Introdução
O termo educação infantil é citado pela primeira vez em uma Lei na Constituição Federal de 1988, que a reconhece como um direito da criança de zero a seis anos1 a ser assegurado pelo Estado. Esse avanço registrado na legislação em relação ao atendimento da criança expressava o processo de redemocratização pelo qual o país passava, do diálogo com a sociedade, com os movimentos sociais e sindicais, bem como a mobilização e a luta por direitos. De acordo com Macêdo e Dias (2012, p. 3), até aquele momento, a criança nunca havia sido “objeto de cuidado e educação por parte do Estado”, e o atendimento se configurava como amparo e assistência2.
A partir da Constituição Federal, outras leis e documentos foram sancionados ou publicados com a finalidade de garantir esse direito constitucional com qualidade. Contudo, é a Lei nº 9.394/1996 que definiu a educação infantil como primeira etapa da educação básica, um passo importante para superar a concepção assistencialista, pois, até aquele momento, as creches eram vinculadas aos órgãos de assistência e bem estar (CORRÊA, 2007).
Partimos do pressuposto que, como parte da educação básica, a educação infantil, além de direito a ser assegurado pelo Estado é também um bem público. Nesse sentido, ressaltamos que a avaliação da qualidade desta etapa também é igualmente necessária e importante, ao passo que
Na conjuntura atual pode-se dizer que a avaliação da educação infantil situa-se como um dever de Estado, em decorrência do direito das crianças de zero a cinco anos à educação, vindo a cumprir o papel de dar consequências às informações disponíveis sobre o contexto de sua produção. Por meio de análises do presente, que possibilitem identificar necessidades, possibilidades e tendências, espera-se que a avaliação venha a apoiar encaminhamentos futuros, que se pautem pelo compromisso com o contínuo aprimoramento desta etapa educacional, respeitando suas finalidades, bem como as peculiaridades da educação das crianças na faixa etária de até cinco anos de idade (SOUZA, 2014, p. 71).
Reconhecemos que não há neutralidade na avaliação, pois, “comporta dimensões científicas, normativas, técnicas, da mesma forma que ideológicas, filosóficas, éticas e políticas” (DIAS SOBRINHO, 2005, p. 18). A educação é um campo amplo, composto por sujeitos, práticas, políticas que também podem ser objetos da avaliação. Assinalamos, com Dias Sobrinho (2008) que um dos problemas da avaliação é justamente tomar apenas uma parte da educação como objeto e considerar o resultado como explicação do todo.
A avaliação de outras etapas da educação básica envolve provas padronizadas, benchmarking3 e resultados publicizados, possibilitando a medição, a classificação, a comparação e a hierarquização de escolas, redes, entes federativos e até países4, por meio da avaliação do desempenho dos estudantes. Por isso, há uma preocupação com a transposição do modelo de avaliação realizado em outras etapas do ensino para a educação infantil.
No ano de 2014, foi aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), o qual estabelece em uma de suas estratégias, a implementação da avaliação da educação infantil. Assim, objetivamos analisar o debate sobre a avaliação desta etapa. Para tanto, apresentamos alguns conceitos que fundamentam a análise e alguns retrocessos que envolvem a educação infantil.
Alguns pressupostos teóricos e a política de avaliação da educação básica
Ao pontuar que a educação infantil é um direito de todos e dever do Estado, produto da mobilização de diversos setores da sociedade, reconhecemos que não foi dada por determinado grupo. A educação infantil, assim como outras políticas sociais, é resultado “da correlação de forças e conflitos de interesses entre os diferentes setores inscritos na própria natureza do Estado” (BARBIERI; AZEVEDO, 2017, p. 67).
O Estado, instituição que deve ofertar e garantir educação de qualidade para todos, é o campo burocrático que abarca os diferentes setores sociais e no qual acontece “a conservação ou a transformação da taxa de câmbio entre os diferentes tipos de capital” (BOURDIEU, 2011, p. 52, grifo do autor). É, portanto, conforme o autor, o campo de poder ou o metacampo, espaço por excelência em que se exerce a política, as lutas e as disputas que se concretizam em ações para o bem comum.
