SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46Avaliação da formação inicial em Educação Física: percepções de egressos de uma universidade pública do Estado de Santa CatarinaNotas sobre os saberes disciplinares do Curso Normal da Escola Superior de Educação Física do Rio Grande do Sul (1940-1956) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 13-Nov-2023

https://doi.org/10.5902/1984644441233 

Artigo Demanda Contínua

Teoria dos letramentos críticos aplicada no ensino de língua inglesa para formação integral dos discentes

Critical Literacies theory applied in English language teaching for the integral formation of the students

Veronica Damasceno De Souza Feitoza1  , Professora
http://orcid.org/0000-0002-4133-2250

Simone Batista Da Silva2  , Professora Doutora
http://orcid.org/0000-0002-5781-6006

1Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Castanhal, Pará, Brasil. veronica.ipb@gmail.com

2Professora Doutora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil. simonebatista@uol.com.br


RESUMO

O Decreto 5.154/04, que regulamenta a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, é considerado um avanço em relação aos anteriores por permitir que a Educação Profissional Técnica seja ofertada na modalidade Integrada ao Ensino Médio sob a articulação dos eixos trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Assim, possibilita que as práticas pedagógicas para essa modalidade de ensino superem os conhecimentos puramente técnicos e sejam encaminhadas com vistas à formação ampla dos sujeitos. Nesse sentido, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, na sessão Língua Estrangeira - OCEM-LE, (BRASIL, 2006), sugerem que as práticas de ensino de língua estrangeira sejam embasadas na teoria dos Letramentos Críticos buscando formar indivíduos criativos, críticos e de mente aberta para o exercício de cidadania plural. Assim, esta pesquisa investigou de que modos, ao serem balizadas na teoria dos Letramentos Críticos, as práticas docentes em aulas de Língua Inglesa do Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio podem contribuir para a formação integral dos alunos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) - Campus Castanhal. Os dados coletados provêm de observação participante e gravação de áudio das aulas de Língua Inglesa durante a execução de uma sequência didática elaborada para a pesquisa com base nesses princípios teóricos e utilizando textos multimodais. A investigação demonstrou que práticas pedagógicas direcionadas por princípios dos Letramentos Críticos podem contribuir com uma formação para além da instrumentação linguística e a preparação para o mercado de trabalho, pois estimulam os alunos a lerem a si mesmos e ao mundo criticamente.

Palavras-chave: Formação integral; Letramentos Críticos; Ensino de Língua Inglesa

ABSTRACT

Decree 5.154 / 04, which regulates Technical Professional Education at secondary level, is considered an improvement over previous ones because it allows Technical Professional Education to be offered in the Integrated modality to High School under the articulation of the axes work, science, technology and culture. Thus, it allows the pedagogical practices for this modality of education to surpass the purely technical knowledge and be directed with a view to the broad formation of the subjects. In this sense, the Curricular Guidelines for Secondary Education in the Foreign Language session - OCEM-LE, (BRASIL, 2006), suggest that foreign language teaching practices should be based on the theory of Critical Literacies, seeking to form creative, critical and open mind individuals for the exercise of plural citizenship. Thereby, this research investigated in what ways, when based on the theory of Critical Literacies, the teaching practices in English language classes of the Technical Course in Farming Integrated to High School can contribute to the integral formation of the students of the Federal Institute of Education, Science and Technology of Pará (IFPA) - Castanhal Campus. The collected data come from participant observation and audio recording of English language classes during the execution of a didactic sequence elaborated for the research based on these theoretical principles and using multimodal texts. Theoretical studies and research have shown that pedagogical practices guided by Critical Literacies principles can contribute to an education beyond linguistic instrumentation and job market preparation by encouraging students to read themselves and the world critically.

Keywords: Integral formation; Critical Literacies; English Language Teaching

Introdução

Do ponto de vista da educação integral, o ensino das disciplinas do Ensino Médio ganham uma expressão ainda mais desafiadora nos cursos na modalidade Integrada. Tal desafio nasce da necessidade de trabalhar, com o aluno dessa modalidade de ensino, os conteúdos inerentes à sua formação técnica, sem abrir mão do compromisso com o seu desenvolvimento social, cultural e político.

No contexto geral de educação formal no Brasil, o ensino-aprendizagem de Língua Inglesa, sobretudo em escolas públicas, tem uma reputação duvidosa no que se refere à qualidade, e, consequentemente, à possibilidade de se aprender essa língua. É comum ouvir pessoas afirmarem sua crença de que o ensino de Língua Inglesa - LI - em escola pública não funciona, ou até mesmo fazerem tal afirmação baseados em sua experiência como alunos, por meio de relatos de um ensino frequentemente baseado em estruturas gramaticais descontextualizadas e repetidas em todas as séries. Por isso, muitas vezes essa tarefa é atribuída aos cursos de idiomas.

As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, na sessão Língua Estrangeira - OCEM-LE (BRASIL, 2006),discutem questões teóricas, pedagógicas e educacionais para os componentes curriculares com base na consideração de que a qualidade da educação que se pratica na escola “é condição essencial para inclusão e democratização de oportunidades” (BRASIL, 2006, p. 5). Assim, no que tange ao ensino de Língua Estrangeira, as OCEM-LE trazem discussões acerca dos objetivos e da relevância da sua aprendizagem na educação formal, defendendo uma educação em que os componentes curriculares se tornem meios para a produção de conhecimentos que atendam às necessidades do ser humano no contexto atual marcado por mudanças tecnológicas, econômicas, sociais e culturais que tornam instáveis e em ebulição constante os vários contextos da vida humana, influenciando assim as relações entre os sujeitos, hábitos e estilos de vida.

Para tanto,esse documento sugere que as práticas pedagógicas no ensino de Língua Estrangeira sejam realizadas de modo contextualizado e com base em concepções teóricas como a dos Novos Letramentos, Letramentos Críticos e Multiletramentos, já que essas teorias têm no seu bojo o comprometimento com a formação crítica, criativa e autônoma dos sujeitos, e por contribuírem para o desenvolvimento de senso de cidadania e de heterogeneidade - características necessárias para a vida no contexto atual, excedendo assim a instrumentação linguística.

Inspirados pelas sugestões das OCEM-LE, pesquisadores brasileiros dos Letramentos, tais como Silva (2012a, 2012b, 2014), Tagata (2015), Jordão (2007, 2013, 2015), Mattos (2014), Ifa (2014), Zacchi (2014), entre outros, advogam, com base em pesquisas realizadas em várias regiões do país, que tais teorias são uma alternativa para o ensino de Língua Inglesa na educação formal. Para Mattos (2014, p. 101), por exemplo, através da introdução das teorias dos Novos Letramentos no Brasil, foram abertas novas possibilidades “para um tipo de educação linguística que não se preocupa apenas com o ensino do sistema linguístico e as habilidades necessárias para compreendê-lo e produzi-lo”, enfatizando, com isso, o caráter educacional do ensino da LI.

