Introdução
O Movimento Política Municipal de Alfabetização em debate é uma ação coletiva de resistência organizada por professores da Educação Infantil, dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, pedagogos da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (SEMED), Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado do Amazonas (SINTEAM) e professores e pesquisadores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas diante da apresentação da Minuta de Lei da política municipal de alfabetização, alinhada com a Política Nacional de Alfabetização (PNA), antidemocrática e pseudocientífica do governo Bolsonaro.
A PNA representa um golpe na democracia e na ciência produzida no Brasil nos últimos quarenta anos sobre alfabetização, provocando uma grave ruptura com as políticas públicas já implementadas, por adotar um único caminho metodológico e teórico, ancorado na ciência cognitiva da leitura, destoando dos instrumentos normativos vigentes, que englobam um conjunto de leis, decretos, Plano Nacional de Educação, Diretrizes Curriculares específicas das etapas e modalidades da Educação básica e a Base Nacional Comum Curricular, documento orientador e obrigatório das propostas curriculares das redes e sistemas de ensino municipal.
Desse modo, é na esteira de uma política de estado mercantilista criada para atender uma agenda de privatização, que a Minuta de Lei da PMA é construída, com o apoio da atual gestão da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (SEMED).
Salientamos que a SEMED, há oito anos, vem se rendendo à lógica do mercado privatista, efetivada pelo Projeto de Expansão e Melhoria Educacional da Rede Pública Municipal de Manaus (PROEMEM), executado pela SEMED e financiado com recursos do Banco de Desenvolvimento (BID), juntamente com os recursos previstos no orçamento da própria secretaria, expandindo, assim, a presença direta do setor privado. Essa lógica do mercado presente na educação pública municipal de Manaus vem sendo traduzida em um extenso volume de contratos, convênios e acertos entre a SEMED e os setores privados, permitindo a apropriação privada do bem público (ARANHA; OLIVEIRA, 2019).
Foi justamente nesse contexto de privatização, sem ouvir as vozes dos professores, que a Minuta de Lei da Política Municipal de Alfabetização foi elaborada e apresentada de forma aligeirada, tendo como pano de fundo, o cenário de isolamento social, em função da pandemia da COVID-19. Tal contexto impossibilitava um debate maior entre os professores, já tomados pela exaustão de inúmeras atividades demandadas pelo trabalho remoto. No entanto, o compromisso em defesa da educação pública, laica, gratuita e de qualidade social, motivou processos de resistência e luta em um movimento organizado para combater a materialização de mais um controle externo sobre suas práticas docentes, dessa vez imposta em uma Minuta de Lei verticalizada e unilateral, e de negação dos estudos de outras possibilidades pedagógicas no campo da alfabetização.
Com base no exposto, este artigo objetiva apresentar a análise dos principais problemas políticos, ideológicos, conceituais, epistemológicos, pedagógicos e metodológicos levantados pelos principais pesquisadores brasileiros no campo da alfabetização e discutidos no Dossiê “Política Nacional de Alfabetização em foco: olhares de professores e pesquisadores”, organizado pela revista da Associação Brasileira de Alfabetização, usado como aporte teórico para a análise da Minuta de Lei. No segundo momento, destacamos os aspectos de imbricação da minuta com a Política Nacional de Alfabetização (PNA) oriunda do governo federal, contextualizando as ações desenvolvidas e em andamento pelo Movimento Política Municipal de Alfabetização em debate em Manaus.
Vislumbramos com esse estudo, demarcar um novo tempo de esperança no sentido freiriano, tecendo um movimento de cooperação entre os professores da educação básica e da Universidade para que numa rede de trabalho coletivo possamos resistir aos ditames do sistema que considera educação como mercadoria, rejeitando estratégias de privatização e criando, sobretudo, o sentimento de pertencimento, a partir da inclusão das vozes dos professores na construção das políticas públicas de alfabetização.
Política nacional de alfabetização: qual a sua real intenção?
A Política Nacional de Alfabetização - PNA, implantada no ano de 2020, do governo Bolsonaro, instituída pelo Decreto presidencial n° 9.765 de 11 de abril de 2019 e apresentada detalhadamente em um caderno oficial denominado PNA (BRASIL, 2019), como bem alerta Mortatti (2019, p.27), faz parte de um “projeto político-ideológico neoliberal e ultraconservador do atual governo federal e está estrategicamente articulada às demais medidas de destruição dos avanços democráticos conquistados pela população brasileira nas últimas décadas”. As consequências da atual política são assustadoras e devastadoras, representando as características antidemocráticas e autoritárias do governo vigente, que rompe completamente com quarenta anos de pesquisa no Brasil no campo da alfabetização e com as políticas públicas existentes, com sua real intenção de implantação de um projeto de nação muito bem velado, numa armadilha discursiva como bem definida por Mortatti (idem).
Na apresentação do referido documento, bem como nas falas recorrentes do então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, a nova política está baseada em evidências científicas tendo como pressupostos teóricos e metodológicos, as ciências cognitivas da leitura como caminho eficaz para o ensino da leitura e da escrita. A PNA é apresentada pelos seus defensores como um marco na educação brasileira para mudar a realidade da alfabetização no Brasil, desconsiderando que os problemas na alfabetização estão associados a fatores educacionais, sociais, econômicos e políticos que potencializam as desigualdades sociais e educacionais de nossas crianças, jovens, adultos e idosos.