Catani (2008, p. 241, grifo do autor) afirma que “Bourdieu substitui a noção de sociedade pela de campo”. Desse modo, a sociedade é formada por diversos campos regulados pelo Estado, o metacampo ou campo de poder que abarca os diferentes campos sociais e é espaço de lutas e de conversão de capitais (BOURDIEU, 2011).
Bourdieu (1983, p. 155) define como campo “um espaço de jogo, um campo de relações objetivas entre indivíduos ou instituições que competem por um mesmo objeto”. Cada campo tem suas propriedades específicas e regras invariáveis, isto é, leis gerais. Podemos sublinhar que uma dessas leis é a luta entre os detentores e os pretendentes que disputam um objeto, pois “a luta permanente no interior do campo é o motor do campo” (BOURDIEU, 1983, p. 157). Ainda em consonância com o autor,
Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos em disputa e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos em disputas, etc. (BOURDIEU, 1983, p. 89, grifo do autor).
Os agentes sociais do campo econômico usam seu prestígio do campo de origem para converter seu capital econômico em capital político e, assim, definir a pauta do campo educacional. Como um campo social, a educação é disputada. Freitas (2014) indica que ao propor metas que dificilmente serão atendidas e determinar a implementação de mais avaliações e índices, o PNE possibilita o avanço do que denomina reformadores empresariais da educação.
A presença dos agentes do campo econômico é cada vez mais perceptível na definição dos rumos da educação no contexto pós-reformas. Com a crise do capital, a intervenção do Estado, principalmente na economia passa a ser questionada. Robertson (2012) ao apresentar as divergências entre os neoliberais, sintetiza que a grande questão entre os teóricos era que se não podia viver com os Estados, também não se podia viver sem eles. Assim, era preciso redefinir o papel dos Estados.
Para Dale (2004), o Estado foi transformado pela globalização e pela introdução da Nova Gestão Pública (NGP) uma forma de gestão inspirada no setor privado, no qual as metas de desempenho a serem alcançadas devem ser estabelecidas previamente, indicadores para acompanhar performances são criados, dentre outros. É nesse cenário que a avaliação se torna central nas políticas educacionais e uma ferramenta essencial para essa nova forma de gestão.
Nesse contexto, o autor chama a atenção para a mudança de governo para governança, no caso da educação, essa passa a ser construída por outros agentes, além do Estado, em diferentes escalas (DALE, 2010). Nessa governança, o mercado se torna um agente de destaque na construção da educação e as políticas educacionais não se limitam mais aos Estados nacionais.
Concordamos com a tese do autor que existe uma Agenda Globalmente Estruturada para a Educação (AGEE), em que há uma convergência entre as políticas educacionais em nível global e local, contribuindo para a manutenção do sistema e expansão do capital. Entendemos que a política de avaliação é parte dessa agenda e serve à AGEE, ao passo que promove a competitividade e aumenta a produtividade.
É importante ressaltar que apesar da forte presença do mercado no campo da educação, o Estado continua controlando e regulando pelos resultados, conforme prega a NGP, intermediado pela política de avaliação. Nesse novo modo de governança da educação, a avaliação baseada em provas padronizadas e benchmarking é eficaz, pois, torna-se uma ferramenta para monitorar e regular os diversos agentes educacionais e os resultados servem como parâmetro para a oferta, trazendo informações sobre as melhores redes, escolas, sendo essencial como um mecanismo para alocação de recursos na forma de bônus, premiação ou condição para alcançar metas.
Ao pensarmos sobre a educação infantil e os efeitos desse modo de regular do Estado, que tem como um dos principais instrumentos a avaliação, uma política educacional consolidada, surge uma aflição. Assim, apresentamos alguns retrocessos que envolvem a educação infantil que contribuem para nossa preocupação.
Educação infantil: alguns retrocessos
É possível afirmar que a educação infantil, apesar dos avanços expressos em leis que a reconhecem como direito, como parte da educação básica, tem uma trajetória recente, ainda não universalizada e, conforme Correa (2011, p. 112), com uma identidade pouco consolidada5,
o que se constata pela forma como o trabalho se desenvolve, uma vez que os professores desta etapa educacional parecem não compreender a importância do brincar, relegando essa atividade para segundo plano e insistindo em práticas que, mesmo no ensino fundamental, são consideradas equivocadas, tais como cópia mecânica de letras e números.
