Introdução
Mas, na verdade, meu corpo não se deixa reduzir tão facilmente. Afinal, ele tem suas fontes próprias de fantástico; possui, também ele, lugares sem lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que o túmulo, que o encantamento dos mágicos. (...) Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos. MICHAEL FOUCAULT
Este trabalho apresenta uma leitura dos movimentos recentes de ocupação de escolas destacando sua dimensão performativa, querendo com isso enfocar como a própria presença e exposição corporal dos estudantes naquelas situações constituiu um ato político em si, que articulou identidades e agendas ao longo do processo, rompendo com a racionalidade tradicional que considera a política um ato de representação de identidades prévias e substanciais. A análise se apoia em autores como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e Judith Butler.
A noção de performance tem apresentado um espectro de usos e sentidos cada vez mais amplo e relevante, estando presente em áreas tão variadas como as artes cênicas e visuais, a antropologia, a filosofia da linguagem e os estudos de gênero. Dos múltiplos sentidos com que é invocada, talvez um elemento comum seja o questionamento da dualidade entre representação e acontecimento.
O livro How to do things with words, de John Austin (1962) tem um papel inaugural ao abordar “enunciados performativos”, em alusão à sua capacidade de produzir acontecimentos, ao invés de simplesmente representá-los. Um juiz, ao declarar duas pessoas “marido e mulher” ou o presidente de um país, ao declarar guerra a outro, não estão representando simbolicamente um acontecimento do mundo, mas produzindo, através de suas palavras, esse próprio acontecimento. De maneira similar, como afirma Judith Butler (1993), um médico, ao declarar que um recém-nascido “é menino”, não está simplesmente representando uma realidade, mas produzindo um acontecimento e reproduzindo uma identidade. Por meio da reiteração de discursos e práticas, estabelece-se um bio-poder que não é simplesmente repressor, mas também indutor e promotor de maneiras de ser.
Richard Schechner levanta outra dimensão da performance e da performatividade que consiste em sua teatralidade e seu vínculo com um contexto social no qual nunca realizamos uma ação de fato pela primeira vez, mas “sempre pela segunda até a enésima vez” (SCHECHNER, 2002, p. 36). O conceito de “comportamento restaurado”, discutido por ele, permite pensar como gestos cotidianos espontâneos inserem-se em uma rede de citações e repetições (ibid.). Como vimos, a performatividade da vida social envolve repetição e instauração, nos quais a linguagem desempenha um papel central.
Se, por um lado, a noção de performance nos permite focalizar as repetições e reiterações que caracterizam nossa vida aparentemente única e original, por outro, nos chama a atenção justamente para o caráter irrepetível, transitório e, por isso, irreprodutível dos acontecimentos. A repetição implica uma transformação e a transformação advém de um longo processo de repetições, de maneira que essas duas noções não se contradizem, mas se complementam.
São múltiplas as perspectivas segundo as quais se pode pensar as relações entre performance e educação, e trabalhos recentes no Brasil exploraram uma série delas (ICLE, 2010; ICLE; PEREIRA; BONATTO, 2017). Do ponto de vista do que aqui pretendemos discutir, gostaríamos de enfatizar dois aspectos. O primeiro deles diz respeito à problematização do conjunto de discursos, práticas e rituais que, em sua reiteração, operam de forma a produzir “corpos escolarizados”, que, além de reproduzir as relações sociais de discriminação e injustiça características de nossa sociedade, possui também suas características peculiares, dentre as quais destacamos, tal como o faz Pineau (2002), a própria exclusão e anulação do corpo, em nome do desenvolvimento de um pensamento e aprendizagem puramente “mental” e “individual”.
Um segundo aspecto diz respeito ao olhar para os acontecimentos que ocorrem na escola e seu potencial disruptivo. Desenvolvemos o interesse pelos processos, em sua impermanência, enfocando as experiências subjetivas que vão se constituindo e a emergência de novas possibilidades de compreensão e de relação com o conhecimento, com os outros e com o mundo. Se, por um lado, caracterizamos, nesse sentido, metodologias performativas de aprendizagem (PINEAU, 2010; CROCHIK, 2019), podemos pensar o próprio movimento de ocupações de escolas como um processo político e pedagógico dessa natureza, disruptivo em diversos sentidos, tanto internos como externos ao espaço escolar, questionando, inclusive, a própria dicotomização e a fronteira entre o microcosmo escolar e o contexto político-social no qual ela está inserida.
Identidade, precariedade e política
A noção de identidade como substância palpável e anterior a um ato de identificação que a representa, é questionada por autores pós-estruturalistas. Em sua análise sobre a noção de gênero, Butler mostra como ela é problemática ao apoiar-se em um conceito de identidade substancial, acessível ao sujeito e pela qual ele busca ser reconhecido. “Não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída pelas próprias expressões tidas como seus resultados.” (BUTLER, 2017a, p. 56).
Compreende-se identidade como uma relação, e não como algo essencial e estático. Com base na teoria do discurso (LACLAU, MOUFFE, 2015), entende-se que a identidade é simultânea à diferença, sua fronteira constitutiva, e permeada por relações de poder que tendem a produzir identidades dicotômicas que carregam relações de hierarquia e de dominação. Uma vez que são constituídas por relações de poder, a mudança no contexto e no cenário destas relações produz impactos nas identidades, que são, portanto, provisórias e móveis.