No decreto em questão, que define os princípios da PNA, identificamos no art. 3°, incisos III e IV, a escolha da faceta psicológica como único paradigma a ser adotado, priorizando preceitos que reportam ao método fônico, conforme determinado no documento: III-fundamentação de programas e ações em evidências provenientes das ciências cognitivas; IV-ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização: consciência fonêmica; instrução fônica sistemática; fluência em leitura oral; desenvolvimento de vocabulário; compreensão de texto; e produção de escrita.
Ao decretar a hegemonia da instrução fônica, entramos mais uma vez, em um campo de disputa entre métodos antigos e modernos que evidencia uma luta pela hegemonia de um projeto político-ideológico neoliberal em um momento de vigência de políticas públicas contrárias às defendidas na PNA, como a BNCC que foi colocada democraticamente em discussão (MORTATTI, 2019).
No mesmo artigo, inciso X, é explicitado o reconhecimento da família como um dos agentes do processo de alfabetização. Destacamos que no caderno sobre a nova política de alfabetização está claramente sinalizada a centralidade da família na alfabetização das crianças. Para atingir esse objetivo foi criado o programa de literacia familiar, Conta para mim, um guia de literacia familiar, contendo explicações para os pais de como deve se dar a função da família no processo de alfabetização das crianças, e uma coletânea de vídeos, com várias práticas sugeridas que caminham na direção da educação domiciliar.
Nesse sentido, ressaltamos que a atual Política desqualifica a formação dos professores que são profissionais formados em um curso de graduação para exercer o ofício complexo de alfabetizar, que demanda de uma especificidade de conhecimentos a serem aprofundados na formação continuada, além de secundarizar o papel das escolas. A nova política de alfabetização vai além do que se observa nos consolidados princípios educacionais, que já defendem a importância da participação das famílias na escola, em um contexto de gestão democrática. A medida em questão é preocupante porque, em primeiro lugar, esse incentivo ao ensino domiciliar pode representar um aprofundamento das desigualdades sociais, uma vez que as condições e configurações de famílias são muito diferentes para promover esse acompanhamento do processo de alfabetização, conforme tem sido observado nesse contexto de teleaulas durante a pandemia.
Penna assevera que “a privatização representada pela escolarização doméstica constitui uma grave ameaça a qualquer proposta de educação democrática, porque nega o interesse público em promover a formação de cidadãos que participem ativamente da vida da comunidade” (2019, p.8). O referido autor alerta que as escolas não são apenas responsáveis pela construção do conhecimento escolar, mas que representam também, o acesso para outras instituições culturais, integrando uma rede de segurança e proteção de crianças e adolescentes.
Ao analisarmos a PNA, vamos encontrando outras medidas que se distanciam das políticas públicas já implementadas e vigentes, como a Base Nacional Comum Curricular (2017). Encontramos no art.5°, inciso I, que institui as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Alfabetização, a priorização da alfabetização no 1° ano do ensino fundamental. Essa diretriz vai na contramão do que é sinalizado na BNCC, que considera que a alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica nos dois primeiros anos, como também o Plano Nacional de Educação- PNE com vigência de 2014 a 2024, cuja a meta de número 5 prevê a garantia da alfabetização de todas as crianças até o 3º ano do Ensino Fundamental.
Destacamos também na análise da PNA, o silenciamento do conceito de letramento com contribuições importantes para os estudos e práticas da alfabetização no Brasil e que há mais de vinte anos, desde os PCNs até a BNCC, tem estado presente nas políticas do MEC. Bunzen (2019) aponta que enquanto na BNCC, a palavra é utilizada 48 vezes, na PNA, a palavra nem é mencionada. O autor alerta que a nova política se distancia do que é discutido nos cursos de Pedagogia, nos programas estaduais e municipais, nas produções acadêmicas e nos programas de formação de professores.
Segundo o autor supramencionado, todo silenciamento não é neutro. Essa seria, portanto, mais uma armadilha discursiva para promover o apagamento de um importante campo do conhecimento, que se distancia completamente da PNA e de outras políticas públicas de alfabetização como o Pró-letramento e o PNAIC, internacionalizando o termo literacia, comum nos documentos curriculares de Portugal. Buzen adverte para a necessidade de questionarmos e identificarmos o “arquivamento de tais discursos e implicações pedagógicas(...) por que será que precisamos zerar o passado?”(grifos do autor, 2019, p.47).
Mortatti (2019), também questiona o apagamento do termo letramento, explicando que esse é um tipo de recurso que pode induzir o leitor inexperiente a erros de compreensão, havendo divergências semânticas e epistemológicas entre os termos alfabetização, usado no português e literacy no inglês, não sendo, portanto, adequado substituir letramento por literacia. Para a autora, é possível inferir que a adoção desse tipo de recurso é intencional e visa apagar o vasto conhecimento já produzido no Brasil sobre o tema. No caderno da PNA (2019), que trata sobre o conceito de literacia, encontramos a seguinte justificativa: “É termo usado comumente em Portugal e em outros países lusófonos, equivalente a literacydo inglês e a littératie do francês. A opção por utilizá-lo traz diversas vantagens, pois é uma forma de alinhar-se à terminologia científica consolidada internacionalmente” (p. 21). O argumento em questão, expressa claramente, o desejo de um alinhamento com as políticas internacionais (MORTATTI, 2019a).