Partindo do princípio de língua como prática social, o Letramento Crítico, de acordo com Jordão (2013), concebe a língua como discurso, um espaço ideológico de produção e construção de sentido sempre atravessado por ideologias e sofrendo contingências de sujeito, espaço e tempo específicos. Isso coloca em suspensão a suposta rigidez dos significados e das verdades, já que para essa autora “não é possível ver as coisas ‘como elas são’: sempre as vemos como achamos que elas são” (JORDÃO, 2015, p. 198, grifos no original). Nas práticas docentes, esses princípios possibilitam trabalhos que incentivam os alunos a compreenderem quesuas leituras, modos de ver e de estar no mundo são influenciados por valores socioculturais, construídos historicamente; mais ainda, que tais visões podem ser transformadas ou mantidas, mas possibilitando um respeito ético em relação às diferenças e uma compreensão mais ampla do lugar que o sujeito ocupa na sociedade. Isso tem relação com o desenvolvimento de senso de cidadania mencionado nas OCEM-LE como sendo um dos objetivos educacionais do ensino de LI.

Em relação à crítica, Silva (2012a) a descreveu como um estranhamento de verdades cristalizadas na sociedade e defende que nela esteja a ênfase do ensino de LI. Então, segundo Tagata (2015, p. 166), atividades de aprendizagem que busquem desenvolvê-la, precisam levar o aluno a:

refletir sobre suas próprias crenças, valores, convicções e maneiras de ler o mundo, e perceber que esses valores, opiniões e crenças - longe de serem “naturais” - se originam na comunidade onde vivemos, nas famílias e nos grupos sociais por onde circulamos.

Levando em consideração a importância e a necessidade da efetivação da educação integrada, permitida do ponto de vista legal pelo Decreto no 5.151/04, para o alcance dos objetivos de formação integral; e tendo como motivação os resultados de pesquisas envolvendo Letramentos Críticos para o ensino de Língua Inglesa em contexto brasileiro de educação formal, surgiram as seguintes perguntas de pesquisa:

As teorias dos Letramentos Críticos podem constituir uma abordagem para que o ensino de LI contribua para a formação integral dos estudantes de Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio?

Como empregar princípios dos Letramentos Críticos nas atividades de ensino-aprendizagem de LI?

Assim, esta pesquisa objetivou investigar de que modos, ao serem balizadas na teoria dos Letramentos Críticos, as práticas docentes em aulas de LI podem contribuir para a formação integral dos alunos do Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará - IFPA - Campus Castanhal, como preconizam as legislações pertinentes.

Desenvolvimento da pesquisa

Esta pesquisa foi desenvolvida com alunos do curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio, especificamente nas aulas de Língua Inglesa, no IFPA - Campus Castanhal. A participação dos alunos foi voluntária e devidamente autorizada por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esses documentos foram assinados pelos alunos maiores de 18 anos, ou por seus responsáveis legais, nos casos de alunos menores de 18 anos, com garantia da devida proteção da identidade dos participantes. Assim, cabe explicar que os nomes citados neste texto são fictícios, atribuídos com o objetivo de proteger as suas identidades.

Esta pesquisa foi submetida à Comissão de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFRRJ, atendendo ao disposto na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta os procedimentos de estudo envolvendo seres humanos, sob o número de processo 23083.003416/2016-88, ficando estabelecido que a pesquisa está em conformidade com a presente Resolução, no âmbito dos princípios éticos e do bem-estar humano.

Método de investigação

Para alcançar os objetivos, esta pesquisa se inspirou no método dialético, pois este concebe o mundo como um conjunto de processos ligados entre si, condicionados reciprocamente. Segundo Marconi e Lakatos (2003), “para a dialética, as coisas não são analisadas na qualidade de objetos fixos, mas em movimento: nenhuma coisa está ‘acabada’, encontrando-se sempre em vias de se transformar” (p. 101, ênfase no original). Essa visão processual que a dialética apresenta permite problematizar a ação didática, estabelecendo um diálogo entre a prática e as teorias que a informam durante o processo de investigação. Dessa forma, não se buscou elaborar uma síntese dos resultados obtidos, mas estabelecer um diálogo entre teoria e prática visando a investigar o potencial das teorias estudadas, com vistas ao alcance dos objetivos de pesquisa estabelecidos.

Como descreveram Marconi e Lakatos (2003), o método dialético apresenta quatro leis fundamentais, as quais podem-se nominar, também, como leis fundamentais do ambiente de sala de aula, espaço específico desta pesquisa, quais sejam: 1) tudo está inter-relacionado; 2) tudo se transforma; 3) as mudanças são qualitativas; 4) os contrários se interpenetram. Desse modo, a investigação foi realizada por meio de atividades de aprendizagem de LI com base nas teorias dos Letramentos Críticos, com vistas à análise de seu potencial no que se refere à formação integral pretendida para o contexto pesquisado.

Por se ocupar do universo dos significados, das interpretações, das relações e das representações que, segundo Minayo (2009, p. 21), “dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos”, esta pesquisa constituiu-se de uma abordagem qualitativa.

Além desse aspecto, Esteban (2010, p. 127) descreve que:

a pesquisa qualitativa é uma atividade sistemática orientada à compreensão em profundidade de fenômenos educativos e sociais, à transformação de práticas e cenários sócio educativos, à tomada de decisões e também ao descobrimento e desenvolvimento de um corpo organizado de conhecimentos.

Assim, esta investigação adequou-se à descrição por buscar o aperfeiçoamento e a transformação da prática docente de bases tradicionais e por buscar contribuir para a visão da educação como uma prática de valorização dos sujeitos envolvidos e do contexto em que estão inseridos.

Em virtude de sua finalidade de orientar a prática, em seus procedimentos técnicos, trata-se de uma pesquisa-ação participativa. De acordo com Chizzotti (2006, p. 91), esse tipo de pesquisa é “assumida como uma prática social, na qual o conhecimento é produzido pelos sujeitos e em favor deles”. Outros autores, tais como Kumaravadivelu (2006), incentivam que professores realizem pesquisas em sala de aula, assumindo a dupla identidade de professor e pesquisador teorizando a partir de suas práticas e praticando o que teorizam em busca de construir um conhecimento pedagógico sensível ao contexto.