O questionamento da noção essencialista de identidade possui implicações para o âmbito da política. Laclau (2011) mostra os limites da noção de representação como fundamento da lógica política democrática, uma vez que ela pressupõe a presença de “alguém” em local em que esteja materialmente ausente. As condições ideais de representação seriam alcançadas numa transferência direta e transparente entre a vontade do representado e a ação do representante. Esta lógica considera que tanto a vontade do representado quanto a ação do representante estejam plenamente constituídas, quando, na verdade, a identidade é em parte constituída no curso da ação política e no ato de representação, e nesse sentido, não pode ser tratada como uma substância fixa.
No que se refere ao representado, se ele precisa ser representado, é por conta do fato de que sua identidade básica é constituída num lugar A, enquanto as decisões que podem afetar sua identidade vão ocorrer num lugar B. Mas nesse caso, sua identidade é incompleta e a relação de representação, longe de ser uma identidade lentamente desenvolvida, é um suplemento necessário à sua constituição. (LACLAU, 2011, p. 147)
Assim, uma importante contribuição desta abordagem é o questionamento da noção de representação, como um processo que envolve a homologia entre uma identidade essencial e um espaço político capaz de espelhá-la.
Na teoria das identidades políticas de Laclau, a demanda é uma unidade básica para a sua constituição. Porém, a demanda social possui uma ambiguidade: ela aparece como “claim” e como “request”. Num primeiro momento as demandas podem se configurar como pedidos dirigidos às autoridades políticas. Mas, uma vez que elas não sejam absorvidas pelo sistema institucional - não sejam atendidas - podem estabelecer relações de equivalência com outras demandas e ampliar o distanciamento entre o sistema institucional e “o povo”. Nesse caso, as demandas podem emergir como reivindicações.
Analisando o processo das ocupações estudantis, podemos perceber um desenvolvimento que se inicia como uma demanda no sentido de um “pedido” dos estudantes ao governo do Estado, no sentido de dialogar com eles sobre a proposta de reorganização. Uma vez que este “pedido” não foi satisfeito, seguiu-se uma rápida constituição de uma cadeia de equivalências apoiada pelas redes sociais que transformaram o “pedido” em “reivindicação”. A criação de um campo antagonista se deu justamente na negação do Estado em dialogar com os estudantes, transformando seu pedido numa reivindicação, e constituindo, ao mesmo tempo, o próprio movimento secundarista de ocupação das escolas. Uma particularidade importante da reivindicação assumida pelos estudantes é que ela foi materializada por um ato performático central: a ocupação dos prédios escolares. Assim a reivindicação assumiu uma forma distinta e complementar àquela que costuma fazer parte dos canais da política representativa formal - abaixo-assinados, ofícios, processos judiciais, reuniões de negociação - embora não tenha prescindido também destes recursos.
As ocupações dos prédios escolares como forma de reivindicação trazia um elemento novo, uma presença performática que ao mesmo tempo instituía e desconstruía um conjunto de realidades e de representações do que é ser estudante e do que é uma escola. Questionando toda uma série de rituais que caracterizam a constituição dos corpos escolarizados, as experiências recentes de ocupação de escolas, constituíram um palco para a emergência de novos sujeitos políticos coletivos e de novas formas de relação, dentro e fora da escola.
No livro Cuerpos aliados y lucha politica, Butler utiliza a categoria de precariedade para aludir a uma condição social e econômica na qual o próprio direito à existência corporal, o direito a ter direitos está ameaçado. Transcendendo as identidades, a precariedade apresenta um potencial de aliança entre corpos que não se reconhecem como membros de uma mesma categoria, mas se percebem na condição comum de vidas precárias. Frente à negação de reconhecimento e do próprio direito à existência, torna-se necessário atuar para, só então, poder existir e conseguir reclamar o direito à existência e a ter direitos:
Às vezes, o mais importante não é o poder que alguém tem e que lhe faculta atuar; às vezes, o que é necessário é atuar, e a partir dessa atuação, reclamar o poder de que se necessita. Assim é como eu entendo a performatividade, e esta é também uma das formas de atuar contra e a partir da precariedade. (BUTLER, 2017b, p. 63)
Fazendo referência ao fenômeno cada vez mais presente nas grandes cidades da ocupação repentina e inesperada das ruas por multidões de pessoas que buscam protestar ou dar visibilidade a seus corpos e a suas demandas, Butler ressalta que a importância destas manifestações e encontros públicos ultrapassa os objetivos e motivos discursivamente elaborados para justificá-la, pois, segundo a autora:
A persistência do corpo em sua exposição coloca essa legitimidade em questão e o faz precisamente através de uma performatividade específica do corpo. Tanto os atos corporais como a gestualidade significam e falam; e o fazem ao adotarem a forma de atuações e exigências, dois elementos que, afinal, estão inextricavelmente unidos. Quando a legitimidade estatal é questionada justamente por essa forma de aparecer em público, o corpo em si mesmo exerce um direito que foi ativamente combatido e destruído pelas forças militares e que, ao resistir a esta força, expressa seu modo de vida, mostrando tanto sua precariedade como seu direito à persistência. (BUTLER, 2017b, p. 87)
Assim, a presença do corpo passa a ser um elemento importante do processo de constituição das reivindicações e das identidades políticas, tendência esta que matiza e tensiona as formas puramente institucionais, impessoais, abstratas do jogo político democrático.