Precisamos compreender que a escolha de um único método para a alfabetização fere a Constituição Federal de 1988, mais especificamente, o art. 206, que estabelece os princípios em que o ensino será ministrado, dentre os quais: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções. Infringe ainda, o Plano Nacional de Educação- PNE com vigência de 2014 a 2024, instituído pela Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, que dentre as estratégias, destaca o fomento para o desenvolvimento e divulgação de tecnologias educacionais para alfabetização de crianças, assegurando a diversidade de métodos e práticas pedagógicas inovadoras que garantam o acesso dos pequenos à cultura escrita.
Salientamos que a indicação do método fônico está relacionada a um conceito muito rudimentar de alfabetização, reduzido a um processo de ensino de habilidades de decodificação e codificação, distanciando-se do paradigma presente em outros documentos oficiais e do que tem sido discutido nas formações inicial e continuada dos professores, compreendendo o processo de aprendizagem da língua escrita a partir de dois processos distintos e que devem ser desenvolvidos concomitantemente: a alfabetização e o letramento. No art. 2º do Decreto que institui a PNA, inciso II, a alfabetização é consideradacomo “ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético”, negando desse modo, que a alfabetização constitui-se como um processo de ensino e aprendizagem,demandando interações do sujeito com o objeto de conhecimento.
Além disso, compreendemos que o ensino e aprendizagem da leitura e da escrita são condicionados por fatores sociais, culturais, econômicos e políticos que configuram a alfabetização como um processo de grande complexidade, com pressupostos teóricos e implicações pedagógicas, traduzidas em saberes e fazeres diversos. A natureza do conceito de alfabetização deve ser caracterizada não como uma habilidade, mas um conjunto de habilidades que exigiria uma integração dos estudos de diversas facetas. Desse modo, a questão metodológica presente no desenvolvimento de práticas alfabetizadoras, demanda de uma conjugação das contribuições de diversos campos do conhecimento como a linguística, a psicolinguística, a sociolinguística, a psicologia, além dos paradigmas epistemológicos que apresentam saberes e fazeres para a ação alfabetizadora. (SOARES, 2017).
Na carta aberta, publicada no IV Congresso Brasileiro de Alfabetização, promovida pela Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf), em agosto de 2019, na cidade de Belo Horizonte, assinada por pesquisadores, professores e estudantes de diversos estados brasileiros, é incentivado o pluralismo teórico e metodológico para as práticas alfabetizadoras na luta para a universalização da alfabetização.
Maciel (2019) chama atenção para a composição dos vinte especialistas colaboradores que redigiram o documento: são 13 especialistas, cuja formação e atuação são na área de psicologia; 2 na área de linguística e 5 na área de educação e apenas 1 com formação em pedagogia, sendo 8 estrangeiros e 12 brasileiros com vínculos em universidades públicas e privadas, que atuam nas áreas das ciências cognitivas, psicologia cognitiva e neurociência. A autora questiona sobre qual o papel da educação e dos alfabetizadores em uma política nacional majoritariamente construída com o viés da psicologia.
Ao invés de políticas públicas pautadas em discursos salvacionistas, está na hora de pensar as formações dos professores como um permanente desafio, que implica essencialmente em considerar os alfabetizadores e alfabetizandos como sujeitos produtores de história e de cultura, e cujos saberes e fazeres devem ser alicerce para a criação de novos programas de formação, capazes de garantir o direito humano e social de aprender a ler e a escrever para todas as crianças brasileiras.
Destacamos que os principais pesquisadores do Brasil, publicaram no final do ano de 2019, diversos artigos na Revista Brasileira de Alfabetização, produzida pela Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf), com o tema Dossiê “Política Nacional de Alfabetização em foco: olhares de professores e pesquisadores”. Faz-se mister explicitar que a ABAlf, procurou insistentemente dialogar com os agentes do MEC, sem resposta, para discutirem proposições para a construção de uma política nacional de alfabetização compreendida como um direito social e em defesa da continuidade dos avanços construídos coletivamente ao longo de décadas.
Nos textos da revista, os pesquisadores levantaram problemas políticos, epistemológicos, conceituais e metodológicos, provocando questionamentos e dando respostas para muitas questões como as relacionadas à concepção de evidências adotada na PNA, conceito de alfabetização, adoção de um caminho teórico e metodológico, apagamento do conceito de letramento, desconsideração pelos mais de 40 anos de pesquisas e projetos de formação de alfabetizadores realizados no Brasil, repercussão da PNA nas redes de ensino e outras reflexões pertinentes que não são possíveis de se esgotar nesse texto.
No entanto, uma questão foi tratada de forma recorrente nos diversos artigos e se refere ao conceito de “evidências científicas”. Este pressuposto é pautado nas pesquisas experimentais das ciências cognitivas, usado para justificar e exaltar um único paradigma como a solução para os resultados da alfabetização, que já se sabe que estão condicionados a muitas variáveis, que evocam a necessidade de se trabalhar com múltiplos métodos de pesquisa. A ênfase dada para o termo “evidências científicas”, como se fosse uma verdade cientifica, contraria o próprio entendimento de ciência que comporta diferentes olhares, notadamente as pesquisas educacionais, e não uma concepção homogeneizante de conhecimento. Ademais, se traduz em um discurso antidemocrático e pseudocientífico, desconsiderando as pesquisas sobre alfabetização produzidas nas últimas décadas, e ignorando a impossibilidade do método experimental para responder todas as questões que acontecem no campo educacional. (FRADE; MACIEL; MICARELLO; MORAIS; MORTATTI, 2019).