Os sujeitos da pesquisa são alunos do referido Instituto participantes de duas turmas (denominadas X e Y) de 3ª série do curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio, perfazendo um total de 73 alunos com alguma participação ativa nas dicussões - dos quais 25 aparecem nesse recorte - com idades entre 16 e 20 anos de ambos os sexos. As atividades de aprendizagem foram aplicadas em horário regular das aulas de LI, em um total de 10 tempos de aula, com 50 minutos cada, durante o segundo semestre letivo de 2016.

Para execução da pesquisa, foi elaborada uma sequência didática constituída de atividades de aprendizagem de LI a partir de textos multimodais com base em princípios dos Letramentos Críticos, com o propósito de, conforme mencionam as OCEM-LE (BRASIL, 2006), contribuir não apenas para o desenvolvimento de habilidades linguísticas como também para o desenvolvimento da consciência crítica e construção de senso de cidadania nos sujeitos envolvidos.

Também é sugestão das OCEM-LE e de estudiosos brasileiros dos Letramentos Críticos como, por exemplo, Tagata (2015), que, com vistas a serem mais significativas para os alunos, as atividades de aprendizagem tenham seu ponto de partida em temas e não em tópicos linguísticos.

Desta forma, o tema ‘padrões de beleza’ foi escolhido por ser bem presente no universo dos estudantes, e por estar diretamente relacionado à sua existência. A escolha do tema deveu-se também porque, no ano letivo anterior, durante uma aula de LI que tratava sobre hábitos alimentares, as garotas haviam se autoavaliado como gordas, e os garotos como muito magros; no entanto, esses alunos aparentavam ter uma relação peso/altura dentro dos padrões normais de aparência saudável. Esse fato motivou a pesquisa por reconhecer que a autoaceitação e autoestima são importantes para o equilíbrio do ser humano e para o desenvolvimento de suas potencialidades, especialmente na adolescência, fase na qual se encontra a maioria dos alunos dessa série.

A opção de trabalhar esse tema por meio de textos multimodais deveu-se ao fato de que os alunos lidam com vários gêneros discursivos que envolvem diversas modalidades como imagens, sons, vídeos e GIFs em suas práticas diárias tornando necessário desenvolver habilidade de leitura desses textos e de questões presentes na vida dos alunos. Esse tipo de contextualização é referida por pesquisadores da área dos letramentos como aprendizagem situada (TAGATA, 2015).

A sequência didática usada para a produção de dados desta pesquisa foi composta por cinco textos autênticos nas modalidades verbal, visual e multimodal, assim descritos:

Texto 1: texto visual extraído de uma matéria publicada pelo site Daily Mail Online (2015), na qual a imagem original de uma mulher foi enviada a 18 designers gráficos do sexo feminino de países diferentes, para que a modificassem de acordo com o ideal de forma corporal em seu país, perfazendo um total de 19 imagens - sendo 1 original e 18 alteradas e reenviadas pelas mesmas profissionais. Nas imagens, tanto na foto original quanto nas fotos adaptadas pelas designers gráficos, aparece uma tarja azul que identifica a foto como a original ou com o nome do país representado (Figura 1).

Fonte: Daily Mail Online (2015)

Figura 1 

Texto 2: texto verbal retirado do site Daily Mail Online (2015), que descrevia como a pesquisa foi realizada e alguns detalhes das adaptações feitas pelos profissionais participantes da pesquisa (Figura 2).

Fonte: Daily Mail Online (2015)

Figura 2 

Texto 3: texto multimodal (vídeo) projetado em sala de aula, retirado do site Daily Mail Online (2015). O vídeo apresentava o processo de maquiagem e fotografia de uma modelo em estúdio, bem como a alteração da fotografia com recursos de computação (Figura 3A).

Texto 4: texto multimodal (vídeo) projetado em sala de aula. Este vídeo, produzido pelo Buzzfeed Video, mostrava as reações e reflexões de quatro mulheres comuns - modelos não profissionais - que foram maquiadas e fotografadas por profissionais, e tiveram suas fotos retocadas para transformá-las em modelos capa de revista (Figura 3B).

Texto 5: texto multimodal (vídeo) projetado em sala de aula. Tratava-se de um vídeo produzido pela empresa de cosméticos Dove (2007), que mostrava crianças expostas aos apelos da indústria de beleza feitos por meio da mídia (Figura 3C).

Fonte:Daily Mail Online (2015), Buzzfeed Video (2014) e Dove (2007), respectivamente

Figuras 3A, 3B e 3C 

O desenvolvimento da sequência didática deu-se durante a aplicação dos 10 tempos de aulas programados, no segundo semestre letivo de 2016 e constou do seguinte roteiro:

1) O trabalho foi iniciado com a projeção do texto 1 (visual), cuja informação da tarja azul foi ocultada (Figura 4). Assim, esperou-se obter a opinião dos alunos a respeito das fotos sem a influência do contexto de divulgação da matéria.

As perguntas foram feitas em LI com o objetivo de construir conhecimento linguístico; portanto, sempre que necessário, os alunos foram auxiliados com vocabulário e pronúncia. Para respondê-las, no entanto, os alunos tiveram liberdade para fazê-lo em Língua Portuguesa ou Inglesa, conforme se sentissem mais à vontade; como o objetivo principal era de que os alunos expusessem suas leituras de forma livre e equânime, estabelecer a obrigatoriedade da comunicação em LI poderia representar uma forma de exclusão para aqueles alunos com menos proficiência nessa língua.

Fonte: Daily Mail Online (2015)

Figura 4 

2) Em seguida, o texto 2 (verbal) foi trabalhado com os alunos acompanhado de perguntas em Língua Portuguesa, que deveriam ser respondidas também em Língua Portuguesa, para verificação da compreensão instrumental do texto.

3) Após esses procedimentos, voltou-se ao texto 1; projetando-os dessa vez, com a tarja azul à mostra identificando o nome dos países (Figura 1) e, em paralelo, a imagem original para que fossem estabelecidas comparações. Nesse momento, as perguntas foram realizadas em LI repetindo o procedimento de dar liberdade aos alunos para respondê-las usando a língua com a qual se sentissem mais à vontade.

4) Ao final, os textos 3 a 5 (multimodais) (Figura 3A,B,C) foram exibidos, e seguidos de perguntas em Língua Inglesa, repetindo-se o procedimento adotado nas sessões de perguntas anteriores.

Além das perguntas planejadas, no decorrer das discussões foi necessário introduzir outras com vistas ao aprofundamento da discussão e ao alcance dos objetivos da atividade. Conforme propõe Kumaravadivelu (2006), o professor precisa ser capaz de reconhecer no contexto da sala de aula as oportunidades para praticar as teorias de que tem conhecimento e teorizar a partir de sua prática. Assim, buscou-se perceber as necessidades surgidas no processo, fundamentando tais perguntas nos princípios teóricos balizadores deste trabalho, condizente também com a proposta do método dialético adotado nesta pesquisa.

