Introdução
Em estudos recentes, temos assumido a caracterização proposta por Cyrino (2016a, 2017), no qual a Identidade Profissional (IP) de professores que ensinam matemática (PEM) é constituída em um movimento que “se dá tendo vista um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político” (CYRINO, 2017, p. 704). Essa escolha está intimamente associada a dois fatores, interligados, que merecem destaque.
O primeiro deles é fruto de nossa participação no Grupo de Estudo e Pesquisa Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Formação de Professores que Ensinam Matemática - Gepefopem1 -, cujo histórico da produção de seus membros tem evidenciado a necessidade e a preocupação de investigar diferentes contextos de formação de professores (inicial e continuada), tais como: estágio curricular supervisionado em cursos de licenciatura em Matemática, grupos que se caracterizaram como Comunidades de Prática (CoPs) (WENGER, 1998) e grupos em que ocorreu a exploração de casos multimídia, nos quais aspectos da constituição da IP de PEM se fizeram presentes (BELINE, 2012; TEIXEIRA, 2013; GARCIA, 2014; ESTEVAM, 2015; CYRINO, 2016a; 2016b; 2016c; 2016d; JESUS, 2017; OLIVEIRA, 2017; RODRIGUES, 2017; CYRINO 2018).2
O segundo fator reside na ênfase de diversos pesquisadores - nos contextos nacional e internacional - em defender a IP do professor como um campo investigativo em expansão, pois problematiza questões envolvendo o complexo caminho da formação de professores (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004; OLIVEIRA, 2004; LLOYD, 2006; GOOS; BENNISON, 2008; PAMPLONA; CARVALHO, 2009; ANDRÉ, 2011; TICKNOR, 2012; HOSSAIN; MENDICK; ADLER, 2013; VAN PUTTEN; STOLS; HOWIE, 2014; BENNISON, 2015; TEIXEIRA; CYRINO, 2015; CYRINO, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d; DARRAGH, 2016; LOSANO; CYRINO, 2017).
Em particular, temos investigado a IP de PEM3 (DE PAULA; CYRINO, 2017, 2018a, 2018b, 2018c) por entendemos que discutir as singularidades dos processos formativos de PEM está intimamente associada aos movimentos de ser, ver-se e ser reconhecido como um professor que ensina matemática. Dessa forma, julgamos que (i) as situações históricas, envolvendo o desenvolvimento de sua formação e o exercício de suas funções; (ii) as especificidades dos conhecimentos, das temáticas ligadas ao exercício da docência e da pesquisa; (iii) os posicionamentos a respeito das políticas de formação de (futuros) PEM; e (iv) as relações profissionais entre seus pares e os demais campos do conhecimento são elementos diretamente vinculados ao movimento de constituição de sua IP como PEM. A integração entre esses elementos se apresenta como um mundo no qual os professores se veem por meio de seu campo disciplinar (VINÃO, 2008).
Por crermos que as investigações sobre formação de PEM se apresentam a alguns pesquisadores como um desafio imperativo de luta ideológica e política (CYRINO, 2006, 2017; SOUZA; TEIXEIRA; BALDINO; CABRAL, 1995), consideramos válido fomentar e investigar esforços em compreender as pesquisas no que se refere ao movimento de constituição da IP de PEM.
Sendo assim, no presente artigo discutimos aspectos a serem levados em conta em investigações a respeito do movimento de constituição da IP de PEM. Para tanto, analisamos e problematizamos investigações sobre o PEM presentes em dois corpora. Na sequência, apresentamos como eles foram constituídos e os aspectos associados aos processos de constituição da IP de PEM, aos contextos investigativos e às perspectivas epistemológicas de IP de PEM problematizados a partir desses estudos. Prosseguimos com o entrelaçar desses elementos e, por fim, nas considerações finais, sinalizamos questionamentos para futuras investigações nesse campo.
Os corpora
O No Quadro 1, apresentamos os estudos a respeito da IP de PEM, publicados entre 2006 - 2016, que compõem os corpora, quais sejam:
a) Corpus 1: 24 dissertações e teses brasileiras oriundas de Programas de Pós-graduação stricto sensu das áreas de Educação e Ensino.
b) Corpus 2: 23 artigos publicados em periódicos4 representativos do campo investigativo da Educação Matemática.