Sendo assim, é pertinente trazer as contribuições de Morttati (2010), que sistematiza quatro momentos da história da alfabetização no Brasil, argumentando que no início da década de oitenta, passamos a vivenciar um momento crucial de questionar sistematicamente e oficialmente o ensino e a aprendizagem iniciais da leitura e da escrita, posto que o foco das ações públicas se concentrava nessa etapa de escolaridade que reunia a maior parte da população pobre que fracassava na escola.
Foram organizados três modelos teóricos de explicação para alfabetização, denominados de construtivismo, interacionismo linguístico e letramento, conquistando hegemonia mediante sua oficialização no contexto das políticas públicas para alfabetização, o modelo teórico conhecido como construtivismo. Mesmo em menor intensidade, os demais modelos foram sendo incorporados ainda nessa década às políticas públicas de alfabetização, cuja incorporação também se verificou na década de noventa. É necessário destacar que essa hegemonia teórica se traduziu nos documentos oficias que definem as políticas públicas de formação de professores, no entanto, no nível didático-pedagógico, não é possível constatar suas aplicações puras (MORTTATI, 2010).
Nessa disputa por uma hegemonia teórica na elaboração das políticas públicas de alfabetização, consideramos necessário discutir sobre a proposta centrada no método fônico, apresentada pelos pesquisadores brasileiros Alessandra Capovilla e Fernando Capovilla, que ganharam destaque pela polêmica que geraram ao atribuírem o fracasso escolar da alfabetização, no período de 1995-2004, ao construtivismo e criticando os PCN’s (1997). Os pesquisadores “buscaram convencer seus contemporâneos que eram portadores de uma nova e cientifica solução para os problemas de alfabetização no país.” (MORTTATI, 2010, p.6).
Morttati (2010, p.6), explica que os modelos teóricos defendidos não são necessariamente derivados de opções técnicas e da verdade cientifica do momento, mas resultam, principalmente, de escolhas políticas. A autora fundamenta seus argumentos, citando a tentativa dos propositores do método fônico, que não conseguindo estabelecer parceria com os órgãos do MEC, mobilizaram setores da imprensa e fizeram uso de procedimentos lobísticos para que em 2003, na Câmara dos Deputados, o relatório intitulado Alfabetização Infantil: novos caminhos, que recomenda a adoção oficial do método fônico no Brasil, fosse aprovado no Seminário O Poder Legislativo e a alfabetização infantil.
No entanto, como explica a autora, mesmo que a aprovação do Poder Legislativo tivesse um peso expressivo, a proposta não foi assumida pelo MEC. Para decidir sobre a pertinência ou não do método fônico na formulação e implementação das políticas públicas de alfabetização, o então Ministro da Educação, Fernando Haddad, por meio da Secretaria de Educação Básica, organizou um Seminário chamado Alfabetização e letramento em debate, no ano de 2006, que contou com a participação de importantes pesquisadores de universidades brasileiras.
A contextualização apresentada se faz necessária, considerando que a política de alfabetização atual se ampara justamente nos dados presentes no relatório em questão e lembrado em quase todos os artigos já mencionados da Revista Brasileira de Alfabetização. Os argumentos em defesa das ciências cognitivas e do método fônico se assemelham aos divulgados no relatório, que está inclusive atualmente, disponível na página do MEC, na seção denominada publicações PNA, havendo apenas duas publicações: o relatório discutido e o caderno oficial sobre a nova Política Nacional de Alfabetização. Ressaltamos que o relatório em questão foi produzido por políticos, pesquisadores e empresários da educação, dos quais alguns deles atuaram como colaboradores da PNA e são autores de materiais didáticos sobre o método fônico, como o presidente do instituto Alfa e Beto e Fernando Capovilla, o que revela uma face de mercantilização presente na atual PNA, conforme assevera Mortatti (2019, p. 44).
Infringindo princípios democráticos e constitucionais (a exemplo de outras áreas e direitos humanos e sociais), especialmente os referentes ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e à liberdade de ensinar e aprender, a PNA visa à “intervenção máxima” na alfabetização, por meio da imposição autoritária de ações pautadas em princípios do ultraconservadorismo político conjugados com fundamentalismo científico-religioso, em aparente contradição com os princípios do “Estado mínimo” pautados pelo neoliberalismo ao qual se alinha (de modo subserviente mentalidade colonizada a países e organismos internacionais) a política econômica do atual governo federal, com objetivo de implementar agenda de privatização dos empresas e serviços públicos, a fim de beneficiar interesses “do mercado”, ou seja, de grupos de empresários, rentistas, banqueiros, principais segmentos da população responsáveis pela eleição do atual Presidente (MORTATTI, 2019, p. 44).
É justamente para atender essa agenda de privatização, com o interesse de satisfazer os interesses do mercado, em especial o editorial, que a PNA se abre às pressões lobistas para a disseminação de ideologias exclusivistas e para a venda de materiais didáticos, alimentando as editoras, institutos e fundações, certamente que com o dinheiro público.