A forma política assumida pelas ocupações das escolas foi marcada pela ausência de liderança central, pela concomitância de várias iniciativas, nem sempre coordenadas, mas que uma vez instituídas, estabeleciam algum grau de comunicação entre si. Houve casos em que a presença do movimento estudantil institucionalizado tinha centralidade, mas em muitas experiências de ocupação o que se viu foi uma crítica às noções da democracia formal representativa. Podemos dizer que as ocupações estudantis trouxeram consigo um forte componente “anti-institucional” porque não restringiu sua expressão aos meios, instrumentos e espaços consagrados pela democracia representativa formal.
De fato, diversos estudos sobre a atuação política dos jovens e seus modos de subjetivação apontam o desgaste de formas institucionalizadas de organização para uma parte das novas gerações. Em artigo que analisa alguns eventos recentes de mobilização e aparição juvenil na cena pública, tais como as manifestações de junho de 2013, as ocupações estudantis e os “rolezinhos” na cidade de São Paulo, Corrochano et. al. (2018) sugerem que esta geração subjetivou-se a partir de novos modos de interação com a política:
Se a consolidação da democracia brasileira nos últimos anos tiveram como efeito o fortalecimento do jogo eleitoral e a pluralização dos mecanismos de participação, as referências e experiências analisadas neste artigo reforçam a sugestão de que parcelas de jovens brasileiros tendem 1) a desconfiar dos canais institucionais à disposição, 2) a recusar a participação em partidos como modo privilegiado de transformação e 3) têm preferido formas de atuação e engajamento mais diretas, menos hierarquizadas, mais permeáveis aos anseios individuais e à contingência histórica (CORROCHANO, DOWBOR, JARDIM, p. 62, 2018).
Como sabemos, este processo não diz respeito apenas aos jovens ou ao Brasil, mas é observado como uma tendência global. Mouffe denomina o descentramento de atores e a diversificação das pautas políticas na democracia contemporânea de pluralismo agonístico. Para ela, estamos diante de lutas pela radicalização da democracia que se manifestam tanto no Estado quanto na sociedade civil. Trata-se um projeto não de erradicação do poder, mas de multiplicação dos espaços em que as relações de poder estariam abertas à contestação democrática (MOUFFE, 1999).
O significado de “ser secundarista” foi construído, para muitos, no curso do movimento, a partir da possibilidade dos estudantes articularem uma identidade no confronto com o Estado - “encarnado”, no caso do estado de São Paulo em 2015, na proposta de reorganização escolar. Os grupos constituem-se na oposição comum a algo ou alguém. Nesse sentido a construção das identidades políticas é um ato performativo, não é algo fixo, estático ou essencial, mas possui um caráter contingente e provisório.
A dimensão performativa das ocupações
A “Primavera Secundarista”, como tem sido chamado o movimento de ocupações de escolas que se espalhou pelo Brasil em 2015 e 2016, traz consigo um conjunto de características convergentes e comuns, mas também peculiaridades que conformam um fenômeno multifacetado.
Groppo (2017b) menciona a existência de duas ondas de ocupações estudantis no Brasil: a primeira, entre o final de 2015 a início de 2016, nos estados de São Paulo, Goiás e Ceará, motivada pela crítica a políticas estaduais de educação; e a segunda, iniciada no Paraná, mas que se espraiou por 19 estados da federação, que surgiu em protesto a iniciativas do governo federal tal como a Medida Provisória da Reforma do Ensino Médio (MP 746/16) e a Proposta de Emenda Constitucional de congelamento dos gastos públicos em direitos sociais por um período de 20 anos (PEC 55/16).
A primeira onda foi desencadeada em outubro de 2015, no estado de São Paulo, alcançando mais de 200 prédios escolares ocupados, como ação contrária ao anúncio da reorganização escolar pelo governo, projeto que pretendia fechar 94 escolas e transferir compulsoriamente 311 mil estudantes e 74 mil professores/as. Em Goiás, em dezembro de 2015, as ocupações protestaram contra a militarização das escolas e o processo de privatização representado pela transferência da gestão das unidades para organizações sociais (OS´s). Em 2016, houve mais ocupações em São Paulo e Ceará, envolvendo reivindicações de merenda escolar e infraestrutura. A partir de maio de 2016, o estado do Rio Grande do Sul contabilizou cerca de 150 escolas ocupadas (COSTA, SANTOS, 2017), posicionando-se contra projetos de privatização discutidos na Assembleia Legislativa do estado, contra o Projeto Escola Sem Partido, e reivindicando regularização do repasse de recursos do estado às unidades escolares (ibid.).
A segunda onda de ocupações estudantis teve início em outubro de 2016 no estado do Paraná, envolvendo mais de 800 escolas. Desta vez a pauta nacional amplificou o alcance do movimento, que teve a adesão de outros 19 estados, e de instituições de ensino superior (GROPPO, 2017b).
Um conjunto de trabalhos vem analisando os vários contextos estaduais das ocupações (CAMPOS et. al., 2016; COSTA, SANTOS, 2017; SILVA, SILVA, 2017; SANTOS, SEGURADO, 2016; CORTI et. al. 2016; CATINI, MELO, 2016; LEITE, 2017; SEVERO, SEGUNDO, 2017; GROPPO et. al. 2017a; SILVA, MELO, 2017), e buscando interpretá-las na interface com diversos temas e ângulos teóricos (ASPIS, 2017; LEITE, 2017; LARCHERT, 2017; ALVIM, RODRIGUES, 2017).