A transposição de atividades do ensino fundamental para a educação infantil demonstra a fragilidade na formação dos profissionais dessa etapa, que se sentem obrigados a preparar os alunos para o ingresso no ensino fundamental (CORREA, 2011). Rosemberg (2013, p. 19) chama a atenção para a falta de “formação específica inicial ou continuada” dos profissionais envolvidos com a educação infantil, não apenas professores, mas técnicos, administradores, sindicalistas, políticos e assessores.
O que justifica todas essas medidas que contribuem para uma acelerada necessidade de preparar a criança para o futuro, em detrimento de um desenvolvimento integral, que respeite suas especificidades e necessidades? Em uma sociedade que espera um trabalhador qualificado e competente, os pais veem a necessidade de cada vez mais cedo preparar as crianças para o futuro, principalmente em relação ao mercado de trabalho. Nesse âmbito, a educação infantil, em especial a pré-escola, é vista apenas como uma fase preparatória para a etapa posterior.
Os profissionais da educação infantil se sentem pressionados, pela secretaria de educação, por profissionais que atuam no ensino fundamental e por pais de alunos a garantir o ensino e a aprendizagem dos códigos linguísticos, que devem ser aferidos nas avaliações periódicas ou de aprendizagem. A pouca ou nenhuma formação específica, bem como a falta de espaço de discussões, contribuem para a ênfase nas atividades com foco principalmente na escrita em detrimento do brincar. Se em outras etapas o currículo é reduzido, na educação infantil o tempo de brincar diminui ou quase não existe, como se a criança não aprendesse também pela brincadeira.
As políticas e programas aprovados recentemente, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e o Programa Nacional do Livro e Material Didático, podem pressionar em favor de uma intensa alfabetização limitada a atividades mecânicas e repetitivas. Para além disso, contribuem para a precocidade de provas externas envolvendo as crianças que frequentam a educação infantil, o que pode abrir precedentes para avaliação como condição para o acesso ao ensino fundamental6.
A meta 1 do PNE é universalizar o atendimento para as crianças de quatro e cinco anos e ampliar a oferta de creches, para atender, no mínimo, 50% das crianças da faixa etária correspondente (BRASIL, 2014). É preciso considerar que mais que garantir o acesso gratuito é imprescindível promover um atendimento educacional de qualidade. Assim, “o Estado deve alocar em orçamento público, na forma de investimento e custeio, o montante necessário com vistas a prover um direito inalienável e inegociável” (AZEVEDO, 2010, p. 188).
Com a reforma educacional nos anos 1990, o foco das políticas educacionais e dos recursos financeiros foi o ensino fundamental. É apenas com a implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2007, que a educação infantil, incluindo a faixa etária não obrigatória de zero a três anos de idade, correspondente à creche, passou a receber recursos do Fundo. Essa conquista só foi efetivada após mobilização de movimentos em defesa da criança pequena. No entanto, tal avanço não significou ganhos significativos para a educação de modo geral, e a ampliação do destino dos recursos financeiros não foi acompanhada do seu respectivo aumento.
Antes da aprovação do Fundeb, a busca por recursos financeiros e a exclusividade dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) para o ensino fundamental contribuíram para a redução da idade de matrícula nessa etapa para seis anos7 e a ampliação do ensino fundamental para nove anos8 (ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2011). Mesmo não focalizando diretamente a educação infantil, essas mudanças acabaram por influenciar essa etapa da educação, pois “não podemos negar que esses períodos se relacionam e se influenciam, seja positiva seja negativamente” (CORREA, 2011, p. 117)9.
Além de não contar com recursos suficientes que garantam uma educação infantil de qualidade para todas as crianças, as políticas voltadas para outras etapas acabam influenciando diretamente a educação infantil. Em especial no ano de 2017, as políticas educacionais têm envolvido diretamente essa etapa. Mais do que isso, reforçam a alfabetização e dão condições para a implementação e a prática da avaliação estandardizada das crianças dessa etapa.
O debate sobre uma avaliação da educação infantil
No contexto de reestruturação do Estado e reforma educacional, Campos (2013, p. 26) argumenta que “o descompasso entre as metas das reformas e a disponibilidade de recursos públicos fez com que o tema da qualidade ganhasse centralidade, em relação à ênfase anterior na ampliação das oportunidades educacionais”. Em um cenário em que a qualidade da educação passou a ser definida por indicadores, medida, quantificada e classificada, a educação infantil “permaneceu fora dessa discussão e, de certa forma, percorreu um caminho divergente, buscando adotar procedimentos mais participativos, com maior ênfase na colaboração do que na competição” (CAMPOS, 2013, p. 35). No campo da educação, segundo a autora, a qualidade é um conceito em disputa.
Pode-se dizer que todos os estudos sobre o fenômeno educacional implícita ou explicitamente, parecem discutir, questionar e, no limite, apontar novos métodos, estratégias, meios etc. para uma melhoria da assim chamada qualidade da educação. O mesmo vale para as políticas educacionais, especialmente no que diz respeito às chamadas reformas educacionais que, ao menos no plano do discurso, justificam suas propostas e projetos com base na necessária busca da melhoria da qualidade da educação. O mesmo termo, contudo, pode assumir diferentes significados e posicionamentos, tanto ideológicos quanto práticos (CORRÊA, 2003, p. 86, grifo da autora).
Em 1994, a pesquisadora Fúlvia Rosemberg apontava a equidade como um eixo fundamental para se pensar a qualidade da educação infantil (CORRÊA, 2003). “Esse eixo - o da equidade - como fundamental para definir metas e critérios de qualidade, nos afasta dos modelos importados do mundo comercial, como afirmam Pfeffer e Coote (1991)” (ROSEMBERG, 1994, p. 155). Para esta autora,
A melhoria da qualidade na perspectiva da equidade deve enfrentar três questões fundamentais no Brasil: a formação e profissionalização de recursos humanos que trabalham em educação infantil que têm por função educar e cuidar de crianças pequenas; eliminar (ou diminuir) trajetórias paralelas de educação infantil com níveis de qualidade diferenciados em função da diversidade do montante de verbas que lhes são destinados; discutir, com serenidade, as propostas de expansão da cobertura (ROSEMBERG, 1994, p. 155-156).
Em relação à qualidade, Corrêa (2003, p. 91) considera “uma forma interessante, para pensar a qualidade no atendimento à criança relaciona-se à ideia de garantia e efetivação de seus direitos, já consagrados universalmente e, do ponto de vista legal, bem definidos”. Isto é, a garantia de direitos como critério de qualidade. É nesse aspecto que a pesquisadora discute os aspectos referentes ao atendimento: relação oferta e procura; razão adulto/criança e a dimensão do cuidado no trabalho realizado10 (CORRÊA, 2003).
A expansão do atendimento, a demanda por vagas, que ganhou visibilidade pública e política, o aumento da pressão sobre os municípios são iniciativas que pressionam por avaliação sobre a qualidade da educação infantil (CAMPOS, 2013). A autora justifica sua preocupação enunciando que “a crescente demanda por acesso pode levar ao atendimento de crianças [...], sem a garantia de condições mínimas de qualidade, o que pode prejudicá-las em seu desenvolvimento e desrespeitá-la em seus direitos” (CAMPOS, 2013, p. 36). A preocupação da autora converge com os critérios de qualidade discutidos por Corrêa (2003).
Souza (2014) concorda que a ampliação do acesso configura o debate em torno de uma avaliação da educação infantil, pois
As proposições em discussão remetem, em última instância, a concepções sobre o papel do Estado em relação à garantia do direito das crianças a uma educação de qualidade, que se concretiza, entre outras iniciativas, por meio do estabelecimento de padrões de referência para avaliação da educação infantil, incluindo condições de acesso e de oferta, ou seja, expansão quantitativa qualificada (SOUZA, 2014, p. 69).
Uma avaliação em que o critério de qualidade se refere a um direito fundamental, isto é, verificar se o direito ao acesso à educação infantil está sendo efetivado é uma avaliação da educação infantil. Mas, também pode ser uma avaliação da política de educação infantil, e pode dar subsídios para novas políticas e ações e contribuir para garantia desse direito.
De acordo com Rosemberg (2013, p. 48, grifo nosso),
Parece possível afirmar que, desde as primeiras manifestações públicas contemporâneas em prol das creches - militantes e acadêmicos a partir dos anos 1970, governamentais algum tempo depois -, vêm ocorrendo, em determinados setores do país, uma intensa mobilização pela expansão da oferta e melhoria de sua qualidade com base em avaliações que nem sempre receberam essa denominação.
Diante de outros termos e denominações, de certo modo, o tema avaliação não é tão recente quando se trata da educação infantil. Contudo, como a autora bem observou, “nos últimos anos, nos âmbitos do governo, da academia e dos movimentos sociais, temos presenciado um burburinho na educação infantil em torno do tema/termo avaliação” (ROSEMBERG, 2013, p. 46).
Em 2009, o Ministério da Educação (MEC) publicou o documento Indicadores da qualidade na educação infantil (IQEI) que apresenta uma ferramenta para avaliar essa etapa. A proposta do IQEI é de uma autoavaliação institucional envolvendo a equipe escolar, pais, comunidade externa, conselhos, dentre outros, avaliando sete dimensões, a saber: planejamento institucional; multiplicidade de experiências e linguagens; interações; promoção da saúde; espaços, materiais e mobiliários; formação e condições de trabalho das professoras e demais profissionais; cooperação e troca com as famílias e participação na rede de proteção social (BRASIL, 2009).
Já em 2011 foi publicado o relatório Monitoramento do Uso dos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil que veicula o resultado do acompanhamento da disseminação e do uso do IQEI. A participação foi um dos eixos norteadores do estudo, e o objetivo foi subsidiar o processo de avaliação do funcionamento das instituições e da execução das propostas pedagógicas, contribuir com as Secretarias de Educação, “podendo vir a se constituir em um passo inicial para a definição de uma sistemática municipal de avaliação da Educação Infantil” (BRASIL, 2011a).
Ainda em 2011, foi instituído o grupo de trabalho (GT) de avaliação da educação infantil, pela Portaria nº 1.747/2011, com a finalidade de propor a política de avaliação dessa etapa de ensino bem como diretrizes, metodologias, dentre outras (BRASIL, 2011b). A síntese do trabalho consta no documento Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação, publicado em 2012. No documento,
Propõe-se como perspectiva a construção sistemática de avaliação da educação infantil, o que supõe assumir a avaliação não como atividade pontual, mas sim como processo. Como tal, requer o delineamento de atividades inter-relacionadas que garantam um fluxo de produção de informações, análise, julgamento e decisões que apóiem continuamente a execução das políticas e programas (BRASIL, 2012, p. 11, grifo no original).
A Portaria do INEP nº 505/2013 constituiu a Comissão de Especialistas da Avaliação da Educação Infantil para desenvolver estudos e formular uma proposta para avaliação da educação infantil (BRASIL, 2015). Em 2015, foi aprovada uma minuta propondo a Avaliação Nacional da Educação Infantil (Anei), com foco no monitoramento da oferta dessa etapa da educação. Em entrevista à ANPEd11, Gizele Souza, uma das participantes do GT instituído pela Portaria, afirma que a proposta da Anei é um avanço, porque adota uma perspectiva de diagnóstico e monitoramento da oferta.
As condições de oferta como critério de qualidade, como já indicamos, é defendida por pesquisadoras da infância e da educação. Entretanto, Souza (2014) ao fazer um mapeamento das propostas de avaliação da educação infantil, apresenta duas perspectivas: uma com foco nas condições de oferta, em que indica o documento Educação Infantil: Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação como referência; e, outra, com ênfase no desempenho dos alunos.