Outro aspecto da PNA que demanda ser evidenciado, diz respeito à inserção das crianças da Educação Infantil em uma política nacional de alfabetização, mostrando uma intencionalidade de exigência de objetivos e conteúdos específicos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, que fere os princípios e concepções presentes em outros instrumentos normativos em vigência, como a LDB 9.394/96, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) e a BNCC, além de contrariar as pesquisas sobre a primeira infância e Educação Infantil, que defendem o respeito às características do pensamento infantil, preconizando que o contato com a cultura escrita deve se dar por meio das brincadeiras e interações, em conjunto com outras linguagens, silenciadas na PNA.
No que tange à Educação de Jovens e Adultos - EJA, as orientações presentes na PNA se contrapõem ao que vem sendo discutido nos Fóruns de EJA, que defendem uma abordagem metodológica fundamentada em princípios democráticos, participativos e dialógicos com vistas a uma alfabetização emancipadora e em articulação com a educação popular.
Na análise da PNA, a alfabetização de jovens, adultos e idosos é citada de forma superficial, e não assegura os paradigmas social, cultural e pedagógico da EJA, sem o diálogo com o pressuposto freiriano, que vem contribuindo para os avanços nas ações nesta área. Ao desconsiderar o pensamento de Paulo Freire e os paradigmas historicamente presentes nas políticas de EJA, há um evidente rompimento com os processos dialógicos e críticos que caracterizam a ação pedagógica nessa modalidade de ensino, fazendo com que o professor se limite a ser um mero transmissor da educação bancária, tão combatida pelo patrono da educação brasileira.
Por fim, salientamos que uma política de Alfabetização, seja na esfera nacional, estadual ou municipal, precisa ser resultado de um processo dialogado e construído com todos os profissionais da educação, principalmente, com os professores das diferentes etapas e modalidades de ensino, que estão em sala de aula atuando e se deparando diretamente com os problemas concretos da realidade e do contexto vivenciados pelos estudantes, pelas escolas e por suas comunidades. Qualquer processo na educação, que se denomine democrático, deve ser pautado e construído por intermédio do diálogo com aqueles envolvidos no processo, para não reduzir os professores à condição de meros executores de decisões verticais e unilaterais.
Minuta de lei da política municipal de alfabetização de Manaus: resistências em um contexto de pandemia
Faz escuro, mas eu canto porque a manhã vai chegar. (Thiago de Mello)
O trecho do poema Madrugada camponesa, de Thiago de Mello, poeta amazonense e um ícone da literatura nacional, ilustra o movimento de resistência denominado PMA em Debate, organizado por professores da Educação Infantil, anos iniciais do ensino Fundamental, pedagogos da SEMED/Manaus, Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado do Amazonas - SINTEAM, professores e pesquisadores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, organizados ou não em grupos de pesquisas e/ou fóruns que, apoiados pela Associação Brasileira de Alfabetização, reuniram-se, virtualmente, em caráter de urgência, para analisar a minuta da Política Municipal de Alfabetização lançada pela SEMED/Manaus, em um momento de isolamento social imposto pela pandemia de COVID-19.
Os professores foram pegos de surpresa na escuridão de um contexto tomado pelo medo, pela incerteza, pelo cansaço físico e mental das demandas do trabalho remoto, cobradas exaustivamente pela Secretaria Municipal de Educação de Manaus. No entanto, mesmo em condições desfavoráveis, tiveram forças para cantar, para esperançar no sentido freiriano, mobilizando em menos de 24 horas, um movimento de resistência, tecido por muitas mãos, acreditando no poder da sinergia, de que juntos somos mais fortes, para que pudessem participar e serem ouvidos.
Consideramos a atitude da SEMED/Manaus de disponibilizar para a “consulta pública” uma minuta sobre uma nova Política Municipal de Alfabetização, com implicações para a educação de Manaus, em meio a uma crise sanitária com índices assustadores de mortalidade no Estado do Amazonas, de extrema insensibilidade, posto que o momento sugeria a preocupação com a vida das pessoas, com o planejamento para o retorno às aulas em condições de segurança, com a saúde dos profissionais da educação que estavam em regime de teletrabalho para cumprir as medidas de isolamento social, precisando se adaptar às “novas” formas de exercer o seu ofício e sobrecarregados na tarefa de acompanhar e atender, remotamente, os estudantes, as famílias e as exigências institucionais do projeto Aula em Casa.
Salientamos que a Minuta foi apresentada aos profissionais da educação da Rede Municipal de Manaus, acompanhada de uma Pesquisa Institucional, realizada no período de 01 a 05 de junho de 2020, por meio de um questionário dos Formulários Google, composto por 8 perguntas, cujas respostas deveriam ser “sim”, “não”, “parcialmente” e “apenas sugestões”. Desse modo, o processo de sua construção não poderia ser aligeirado e limitado apenas a uma parcela do quadro docente, visto que somente os professores das turmas da Educação Infantil e 1° e 2° anos do Ensino Fundamental, pedagogos e diretores poderiam participar, por análise individual e por meio do questionário virtual como foi realizado pela SEMED.
Tal conduta rompe com a lógica de articulação entre os níveis e anos, pois os docentes circulam nos anos, não sendo fixos nas turmas, além do que as decisões para um seguimento têm implicações nos demais. Em outras palavras evidencia uma visão fragmentada, e não coletiva, como se apregoa os processos de gestão democrática.