Em que pese à multiplicidade envolvida no fenômeno, é possível destacar algumas características convergentes nas ocupações. A formação de uma identidade estudantil militante, as relações entre centro e periferia, a prevalência de uma liderança feminina (e a importância das questões de gênero nesse contexto), a valorização do espaço escolar, a exposição das demandas formativas e curriculares dos jovens, pautando temas como gênero, racismo, sexualidade, direitos humanos e política, e demandas de formatos e metodologias mais ativas, como as oficinas, vivências, debates e shows são exemplos de questões de interesse, que foram, de maneiras diferentes, problematizadas em uma série de trabalhos.
Tais temas ilustram uma perspectiva de indagação a respeito dos possíveis sentidos, significados e sujeitos que emergem apartirda ação de ocupação das escolas. Por complexo que seja compreender as causas e motivações para o movimento de ocupações, torna-se relevante também pensar aquilo que surge a partir desse movimento e dessa ação em particular. Nesse sentido, a análise de imagens, gestos, letras de música, cartazes, palavras de ordem, formas de comunicação do movimento, bem como de depoimentos a respeito da experiência ali vivida, tornam-se relevantes como indícios, que permitem interpretar aquilo que não se coloca como a reivindicação verbal explícita do movimento, mas como temas que surgem, por um lado, a partir do acontecimento das ocupações e, ao mesmo tempo, representam um conteúdo anterior de reivindicação, associado ao próprio direito à existência, o direito a ter direitos, caracterizando uma dimensão associada à performatividadedo movimento.
Sem a pretensão de ser exaustivos, apresentamos aqui uma coletânea de elementos, extraída principalmente do primeiro movimento de ocupações de 2015 em São Paulo, que ajudam a refletir a respeito dos temas anteriormente citados, buscando perceber neles este elemento performativo em que a ação e os acontecimentos parecem anteceder e configurar os sujeitos que dela participam.
O caráter não-institucional e horizontal do primeiro movimento de ocupações de escolas em São Paulo faz com que, ao buscar por sua gênese, encontremos não propriamente organizações institucionalizadas, mas coletivos bastante flutuantes e objetos culturais que, de certa forma, promoveram a formação deste movimento político. Por exemplo, a música “Escolas de Luta”, composta pelo “MC Foice e Martelo da Z/S” em outubro de 2015, realizando uma paródia do funk “Baile da Favela”, de MC João, tornou-se um verdadeiro hino do movimento de ocupações, que foi exaustivamente cantado durante todo o período de ocupações e criou uma fórmula identitária que permitia adaptá-la a cada nova escola em que surgia um movimento de ocupação e passava a se tornar, então, uma “escola de luta” (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 76).
Escolas de Luta (MC Foice e Martelo da Z/S) | Baile de Favela (MC João) |
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O estado veio quente Nóis já tá fervendo (x2) Quer desafiar Não tô entendendo Mexeu com estudante Vocês vão sair perdendo (por quê?) O Fernão é Escola de Luta Andronico é Escola de Luta Ana Rosa é Escola de Luta Fica preparado Que se fecha Nóis ocupa (vai, vai) Antonio Viana é Escola de Luta Salim Maluf é Escola de Luta EE Julieta é Escola de Luta Fica preparado Que se fecha Nóis ocupa |
Ela veio quente E hoje eu tô fervendo (x2) Quer desafiar, Não tô entendendo Mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo (vai) Que o Helipa, é baile de favela Que a Marconi, é baile de favela E a São Rafael, é baile de favela E os menor preparado pra foder com a xota dela (o vai) Eliza Maria, é baile de favela Invasão, é baile de favela E as casinha, é baile de favela E os menor preparado pra foder com a xota dela (vai) |
Fonte: MC Foice e Martelo da Z/S (In: Campos; Medeiros; Ribeiro, 2016, p. 77) e MC João (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kzOkza_u3Z8. Acesso em 30/01/2020).
Chama a atenção a subversão de uma letra de conteúdo claramente sexista, transformando-a em outra, que serve de hino para um movimento que, de diversas maneiras, questionou as estruturas de dominação nas relações de gênero. A utilização da paródia de um funk como hino e a substituição da fórmula identitária “baile de favela” por “escola de luta” configura, entretanto, uma identidade estudantil militante, vinculada ao espaço escolar e especificamente à identidade fornecida pelo nome de cada escola, uma identidade territorializada, espacialmente heterogênea, de caráter periférico ou, ao menos, não-elitista, muito diferente, por exemplo, da identidade estudantil associada ao movimento dos “cara-pintadas” de 1992.
Tal como os “bailes de favela”, as “escolas de luta” e seus estudantes têm sua própria existência ameaçada, seu direito a ter direitos negligenciado. Ao mesmo tempo, as escolas ocupadas constituem-se como uma fonte de subjetivação, um espaço aonde se torna possível existir, relacionar-se com o outro, reconhecer-se e ser reconhecido. A importância para o processo de crescimento pessoal que este acontecimento teve transparece em inúmeras declarações recolhidas, tais como esta, a seguir, de uma ocupação da periferia da zona leste paulistana:
“Nossa, mas na ocupação assim eu me tornei outra pessoa... todo mundo que via nem me reconhecia... desde que falaram que iam fechar a escola eu fiquei muito triste e nem entendiam porque que eu fiquei tão triste. Mas assim, a escola que eu estudava antes era muito ruim pra mim... e no EE Victor Jara eu consegui estudar e tinha alguns amigos... mas eu não queria ir pra outra escola nova. E aí eu me doei inteira praquilo. Ia lá de manhã e saia à noite. E lá eu falava, falava na assembleia... e todo mundo começou a falar comigo porque eu desenhava os cartazes... fiz até um do Alckmin que ficou famoso nas páginas das ocupações, que dizia ‘the Alckmin dead’. E então assim, pra mim a escola fechar era horrível. E ali eu me transformei mesmo… falava com todo mundo. E depois eu me envolvi com o grêmio da escola e ia nas salas falar com os alunos... teve um festival um dia que eu fui recitar um poema... aí na hora eu travei, tremia todinha... mas aí vieram me falar ‘vai Raquel!’. A Patrícia até veio e soltou meu cabelo assim.... aí eu fui... acho que foi uma bosta... mas tipo o pessoal me apoiou.” (PATTA, 2017, p. 127-8)
No contexto da luta contra a reorganização escolar, desenvolve-se um imaginário de guerra no qual as escolas ocupadas acabam representando uma forma de combate vinculado à cultura, ao estudo, ao conhecimento, em contraposição aos monstros do arbítrio, da violência e da ignorância. São significativas, nesse sentido, imagens como o grafite da figura 1 abaixo, no qual lápis e cadernos são transformados em lanças e escudos, ou a figura 2, em que o livro de Joseph Proudon transforma-se em arma ou, finalmente, o cartaz da figura 3, que representa outro forte símbolo das ocupações: a transformação de carteiras escolares ordenadas e enfileiradas em barricadas na guerra contra a reorganização escolar. Ao se transformarem em barricadas, as carteiras escolares por um lado têm subvertido seu significado de ordem e hierarquia, mas, por outro, não perdem sua conotação vinculada ao estudo, e passam a representar a própria escola, especialmente quando são levadas as ruas, transformando simbolicamente as vias públicas em salas de aula (figura 4).
Fonte: Publicado na página do facebook Não fechem minha escola em 8 de dezembro de 2015. In: ZACCARELLI, 2017, p. 92
Fonte: publicada no site da UBES em 17/11/2015. Disponível em http://ubes.org.br/2015/ubes-convoca-dia-nacional-de-solidariedade-a-ocupacao-de-escolas-em-sao-paulo/. Acesso em 28/01/2020
Longe de constituir uma identidade homogênea, as ocupações de escolas formaram, como mencionamos, identidades territorializadas, associadas ao espaço do bairro da escola, ou, no caso de escolas mais centrais, das múltiplas passagens e conexões que configuram tais escolas. Girotto (2016) argumentou que tanto o projeto de reorganização escolar como o movimento de ocupações de 2015, em São Paulo, pode ser compreendido em um horizonte mais amplo, associado às ameaças e à luta pelo direito à cidade. Se, por um lado, uma hipótese para a compreensão da lógica subjacente aos fechamentos de escolas diz respeito às pressões especulativas do mercado imobiliário, por outro, o movimento de ocupações configura-se como um movimento de enraizamento no território e de defesa da escola como um território de pertencimento.
A escola ocupada constitui-se, também, como um espaço privilegiado para a aprendizagem e o estudo e expressa dessa forma, na prática, as demandas formativas dos estudantes. Temas associados ao machismo, homofobia e racismo adquirem relevância tanto como conteúdos de reflexão e aprendizagem associados a uma formação desejada e defendida pelos estudantes das ocupações como também como uma pauta política de um movimento no qual os corpos discriminados e excluídos de mulheres, negros e sexualidades não hegemônicas aparecem e assumem parte significativa do protagonismo do movimento. É frequente, por exemplo, uma presença maior de meninas envolvidas no planejamento de atividades, na liderança de assembleias, reuniões de negociação e em atividades de segurança, bem como de meninos em comissões de limpeza e cozinha (ALEGRIA,2017). Dessa forma, a performatividade específica associada à experiência de ocupação das escolas provocava a emergência destes conteúdos de reivindicação e formação. Nas palavras de Ana Júlia, liderança das ocupações de 2016 no Paraná, é como se o espaço “gritasse” por essas demandas:
“Questão: Na ocupação da sua escola a discussão sobre gênero, feminismo, empoderamento, igualdade, era comum? E antes da ocupação, isso era comum? Ana Júlia: Não era comum antes, não é comum agora, mas era comum na ocupação. O espaço gritava isso, gritava por essa questão de igualdade.” (GROPPO, 2018, p. 31).
As demandas formativas que se expressaram nas ocupações vinham sendo documentadas por um conjunto de pesquisas nas últimas duas décadas, que envolviam a escuta aos estudantes e que apontavam o desencontro entre os anseios e perspectivas juvenis e o modelo de escolarização oficial (SPOSITO 2005, 2008; DAYRELL, 2009; CORTI, SOUZA, 2004; LAGO, SOUZA, SANTOS, 2016). Embora apontem a escola como um espaço de referência fundamental nas suas vidas, na medida em que possibilita a relação com os professores e o encontro com seus pares tecendo relações de amizade e de pertencimento, os jovens fazem críticas ao modelo de ensino, considerando as aulas “chatas”, “desinteressantes” e “sem sentido”.
Ao descreverem o processo de ocupação de uma escola na zona norte de São Paulo, Corsino e Zan (2017) mostram como em seu interior foram realizadas atividades que, em si mesmas, encarnavam as críticas à escola, fartamente documentadas pela bibliografia especializada. A primeira atividade foi uma palestra sobre pós-colonialismo, na qual a palestrante sugeria pensar a ocupação como uma prática descolonialista. As cenas descritas pelas autoras revelam uma interessante e tensa sequência de rupturas concretas: trancar-se na escola, impedir o acesso de professores, direção e funcionários; lidar com a investida do conselho tutelar e da polícia, contactar um advogado, buscar uma negociação com os agentes do poder, permanecer na escola e organizar este ambiente possibilitando tanto a convivência interna, quanto se preparando contra invasões externas. Estas rupturas ganharam, na palestra, uma significação teórica e narrativa a partir do tema do pós-colonialismo, permitindo criar um sentido para elas além de sua localidade ou situcionalidade, conectadas a processos históricos mais amplos. Os estudantes faziam conexões com seu cotidiano dentro da escola:
(…) dois aspectos foram recorrentes e chamaram a atenção: sempre apareciam nas falas dos/as estudantes, a arquitetura da escola e o relato das aulas marcadas pela mera reprodução de textos no quadro para serem copiados pelos/as estudantes. Uma jovem falou que eles/as ficam desestimulados pelo fato de que a maioria das aulas é apenas para copiar lição e relacionou a tarefa com o trabalho mecânico de uma fábrica, apontando que a tarefa que lhes cabia, enquanto alunos/as, era apenas a repetição de um movimento. (CORSINO, ZAN, 2017, p. 37)
Outros estudantes falaram sobre as grades da escola, sobre a proibição de ir ao banheiro ou beber água, e da sensação de estarem enclausurados e de sentirem-se manejados como animais (ibid.). Ultrapassando esse estudo de caso específico, são inúmeros os depoimentos que destacam a contraposição entre a educação escolar a que estavam acostumados e aquela desenvolvida nas ocupações. As figuras 5 e 6 constituem exemplos pictóricos dessa crítica e contraposição.
Fonte: Charge de Vinícius de Olivieira (VINOLI), 28/01/2016. Disponível em https://vinolicartoons.wordpress.com/2016/01/28/escola-dos-tempos-modernos/. Acesso em 28/01/2020.
Fonte: Foto de Danilo Mekari, 2015. Disponível em https://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/12/02/o-que-estamos-aprendendo-agora-nao-se-compara-com-o-que-foi-ensinado-durante-o-ano/. Acesso em 28/01/2020
Desta vez as críticas à escola ganhavam forma, não a partir de um documento escrito, de pesquisas e artigos acadêmicos, mas da própria ação performativa dos estudantes, da sua presença física e da instituição de práticas concretas que demonstravam a viabilidade de outra escola possível. As atividades diversas no interior da escola revelavam, por si só, a crítica ao modelo escolarizado/bancário de educação (FREIRE, 1979).
As imagens oferecidas pelos jovens nas ocupações - atuando, discursando, cozinhando e limpando -, contrastavam com as imagens tradicionais de estudantes calados e enfileirados nas salas de aula. Nesse sentido, é possível falar das ocupações como uma rebelião do “corpo estudantil”, num duplo movimento de ruptura com o individualismo e com o controle externo/produtivo/burocrático de seus corpos.
Os estudantes também apresentaram demandas para o modelo escolar pelo modo como romperam com a divisão do trabalho no ambiente das ocupações. A criação de comissões, o trabalho cooperativo, o empenho em equilibrar meninos e meninas nas mesmas tarefas rompendo com as representações normativas dos gêneros, o rodízio de tarefas e responsabilidades, a ruptura com a separação entre tarefas do “pensar” e tarefas do “agir”- ou seja, entre trabalho manual e intelectual, a valorização das atividades de manutenção diárias, como a limpeza, a comida, a organização horizontal do poder nas assembleias, buscando um modelo não-hierarquizado, deliberativo e de ação direta.
Nesse sentido, as ocupações foram um modo de ação coletiva que envolveu a exposição deliberada do corpo, e sua implicação na criação de situações cotidianas que pudessem materializar os ideais de igualdade reivindicados, como que numa demonstração viva e exemplar de sua possibilidade e plausibilidade. Como afirma Butler: “As reivindicações políticas traçam e ao mesmo tempo, se põem em jogo, se comunicam e se exercitam de modo exemplar. Isso quer dizer que todas as demandas por estas reuniões têm invariavelmente uma dimensão performativa” (BUTLER, 2017b, p. 139). Esta caraterística traça uma distinção importante em relação a um modo de ação coletiva que, tradicionalmente, leva ao espaço público um conjunto de reivindicações abstratas, pois, embora estas também estivessem presentes nas ocupações, nelas havia mais do que uma representação de ideais almejadas, mas a própria experimentação corporificada destas.
Dormem por lá, cozinham, tomam banho, fazem faxina, reparam infiltrações, receberam mais atividades extracurriculares do que em toda a vida escolar. “A gente nunca tinha tido um debate aqui”, disse uma das alunas. “Esse ano, todo mês, eu tentava trazer alguém, mas a diretora proibia”. Desde a ocupação, com a ajuda de voluntários, organizaram shows, aulas de geografia, física, culinária, ioga, dança, teatro, improviso, quadrinhos, música, debates sobre dívida pública, questões de gênero- e a lista continua. (PRATA, 2015)
Rodrigues e Ribeiro (2017) refletiram a respeito dessas experiências educacionais e sua relevância para repensar os modelos pedagógicos tradicionais da escola. Alguns depoimentos de estudantes explicitam sua insatisfação com um modelo pedagógico em que “parece que a aula é feita apenas para cumprir um cronograma” (p. 146). O modelo educacional experimentado durante as ocupações parece atraente aos estudantes entrevistados porque:
“a ocupação foi uma ocupação diferente para cada um dos estudantes (…) A aprendizagem coletiva foi tão significativa quanto a vivência individual (…) A partir do momento em que a escola está aberta às pessoas, a escola fica mais rica de conhecimento (…) existe entre nós, hoje, a ideia de que a escola é nossa, e não é apenas um lugar aonde é obrigado a ir”. (RODRIGUES; RIBEIRO, 2017, p. 146)
Reaparece aqui a necessidade de existir, poder ser percebido e perceber o mundo, na complexidade do tecido de relações que o constitui. O modelo individualizado e mecanizado, “para cumprir o cronograma”, mostra-se desestimulante por isolar o estudante em um espaço de anonimato, no qual ele pouco se relaciona com o mundo. A experiência das ocupações é significativa, também como experiência educacional, por constituir um espaço aonde se torna possível existir em relação e, assim, aprender. Como afirmou outro estudante:
“Na educação dentro da escola a gente tá extremamente acostumado a olhar e ficar sentado cada um atrás do outro, a gente não tem esse contato visual. Tem pessoas que estudam aqui há 4, 5 anos e eu falo ‘Caramba, nunca te vi e agora que eu posso olhar nos teus olhos, eu posso lidar com você, eu posso te entender, eu posso te enxergar’… A gente aprendeu a se enxergar aqui dentro” (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 134).
Nas ocupações os estudantes não apenas criaram uma nova existência para si, contrastante com o “regime de verdade” (FOUCAULT, 1999) que a sociedade produz sobre alunos de escolas públicas, como também constituíram novas possibilidades de relação com o conhecimento, o espaço escolar, os colegas, o mundo adulto e a cidade.
Os estudantes deixaram de ser, ainda que provisoriamente, um sujeito abstrato e universal, e uma categoria administrativa e escolar, para ocupar a posição de sujeito com voz e corpo próprios. Nos discursos de poder, estes estudantes aparecem como culpados ou como vítimas: culpados pelos comportamentos indisciplinados, violentos ou simplesmente apáticos e desinteressados no interior da escola ou vítimas passivas de um sistema de ensino precarizado que os mantém mergulhados na ignorância, na exclusão social e na impotência. As ocupações fraturaram estes discursos. De forma análoga ao que Butler atribui à performatividade de gênero, os estudantes exploraram a possibilidade de romper as normas em ato, encontrando um modo de existir que pôde suspendê-las, ainda que provisoriamente (BUTLER, 2017a) e lhes permitiu constituir um espaço de existência e reconhecimento de si e do outro.
Parece muito significativo que esta ruptura tenha colocado o corpo no centro da ação. Afinal, as ocupações foram atos políticos corporificados, que trouxeram de volta aos sujeitos o que Foucault denomina de “a força dos corpos”, que, nos regimes disciplinares, são drenadas para fora dele para fortalecer os processos de dominação.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ´dóceis´. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 1987, p. 127)
Para além da conquista ou derrota de suas reivindicações objetivas, os atos performativos dos secundaristas produziram transformações ao tensionar, através da potência de sua aparição e existência corporal, uma estrutura que pretende, cada vez mais, enxergá-los da perspectiva de uma racionalidade puramente administrativa, técnica e numérica.
Certamente o poder governamental, representante político dos grupos dominantes, logo percebeu todo o potencial ameaçador e disruptivo das ocupações e colocou todo seu potencial repressivo sobre essa “rebelião estudantil”, por meio da burocracia governamental, das forças policiais e do poder judiciário.
Desde o início, policiais militares fortemente armados cercavam as escolas, ameaçavam estudantes e apoiadores do movimento, efetuavam prisões indevidas de menores de idade, entre outras agressões. Pior: houve a tentativa de fichar os estudantes como criminosos, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente e criminalizando o movimento juvenil (SANTOS, SEGURADO, p. 21).
Na etnografia elaborada por Corsino e Zan descrevendo o momento da ocupação de uma escola estadual, ficam evidenciadas as enormes dificuldades enfrentadas pelos estudantes e o aparato repressivo que, imediatamente, se mobilizou para reprimi-los.
Os/as professores/as e a direção chamaram o Conselho Tutelar, que, por sua vez, chamou a polícia. A conselheira chegou e pediu para entrar, dizendo que ela queria ajudar os/as jovens da ocupação. Então um dos jovens disse que ela entraria sim, mas que deveria esperar a chegada da advogada que os/as acompanharia. Após meia hora de espera, um jovem abriu o portão e elas entraram, logo a polícia chegou e, em seguida, uma advogada de defesa dos/as estudantes. Antes da chegada da advogada, algumas pessoas, dentre professores/as, responsáveis e funcionários/as, estavam extremamente exaltados/as, o que provocou alguns momentos de discussão e até de agressões com empurrões entre eles/as (CORSINO, ZAN, 2017, p. 31).