Fonte: Elaborado pelos autores. Legenda das cores dos estudos: teses em vermelho, mestrados acadêmicos em verde e mestrados profissionais em azul.
Iniciamos com os estudos do Corpus 1, que fazem parte da chamada literatura cinzenta5, por entendermos que esse era um exercício necessário para pensar o campo investigativo da IP de PEM no cenário brasileiro. Em De Paula e Cyrino (2018a) discutimos os pontos de enfoque6 desses estudos, quais sejam: condições de trabalho de PEM; políticas públicas, programas ou projetos de fomento; contextos diferenciados de formação docente; comunidade de prática ou grupos de estudo; formação inicial de PEM e práticas pedagógicas; formação de PEM na modalidade a distância; e PEM como abordagem secundária. Ainda a respeito desse corpus, em De Paula e Cyrino (2018c) averiguamos os elementos dos polos epistemológico e teórico (LESSARD-HEBERT; GOYETTE; BOUTIN, 1994), relativos às escolhas teóricas dos autores e suas perspectivas epistemológicas - sociológica, cultural, psicológica/psicanalítica e generalista.
Quanto ao Corpus 2, em De Paula e Cyrino (2018b) discutimos as ações de mapear, descrever e analisar as perspectivas epistemológicas do conceito de IP de PEM, nomeadamente as perspectivas holísticas, wengeriana, político-reformista e pedagógica dos estágios.
Essas ações analítico-investigativas nos possibilitaram identificar elementos concernentes aos processos de constituição da IP de PEM, aos contextos investigativos, e às perspectivas epistemológicas de IP de PEM, no decorrer da construção-análise dos dois corpora. Nas próximas seções, discutimos esses elementos associados a aspectos que se mostraram importantes no movimento de constituição IP de PEM.
Aspectos dos processos de constituição da IP de PEM
No decorrer da constituição do Corpus 1 sobre a IP de PEM, deparamo-nos com diversas tentativas de pesquisadores interessados em apresentar/construir representações gráficas, ilustrando os processos de constituição da IP. Nessas representações, havia indícios (GINZBURG, 1989)7 que poderiam conduzir a interpretação da IP como resultante de um cumulativo de itens/elementos, como se a IP fosse “algo a ser atingido”. Encontramos também estudos que compreendem a IP como resultado do trilhar de um caminho sequencial, praticamente linear, contemplando diversas fases, as quais seriam percorridas pelos docentes ao longo de suas carreiras. Nessas duas situações, a IP poderia ser interpretada como resultante de processos finitos (recluso no tempo), limitada a um número restrito de aspectos considerados influenciadores (por isso limitado/estático) e igualmente combinada a ocorrer em ambientes predeterminados (cerceada no espaço).
Não partilhamos dessas ideias. Ao assumirmos a caracterização de IP de PEM proposta por Cyrino (2016a, 2017), na qual a IP de PEM é compreendida como um movimento, a complexidade e a dinamicidade são evidentes, e também perceptíveis em vários estudos dos corpora inventariados: eles corroboram a complexidade e a dinamicidade como características processuais do movimento de constituição da IP de PEM (DE PAULA; CYRINO, 2018a). Partindo da caracterização de Cyrino (2016a, 2017), compreendemos que, além da complexidade e da dinamicidade, a temporalidade e a experiencialidade - CDTE8 - são aspectos relevantes nesses processos.
A complexidade advém do entendimento de que os movimentos de constituição da IP de PEM são processos influenciados por uma gama de fatores, por exemplo, pessoais, sociais, culturais, psicológicos, contextuais e políticos. O PEM, como ser social, interage e é interdependente das ações (e reações) do outro - como se vê, como é visto pelos outros e como é representado socialmente -, envolve múltiplos fatores, inclusos os de natureza subjetiva e outros historicamente construídos. Assim, as relações de compreensão, visão e ação diante do desenvolvimento de seu trabalho são igualmente condicionantes e resultantes de processos interativos, com o(s) outro(s) (KELCHTERMANS, 2009).