Acreditamos que a decisão a respeito de uma política municipal de alfabetização exige o bom senso e a busca de posicionamento coletivo para deliberar sobre as questões que envolvem a vida e a formação das crianças, jovens, adultos e idosos em processo de alfabetização, pois a qualidade dessa formação implicará no sucesso de todos diante dos desafios da sociedade letrada no contexto histórico em que vivemos. Portanto, era necessário rever o processo de participação proposto, criando, no pós-pandemia, momentos e espaços para um amplo debate sobre a PMA, que permitissem à comunidade escolar analisar, discutir e propor uma política que atendesse às suas demandas, não dispensando consultas públicas para promover o diálogo com diferentes atores.
A definição de uma política com implicações tão importantes ficou restrita a um grupo de trabalho instituído pela Portaria nº 424/2020, com “a finalidade de definir a política municipal de alfabetização”, composto por um professor da Universidade de Cruzeiro do Sul do Estado de São Paulo e de mais 19 servidores da SEMED/Manaus, incluindo a secretária e subsecretária de educação. Nesse sentido é preciso que levantemos as seguintes questões: Onde estão as vozes dos professores? Onde aparece uma representatividade do corpo docente da SEMED no referido GT? Onde ficou o diálogo com as instituições públicas formadoras do Amazonas (IES), que em parceria com a SEMED já implementaram processos de formação continuada na área da alfabetização, à exemplo do PNAIC?
Observa-se que “nova” proposta ignora o percurso histórico da própria SEMED, construído nos últimos anos, bem como os fundamentos teórico-metodológicos amplamente discutidos e estudados nos seus programas de formação, inclusive expresso em seus documentos curriculares.
O conceito de alfabetização apresentado na Minuta é o mesmo conceito rudimentar apresentado na PNA do MEC, sobretudo, em relação à “instrução fônica sistematizada”, pois caracteriza a opção pelo método fônico de forma exclusiva e assustadoramente reforçado(grifo nosso), no art.6, que estabelece as responsabilidades sobre a implementação da política municipal de alfabetização, inciso II, destacando especialmente as seguintes alíneas:
c) Desenvolver e/ou adquirir ou distribuir programas, materiais pedagógicos, orientação para o planejamento das aulas e recursos didáticos-pedagógicos de alfabetização, de literacia e de numeracia, fundamentados em evidências cientificas, a serem utilizados em toda rede; m) Produzir guias de orientação e promover a compreensão de alfabetização baseada em evidências de acordo com a Ciência Cognitiva da Leitura(grifo nosso); n) Desenvolver critérios e orientações para a sondagem das quatro fases do desenvolvimento da leitura e da escrita: fase pré-alfabética, fase alfabética parcial, fase alfabética completa e fase alfabética consolidada (grifo nosso).
É importante destacar que a SEMED/Manaus historicamente tem usado nas suas sondagens, os estágios de desenvolvimento da escrita, a partir do paradigma construtivista, fundamentado na teoria da psicogênese da escrita de Emília Ferreiro, paradigma esse presente em políticas passadas de formação de professores e que lamentavelmente são cobrados exaustivamente por meio de mapas pelos assessores pedagógicos, como instrumentos de controle.
A escolha pelo método fônico também se expressa na reportagem divulgada na página da SEMED, no dia 11/02/20 com o título Professor referência em linguística e alfabetização ministra oficina voltada para fortalecer ações do Ensino Fundamental Na reportagem em questão, é divulgada uma ação de formação do grupo de trabalho da Política Municipal de Alfabetização, realizada em tempo integral, nos dias 10 e 11 de fevereiro de 2020, que contou com a participação de gerentes pedagógicos e coordenadores das divisões distritais e setores pedagógicos da SEMED/Manaus, sem a participação dos professores, reduzidos a meros executores de uma política construída nos bastidores do poder.
A matéria apresenta uma fala da subsecretária da SEMED/Manaus, Euzenir Araújo, destacando que a importância do evento se deu pelo fato de contarem com a presença de um especialista na área da linguística e da alfabetização, informando que o palestrante da oficina, Renan Sargiani é ex-coordenador de neurociência cognitiva de linguística do MEC. Prossegue dizendo, que o professoré um especialista conceituado no Brasil, com experiência sobre a política nacional de alfabetização, vindo por meio do Banco Interamericano de Desenvolvimento para trabalhar na construção da política municipal de alfabetização, “para que a SEMED possa construir e consolidar uma Política Municipal de Alfabetização, conforme apoio e pacto feito junto com o prefeito Arthur Virgílio Neto.”
No caderno da PNA, o nome de Renan Sargiani consta como membro da equipe da Secretaria de Alfabetização do MEC e da revisão técnica de conteúdo. Mortatti (2019), e esclarece que o pesquisador citado foi um dos especialistas nomeados pelo ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, para compor o painel de especialistas da Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Conabe), instituída pela portaria nº 1.460, de 15/08/2019, assinada pelo então Ministro da Educação. A conferência teve como tema “A Política Nacional de Alfabetização e o estado da arte das pesquisas sobre alfabetização, literacia e numeracia”, tendo como objetivo a criação do Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Renabe).
Desse modo, movidos por um compromisso pedagógico e político, os professores construíram uma ação coletiva para reagir criticamente à tentativa de implantação de uma política municipal de alfabetização, que desconsidera o conhecimento docente e a trajetória da alfabetização no Brasil construída nos últimos quarenta anos.