Como exemplos dessa segunda proposta, a autora indica além do PNAIC, a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), o Ages and Stages Questionnaires (ASQ-3) e a avaliação socioemocional. Esses programas e instrumentos, mesmo não estando diretamente relacionados com a educação infantil12, podem alterar a dinâmica, “condicionando os processos de letramento e alfabetização, introduzindo desde esta etapa da escolarização a preocupação em preparar os alunos para os testes, corroborando a noção de medida como sinônimo de avaliação” (SOUZA, 2014, p. 83).
Um dos eixos estruturantes do PNAIC é a avaliação, que reúne a Provinha Brasil, no início e no final do 2º ano do ensino fundamental; e, a ANA, no final do 3º ano. No entanto, essa política,
Ao estabelecer a alfabetização de todas as crianças como uma obrigação, reforça a democratização do processo de escolarização, entretanto, mantém ativa a tensão inclusão/exclusão escolar quando demarca parâmetros uniformes de aprendizagem e desenvolvimento e determina um mesmo tempo para que todos cumpram o percurso definido como ideal (ESTEBAN, 2012, p. 581).
A Portaria nº 826, de 7 de julho de 2017, estabelece que “as ações do PNAIC terão como foco os estudantes da pré-escola e do ensino fundamental” (BRASIL, 2017). A política de alfabetizar todas as crianças até os oito anos de idade passa a abarcar também a educação infantil. Conforme o documento, as ações desenvolvidas devem garantir “os direitos de aprendizagem e desenvolvimento a serem aferidos por meio de avaliações externas” (BRASIL, 2017). Pressupõe-se a intensificação da alfabetização nessa etapa e a consequente avaliação das crianças para monitorar as ações do programa, dos participantes, isto é, coordenadores e professores e aferir o nível de alfabetização.
O ASQ-3 é um instrumento norte-americano proposto pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, vinculada à Presidência da República e aplicado em creches e pré-escolas públicas e conveniadas no município do Rio de Janeiro em 2010. A opção pelo instrumento deve-se à abrangência, pois cobre cinco domínios do desenvolvimento infantil13; pode ser aplicado em crianças de um mês de vida até os cinco anos de idade, isto é, toda a educação infantil, e pela facilidade da aplicação, “exigindo apenas que o informante conheça muito bem a criança avaliada” (RIO DE JANEIRO, 2010, p. 6, grifo nosso).
Correa e Andrade (2011, p. 277) ponderam que
[...] a aplicação do questionário pode ser feita por qualquer pessoa, bastando que ela conheça bem a criança. Isso significa, conforme entendemos, que, para as crianças pequenas, não seria necessária a existência de uma escola de educação infantil, nem de profissionais formados para o magistério. Insistimos, portanto, tratar-se de uma defesa do atendimento pobre para pobres também quando se propõe determinado tipo de instrumento de avaliação.
Tal proposição além de ter uma visão fragmentada de criança e educação (CORREA; ANDRADE, 2011), objetiva uma avaliação comparativa das crianças que frequentam a educação infantil. Pois, de acordo com Filgueiras (2011, p. 13, grifo nosso),
A importância da utilização de instrumentos capazes de medir o desenvolvimento psicológico de crianças reside na possibilidade do uso uniforme de uma medida. Isso significa que, uma vez que o instrumento seja o mesmo para mensurar determinado construto, seu valor passa a permitir a comparação entre os indivíduos e prognosticar possíveis resultados diante de valências do desenvolvimento.
Promovida pelo Instituto Ayrton Senna, a avaliação socioemocional é uma iniciativa que tem apoio de instâncias do governo e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (SOUZA, 2014). Conforme a autora, embora não se refira à educação infantil, é possível abrangê-la, reforçando a seleção e a exclusão no âmbito escolar e social, tendo como referência não as habilidades cognitivas, mas as socioemocionais.
No contexto internacional, a OCDE está desenvolvendo uma nova prova a ser aplicada a crianças de cinco anos de idade, que abrange a avaliação do desempenho cognitivo e socioemocional, apelidado de Baby Pisa (FREITAS, 2017). O International Early Learning and Child Well_Being Study (IELS) seria o benchmarking para a educação infantil, formatando políticas, disseminando boas práticas, aferindo performances (AZEVEDO, 2016) e ainda levaria ao “aumento da padronização, a responsabilização de alto impacto, resultados de aprendizado predeterminados, controle sobre os professores, modelos de gerenciamento baseados em negócios e privatização” (WASMUTH, 2017, apud FREITAS, 2017).
Se entendemos que a educação é um campo, a avaliação pode ser considerada um dos possíveis objetos em disputa. Além de um objeto, a avaliação pode ser compreendida também como um subcampo de disputas em que instrumentos, metodologias, resultados, dentre outros, que reportam-se a interesses, valores, concepções e propósitos distintos são disputados. Os agentes sociais ou instituições que vencerem essa luta ocuparão esse campo e definirão as regras do jogo.
Concordamos com Corrêa que “diversas são as possibilidades para se discutir, avaliar ou propor padrões de qualidade na educação infantil” (2003, p. 110). O debate em torno da avaliação da educação infantil não é exclusividade do Estado brasileiro e envolve diferentes campos e diversos agentes: das organizações internacionais às instituições de ensino superior; dos órgãos educacionais aos vinculados à Presidência da República; de economicistas à pesquisadores sobre a infância, dentre outros. No entanto, é pouca ou inexistente a participação dos agentes envolvidos diretamente com essa etapa, profissionais, pais/mães e crianças nesse debate.
A inexpressiva atuação dos agentes sociais vinculados à educação infantil na disputa pela avaliação também pode ser compreendida à luz dos conceitos de Pierre Bourdieu. Azevedo (2016, p. 1432, grifo do autor) explica que
A posição dos atores sociais nos campos é determinada pela posse de capital específico que cada qual possui, regendo por consequência, suas respectivas condutas, que são balizadas pelo habitus, em suas escalas de atuação, [...].
Dessa forma, as condutas dos atores sociais são determinadas pela posição na estrutura de disposições e de relações de poder, distribuído de acordo com a posse de capital específico (reconhecimento pelos pares) e capital político (poder institucionalizado ou temporal), no campo social de atuação.
Ao refletirmos acerca da posição dos profissionais que atuam na educação infantil, podemos assinalar que tanto o capital específico como o capital político desses agentes têm sido considerados irrelevantes para atuar na disputa do campo educacional. O principal fator deve-se à formação (ou falta) inicial e continuada que contribua para garantir sua atuação no campo, assim como sua (des)valorização. Ao se reconhecer que o capital cultural é gerado no campo educacional, a formação de qualidade se torna imprescindível, e “o processo de acumulação de cultura (capital cultural) gera disposições capazes de modificar a ação social e, ao mesmo tempo, diferenciar a ocupação dos espaços sociais, ou seja, o posicionamento do agente social no campo social de sua atuação” (AZEVEDO, 2008, p. 238).
Considerações finais
O objetivo deste artigo foi analisar o debate sobre a avaliação da educação infantil. Assim, com base na teoria de Pierre Bourdieu, compreendemos que a avaliação desta etapa é um objeto em disputa no campo educacional envolvendo campos e agentes distintos, especialmente do campo econômico que, cada vez mais, buscam definir a pauta da educação.
A disputa em torno da avaliação da educação infantil mais que envolver campos e agentes, diz respeito aos interesses e propósitos distintos. Pontuando que é dever do Estado garantir uma educação infantil pública de qualidade, uma avaliação com ênfase nas condições de oferta, com um caráter de diagnóstico e monitoramento tende a exercer um papel importante, ao passo que pode contribuir para novas ações, programas e políticas, com vistas a melhoria da qualidade.
Por outro lado, uma avaliação padronizada, com foco no desempenho da criança, tende a desconsiderar os fatores extraescolares. Se as condições no ponto de partida não são iguais, os resultados também não serão. Esse tipo de avaliação contribui para reproduzir e conservar as desigualdades sociais e colabora para a desqualificação da educação pública e a valorização do ensino privado.
Ao ter um papel fundamental em uma gestão baseada no setor privado, sob a lógica de quase mercado, a avaliação classifica, compara e hierarquiza, possibilitando a livre escolha, como se a educação fosse uma mercadoria, Além disso, ao atender os interesses do mercado, a avaliação cumpre os objetivos da AGEE, contribuindo para aumentar a produtividade e também a expansão do setor privado.