Seguindo esse raciocínio, vemos que a dinamicidade é evidenciada na natureza sempre inconclusa desses processos formativos. Os reflexos dos movimentos contínuos oriundos dos contextos (pessoal, profissional e inter-relacional) nos quais o PEM se envolve (de natureza complexa) evidenciam que os processos de constituição da IP de PEM estão em constante modificação. As inter-relações dos/nos contextos proporcionam transformações (metamorfoses) pessoais e profissionais. Por esse motivo, cada um de nós, individualmente e como PEM, somos agora, diferentes daqueles que fomos no início do exercício profissional, e certamente seremos diferentes no futuro (hoje?, amanhã?). Por isso entendemos que outros dois aspectos estão presentes: a temporalidade e a experiencialidade.
Referimo-nos à temporalidade no sentido de destacar o efêmero, pois a IP de PEM não é algo pronto, eterno: “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2015, p. 11-12). Os processos são temporais, contingenciados pelos ambientes espaço-tempo, transcendendo os cenários tradicionalmente associados à formação docente (formação inicial e os raros momentos de formação continuada): ele ocorre em todos os contextos nos quais o PEM se insere, como pessoa. O professor é um sujeito temporal. Suas práticas, historicamente, se conectam ao desenvolvimento de ações/papéis envolvendo as dimensões de observação/ação/planejamento diante das contínuas mudanças sociais, culturais e políticas que ocorrem ao seu redor.
Tratamos a experiencialidade diretamente associada ao conceito de experiência de Larrosa (2002). Essa dimensão, no caso específico de PEM, guarda em si as profundas e particulares relações estabelecidas por esse profissional consigo mesmo e com os outros em processos de natureza dialógica e diacrônica (sobre si mesmo, os outros, seu trabalho, a sociedade e os contextos nos quais se insere). Nesse sentido, a experiencialidade proporciona a receptividade e a disponibilidade. É “um estar aberto a”, inseguro de si,
não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. (LARROSA, 2002, p.25)
As relações do PEM com os fatores espaço-tempo-contexto são experienciais. E a experiência é emancipatória.
Dessa forma, ao indicarmos nossas compreensões a respeito de CDTE como aspectos a serem considerados, focamos a questão dos processos de constituição da IP de PEM. Por aceitar esses quatro aspectos (CDTE) como indissociáveis, julgamos mais interessante nos ater à discussão das características desses processos (e, por conseguinte da IP de PEM). Compreendemos que elencar esses aspectos para uma definição formal, finita, com limites bem (pré)determinados é inviável, posto que a IP de PEM está em constante movimento. Assim, não há critérios de precedência, superação ou relevância, entre esses quatro aspectos (CDTE), mas, sim, vínculos de proximidades e coalisões, cujas fronteiras são tênues. Uma representação possível, nessa ocasião, seria uma conexão, como ilustra a Figura 1.
CDTE é o que qualifica o movimento. A IP de PEM é complexa, pois envolve múltiplos e influentes fatores; é dinâmica, pois as inter-relações entre esses fatores ocasionam mudanças - às vezes intempestivas; é temporal, pois o comportamento desses fatores é imprevisível; e é experiencial, pois cada indivíduo - pensando na relação indivíduo/sociedade - vê, interpreta, é atingido e reage a esses fatores de modo distinto.
Aspectos caracterizadores dos contextos investigativos
Lessard-Hebert, Goyette, Boutin (1994), que defendem um modelo articulado em quatro polos - epistemológico, teórico, morfológico e técnico - como um sistema interativo constituinte dos processos investigativos, foi nossa lente teórica ao analisarmos o Corpus 1 (DE PAULA; CYRINO, 2018c) especificamente os polos epistemológico e teórico. Apresentamos na Figura 2, uma síntese das principais dimensões de cada um dos quatro polos do processo investigativo.
Tomando essa perspectiva, alguns aspectos integrantes dos processos investigativos dos estudos sobre a IP de PEM que compõem os corpora merecem destaque. Em ambos encontramos:
As investigações envolvem um número reduzido de participantes, comumente escolhidos no contexto de experiências formativas em contextos grupais.
As composições desses contextos grupais, em geral, envolvem profissionais já atuantes na Educação Básica, futuros professores e docentes universitários.
O número de participantes com formações diversas - não especificamente em Matemática - nas investigações é expressivo: entre eles os profissionais das áreas de Engenharia e Pedagogia, sendo que os (futuros) pedagogos são o grupo de maior destaque.
As experiências formativas ocorridas nesses contextos fomentam a integração entre os participantes e a valorização de suas práticas profissionais.
Os pesquisadores interessados em discutir a IP de PEM no contexto da formação inicial assumem a carência de estudos nessa direção como uma das dificuldades do processo de levantamento de seus referenciais teóricos.
As ações pertinentes ao desenvolvimento do Estágio Curricular Supervisionado (ECS) na licenciatura em Matemática são potencializadoras dos processos de constituição da IP de PEM.
Os estudos evidenciam, intencionalmente ou não, momentos de tensão/fragilidade de PEM, seja por identificação ou por (com)vivência.
Tratando especificamente do Corpus 1 destacamos: (i) as dificuldades nos processos de escolha/apresentação/discussão de referenciais teóricos diretamente relacionados à IP de PEM; (ii) os estudos em que os elementos do polo técnico deveriam ser evidenciados e problematizados com maior ênfase; e (iii) a ausência, em um número significativo dos estudos, de caracterizações a respeito da compreensão do(a) autor(a), ou da visão compartilhada por ele(a) sobre a concepção de IP de PEM.
Do Corpus 2 se destacam: (i) elementos dos polos epistemológico e teórico (com destaque para o quadro referencial a respeito da IP claramente delineado); (ii) maior número de pesquisas em que a constituição da IP de PEM é vinculada à problematização da aprendizagem de temas matemáticos específicos; e (iii) estabelecimento de relações entre a IP, as práticas profissionais e os modos de representatividade da IP.
Essas peculiaridades evidenciam as influências das escolhas teóricas e epistemológicas no encaminhamento metodológico das investigações.
Os estudos integrantes do Corpus 2 (no qual constam pesquisas nacionais e internacionais) avançam em relação ao Corpus 1 (de dissertações e teses) pelo cuidado dedicado aos elementos do modelo quadripolar. Inferimos que esse fator seja decorrente da natureza morfológica da apresentação dos trabalhos. Nos estudos do Corpus 2, é perceptível a preocupação com a clareza e a explicitação dos elementos demarcadores dos polos epistemológico, teórico e técnico. Contribuem para essa preocupação os limites (característicos) impostos aos pesquisadores para esse tipo de publicação (artigo), cuja redação final é fruto de um esforço de síntese acurada, em que, dentre as prioridades, se destacam a exposição do encaminhamento metodológico e os principais resultados da investigação.
Uma singularidade importante evidenciada em diversos estudos do Corpus 1 é a escassez de problematização das escolhas teóricas, muitas vezes associada a um (ou mais) instrumentos de coleta de dados. Esse fato permeia os polos epistemológico, teórico e técnico e pode evidenciar inconsistências na articulação das análises (polo morfológico). Como casos em que a IP de PEM é considerada como uma construção complexa e dinâmica, mas os instrumentos de coleta de dados não permitem (nem possibilitam assumir) identificar esse movimento, pois são de natureza estanque, fixos, utilizados em (apenas) um dado momento da investigação. O que queremos frisar é que a natureza do(s) instrumento(s) pode comprometer o processo analítico.
Aspectos caracterizadores das perspectivas epistemológicas de IP de PEM
No Quadro 2, relacionamos os corpora às perspectivas epistemológicas do conceito de IP de PEM que identificamos e os estudos integrantes do agrupamento proposto.
Fonte: Elaborado pelos autores, a partir dos resultados de De Paula e Cyrino (2018b, 2018c)
Ao confrontar as oito perspectivas epistemológicas identificadas, encontramos singularidades e aproximações. Independentemente do corpus no qual elas se encontram, ao inter-relacioná-las não há contrapontos - elas não se contradizem. Pelo contrário, há um emaranhado de nexos entre esses estudos, há dialogicidade.
A nomeação das perspectivas está diretamente relacionada com a natureza dos aspectos que as caracterizam. A seguir, em ordem alfabética, destacamos os aspectos característicos de cada uma das delas e indicamos seus autores de referência. Em alguns casos, optamos por não apontar esses autores, posto que não encontramos uma convergência/regularidade em relação aos referenciais teóricos indicados na perspectiva em questão: isso significa que ela agrega um grande número de autores, não sendo possível destaques.
Perspectiva cultural - Autores de Referência: Stuart Hall, Kathryn Woodward e Tadeu Tomas da Silva.
Aspectos característicos: abordam religião, família, etnia, raça, nacionalidade, classe social e as questões de gênero e o sentimento de pertença/identificação com esses sistemas culturais.
Perspectiva generalista - Autores de Referência: não há destaques.
Aspectos característicos: relacionam diversos elementos (saberes, conhecimentos, práticas, experiências) no contexto de formação de professores com a IP: os saberes docentes, a autonomia, a profissionalidade e o desenvolvimento profissional são apontados como fatores influentes nos processos de constituição da IP.
Perspectiva holística - Autores de Referência: não há destaques.
Aspectos característicos: envolvem/destacam aspectos afetivos e experienciais (positivos ou negativos), abrangendo acontecimentos do passado, do presente e das expectativas de futuro dos PEM; a resiliência, a confiança, a paixão, as ideologias, a criatividade, as (in)coerências do exercício da profissão, a criticidade e a sensibilidade.
Perspectiva pedagógica dos estágios - Autores de Referência: não há.
Aspectos característicos: evidenciam possibilidades de problematizar experiências, de promover aos futuros PEM oportunidades de ações transformadoras de suas expectativas, crenças e concepções. Refletem sobre os anseios em relação ao futuro exercício da profissão, os questionamentos ligados aos conhecimentos, à matemática e a seus processos de ensino e de aprendizagem, o reconhecimento profissional de seus pares e o debate dos aspectos colaborativos.
Perspectiva Político-reformista - Autores de Referência: não há.
Aspectos característicos: apresentam estudos em que a análise da IP de PEM abrange as relações de poder, a democracia, as políticas públicas (e as suas diversas formas de implementação), a visão social da profissão. Esses macros aspectos destacados associam-se à formação de professores, sobretudo ao problematizarem o contexto das reformas e a influência de aspectos políticos no processo de formação inicial e continuada de PEM.
Perspectiva psicológica/psicanalítica - Autores de Referência: Antônio da Costa Ciampa, Erik Erikson ou Sigmund Freud.
Aspectos característicos: focam nas influências da psique da identidade individual e suas relações (conscientes ou inconscientes) na constituição da IP. A escolha da profissão, a idealização da profissão (e do profissional), a busca por inspirações e os desejos para o exercício da profissão.
Perspectiva sociológica - Autores de Referência: Claude Dubar e Zygmunt Bauman.
Aspectos característicos: apresentam condicionantes sociais do contexto de trabalho docente no processo de constituição da IP dos PEM, como a visão social da profissão, as relações (e condições) de trabalho, a dinâmica das inter-relações entre as identidades individual, social e profissional.
Perspectiva wengeriana - Autores de Referência: Jean Lave e Etienne Wenger.
Aspectos característicos: concentram estudos fortemente influenciados pela Teoria das Comunidades de Prática (CoP), destacando as intencionalidades de fomentar ações de formação docente como iniciativas promotoras do movimento de constituição da IP de PEM.
Por serem representativas de uma gama de aspectos, as perspectivas epistemológicas de IP de PEM identificadas nos levam a defender a problematização da IP como uma perspectiva formativa para os (futuros) professores que ensinam matemática. Refletir a respeito da IP de PEM, dessa forma, significa compreender a IP como uma perspectiva de formação de PEM, de modo que seus aspectos (CDTE) sejam efetivamente considerados em programas e ações formativas, nos quais PEM estejam envolvidos.
Ponderamos que essa proposta de encaminhamento é promissora, pois esses aspectos (CDTE) se inter-relacionam com os aspectos característicos das perspectivas epistemológicas que construímos - cultural, generalista, sociológica, psicológica/psicanalítica, holística, pedagógica dos estágios, político-reformista e wengeriana - e com os aspectos do contexto elencados nesse artigo.
Avanços, (in)certezas e vislumbres das cenas dos próximos capítulos
No trilhar da identificação dos aspectos caracterizadores do processo de constituição da IP (CDTE) e dos/nos contextos e perspectivas epistemológicas da IP de PEM, alguns apontamentos precisam ser problematizados.
Dentre eles, a nosso ver, estão as ideias de vulnerabilidade e de busca pelo sentido de agência (CYRINO, 2017; ETELÄPELTO; VÄHÄSANTANEN; HÖKKÄ, PALONIEMI, 2013; LASKY, 2005; OLIVEIRA; CYRINO, 2011) envoltas nos cenários/contextos de investigação/formação, pois “a vulnerabilidade, a busca de um sentido de agência e o compromisso político estão intimamente imbricados” (CYRINO, 2017, p.706). E essa problematização vem ao encontro dos aspectos caracterizadores dos contextos investigativos elencados, como os momentos de tensão/fragilidades vivenciados pelos PEM presentes em diversos estudos dos corpora.
A vulnerabilidade pode ser compreendida como uma experiência de natureza multidimensional e multifacetada que engloba as emoções desencadeadas por situações de causa e efeito (influenciadoras e influentes) na/da aprendizagem profissional docente, envolvendo aspectos dos diferentes contextos nos quais eles se inserem (LASKY, 2005). As questões abrangendo vulnerabilidade podem estar relacionadas a situações de frustação/desemparo (ansiedade, impotência) ou a momentos/episódios em que determinadas ações/certezas são questionadas (ou postas à prova), sem que o professor se fragilize9.
A agência surge como um elemento importante no processo de constituição da IP e pode ser praticada/exercida de diversos modos (BEIJAARD; MEIJER; EVERLOOP, 2004). Esse exercício da agência surge nos momentos em que o (futuro) professor “em interação com as estruturas sociais de modo mutuamente constitutivo, exerce influência, faz escolhas, toma decisões que afetam seu trabalho e revelam seu compromisso profissional e ético, por meio de suas ideias, motivações, interesses e objetivos” (CYRINO, 2017, p. 706).
Dessa forma, entendemos que a busca por um sentido de agência, especificamente direcionado a PEM, muitas vezes se apresenta como um exercício de insubordinação criativa (D’AMBRÓSIO; LOPES, 2015), exemplificador do argumento de que a IP de PEM é fruto de um movimento constante. Vulnerabilidade e agência são dimensões que guardam relações com os aspectos caracterizadores dos/nos processos de constituição da IP de PEM (CDTE): elas estão associadas a situações/contextos/experiências em movimento. O sentido de agência e as ações de (futuros) PEM diante dos momentos experienciados de vulnerabilidade evidenciam, mais uma vez, as naturezas complexa, dinâmica, temporal e experiencial dos processos de constituição da IP de PEM.
Além dessa questão, elencamos outros quatro pontos relevantes:
(1) As dificuldades dos pesquisadores em encontrar referenciais teóricos que discutam a IP de PEM no contexto da formação inicial podem ser decorrentes dos aspectos caracterizadores que discutimos (CDTE).
Encontramos no Corpus 1 estudos que apontam a carência de pesquisas sobre a IP de PEM no contexto da formação inicial, como em Teixeira e Cyrino (2015), por exemplo). Um dos possíveis motivos para que isso ocorra, talvez seja a natureza dos aspectos caracterizadores (CDTE) da IP de PEM. Embora vislumbremos a exploração dessa problemática como um campo relevante e promissor, reconhecemos que propostas de encaminhamento nesse sentido necessitam de grande empenho.
(2) O fato de esses estudos envolver participantes com diversas formações requer que o pesquisador problematize esse quadro: Quem são esses participantes? Quais suas formações? Como eu, sendo pesquisador(a), concebo “PEM”?
Entendemos que, ao não problematizar esses questionamentos e tratar todos os participantes sobre o mesmo “guarda-chuva”, todos como “PEM”, se perde a (rica) oportunidade de levantar questões e conjecturas a respeito dos processos formativos dos participantes e outras especificidades associadas aos contextos, envolvendo a IP.
(3) As escolhas teóricas e epistemológicas do pesquisador irão influenciar todo o processo de análise, - é inegável reconhecer - caso sejam considerados os aspectos dos processos de constituição da IP de PEM que discutimos aqui (CDTE) e o modelo quadripolar de investigação
As possibilidades do modelo quadripolar associadas à caracterização de IP de PEM que adotamos conjuntamente articuladas com os aspectos caracterizadores do processo de constituição da IP que propomos (complexidade, dinamicidade, temporalidade e experiencialidade) são potencializadoras para a elaboração de uma proposta investigativa. Vislumbramos nos encaminhar nessa direção.
(4) O cuidado com os elementos do polo morfológico evidenciado nos estudos do Corpus 2 sinaliza que é sempre convidativo ao(s) pesquisador(es) divulgar(em) suas pesquisas mediante a publicação em periódicos.
Isso decorre da ação natural de confrontarmos os corpora. A leitura de teses e dissertações é geralmente realizada por pesquisadores interessados em estudos de natureza teórica (como as revisões, os mapeamentos e os estados da arte, por exemplo). Aqueles que tencionam constituir referenciais para a investigação que se propõem a realizar, embora também façam uso de dissertações e teses, frequentemente iniciam a busca em periódicos (e por meio deles, se direcionam para as dissertações e as teses). O material encaminhado pelo(s) pesquisador(es) a um periódico é revisado (autor(es) e avaliadores dos periódicos) e reescrito com a intencionalidade de divulgar aspectos essenciais do processo investigativo. Esse é um dos motivos que tem conduzido pesquisadores a adotar o formato multipaper10, estilo esse que tem sido amplamente recomendado (BARBOSA, 2015; BOOTE; BEILE, 2005; DUKE; BECK, 1999; THOMAS; WEST; RICH, 2016). E como há um movimento crescente, no decorrer dos últimos anos no contexto brasileiro, de programas da área de Ensino de Ciências e Educação Matemática, que utilizam o formato multipaper na apresentação de suas dissertações e teses11, os estudos a respeito da IP de PEM poderiam ser estimulados a seguir esse caminho12. Nessa direção, Barbosa (2015) defende que a apresentação de dissertações e teses nesse formato pode ser interpretada como um movimento de insubordinação criativa (D’AMBRÓSIO; LOPES, 2015) aos rígidos critérios academicistas, pois esse paradigma propicia maneiras diversas de apresentação para os pesquisadores organizarem e redigirem seus estudos. Assim sendo, as dissertações e as teses a respeito da IP de PEM abandonariam o status de literatura cinzenta...
Considerações finais
A ótica discutida neste artigo sinaliza possibilidades investigativas. Uma delas é defender (e problematizar) a IP de PEM como uma perspectiva formativa, por meio da qual os investigadores interessados em pesquisar a IP de PEM poderiam trilhar um caminho novo. No âmbito brasileiro em particular, encontramos elementos complicadores presentes nos cenários sócio-cultural-político que podem (ou melhor, precisam) ser problematizados. As singularidades brasileiras, envolvendo desde a situação do cenário educacional, abrangendo os processos formativos de PEM, até as exigências/cobranças a respeito das atribuições docentes, requerem atenção em estudos dedicados a refletir a respeito da IP de PEM. Investir em reflexões teóricas para examinar essas singularidades, articulando-as com a pesquisa a respeito da IP de PEM, exemplificaria esse caminho novo a que nos referimos. Esse fato colaboraria para ampliar, no âmbito do campo da Educação Matemática brasileira, referenciais teóricos nacionais a respeito da IP de PEM e suas problemáticas. Ao compartilharmos da ideia (i) da IP de PEM como movimento, (ii) da complexidade, da dinamicidade, da temporalidade e da experiencialidade como seus aspectos característicos e (iii) da formação de professores como um campo de lutas (ideológicas e políticas), fomentar que os(as) pesquisadores(as) brasileiros(as) construam referenciais mais próximos de sua realidade é um pensamento coerente
Outra é assumir os aspectos caracterizadores (CDTE) dos/nos processos de constituição da IP de PEM: isso ampliaria o cuidado que o pesquisador necessita ter em suas escolhas. Ao associá-los, é imprescindível ter em mente que se devem privilegiar determinados elementos que o pesquisador julga relevantes diante de outros, pois o processo argumentativo/analítico pautado na ideia de IP de PEM como uma perspectiva formativa complexa, dinâmica, temporal e experiencial exige um comprometimento de pesquisa. Para Gellert, Espinosa e Barbé (2013), esse comprometimento envolve a construção de um quadro teórico e a adoção de perspectivas consistentes, resultantes da escolha cuidadosa do objeto de inquérito pesquisador.
Particularmente, entendemos que, ao considerarmos essas duas possibilidades em conjunto, nos aproximamos da proposta investigativa a que nos referimos na seção anterior. Em suma, quando se trata da IP de PEM, na perspectiva aqui discutida, é necessário admitir que não é possível observarmos todos os seus detalhes, bem como legitimar a coerência de nos atermos aos pormenores daqueles que desejamos observar profundamente.