Ressaltamos que constatamos a “boniteza” na construção desse movimento, banhado pelos ensinamentos do nosso patrono da educação Paulo Freire “com coragem de denunciar e anunciar”, um movimento que evidenciou o poder de vozes para despertar e mobilizar outras vozes, poder esse, tão bem traduzido no poema Tecendo uma manhã de João Cabral de Mello Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã. Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outros”. Foi justamente a partir de um grito de indignação e de repúdio que os fios de sol de esperança foram sendo tecidos.
Como parte do movimento de resistência ao silenciamento das vozes dos professores foram usados os recursos das redes sociais, que logo contou com a participação de diferentes atores, além dos professores da SEMED/Manaus, com docentes da UFAM, Sindicato, e interlocutores da ABAlf.
Reuniões por videochamada e debates sobre o tema foram realizados, e os conteúdos dos vídeos e áudios foram sendo compartilhados e o grupo foi crescendo. Como desdobramento das ações do grupo PMA em Debate, foi escrita, coletivamente, uma Carta Aberta para a SEMED. Na carta, foi pontuado o retrocesso que essa minuta representava para os avanços conquistados no campo da alfabetização, solicitando em um contexto pós-pandemia um debate mais amplo sobre a nova política. A referida carta compôs o texto de uma petição pública, denominada Alfabetização em debate: PMA sem retrocessos, criada pelo movimento para dar visibilidade à questão e problematizar o assunto junto à sociedade.
Não desconsideramos o necessário diálogo com outros atores sociais de diferentes partes do Brasil e do mundo, mas a construção desse processo pela SEMED/Manaus nos impele a fazer, no mínimo, uma analogia com a letra da canção Porto de Lenha2, para dizer que em nosso porto (Manaus), existem pesquisas consistentes e regionalmente situadas, que existem docentes pensantes e comprometidos com a educação pública e de qualidade socialmente referenciada em Manaus, e que merecem ser considerados.
É mister destacar que os problemas da alfabetização não se resolvem mediante um decreto e que o fracasso ainda recorrente na alfabetização está intimamente relacionado com as desigualdades sociais existentes em nosso país. Não podemos desvincular a implantação de políticas de alfabetização de uma análise e de esforços que busquem superar as carências de condições adequadas de infraestrutura nas nossas escolas públicas e salariais, bem como de processos de formação que considerem também os saberes produzidos nas práticas dos professores colocando-os como protagonistas do seu fazer pedagógico. Assim, ouvi-los é uma questão tão fundamental como é a elaboração de uma política pública que os afetará diretamente em seu fazer.
Divulgamos que recebemos um parecer técnico em resposta à Carta Aberta encaminhada para a SEMED com muitas contradições, citando dentre elas que: Por se tratar de uma minuta de um projeto de lei, seu texto apresenta ações amplas e abrangentes, as quais serão minuciosamente detalhadas em um documento posterior à aprovação e publicação da lei e que a secretaria municipal de educação que prima pelo processo democrático, não oficializaria uma política tão importante e necessária, sem ouvir e contar com a contribuição de todos. Além desses pontos, destacamos ainda, almejamos que de fato este documento preliminar, ao se concretizar como uma política de estado para alfabetização, possa refletir os anseios da sociedade e represente um avanço para a educação, que O debate da minuta em questão, nos convida também a refletir para além das concepções de alfabetização, requer um exercício de construção- desconstrução.
São inúmeras as armadilhas discursivas presentes no parecer técnico, demandando, portanto, um fortalecimento do movimento para que haja audiências públicas, com participação dos professores da Rede, representantes das universidades, associações científicas e outros representantes da sociedade civil brasileira.
Acreditamos que precisamos ser conduzidos pela emoção, pelo reconhecimento da nossa unicidade, pelo amor que nos humaniza e que nos alimenta de sonhos e de esperança para resistirmos a sucessivos golpes que ferem o estado democrático de direito, provocando a precarização do trabalho docente, determinado por uma divisão crescente do trabalho, derivado de um planejamento e controle externo cada vez maior.
Por fim, em conjunto com a representatividade de professores, foi constituída uma comissão do movimento PMA em Debate para estar presente nos novos encaminhamentos, visando um maior fortalecimento do movimento de resistência à minuta em questão, dentre eles: oficializar a comissão de professores com o apoio do SINTEAM para reivindicar a participação no GT da construção da Política Municipal de Alfabetização criado pela SEMED/Manaus; Promover lives para estudo e análise da minuta da PMA, visando o envolvimento de mais atores no processo de discussão; solicitar junto ao setor de estatística da SEMED com o apoio do sindicato, os resultados da pesquisa (questionário) sobre a minuta da PMA e o quantitativo de professores dos seguimentos da Educação Infantil e dos Anos Iniciais; solicitar e formalizar apoio institucional com as duas universidades públicas responsáveis pela formação inicial: FACED /UFAM e ENS/UEA; buscar apoio no Conselho Municipal de Educação e na Comissão de Educação da Câmara Municipal de Manaus, para a socialização das necessidades concretas dos professores e audiências públicas para a discussão da minuta.
Diante do exposto, também deliberamos que os professores da comissão do PMA em Debate deverão buscar envolver seus pares, destacando que enquanto representantes de um grupo maior estarão reivindicando essas condições, bem como o que tem sido o grande empecilho nos oito anos de gestão dessa secretaria: a garantia do HTP dos professores e menos burocracia, resultada do excessivo controle da Gestão Integrada da Educação (GIDE), que descaracteriza o protagonismo e a autonomia da gestão pedagógica das equipes escolares.