Embora este texto apresente maior enfoque nos momentos de discussão, nominados de reflexão - por estarem diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa; foram também propostas atividades para exploração de elementos linguísticos: 1) leitura instrumental, estudo de vocabulário e pronúncia; 2) estudo de tópicos gramaticais como verbo have (simple present), o uso de adjetivos pátrios e demais adjetivos usados em descrições pessoais; 3) produção escrita e oral (reading aloud); 4) trabalho de pesquisa sobre ideais de beleza ao longo da história, apresentado pelos alunos em forma de seminário. É importante observar que o estudo das questões estruturais da língua foi desenvolvido em decorrência das necessidades contextuais geradas a partir do tema e das atividades propostas, conforme sugerem as OCEM (BRASIL, 2006).

A produção dos dados foi realizada por meio de observação sistemática participante das aulas ministradas e por registros em áudio. A análise desses dados teve cunho interpretativo, por representar compreensão de uma realidade situada, cujo foco de pesquisa reside no processo e não em resultados. Assim, as interpretações visaram analisar o desenvolvimento da crítica nos alunos em relação às atividades propostas, ao mesmo tempo em que foram informadas pelas teorias discutidas neste trabalho a fim de não perder o rigor científico.

Não houve a pretensão de transformar as atividades em metodologia estática, dado o entendimento de que elas são instrumentos didáticos para a aplicação de princípios teóricos em uma realidade situada. Dessa forma, os resultados obtidos não podem ser generalizados, mas podem referenciar práticas que se proponham a aplicar tais teorias.

Resultados e discussão

As OCEM-LE reiteraram que, assim como outras tecnologias, os usos da linguagem variam de acordo com as especificidades das práticas sociais, mesmo que estas práticas sejam localizadas em sociedades que usam a mesma língua - quando pode surgir a falsa sensação de homogeneidade -, já que tais práticas são influenciadas por fatores socioculturais tais como: idade, sexo, região de origem, classe social, além de questões contextuais e culturais dos grupos sociais pelos quais uma determinada pessoa transita. Esses fatores são formadores da identidade dos sujeitos, não numa perspectiva única e pura, mas na perspectiva de identidade híbrida descrita por Cope e Kalantzis (2005, p. 202) como sendo composta das “muitas sobreposições de suas identidades e as muitas dimensões do seu ser” referindo-se ao fato de que uma pessoa pode ter sua identidade atravessada por vários desses fatores socioculturais ao mesmo tempo. Dessa forma, a leitura e a escrita não podem ser desvinculadas de seu contexto de uso e de seus sujeitos, dadas suas implicações tanto no aspecto pessoal quanto social.

Assim sendo, tanto a linguagem, quanto a cultura, se manifestam como variantes locais, sócio-historicamente determinadas em contextos específicos e não como totalidades homogêneas. A respeito disso, Jordão (2007, p. 90) esclareceu que “o leitor se apoia em sua cultura para validar seus procedimentos interpretativos e para estabelecer diferentes maneiras de construir significados que sejam socialmente aceitos”. Isso implica dizer que a percepção do contexto e dos significados por parte do leitor é condicionada pelo seu próprio contexto, e, mais ainda, que suas identidades são atravessadas por esses contextos.

Na perspectiva dos Letramentos Críticos, ser crítico não significa engajar-se em assuntos polêmicos (ZACCHI, 2012; JORDÃO, 2013) ou, ainda, ressaltar aspectos negativos das realidades interpretadas para impor sua leitura como a única possível, mas compreender que as leituras são condicionadas social e historicamente. Barreto (2009, p. 22) esclareceu que, “em meio aos sentidos historicamente possíveis, um tende a ser mais ‘lido’ que outros: é formalizado e legitimado, enquanto os demais sequer chegam a ser cogitados”; é, pois, por esta razão, que Silva (2014) ressaltou que os textos nunca são neutros ou inocentes, mas imbuídos em ideologias, interesses e relações de poder. Sendo assim, ler criticamente envolve uma visão desnaturalizada daquilo que parece natural, no sentido de problematizar as várias leituras possíveis, buscando compreender em que contextos tais leituras se sustentam para estimular a compreensão das ideologias e jogo de interesses contidos em cada discurso, sejam eles legitimados e/ou não legitimados.

Foi o que esta pesquisa se propôs a fazer com a sequência didática elaborada com base nesses princípios dos Letramentos Críticos: contribuir para a formação de leitores críticos por meio de questionamentos que levassem os alunos a refletirem criticamente sobre o tema “padrões de beleza”, e a perceberem as representações sócio-históricas construídas a respeito desse tema. Para tanto, foram selecionados alguns trechos da execução da sequência didática, aqui traduzidas ou naturais, que serviram para contemplar o objetivo desta pesquisa.

Após expor textos imagéticos representativos de padrões de beleza em diferentes países, foi proposto aos alunos da turma X algumas perguntas que os levaram às seguintes leituras:

Professora: Os padrões de beleza apresentam grandes ou sutis diferenças? (Do the beauty standards have large or subtle differences?) Alunos: alguns, poucas diferenças; outros, bastante. Professora: Por quê? Edna: Acho que é alguma coisa cultural. Pietra: História. Marcos: Genética. Professora: Quando vocês pensam em cultura, vem o quê na mente de vocês? É que cultura é muito abrangente, qual o entendimento de cultura de vocês que afeta esses padrões? Hiago: Regime político. Emilly: Mídia. Hiago: Conhecimento. Emilly: A cultura é o reflexo do que a gente vive, por exemplo, se a gente vivesse numa ditadura, não seríamos o que a gente é agora, eo conhecimento, de acordo com o que ela (a pessoa) estuda e depois ela vai escolher se ela quer seguir ou não um determinado padrão.

Entende-se que as perguntas realizadas permitiram que os alunos construíssem sentidos diversos que se complementam e caminham na direção de expor seus entendimentos das realidades que sustentam aqueles padrões de beleza. A aluna Emilly demonstrou refletir sobre como os elementos anteriormente citados pelos colegas e por ela mesma compõem o repertório identitário através do qual são construídas as leituras dos padrões de beleza. Ela também problematizou os diferentes padrões quando disse que a cultura é o reflexo do que se vive; exemplificou de modo prático essa definição dada por ela e, ao mesmo tempo, se percebeu nesse processo de construção de sentidos quando afirmou que se vivêssemos de outra forma não seríamos as mesmas pessoas. Interpreta-se que, ao fazer essa reflexão, a respondente se encaminhou num processo de autoconhecimento e reconheceu como suas leituras são construídas - nesse caso específico, a leitura sobre a noção de beleza. Apesar de ressaltar a fala dessa respondente, compreende-se que os demais alunos participantes dessa aula puderam negociar sentidos com base em suas realidades e também ampliar seus repertórios com base nas diferentes visões expostas na sala de aula.