Os estudantes tinham contra si diversos professores, a direção, a coordenação, algumas famílias, o aparato policial e até mesmo o conselho tutelar, órgão que, supostamente, deveria defender seus direitos. Na parte externa da escola, a pesquisadora ouvia rumores de que os estudantes estariam com bebidas e drogas no interior da escola, e alguns conclamavam as famílias a virem até o local para quebrar os cadeados e remover à força os jovens do local.
As resistências e o apoio das famílias variaram nas diversas ocupações. Enquanto no caso acima citado a pesquisadora identificou uma oposição dos familiares na escola investigada, foram noticiados também ações de apoio de pais, como no caso da Escola Estadual Fernão Dias, em que os familiares faziam vigílias do lado de fora da escola para proteger seus filhos contra eventuais ações policiais. Algumas famílias não só permitiram a presença de seus filhos como a exaltaram, como foi o caso de um pai de aluno do Fernão Dias, que todo dia após o trabalho ficava na porta da escola durante a ocupação: “Ele sabe se cuidar. No começo ficaram com medo da minha reação, mas depois viram que eu apoiei. Plantaram uma semente que vai brotar.” (GRAGNANI, MACHADO, 2015). Em contraste, também foram noticiados casos de familiares que, preocupados com o alastramento do movimento, passaram a se mobilizar a fim de evitar a ocupação, e em alguns casos, para desocupá-la (TAKAHASHI, GRAGNANI, 2015).
Notou-se também uma “guerra de informação” por parte do Estado. Uma reportagem da Folha de S. Paulo denunciou a divulgação de dados falsos pela Secretaria de Educação, que havia afirmado que 38 escolas teriam sido desocupadas, sugerindo um esmorecimento do movimento. Entretanto, a reportagem fez a checagem constatando que 29 daquelas escolas nem sequer haviam sido ocupadas (SOUZA, CARMO, 2015). Foi significativo, também, o vazamento do áudio sobre uma reunião chamada às pressas pela Secretaria de Educação junto aos Dirigentes Regionais de Ensino, em que o assessor da pasta, Fernando Padula, afirmava estar havendo uma “guerra” e conclamava os agentes do Estado a atuarem taticamente, verificando as ocupações mais frágeis e buscando desarticulá-las, bem como contando com jovens que pudessem fazer o movimento contrário. Um dos pontos altos do áudio foi a revelação de que o Estado teria procurado aconselhamento junto ao arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, segundo o qual o discurso dos estudantes estaria obtendo muita visibilidade, ao contrário do discurso governamental, revelando uma faceta que costuma estar invisível no exercício do poder do Estado, que é sua aliança com a instituição religiosa ainda hegemônica no Brasil: a Igreja Católica .
A forte repressão mostra o quão ameaçadoras foram as ocupações para o poder instituído, tendo obtido algumas vitórias importantes, como a suspensão judicial da reorganização em dezembro de 2015 e a demissão do então Secretário de Educação, Herman Voorwald. Entretanto, tais derrotas ensejaram a reorganização das forças do Estado, nomeando um novo secretário de educação ligado à magistratura, numa clara estratégia de judicialização da política estadual de educação. Além disso, a perseguição e a repressão aos estudantes que participaram das ocupações prosseguiram mesmo após a desocupação. Segundo matéria de 2017, o ano seguinte às ocupações foi marcado pelo recrudescimento da presença de policiais nas escolas ocupadas, pela perseguição de ex-ocupantes por policiais à paisana, pela repressão de diretores a estudantes que haviam participado do movimento, inclusive com a recusa de sua matrícula (SALVADORI, 2017).
Considerações finais
Concluímos sugerindo que as ocupações dos secundaristas foram atos performativos em três dimensões: na emergência dos sujeitos (a identidade secundarista que emergiu com a ocupação); no modo de apresentar algumas demandas educacionais (a produção de novas práticas escolares que materializavam as mudanças desejadas); na inversão do assujeitamento administrativo pela criação de outro “corpo estudantil” visível, vibrante e atuante. Nesse sentido mostrou-se fecundo analisar as ocupações como modalidades de ação e de construção de identidades políticas conforme a teoria anti-essencialista de Laclau, em que o contexto e as relações tornam-se aspectos importantes.
Na relação com a fronteira antagonista do governo estadual, protagonista de uma medida considerada injusta e autoritária, os estudantes verteram suas demandas não atendidas em reivindicações, que assumiram uma forma performativa nas ocupações. As ocupações extravasaram os canais tradicionais e consagrados de reivindicação previstos pela democracia representativa, tornando-se um movimento disruptivo, com forte teor transgressivo dos poderes instituídos. Ao mesmo tempo, as ocupações foram espaços de produção de novas formas de educação e de uma vida escolar com mais liberdade, autonomia e sentido, corporificando críticas que os jovens vêm fazendo há muitos anos a respeito das políticas públicas e dos modelos de escolarização que lhes são oferecidos. Daí que as ocupações tenham sido um ato rebelde e perigoso ao sistema de ensino formal, por demonstrar a viabilidade de uma escola verdadeiramente libertadora, democrática, antisexista e antirracista.
A forte repressão a um movimento dessa natureza desmistifica de modo desconcertante os discursos oficiais sobre a educação, segundo os quais ela seria um modo de produzir equidade social, mostrando que numa sociedade de classes desigual como a nossa, a escola é utilizada como ferramenta de controle e dominação. Talvez exatamente pelo fato de desnudarem este mito, as ocupações tenham sido tão violentamente reprimidas.