As deliberações citadas coadunam com o pensamento de Cavalcante e Carneiro (2016, p. 61) ao discutirem sobre a práxis como dimensão norteadora do trabalho de formação docente e sobre a existência de uma tensão entre macro e micro. Para as autoras é preciso que lutemos por condições para um exercício de uma docência com decência, com direito de vivermos com dignidade, com tempo para ampliarmos as bases teóricas e epistemológicas, com tempo para o lazer, tendo a possibilidade de acesso ao patrimônio cultural necessário a uma formação unilateral, alertando que:
Com cargas de trabalho massacrantes, com condições precárias de vida, o absolutamente necessário compromisso do educador se esvai ou vira retórica(...) urge, portanto, forjar uma nova consciência, propulsora de ações que revertam esse processo de globalização que existe em benefício de poucos, em favor de muitos, em favor da promoção humana, do processo de humanização. É necessário colocar a justiça como centro-fundamento de nossos esforços educativos. (...) compreender ter sempre em mãos as chaves da porta do afeto, da acolhida, do encontro com o outro. Este novo educador aposta na alegria, no sonho, na rigorosidade ética norteadora de novas relações no cotidiano, e não no discurso vazio de uma ética de conveniência (...) este novo educador se compromete. Enquanto se alia à luta pela construção de uma nova ordem social, mais justa, analisa os graves problemas macroeconômicos e suas repercussões na vida diária, assume o compromisso ético-político de, no cotidiano fazer valer sua opção pela humanização (CARNEIRO, 2016, p. 61)
É com essa sensibilidade que estamos tecendo esse novo tempo de cooperação coletiva entre os nossos pares, professores da Educação Básica, muitos deles recém-mergulhados em sua profissionalização, que precisam do apoio das universidades para continuar em seu processo de formação, e fazer da experiência política, um ato formativo. Um movimento que se nega a subtrair a autonomia docente, que vislumbra dar eco para tantas vozes historicamente silenciadas, limitando a ação dos professoresda Rede Municipal de Manaus a de meros executores de uma política construída na solidão de um poder que se serve.
O sonho nos move na direção das vozes dos professores do movimento PMA em Debate, que traduz o desejo de sua emancipação e valorização: “Nós professores, não aceitaremos uma política que não considera a nossa voz, para considerar a voz que, se quer, conhece a nossa realidade. A história mostra que as políticas geradas dessa forma, já nascem fadadas ao fracasso”.
Esperamos que esse relato que traduz a construção de um movimento na luta pela valorização das vozes dos professores e de resistência diante de uma política de alfabetização, antidemocrática e pseudocientífica, possa ser o primeiro passo para a discussão e elaboração de políticas públicas na educação, ancoradas em redes de trabalho colaborativo, no diálogo e na partilha dos saberes, despertando o sentimento de pertencimento dentro de uma nova política com entendimento de que o sonho é possível desde que avancemos coletivamente.
Considerações finais
Todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, Eles passarão...Eu passarinho!
Neste texto objetivamos apresentar os resultados parciais das ações do movimento de resistência de professores denominado PMA em Debate, à proposta de minuta para a construção da Política Municipal de Alfabetização da SEMED/Manaus. Este movimento está sendo construído pelas vozes dos professores e pedagogos da Rede Municipal de Manaus, com a participação do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado do Amazonas, pesquisadores e professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas.
O dossiê produzido pelos principais pesquisadores brasileiros, publicado pela Revista Brasileira de Alfabetização e o diálogo com docentes e pesquisadores da UFAM nos ajudaram a descortinar a real intenção dessa nova política de alfabetização, cuja definição mais precisa é de um instrumento ideológico intimamente atrelado a um discurso conservador, com o objetivo de atender exclusivamente aos interesses do mercado, em especial o editorial. Uma política de negação dos avanços acadêmicos e das lutas por participação na gestão dos processos educacionais, travada pelos trabalhadores da educação, de negação das experiências docentes e das condições históricas de desigualdades sociais e educacionais das nossas crianças, jovens, adultos e idosos. Uma política que se diz salvacionista, mas que esconde sua verdadeira finalidade de privatização do ensino público, silenciando as vozes dosprofessores por se afastar de uma política emancipatória e humana que tanto almejamos.
As proposituras presentes na minuta de lei da PMA, alinhadas a PNA do MEC, aparecem no contexto sombrio de uma pandemia, reafirmando o perfil de gestão da atual Secretaria Municipal de Educação de Manaus, configurado dentro de uma lógica mercantilista, de privatização e de precarização do trabalho docente. Por fim, contraria o direito constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, ao eleger um único paradigma fundamentado na ciência cognitiva da leitura, desconsiderando, subalternizando e até negando os demais paradigmas, quando se dispõe à sua desconstrução, como inferido no comentário emitido no parecer técnico da SEMED/Manaus, em resposta à Carta Aberta do movimento PMA em Debate.
A educação que sonhamos exige de todos nós concretude, ação coletiva, colaboração entre Universidades e professores da educação básica, para que possamos resistir à lógica privatista de massacre do capital e como bem diz a hashtag do movimento PMA em debate: Nossa voz deve importar!