Silva (2012a) afirmou que os Letramentos Críticos buscam promover uma educação na qual os sujeitos possam se ver de fora, que provoque estranhamento das verdades estabelecidas e que estabeleça crise em relação a discursos cristalizados na sociedade. A autora defendeu que uma educação que vise aos Letramentos Críticos pode contribuir na formação de um aprendiz que:

consiga enxergar de onde lê, quais leituras lhe são permitidas, por que são permitidas, a quem são permitidas, a quem não são permitidas, como modificar tal situação, por que modificar (SILVA, 2012a, p. 57).

Isso implica, dentre outras coisas, que as práticas de ensino de Língua Inglesa poderiam pautar-se na preocupação de compreender como os sujeitos produzem sentidos a partir de seus repertórios identitários e estimulá-los a refletirem sobre a influência desses repertórios nas suas interpretações, buscando levá-los a se compreenderem nesse processo de construção de sentidos.

Ainda com o objetivo de estimular os alunos a uma leitura crítica, em outro trecho da aula, foi-lhes indagado sobre quem cria esses padrões e para servir a quais interesses (Who creates these standards? To serve which interests?). Nesse momento da aula os alunos da turma Y construíram diferentes sentidos e tiveram a oportunidade de negociá-los, conforme transcrito a seguir:

Arthur: A mídia. Enzo: Nós mesmos. Vitor: A mídia cria, nós que seguimos. Professora: Vamos pensar nas duas proposições: se a mídia cria, como isso acontece? Arthur: Através dos vídeos. Vitor: Comerciais, novelas. Arthur: Desenhos. Vitor: Jogos. Guilherme: Nas propagandas sempre aparece (sic) mulheres magras.

Professora: Ok, se a mídia cria, ela cria nesse processo... E se somos nós que criamos, como nós criamos?

Enzo: Pelo que a gente acha bonito. Professora: E como é que criamos os critérios pra gente achar bonito? Enzo: Pelo que vê na TV. Professora: E aí? Como é que fica? É a gente ou a mídia que cria? Arthur: Acho que é a gente também, porque a TV, a mídia mostra, a gente acha bonito e quer que o outro seja igual, aí a gente acaba criando um padrão pra todos. De certa forma é isso, é a pessoa, a pessoa vê, acha legal e quer parecer com aquilo.

Professora: Ahh! Entendi: a mídia mostra, o povo gosta, daí...

Enzo: A gente se acostuma. Arthur: Aí se espalha!

Além de negociar discursos, buscando desenvolver as duas proposições dos alunos sobre quem cria padrões, buscou-se também questioná-los acerca dos processos de criação dos padrões de beleza. Assim, eles tiveram a oportunidade de refletir sobre como algumas leituras são legitimadas na sociedade, a ponto de parecerem naturais, conforme evidenciou a fala de Enzo. Esse respondente parece chegar à conclusão de que os padrões de beleza são criados, não por nós mesmos, como ele pareceu supor em sua primeira resposta, mas por um processo de naturalização no qual, para usar as suas palavras, “a gente se acostuma”, não percebendo esse processo.

Na sequência da aula, ainda respondendo a quem cria os padrões, os alunos demonstraram perceber que as realidades e leituras são sócio-historicamente construídas:

Professora: E essa conversa paralela, é sobre quem cria o padrão? Eu quero ouvir, quem cria os padrões? Nicolas: A sociedade Professora: E como isso acontece? Jamile: Acho que não temos um padrão ideal, porque o que é bonito pra uma pessoa pode não ser bonito pra outra pessoa. Professora: Ok, na sua opinião a beleza é subjetiva. Jamile: Isso professora, também muda com a época. Matheus: A mídia era outra e a moda era outra! Professora: Isso! E quem cria a moda? Matheus: A mídia. Professora: Então tudo acaba na mídia?! Sem contar que antigamente a gente era menos bombardeado pela mídia do que agora, por causa das novas tecnologias de comunicação, né? Os alunos fazem gestos de concordar.

As percepções dos alunos são demonstradas mais especificamente na fala de Jamile, por constatar que os padrões mudam com as épocas; e na fala de Matheus, por identificar a influência da mídia e da moda ao longo do tempo. Pelo desenvolvimento da pesquisa empírica na sala de aula, entendeu-se que, para que momentos como este aconteçam, é importante que a aula de LI seja um espaço não apenas de construção de conhecimento linguístico, nem de imposição de um único sentido correto, por ser este legitimado na sociedade. Mas que seja um espaço aberto para que os diferentes sentidos produzidos sejam compartilhados, e para que as diferenças identitárias existentes na sala de aula sejam expostas e evidenciadas no discurso do próprio aluno. A ideia é que essa exposição à diferença oportunize uma leitura complexa que estimula a negociação de sentidos, ao mesmo tempo em que leva o estudante a compreender a relação entre as leituras e as realidades que as sustentam.

Foi com o objetivo de tornar as aulas de LI um ambiente plural de negociação e legitimação de sentidos diversos que se questionou aos alunos da turma Y sobre o porquê desses padrões serem diferentes. As respostas evidenciaram diferentes perspectivas e criaram um momento de crise que foi interpretado como sendo terreno fértil para a exposição do outro como legítimo e não como ameaça, estimulando, assim, a negociação e construção de uma identidade flexível, conforme exposto no diálogo a seguir:

Professora: Por que esses padrões de beleza são diferentes? (Why are these beauty standards different?) Alunos: A cultura. Professora: Quando vocês falam em cultura, vocês pensam em que aspecto da cultura? Porque cultura é muito amplo. Que aspecto da cultura afeta o ideal de beleza? Arthur: A mídia. Cíntia: Depende muito de quem colonizou, mas também tem muita diferença; tipo, eu acho que a Vivian tem corpo mais de africana, eu já acho que meu corpo é mais de índia, eu acho que no Brasil não tem muito um padrão porque tem influência de muitas raças. Professora: Que outros aspectos afetam o padrão de beleza?

Hugo: A religião, é... nos países que usam a burca, por exemplo

Professora: As expectativas a respeito do corpo feminino são as mesmas? Hugo: Com certeza não, porque não mostram o corpo. Emanuel: O financeiro Professora: Interessante! E como o dinheiro pode influenciar no padrão de beleza? Cibele: Fazer plástica, a mãe dele (Emanuel), minha sogra (risos), fez plástica!! Também pode usar roupa bonita e cara que valoriza o corpo da pessoa.

