 28). Portanto, a relação de ensino, a partir da narrativa de Roberto é entendida como uma articulação política dele com os(as) seus(suas) filhos(as) de santo e demais consulentes. Recorro a Kastrup (2012) ao escrever que:
(...) somos representacionais na nossa prática cotidiana. E às vezes ao contrário (...) às vezes nós encarnamos o ponto de vista da cognição inventiva muito antes de ter lido qualquer livro sobre cognição inventiva, ou sobre Deleuze e Guattari. Somos filosofias da diferença na nossa vida prática (...) e nem sabíamos. Então quando nós lemos algumas coisas, aquelas coisas, muitas vezes novas, às vezes difíceis, mas uma frase ou outra começa a ressoar, começa a fazer sentido: poxa, mas é mesmo. Mas é interessante aquilo que ele falou. Não tem a ver com aquela situação que a gente viveu ontem? E aí você vai construir um plano de sentido (KASTRUP, 2012, p. 122).
Nessa medida, a narrativa de Roberto, permite-me compreender que o conhecimento depende, também, de uma produção de um plano de sentido. O conhecimento é então desenvolvido e escrito, a partir das relações, das experimentações (LARROSA, 2002) que ocorrem por águas desconhecidas, visualizados, aprendidos e apreendidos, em meio a processos ininterruptos. Ou, como destaca Roberto, “o tempo todo”. Nesse sentido, os usos do passado, estão organizados no presente, pois a locução o “tempo todo” sugere deslocamento de temporalidades, podendo inclusive, modificar sentidos (HARTOG; REVEL, 2001). Assim, é no presente, que o passado pode ser definido, tendo em vista que, ele é não é algo dado, naturalizado, mas sim, uma produção atualizada do presente (HARTOG; REVEL, 2001).
Pinsky e Pinsky (2010) destacam que neste tempo, em que a Educação, especificamente, do ensino de história, tem sido balizado por reducionismos de carga horária, o desenvolvimento de conhecimentos nessa área necessita de mais atenção. Para eles, o conhecimento histórico está à mercê de informações e atualidades, sem aprofundamentos e contextualizações que a História, enquanto área do saber, com seu legado patrimonial, necessita ser trabalhada. É como se estivéssemos vivendo um conformismo, em detrimento do conhecimento, onde este tenha sido trocado por informações (PINSKY; PINSKY, 2010). Para eles:
O resultado de tudo isso é a transformação do conhecimento histórico numa maçaroca de informações desconectadas ou articuladas à força, mas sempre desinteressantes e frequentemente inúteis. A medida disso é dada pela dificuldade que muitos professores têm em responder a mais banal e óbvia pergunta dos alunos: “Professor, para que serve isso?” (PINSKY; PINSKY, 2010, p. 29).
Pinsky e Pinsky (2010) escrevem em relação a oposição da informação ao conhecimento, que o dever consiste em priorizar o segundo. Contudo, tenho pensado que o importante é o aprendizado da verificação das fontes de informação. Na leitura dos autores, o conhecimento equivale a um saber colaborativo, que ocorre a partir de relações entre diferentes fontes de saber, especificamente deles, entre aluno-professor e professor-aluno. Nessa lógica, a relação tende a conduzir todos os sujeitos partícipes para uma noção de cidadania concisa, a qual preconiza um saber de si, localizado em culturas específicas - as dos sujeitos - e, principalmente, habilitando ambos a reconhecerem suas historicidades, distanciando-os das informações que tendem,
A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. (HOBSBAWN, 1995, p. 13).
A partir das palavras de Hobsbawn (1995) é possível compreender uma ruptura ou fragilidade em relações possíveis, por meio do conhecimento histórico. No entanto, ele (este saber está envolto nas nossas rotinas, interferindo rotineiramente nas nossas relações). Desse modo, negá-lo (o conhecimento) implica mais em distanciar-se das potências de si do que agir em prol de uma possível alteração social, fator que vai ao encontro do pensamento de que “(...) o potencial transformador da História é a oportunidade que ela oferece de praticar a “inclusão histórica”” (PINSKY, PINSKY, 2010, p. 28). Ou, como expressou outra participante da pesquisa:
((...) Tens que saber a história do terreiro onde pisas, não podes entregar tua cabeça para qualquer um. Todo lugar foi montado, a partir das feituras de cada dirigente. Tu encontra diferenças, porque, as pessoas são diferentes e às vezes, abrem seu terreiro porque não querem mais ficar nas mãos de fulano ou ciclano. Pode ter rituais diferentes, mas com base em algo que é da nossa história, dos nossos conhecimentos, mas, mesmo assim, tens que ver se ele (o dirigente) preserva as tradições, pode não cumprir todas, mas ele preserva? Tu não podes jogar fora todos os fundamentos, isso não existe. Tu não vai fazer uma religião nova. Isso é uma questão de saber de onde tu veio, de onde as coisas vieram, tudo tem um processo não é só cheguei, por que cheguei. Preciso saber da minha história, das histórias do meu pai ou mãe de santo, senão é tudo muito solto, gera fofoca e tua casa não dura” (DAIANE da MARIA QUITÉRIA, 23 de mai. de 2018).
Segundo a narrativa de Daiane da Maria Quitéria, é preciso conhecimento sobre o que se está fazendo. Não se pode agir pelas informações aleatórias, soltas, uma vez que, para ela, tudo na religião possui orientações a serem seguidas, ainda que não completamente, como ela destacou. Ensinar implica no desafio de compreender que é necessário “(...) tensionar modelos rígidos e predeterminados, evidenciando a necessidade de não confundir uma forma de ensinar como único modo de praticá-la” (DIAS, 2011, p. 23), de modo que os usos do passado organizem possíveis formas da lembrança, concomitantemente as do esquecimento (HARTOG; REVEL, 2001).
Assim como exposto por Hobsbawn (1995), Pinsky e Pinsky (2010) em diálogo/relação com o que foi dito por Daiane da Maria Quitéria, as potências estão no conhecimento, nos modos como operamos com eles, em prol de manutenção da historicidade das práticas dos terreiros ou, para ele ser duradouro, é ter fundamento, que se baseie no que é histórico da Quimbanda, ainda que seja possível operar algumas transformações. Assim, a noção de entre, de relação, consiste em alocar os sujeitos, na compreensão de que são parte, são membros da história, que são conectores(as), ao mesmo tempo em que, estão conectados(as) com outras histórias.
No estudo de Bezerra (2010), o conhecimento é compreendido como algo provisório e não absoluto, contudo, para que se compreenda ele como histórico é necessário que a ele sejam aplicadas ações que visem a problematização, definição de objetos, perceber os sujeitos que o produziram e os que o difundem, para além de realizar leituras e análises críticas acerca das fontes e conteúdos envolvidos, fatores que forjam as condições de possibilidade do acontecimento ou fato, nesse caso, histórico. O autor, desse modo, considera o conhecimento histórico não como fechado, mas, ao contrário, em trânsito, sob a alegação de que os estudos que envolvem a história ou historiografias, introjetam outras perspectivas, olhares que configuram a todo momento os saberes, proporcionando outras possibilidades de leituras sobre os fatos (BEZERRA, 2010). As pesquisas, especificamente as acadêmicas, atualizam narrativas e descrições, mas, nessa movimentação de saberes, as transitoriedades históricas de modo que adentra as estruturas que forjam o conhecimento, logo, ele não está dado, pronto para ser usado, mas sim, posto em jogo, para ser rebatido (BEZERRA, 2010), (des)cristalizado.
(Des)cristalizar, nesse sentido, significa suspender verdades, metanarrativas e possibilitar outras leituras, a partir das experiências de si, em relação ao mundo, fator que exige um descentramento de saberes, mudanças de locais de fala e posições de sujeitos, em suma, um acontecimento que requer exercício (BEZERRA, 2010). Acerca desse movimento de suspensão, recorro a Dias (2014) ao escrever que:
(...) é necessário desejar aprender a se deslocar. Tarefa nada fácil! Pensar e se fazer por movimentos exige de nós uma política de trabalho regular. Toda quarta-feira nos encontramos para estudar, conversar, planejar trabalhos e escrever. Atividade que torna visível uma micropolítica com a escola básica. Na micropolítica é possível desnaturalizar os lugares higienizantes dos saberes instituídos escolares. Na invenção, o conhecimento se dá por meio de formas variadas de apreender o que nos passa, em constante movimento. Por isso, nosso olhar e movimento são implicados e fazem funcionar agenciamentos que inventam linhas do dispositivo para um trabalho no campo da produção de subjetividade (DIAS, 2014, p. 15).
Desestabilizar, então seria outra palavra que se enquadra nessa dinâmica. Tal acontecimento, no entanto, exige um posicionamento de reconhecimento de que os saberes precisam ser colocados em xeque, serem contrapostos, primeiramente, partindo da ideia de que não existe neutralidade, que não há afastamento do objeto que se pesquisa, aprende ou ensina, tampouco nas relações entre sujeitos. É uma prática de suspeição, ao mesmo tempo em que, de suspensão.
Suspender, nesse caso, implica em desnaturalizar ações, atitudes, principalmente éticas, são formas de olhar para um objeto, é o conjunto de procedimentos que induzem a suspeita, a dúvidas, acerca de um assunto, de modo a permitir que perceba como ocorrem as relações de poder, de força, de violência, que instituem ou instituíram um conhecimento, em detrimento de outro. Significa estar implicado(a) a deslocar-se do senso comum, do habitual e mudar o foco, “(...) duvidando daquilo que se vê, além de exercer a suspeita como atitude ética e postura política” (PRADO FILHO, 2012, p. 73). Tudo isso, para manter ativo um espectro de saberes, além de amplos campos de/ para problematizações (DIAS, 2012) ou como sugere a autora uma formação inventiva, na qual entram na ordem do dizível a resistência, as singularidades, as subjetividades, a partir dos quais, de fato, o conhecimento será compreendido como provisório e assim serão os seus efeitos. Ela entende e explica que:
(...) a formação inventiva do ponto de vista do conhecimento, significa marcar o momento de um olhar e destituir o próprio corpo do conhecimento da aura da sacralização da verdade, uma vez que todo o conhecimento se refere a um efeito das contingências que o intentam (DIAS, 2012, p. 17).
Dialogando com Dias (2012) pensar o conhecimento histórico e os usos do passado, implica em perceber as transitoriedades que interpelam ambos. Não existe, desse modo, saber que não possa sofre alterações, que não seja pesquisado e assim, modificado pelos olhares que o investem, porém, tanto um, quanto o outro, dependem de uma ação ética, que preconize um ensino que se molde desse mesmo modo, pois, os saberes, como abaixo sugerem os(as) participantes da pesquisas, ainda que possuam fundamentos, são, possíveis de serem visualizados e operacionalizados, de distintas formas. Além disso, segundo as narrativas dos sujeitos do estudo, são saberes contingentes, temporais, que definem práticas dos terreiros, ainda mais quando se fala em ensino de danças, ou como expressou uma das participantes, Dione da Maria Padilha das Almas, não se ensina, se sente a energia e, por isso, se dança. A ideia dela aparece mais detalhada abaixo:
“(...) eu não ensino, o médium precisa sentir a energia da sua entidade e deixar que ela o leve para dança, além disso, tem a energia dele, como foi o dia dele. Não tem um jeito específico de fazer, cada um tem seu tempo e seu modo, assim, eu não ensino, não a dança, mas ensino outras coisas, como a saber os pontos, as coisas da cozinha, as histórias das entidades, as magias de cada exu e pomba-gira, nos dias fechados eles sentem os ritmos do tambor, mas é isso, não tem um treino” (DIONE da MARIA PADILHA DAS ALMAS, 16 de jun. de 2018).
“(...) sempre faço uma roda, conto sobre a mitologia das entidades, falo sobre o arquétipo delas, quando elas chegam na terra, eu conduzo a cada lugar que ela deve ir e saudar no terreiro, depois, na hora da gira é a energia dela (da entidade) que conduz o médium, mas, os corpos deles assumem muito as características das imagens que eles projetam nas cabeças, ao lerem sobre a entidade, isso até amadurecer que precisam deixar a entidade tomar conta. Depois disso, deixo usarem saias, capas e tudo que acharem necessário, mas primeiro, o médium precisa estar pronto para perceber tudo a sua volta, sem com isso, perder a concentração na energia da entidade, até porque, isso não é espetáculo, cada gesto tem um significado, tanto que, girar no sentido horário ou anti-horário tem significados muito diferentes, a gente diz que a entidade veio virada, braba, quando ela chega dançando no sentido anti-horário” (ROBERTO do PANTERA NEGRA, 24 de mai. de 2018).
“(...) Tem ensino, mas não é igual a colégio, também, não é uma coisa tipo, só se dança de um jeito. Cada filho ou filha sente a força da entidade e deixa o corpo manifestar, daí vou moldando para que não se machuquem, nem machuquem que está na volta, pois tem uns que chegam como muita força. Ensino a controlar a força da entidade, mas é lindo quando eles conseguem descrever com expressões faciais e do corpo todo, as características que as entidades apresentam. Não é uma técnica pura, mas eu ensino, no máximo, partindo da noção do espaço que temos aqui no terreiro e que eles precisam ter quando tem muita gente na casa. O corpo tem que estar bem para receber a entidade e se movimentar como ela quer. Os movimentos das capas e saias são lindos e isso precisa ser ensinado, para o médium e não para entidade, depois, cada um com o tempo deixará na cara se a entidade dançou para brigar ou saudar” (DAIANE da MARIA QUITÉRIA, 23 de mai. de 2018).
“(...) Acho importante ensinar tudo. As pessoas chegam muito sem noção das coisas e podem se machucar. Eu conto sempre aquilo sei sobre as entidades, daí eles formam os arquétipos que querem, mas é impressionante, porque, cada um tem seu jeito, até os que incorporam a mesma entidade, daí quando tu vê eles dançando é de uma naturalidade, que os corpos parecem voar no salão, aqueles que usam capa e saia, para fazer sarandeio, quando estão prontos, embelezam o ritual, mas isso não é tudo, eles precisam saber dançar sem esquecer que estão com copo e cigarro na mão, geralmente, daí fico na volta chamando a atenção deles e das entidades, para não se machucarem” (DANIEL da PADILHINHA, 27 de mai. de 2018).
“(...) eu ensino, as danças representam as entidades, daí nos cultos fechados eles aprendem ritmo, movimentações e uso dos corpos no espaço, não que isso seja para apresentar, mas é para saberem que não é qualquer coisa. Tem fundamento, sem perder a naturalidade, porque, quando a entidade chega é ela que toma conta do corpo, daí tu não tem como segurar, mas se o filho está ciente que não pode se machucar ou machucar alguém isso já ajuda, isso eu ensino e eles mostram na dança de chegada e saída das entidades deles. Outra coisa, quando os filhos não estão bem, brigaram, seja o que for, até as entidades conseguirem firmar chega a ser assustador, é uma briga quase, por isso, a gente cuida para não se machucarem, porque não ocorre a conexão entre eles - médium e entidade, daí fica uma dança pesada, mas que tem significado também, o de que o filho está passando por algo ruim” (MARCELO do TRANCA RUAS DAS ALMAS, 14 de jun. de 2018).
Retomando a ideia expressa por Dione da Maria Padilha das Almas, não tem ensino, mas sim, o que tem é uma sensibilidade às energias das entidades, ou mesmo do terreiro, que levam o sujeito a se movimentar, dançar. Para ela, os(as) filhos(as) da casa dançam porque estão prontos(as), pois sentem a vibração, a energia dos exus e das pombagiras que os(as) escolheram. Desse modo, ainda que a participante argumente ter fundamentação, saberes e rotinas de ensino, relativamente a dança não ocorre um preparo corporal específico, porém, existe durante as sessões fechadas, uma educação rítmica, a partir dos pontos e letras dos mesmos, nesse sentido penso, a partir de Foucault (2010) ser esta uma possibilidade de experimentação, na qual o autor propõe que, ao experenciarmos outras coisas, como por exemplo, as músicas, as histórias, os cheiros, os gostos, a sensação das energias do terreiro, ampliamos as chances de não sermos mais o que éramos antes (FOUCAULT, 2010).
Com relação aos(as) demais participantes da pesquisa, Daiane da Maria Quitéria, Roberto do Pantera Negra, Daniel da Padilhinha, Marcelo do Tranca Ruas das almas e José Carlos do Maioral, com relação ao ensino das danças de exus e pombagiras percebi que ocorre tanto o uso de saberes específicos dos terreiros, quanto narrativas de experiências históricas, na educação dos movimentos. Saliento que não percebi conhecimentos que sejam considerados neutros ou mesmo isentos de racionalidades e tal afirmação deve-se principalmente pelo fato de mencionarem conversas iniciais, sobre as mitologias, gestuais e aparências das entidades. Penso então, a partir de Deleuze e Parnet (2004) que “(...) uma conversa, poderia ser isso. Simplesmente o traçado de um devir” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 12). Porém, por uma visão historiográfica, tal posicionamento já era esperado. Isso porque, duvidar e criticar, nesta linha, compõem o entendimento de que não há outro caminho para experimentar e desenvolver saberes. Os conhecimentos históricos sobre os terreiros, são acionados para educar os sujeitos, para doutrinar as entidades e, assim, produzir as movimentações, compreendidas como danças. São gestos, sarandeios (movimentos das saias) e inúmeros giros, além de expressões corporais que indicam estados de humor, chegada e retirada das entidades dos corpos dos(as) filhos(as) de santo. Além disso, os(as) participantes narram a importância de uma vigia, em prol da integridade física, tanto de seus(suas) filhos(as) de santo, quanto dos(as) demais participantes dos rituais.
Ainda que, não sejam dados nomes específicos, as movimentações, as técnicas corporais, educadas e desenvolvidas para as danças de exus e pombagiras, partilham de saberes oriundos especificamente dos terreiros, como por exemplo, compreensão de espaço, hierarquias para saudar os(as) presentes, bem como, os caminhos percorridos pelas entidades, quando incorporadas. É possível, estabelecer analogia, nesse caso, a noção de dispositivo, o qual não é um objeto, uma ferramenta, mas um ordenado de linhas que incitam sujeitos a falar, a ver, ou mais especificamente, a mover-se a ponto de dançar, a partir dos vetores que forjam identificações dos exus e pombagiras, os quais recebem em seus corpos, ou como expressa uma das participantes, como uma percepção das energias que os(as) envolvem durantes uma sessão. Desse modo, considero necessário demarcar que:
(...) todo o dispositivo se define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar, ou desde logo se fender em proveito de um dispositivo futuro, a menos que se dê um enfraquecimento da força nas linhas mais duras, mais rígidas, ou sólidas. E, na medida em que se livrem das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também, na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do antigo dispositivo (DELEUZE, 1996, p.87).
Nestas possibilidades de pensamento, conecto os saberes sobre dispositivo, ao sentido das giras, aos significados dos sarandeios, as simbologias de cada movimento das capas e, também, as movimentações dos braços, os quais representam, em um primeiro momento, as razões e humores, tanto dos(as) médiuns, quanto das entidades que chegam no terreiro, além de expressar características de tornam possíveis as identificações de exus e pombagiras. É uma relação de alteridade, na qual, o médium e a entidade, ele(a) e o(a) outro(a); ensina-se o(a) médium a dançar, pois, para alguns participantes do estudo, a entidade “sabe”. No entanto, para outros(as), a entidade deve ser também ensinada. Na esteira do dispositivo, seriam estas, as condições de possibilidade para que alguns sujeitos religiosos se sintam educados(as), ensinados(as) para dançar, a partir das representações de suas entidades, pelo menos, partindo das narrativas dos sujeitos da pesquisa.
Sem querer concluir, mas... Por enquanto, as giras são para este lado...
Desse modo, compreendo que as relações acerca do ensino das danças em terreiros, a partir de um viés que dialoga com narrativas históricas, é uma premissa que saltou no tratamento dos dados durante as análises da dissertação. Ainda que nas narrativas dos(as) participantes tenham distanciamentos, é possível perceber referências a experiências históricas, ao passado, pelo acionamento das memórias ao falarem sobre as danças nos terreiros.
Com relação ao conhecimento histórico, os(as) participantes argumentam sobre os fatos de que os saberes dos terreiros, das vertentes religiosas, ainda que mantenham relações com formas e modos “ditos” tradicionais, são a todo instante ordenados em uma temporalidade para que se compreenda os locais de onde se falam e mais que isso, que se percebam suas raízes, ancestralidades e também seus fundamentos míticos. Conhecimento histórico, nesse sentido, opera na direção de sustentar, embasar as corporeidades dos terreiros e saberes por eles ensinados, perpassados.
Já, no que se refere aos usos do passado, os(as) participantes relatam os saberes que orientam os ensinos, especificamente, das danças que são tratadas, a partir das mitologias, histórias, tanto das mitologias das entidades, quanto, dos modos de trabalhar os corpos nos terreiros. São reiteradas linguagens e técnicas corporais que remontam personificações de histórias narradas pelas entidades e, além disso, das questões que perpassam as feituras ritualísticas dos terreiros.
Exposto estes pontos, o ensino de danças, nos terreiros, perpassa por estas orientações narrativas. Além disso, é possível perceber que existem outros fatores, que são mais do campo da subjetividade ou diria, individualidades das pessoas que incorporam as entidades. Assim, até este momento, falar em ensino de danças de exus e pombagiras implica em reconhecer que tais movimentações são produzidas por diferentes campos de saber, mas que corroboram com as dinâmicas ritualísticas e comportamentais dos terreiros.