Emanuel: Pode ir pra academia; é... e fazer plástica, ter um personal...

Arthur: A alimentação, acesso à prática de alguns esportes e academias. Ítalo: Eu acho que não influencia muito não! Uma pessoa pobre pode malhar a hora que ela quiser! Tem academias baratas, eu conheço um monte de gente pobre que é magrinha porque faz esporte todo dia!! (com muita veemência).

(muito burburinho... alunos divididos entre concordar e discordar - os ânimos se alteram).

Professora: Gente!! Olha só! Todas essas coisas que vocês estão falando é verdade, existem os dois contextos, uma pessoa que tem dinheiro tem acesso às roupas e às plásticas como Cibele falou; Arthur lembrou de uma alimentação mais balanceada... mas o que Ítalo colocou também é verdade, no Brasil as pessoas têm acesso a alguns esportes, existem academias ao ar livre ou mais acessíveis, então vai depender do contexto da pessoa, os dois contextos são reais.

Como é possível perceber por este excerto, buscou-se transformar esse momento de tensão e conflito de identidades em um momento de democratização dos discursos, no qual o foco foi direcionado para a realidade que sustenta essas visões, e não para um ponto de vista determinado ou considerado mais legítimo que outro. Essas diferentes realidades se evidenciaram nas falas de Emanuel, Cibele e Ítalo. Então, esclarece-se que as duas visões explicitadas estão corretas e que ambas são aplicadas a contextos de vida diferentes. Nas falas de Hugo, quando ele explicou que as expectativas em relação à beleza feminina em países onde suas vestes cobrem todo o corpo, a exemplo da burca, são diferentes das expectativas exercidas em outras culturas nas quais o corpo feminino é mais exposto, mostra-se evidente sua percepção acerca de como o contexto influencia e reconfigura a visão dos sujeitos. Interpreta-se, então, que esse momento da aula proporcionou algo semelhante ao que Barreto (2009) pontuou, quando disse que:

na escola, diferentemente do que acontece na mídia, é possível contemplar os vários sentidos (...). Em uma turma, é possível considerar os espaços, lugares sociais ocupados e subjetividades em confronto nas práticas discursivas e/ou sociais (...) é possível exercer a democratização dos discursos e das práticas sociais mais amplas. (BARRETO 2009, p. 98)

Partindo do princípio de que a aula é uma micro-célula da sociedade, é possível considerar que aulas de inglês, assim conduzidas, podem proporcionar estímulo a identidades flexíveis por meio do engajamento crítico e respeitoso com o diferente, além de um ambiente de construção de novos conhecimentos para que o aluno amplie a visão construída fora do ambiente escolar.

No primeiro momento de aplicação desta pesquisa, os alunos de ambas as turmas foram questionados se eles estavam satisfeitos com sua forma corporal e o porquê de suas repostas (Are you satisfied with your body shape? Why?). O objetivo destas perguntas foi perceber as representações de beleza corporal que perfazem as suas identidades e, ao mesmo tempo, engajá-los com o tema das aulas que seguiriam. Destaca-se a seguir alguns trechos do diálogo estabelecido na turma X:

Professora: Ok. Bianca você disse algo, entendi você dizer que a gente quer ser mais bonito, é isso? Bianca: É professora, tô muito magrinha.

(...)

Professora: E você Edna, tá satisfeita? Edna: Não professora, a gente quer ser igual a uma modelo. Professora: Alguém mais concorda que buscamos ser igual a uma modelo? (Poucos concordam) Isis: Nem sempre!

Professora: E então qual seria o alvo? A pergunta é pros meninos também...

Isis: Perna grossa, bunda grande...

Antony: Ficar monstro! Professora: Ficar monstro? Como assim? Forte? Antony: Sim!

(...)

Antony: Eu não tô satisfeito com meu corpo é...tipo assim... é... porque assim, talvez eu poderia ser... com um pouco mais de massa e menos gordura, poderia pesar mais também.

Bianca: Ei gato, vai malhar!! (risos)

(...)

Amanda: Queria ser malhadona. Professora: Queria ser malhadona é? Bianca: Quem não quer né?!

Mônica: É... tô

Professora: Por quê? A segunda parte da pergunta: Why? Mônica: Ah.. eu tô pq eu tô!! (em tom impaciente) Bárbara: Sim, eu tô! Porque Deus me fez assim! (também em tom impaciente)

(...)

Vanessa: Há dois meses eu tava, aí machuquei meu joelho, parei de malhar, aí eu perdi peso, começou aparecer uma gordurinha aqui outra ali, mas eu já voltei a malhar e em três meses eu tô bacaninha de novo!

É pertinente ressaltar que a noção de beleza (feminina e masculina), assim como outras representações, é uma construção sócio-histórica. Dentre os sentidos historicamente possíveis em relação à beleza, o mais lido, legitimado e naturalizado é aquele propagado pela mídia, ao qual Barreto (2009, p.71) se refere como “ditadura do corpo perfeito”, representado por características de juventude como sinônimo de autossatisfação, aceitação e felicidade. Esse modo de representação está inscrito em inúmeras práticas sociais cotidianas e, por essa razão, não raras vezes, é aceita como natural. Percebe-se, então, nas falas da maioria dos alunos a presença de elementos comuns em suas representações de ideal de beleza corporal, que levam ao entendimento de que o perfil por eles almejado não está relacionado unicamente à magreza, mas à presença de músculos, força, e ausência de gordura, frequentemente associado à musculação, compatível com as figuras frequentes na mídia brasileira, especialmente a mídia direcionada às massas, das quais são exemplos as mulheres-frutas e dançarinas de programas de TV.

Mesmo aquelas alunas que se disseram satisfeitas, quando indagadas sobre o porquê de sua satisfação, não construíram argumentos detalhados em defesa de suas respostas, levando-se a considerar, com base na quase ausência de argumentos, que o ideal de beleza aparente nas representações da maioria dos alunos é uma verdade cristalizada (SILVA, 2012a), um discurso naturalizado, tornado tão óbvio, como sugere a fala de Bianca: “Quem não quer, né?!”, que dificulta a defesa de outro ponto de vista.

Com o objetivo de estimular os alunos a construírem outros sentidos, além desses já legitimados, e a perceberem as relações de poder que atravessam esse discurso tão presente em seu cotidiano, foram exibidos três vídeos após a leitura das imagens produzidas na pesquisa sobre ideais de beleza no mundo.

O terceiro vídeo tratou de uma peça de campanha publicitária da marca Dove sobre autoestima; várias crianças são mostradas nesse vídeo, com ênfase para uma criança do sexo feminino; paralelamente, aparecem vários flashes de programas de TV, vitrines e propagandas com apelo para uso de produtos e procedimentos estéticos, inclusive cirurgias plásticas. Após esses flashes aparece a frase “Converse com sua filha antes que a indústria de beleza o faça” (Talk to your daughter before the beauty industry does). Para esse vídeo, assim como para os outros dois exibidos, foi solicitado apenas que os alunos expusessem suas leituras a partir dos elementos visuais e verbais disponíveis durante a apresentação. O excerto a seguir é um exemplo das leituras realizadas a partir do terceiro vídeo:

Professora: O que vocês entenderam desse vídeo? O que vocês têm a dizer sobre isso? Íngrid:Que a gente é bombardeado com as informações da mídia! Emilly: É impressionante como a gente vê esses comerciais o tempo todo e a gente praticamente nem percebe, é como se a mídia quisesse, a mídia faz, na verdade, com que a gente fique sempre insatisfeito com o nosso próprio corpo pra que a gente passe a comprar os produtos!

Como sugerido por Silva (2012a), pretendia-se incentivar os alunos a se verem de fora, a enxergarem de onde eles constroem suas leituras cotidianas. Nesta perspectiva, a fala de Íngrid permite dizer que ela se viu de fora, enxergou de onde suas leituras cotidianas são construídas quando diz que somos bombardeados pela mídia; e Emilly, como se desse continuidade ao pensamento da colega, demonstrou compreender as relações de poder ali presentes quando estabeleceu uma relação entre o discurso midiático, com sua representação de beleza, e a construção de um discurso de insatisfação a respeito da forma corporal não percebida por ela nas práticas diárias. Essa reflexão contribui também para o desenvolvimento do senso de cidadania na medida em que ela se compreendeu como inserida numa dinâmica social permeada de relações de poder, ao mesmo tempo em que articulou essas relações a sua existência e práticas.

Compreende-se que o ensino desses novos letramentos com enfoque na crítica pode tornar-se uma experiência relevante para as demandas da sociedade contemporânea, interconectada e multicultural, uma vez que pode levar os estudantes a aprenderem a partir de diferentes tecnologias, identificando os discursos e as relações de poder que as atravessam, para resistirem a tais discursos, aliarem-se a eles, e/ou modificarem-se como sujeitos, de acordo com os sentidos que constroem e dos posicionamentos que assumem. O entendimento da crítica nessa atividade não está associado ao convencimento dos sujeitos sobre um determinado ponto de vista - no caso das práticas pedagógicas, o posicionamento do professor - exatamente por não considerar um sentido mais legítimo que outros, mas de oferecer elementos diversos que possibilitem uma atitude reflexiva que os conduza na direção de compreender, respeitar e conviver pacificamente com a diversidade de discursos que atravessam os sujeitos presentes no ambiente escolar e fora dele.

Considerações finais

Conforme sugerido pelas OCEM- LE, a teoria dos Letramentos Críticos foi basilar para o desenvolvimento dessa pesquisa, e sua execução demostrou que os Letramentos Críticos podem sim constituir uma abordagem para que o ensino de LI contribua para a formação integral dos estudantes do Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio do IFPA - Campus Castanhal.

As contribuições formativas dessa teoria estão, inicialmente, relacionadas ao professor, já que, por não se tratar de um método, não engessa as práticas pedagógicas. Antes, valoriza e estimula a agência do professor, pois discute as epistemologias dos estudantes contemporâneos relacionando-as às questões culturais, históricas e sociais, tais como diferença, identidade, relações de poder e representações. Isso possibilita que o professor se torne autor de suas aulas, ressignificando suas práticas e contextualizando-as às necessidades e interesses dos alunos a partir de elementos de sua realidade sem limitar suas leituras ao seu contexto de origem.

Além disso, ficou demonstrado, pela execução da pesquisa, que princípios dos Letramentos Críticos podem ser empregados nas atividades de ensino-aprendizagem de LI no contexto dos estudantes do IFPA - Campus Castanhal, e em qualquer outro contexto, por meio da agência do professor que pode tornar a aula um espaço para construção de perguntas (SILVA; SILVA, 2016) que estimulem a reflexão e criação em detrimento da reprodução de sentidos legitimados na sociedade - que insistem em tornar iguais os sujeitos naturalmente diferentes. Desse modo, durante a aplicação da pesquisa, questionou-se os estudantes sobre o tema e permitiu-se emergir da/na sala de aula várias leituras para proporcionar a negociação das diferenças expostas nos sentidos construídos na aula.

Em relação aos estudantes, percebeu-se durante esse processo um forte engajamento destes com as atividades propostas - o que foi atribuído como uma das contribuições formativas da teoria dos Letramentos Críticos. Esse engajamento se materializou na riqueza das construções de sentido já discutidas ao longo deste trabalho, proporcionadas pelos estímulos multimodais. É importante ressaltar que a participação dos estudantes era voluntária; no entanto, a maioria fazia questão de expor seus posicionamentos e leituras. Esse engajamento presente nas discussões também se estendeu às demais atividades, incluindo aquelas que envolviam conhecimento estrutural da língua. Também constatou-se que estimular o aluno a construir e expor suas leituras distribui melhor as relações de poder na sala de aula, um espaço que costuma ser monopolizado pelo professor.

Ao interpretar as respostas fornecidas pelos alunos, pode-se entender que eles tiveram suas verdades cristalizadas postas em crise na medida em que percebiam suas representações de beleza como sendo influenciadas por discursos massificados na mídia. Dessa forma, demonstraram um despertamento crítico em relação a modos culturais de ver o mundo, de se ver no mundo, de se perceber como constituinte e, ao mesmo tempo, constituído por ele nas relações contextuais e de poder que envolvem a linguagem. Também demonstraram perceber interesses, ideologias e representações envolvidos nos textos presentes em suas relações cotidianas. Estas são contribuições de formação educacional às quais os Letramentos Críticos se propõem exatamente por se mostrarem atribuições necessárias aos sujeitos da/na sociedade contemporânea.

Pelos resultados aqui discutidos, concluiu-se que, por meio dos Letramentos Críticos, foi possível desenvolver um trabalho além da instrumentalização linguística e a preparação de mão de obra para o mercado de trabalho, ao desenvolver práticas pedagógicas que estimularam os alunos a lerem a si mesmos e ao mundo criticamente. Sabe-se que a preparação para o mercado de trabalho constitui um fator importante, no entanto, não representa o fim último da educação. Com efeito, apesar de não voltar seus objetivos para a formação de mão de obra, os Letramentos Críticos contribuem para a formação de um novo perfil de trabalhador, a saber: crítico, criativo, autônomo e ético.

Não se consegue mensurar o quanto e de quais maneiras os momentos de reflexão provocaram deslocamentos nas identidades dos alunos participantes desta pesquisa; todavia, entende-se que a mudança de discurso pode ser um elemento de mudança social (BARRETO, 2009). Naqueles momentos, abriu-se um espaço de estímulo à percepção crítica (MONTE MÓR, 2011), por meio de questionamentos nos quais, para buscar respostas às perguntas, aqueles alunos demonstraram estabelecer relações mais profundas entre contexto, cultura e expressão de identidades. Talvez eles possam se ver por detrás dessas lentes e perceberem a si e ao outro como contextuais e, por isso, flexíveis e híbridos.

É possível considerar que, para que esses resultados permaneçam no aluno, é necessária a continuação dessas práticas. Esse reconhecimento vem da consideração de que uma prática realizada em um bimestre, e apenas na aula de inglês, não é capaz de alterar profundamente um sujeito; e da mesma forma, a educação pública não é remédio para todos os males da sociedade. No entanto, podem deixar um despertamento inicial, necessário à agência desses alunos em face dos estímulos que eles receberão em suas práticas sociais futuras. Apesar do reconhecimento dessas limitações, esta pesquisa promove a troca de conhecimentos e pode servir de base para que estes princípios sejam aprofundados, aperfeiçoados e aplicados em outras realidades.

Referências

BARRETO, Raquel Goulart. Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009. [ Links ]

BRASIL. Decreto no 5.154, de 23 de julho de 2004.Regulamenta o § 2o do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jul. 2004. Seção 1, p. 18. [ Links ]

BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio - OCEM: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. [ Links ]

BUZZFEED VIDEO. Photoshopping real women into cover models, 2014. Disponível emDisponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zRlpIkH3b5I . Acesso em: 14 mai. 2019. [ Links ]

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis: Vozes, 2006. [ Links ]

COPE, Bill; KALANTZIS, Mary. Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. New York: Routledge, 2005. [ Links ]

DOVE. Beauty Pressure. 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ei6JvK0W60I . Acesso em: 11 set. 2019. [ Links ]

ESTEBAN, Maria Paz Sandín. Pesquisa qualitativa em educação: fundamentos e tradições. Porto Alegre: AMGH, 2010. [ Links ]

IFA, Sérgio. Reflexões sobre formação de professores e novos letramentos no projeto de extensão Casas de Cultura no Campus da Universidade Federal de Alagoas. In: ZACCHI, Vanderlei José; STELLA, Paulo Rogério. (Orgs.). Novos letramentos, formação de professores e ensino de língua inglesa. Maceió: Edufal, 2014. [ Links ]

JORDÃO, Clarissa Menezes. O que todos sabem... ou não: letramento crítico e questionamento conceitual. Revista CROP, v. 12, p. 21-46, 2007. [ Links ]

JORDÃO, Clarissa Menezes. Abordagem comunicativa, pedagogia crítica e letramento crítico - farinhas do mesmo saco? In: ROCHA, Cláudia Hilsdorf; MACIEL, Ruberval. (Orgs.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas. Campinas: Pontes Editores, 2013. p. 37-54. [ Links ]

JORDÃO, Clarissa Menezes. Birds of different feathers: algumas diferenças entre Letramento Crítico, Pedagogia Crítica e Abordagem Comunicativa. In: TAKAKI, Nara Hiroko; MACIEL, Ruberval Franco (Orgs.). Letramentos em terra de Paulo Freire. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2015. [ Links ]

KUMARAVADIVELU, B. Understanding language teaching: from method to post-method. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2006. [ Links ]

DAILY MAIL ONLINE. Femail.2015. 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/femail/article-3198325/How-beauty-ideals-change-world-Designers-asked-create-perfect-woman-Photoshopping-photo-different-results.html . Acesso em: 11 set. 2019. [ Links ]

MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da metodologia científica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003. [ Links ]

MATTOS, Andrea. Novos letramentos, globalização e ensino de inglês como língua estrangeira. In: ZACCHI, Vanderlei José; STELLA, Paulo Rogério. (Orgs.). Novos letramentos, formação de professores e ensino de língua inglesa. Maceió: Edufal , 2014. [ Links ]

MONTE MÓR, Walkyria Maria. Prefácio. In: JORDÃO, Clarissa Menezes; MARTINEZ, Juliana Zeggio; HALU, Regina Célia (Orgs.). Formação “Desformatada”: Práticas com professores de língua inglesa. Campinas: Pontes Editores, 2011. p. 11-16. [ Links ]

MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. [ Links ]

SILVA, Simone Batista. Da técnica à crítica: os letramentos críticos na formação de professores de inglês. Porto Alegre: Editora da Oficina, 2012a. [ Links ]

SILVA, Simone Batista. As contribuições da teoria dos multiletramentos na formação do professor de língua inglesa do ensino básico: Reflexões iniciais. Revista X, v. 1, p. 61-75, 2012b. [ Links ]

SILVA, Simone Batista. Aulas de língua inglesa na contemporaneidade: Espaços para a (re)construção das identidades. Revista Polifonia, v. 21, n. 29, p. 215-233, 2014. [ Links ]

SILVA, Wanderley; SILVA, Simone Batista. EJA, Diversidade e Criatividade: e experiência dos núcleos de diálogos interculturais. In: RIBEIRO, Ana de Almeida. (Org.). Estudos e práticas em EJA: ampliando olhares. Rio de Janeiro: Caetés, 2016. p. 135-146. [ Links ]

TAGATA, William M. “It’s mine!” Aprendizagem situada e novos letramentos nas aulas de inglês. In: TAKAKI, Nara Hiroko; MACIEL, Ruberval Franco. (Orgs.). Letramentos em terra de Paulo Freire. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2015. [ Links ]

ZACCHI, Vanderlei José. O conceito de crítica no ensino de língua inglesa. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA, IX., 2017, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Associação de Linguística Aplicada do Brasil, 2012. p. 1-12. [ Links ]

ZACCHI, Vanderlei José. Novos letramentos e cosmopolitismo na formação de professores de línguas estrangeiras. In:; STELLA, Paulo Rogério. Novos letramentos, formação de professores e ensino de Língua Inglesa. Maceió: Edufal, 2014. pp.137-160. [ Links ]

Recebido: 20 de Novembro de 2019; Aceito: 27 de Novembro de 2020; Publicado: 28 de Maio de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons