Introdução
A produção de conhecimentos, de acordo comBolzan, Santos e Powaczuk (2013, p. 99),
[...] decorre de pesquisas que levam a um aprofundamento teórico acerca das bases epistemológicas, capazes de auxiliar na problematização das situações e vivências do contexto local e global que envolve o processo educativo. Esse princípio é básico para a construção de novos
conhecimentos e/ou [re]significá-los, além de criar diversificadas ações para enfrentar situações desafiadoras que envolvem a docência, bem como contribuir para a ampliação e qualificação dos conhecimentos produzidos no campo educacional.
Assim sendo, desenvolvermos pesquisas que aproximem a área da Saúde da de Humanas, significa colocarmos em diálogo campos científicos distintos, com referenciais próprios, mas com um objeto comum: o corpo, ou a pessoa sendo seu corpo. A Gerontologia, campo de natureza multi e interdisciplinar, permite-nos compreender, multidimensionalmente, o corpo que envelhece, enquanto a Educação nos leva a entender que somos corpos conscientes. Para Freire (1971, p. 74), é “[...] próprio do homem estar em constantes relações com o mundo”; assim, a conscientização da importância do diálogo supõe o reconhecimento do caráter relativo de cada campo de conhecimento e da complementaridade necessária para fundamentar o entendimento das complexas relações humanas.
O ensino sobre uma sociedade que envelhece é considerado uma educação gerontológica (CACHIONI, 2005). Já a alfabetização, é definida como o processo de aprendizagem em que se desenvolve a habilidade de ler e de escrever. Como a aprendizagem da leitura e da escrita acontece quando instrumentaliza e enriquece a vida, é na perspectiva de uma educação gerontológica que pode ensinar a ler o mundo que envelhece, que propomos o termogeroalfabetização.Nas palavras deFreire (1996, p. 123), “[...] respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da construção do conhecimento”. O simples contato do leitor criança com a obra literária não necessariamente alfabetiza, mas desempenha o papel de despertar a curiosidade infantil como impulso para o conhecimento do outro-idoso.
O cenário de envelhecimento populacional e a complexidade das mudanças socioeconômicas, tecnológicas e culturais, desafiam a educação brasileira à leitura de um mundo “grávido” de um novo fenômeno: a diversidade dos modos de viver a velhice. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2025, o Brasil será o sexto país do mundo com o maior número de idosos (OMS, 2015). Essas mudanças são desafiadoras e suas implicações são profundas. Uma criança nascida no Brasil ou em Mianmar, em 2015, pode viver 20 anos a mais do que uma criança nascida há 50 anos (OMS, 2015). O Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde, alerta que outras grandes mudanças sociais estão ocorrendo juntamente ao envelhecimento da população. Combinadas, elas podem significar que envelhecer no futuro será muito diferente das experiências de gerações anteriores (OMS, 2015).
Desse modo, as crianças precisam ler o mundo que envelhece, ao mesmo tempo em que passam por experiências intergeracionais nas suas comunidades, para evitar a discriminação etária (ageism). Esse termo significa preconceito de idade, e foi concebido porButler (1980) como um processo de estereotipar sistematicamente e discriminar pessoas por meio da idade. Os estereótipos negativos podem, por isso, levar à exclusão. Não é simples identificarmos oageism, mas, apesar disso, o aumento de estudos e de instrumentos para medi-lo pode potencializar as chances de produzirmos conhecimento e avançarmos nessa temática.Todaro (2008), em sua tese de Doutorado, desenvolveu e avaliou um programa de leitura visando à mudança de atitudes de crianças em relação a idosos. Os resultados da pesquisa indicaram que as atitudes eram geralmente positivas, mas melhoraram ainda mais após o programa. As medidas foram tomadas por meio da Escala Todaro que foi aplicada como pré e pós-teste.
Vale ressaltarmos que entre os preconceitos, como o racismo, o sexismo, o machismo, o etnocentrismo, entre outros, oageismé o menos abordado em pesquisas acadêmicas brasileiras que tratam da literatura infantil e de suas potencialidades. Em uma busca no Portal de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ao cruzarmos os termos literatura infantil eageism, nenhum resultado foi encontrado. Tal revelação nos preocupa na medida em que estudar a linguagem na e da literatura infantil é buscarmos abarcar todo o amplo e complexo rol de possibilidades discursivas (SILVA, 2017).
A linguagem é um instrumento que serve para comunicar ao outro algo sobre as coisas. Ao emissor, cabe a função de expressão; ao receptor, a função de apelo; aos conteúdos, a função de representação. Entre esses três elementos, existe um canal de ligação manifestado por um fenômeno perceptível pelos sentidos. Ao fazermos uso da linguagem para nos comunicarmos, o objetivo é o entendimento de uma determinada mensagem. De acordo comFreire (1971, p. 44): “O mundo humano é, dessa forma, um mundo de comunicação”.
A linguagem é, portanto, o maior instrumento de interação entre sujeitos socialmente organizados. Isso porque ela possibilita a troca de ideias, a circulação de saberes e faz intermediação entre todas as formas de relação humana. Quando queremos nos expressar, oralmente, ou na forma escrita, recorremos às palavras, às expressões e aos enunciados de uma língua, os quais atuam em dois planos: o denotativo, que é o sentido literal da palavra, expressão ou enunciado; e o conotativo, que é o sentido figurado.
A linguagem literária é uma linguagem conotativa, que, em seu plano de expressão, se vale da linguagem denotativa e do estilo. A literatura é, assim, uma das manifestações da linguagem artística. A literatura infantil que traz em seu bojo personagens idosas, coloca discursos sobre velhice em movimento. Dessa maneira, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso (BARTHES, 1997). Pensar nisso, leva-nos a problematizar a linguagem da e na literatura infantil, e refletir sobre as atitudes preconceituosas veiculadas nos discursos do senso comum sobre as pessoas idosas.
Se “mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo” (FREIRE, 1997, p. 68), então cabe à literatura uma função social, com implicações na leitura de mundo.
A literatura infantil tem sido um meio cada vez mais utilizado para levar às crianças das escolas o debate sobre o respeito às diferenças. De acordo comBuendgens (2014), esse tema é encontrado tanto no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), o qual encaminha acervos às bibliotecas das escolas públicas com livros de variadas temáticas e expressões literárias, quanto no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Não podemos esquecer que, desde “[...] muito pequenos, aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos ‘lendo’, bem ou mal, o mundo que nos cerca” (FREIRE, 2009, p. 71).
Temas difíceis, ou delicados, como, por exemplo, velhice, morte, doenças,bullyinge sexualidade, vêm marcando presença na literatura infantil e têm sido objeto de análise de pesquisadores que estudam a literatura infantil, comoBastos e Tomé (2011),Debus (2012),Lampert e Walsh (2010),Lesnik-Oberstein (1994),McDaniel (2001) e Mendes (2013),Azevedo, Balça e Selfa (2017),Rubim e Silva (2017) eSilveira e Silveira (2019). A relevância de tais questões, dá-se na formação de leitores do mundo e de cidadãos empenhados em cultivar valores humanistas, como o respeito à diferença, em busca de formar, como afirmaFreire (2000, p. 100), “[...] pessoas críticas, de raciocínio rápido, com sentido de risco, curiosas, indagadoras”.
O livro destinado a crianças precisa ser apresentado, nas escolas, acompanhado de um procedimento intencional que prevê sequências didáticas, estratégias de leitura, atividades problematizadoras, motivação e interpretação (BARBOSA, 2017;BIANCHINI; ARRUDA; FIGLIOLO, 2015; GIROTTO; SOUZA, 2010;SOLÉ, 1998; TODARO, 2008). Tal questão não foi tratada no presente estudo, mas é importante frisarmos que, desde a escolha por títulos, a intencionalidade do adulto educador se revela na circulação dos temas, dos discursos e dos saberes que quer compartilhar.
Dito isso, os objetivos deste estudo são: levantar obras de literatura infantil, escritas em língua portuguesa, que tragam personagens idosas; analisar o que seus títulos expressam; e pensar umageroalfabetização.As questões de pesquisa foram: Quais títulos da literatura infantil investigada trazem personagens idosas? A literatura infantil guarda em si as potencialidades para a construção de conhecimento sobre a velhice? Como a linguagem literária pode ser um instrumento educativo para umageroalfabetização? Tendo isso em conta, a seguir, discorremos sobre o método e os resultados da pesquisa.
Método
Esse estudo é parte integrante da pesquisa de pós-doutoramento deTodaro (2020) que, entre outros objetivos, se dedica a levantar e a analisar obras literárias dedicadas às crianças, disponíveis em língua portuguesa. A pesquisa, de abordagem quanti-qualitativa, é denominada “Educação e diversidade etária: a importância de ler o mundo que envelhece”.
Os dados do presente artigo foram derivados do estudo preliminar desenvolvido pelas autoras. Para o levantamento dos livros de literatura infantil, realizamos uma busca na internet, no ano de 2020. Foram três ossitesvisitados: Livraria Cultura (https://www3.livrariacultura.com.br/), Livraria Saraiva (https://www.saraiva.com.br/) e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (https://www.fnlij.org.br/). Neles, buscamos os catálogos disponíveisonline.
Os livros a serem identificados deveriam ter em seu título alguma palavra, ou mais de uma, tais quais: avô(s), avó(s), vovô(s), vovó(s), vó, vô, velha(o), velhas(os), velhinha(o), velhinhas(os), velhote e velhota. O critério de inclusão previu publicações destinadas às crianças editadas entre os anos de 2000 e 2019, com a intenção de verificarmos os discursos sobre velhice na linguagem literária, no século XXI.
Resultados
Na Tabela 1, trazemos os resultados do levantamento nossitese descrevemos os nomes das editoras, o local (Estado) onde estão sediadas e a quantidade de livros encontrados.
NOME DA EDITORA | LOCAL DA EDITORA | NÚMERO DE LIVROS PUBLICADOS |
---|---|---|
Abaquar | Distrito Federal | 1 |
Aletria | Minas Gerais | 1 |
Almedina Brasil | São Paulo | 1 |
Amarilys | São Paulo | 1 |
Artmed | Rio Grande do Sul | 1 |
Ática | São Paulo | 3 |
Autêntica | Minas Gerais | 5 |
Biblioteca 24 horas | São Paulo | 1 |
Brinque-book | São Paulo | 4 |
Callis | São Paulo | 2 |
Chiado Brasil | São Paulo | 1 |
Ciranda Cultural | São Paulo | 4 |
Companhia das Letrinhas | São Paulo | 2 |
Companhia Ed. Nacional | São Paulo | 1 |
Cortez | São Paulo | 5 |
Cosac Naify | São Paulo | 1 |
Ediouro | Rio de Janeiro | 1 |
De Cultura | São Paulo | 1 |
Escala Educacional | São Paulo | 1 |
Escrita Fina | Rio de Janeiro | 2 |
FEB | Distrito Federal | 1 |
Franco | Minas Gerais | 1 |
FTD | São Paulo | 2 |
Fundamento | Paraná | 6 |
Global | São Paulo | 4 |
Globinho | Rio de Janeiro | 1 |
Globo | Rio de Janeiro | 1 |
Habilis | Rio Grande do Sul | 1 |
Imperial | Rio de Janeiro | 1 |
Kalandraka Brasil | São Paulo | 2 |
Kapulana | São Paulo | 1 |
Littere | Ceará | 1 |
Martins Fontes | São Paulo | 1 |
Melhoramentos | São Paulo | 4 |
Mercuryo Jovem | São Paulo | 2 |
Miguilim | Minas Gerais | 1 |
Moderna | São Paulo | 3 |
Nacional | São Paulo | 2 |
Newbook | São Paulo | 1 |
Nova Didática | Paraná | 1 |
Páginas | Minas Gerais | 1 |
Pallas | Rio de Janeiro | 1 |
Panda Books | São Paulo | 9 |
Paulinas | São Paulo | 2 |
Paulus | São Paulo | 2 |
Petit | São Paulo | 1 |
Polen Livros | Paraná | 1 |
Positivo | Paraná | 2 |
Quinteto | São Paulo | 1 |
Record | Rio de Janeiro | 1 |
Rolimã | Minas Gerais | 1 |
Rovelle | Rio de Janeiro | 1 |
Salamandra | Rio de Janeiro | 1 |
Salesiana | São Paulo | 1 |
Scipione | São Paulo | 1 |
Scortecci | São Paulo | 3 |
Thesaurus | Distrito Federal | 1 |
Unisinos | Rio Grande do Sul | 1 |
Viajante do Tempo | Rio de Janeiro | 2 |
Vida | São Paulo | 1 |
Zastras | São Paulo | 1 |
Zit | Rio de Janeiro | 1 |
Fonte: Elaboração própria (2020)
No Quadro 1, trazemos os resultados dos termos que mais apareceram, o número de ocorrências, os títulos dos livros infantis, com seus respectivos autores(as) e o ano de publicação no Brasil.
Fonte: Elaboração própria (2020)
Análise e discussão
Este estudo teve como foco temático a literatura infantil. Foram levantadas obras editadas no Brasil, entre os anos de 2000 e 2019, que traziam personagens idosas. Ao identificarmos as palavras que mais apareceram nos títulos dos 112 livros encontrados, foi possível estabelecermos relações entre as editoras, os seus locais e a quantidade de livros; entre as obras e os anos de publicação; e, ainda, entre gênero, etnia, uso de adjetivos e do tempo verbal.
Lajolo (2010)afirma que, na pesquisaProdução e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, encomendada à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL), destacam-se os anos de 2000, 2005, 2006, 2007 e 2008, quando 28.500 títulos de literatura infantil e juvenil foram editados no Brasil.
A amostra desse estudo nos fez perceber que a editora que mais publicou títulos referentes à temática em questão foi a Panda Books, o que difere do levantamento realizado porTodaro (2008), quando a autora levantou um número maior de obras da Editora Ática. No que se refere aos locais das editoras, notamos que a maior parte das obras presentes em nossa amostra foi publicada na região Sudeste, sendo 66 editadas no Estado de São Paulo, dezesseis no Rio de Janeiro e dez em Minas Gerais. Tal achado vai ao encontro do que verificou Todaro (2008) que, à época, também relatou ser o Estado de São Paulo que mais publicou obras sobre o tema. Os demais livros se concentraram em editoras do Paraná, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Ceará.
Do Quadro 1, pudemos extrair uma questão de gênero no que tange à autoria dos livros: 65 livros foram escritos por mulheres e 47, por homens. Tal achado corrobora os dados de Todaro (2008) que indicou, em sua pesquisa, uma quantidade superior de obras de autoras em sua amostra. No que tange aos anos de publicação, é perceptível um incremento dos lançamentos a partir de 2006, o que até o ano de 2019 resulta em uma média de oito ou mais livros publicados sobre a temática por ano. Todaro (2008), em seu levantamento de livros infantis sobre a temática velhice, encontrou, à época, apenas 35 obras. Foi possível notarmos, portanto, nesse estudo, um aumento de títulos que trazem personagens idosas, no panorama editorial brasileiro. É importante lembrarmos que, em 2006, o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) foi criado com a finalidade de assegurar a democratização do acesso ao livro, o fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia produtiva do livro como fator relevante para o incremento da produção intelectual e o desenvolvimento da economia nacional. Tal política pública se vê refletida em nossa amostra.
No que concerniu à quantificação da categorização de palavras, a maior parte das obras levantadas (32) trouxe, em seus títulos, a palavra “avô”. Em segundo lugar, apareceu “avó”, com 20 ocorrências. Em seguida, com 12 ocorrências, as palavras “velha” e “velhas”; “avós” apareceu em 11 obras; nove obras trouxeram, em seus títulos, a palavra “velho”; foram encontrados nove livros com a palavra “vó”; “velhinha” foi um termo encontrado em cinco livros, assim como “vovó”. Em menor quantidade, apenas com três ocorrências cada, apareceram as palavras “vô” e “vovô”. E, por último, “velhote” e “velhinho”, com apenas uma ocorrência para cada termo. O termo “velhota” não apareceu na amostra coletada.
Acompanhadas das categorias principais, notamos a presença de adjetivos desqualificantes, como: coroca, dentuça, magrela, gulosa, louco, desparafusado, bravo, maluca, pirada e pior. Apenas três adjetivos (demais, sábio e delícia) puderam ser considerados elogiosos. Se discursos literários e sociais atuam nos processos de subjetivação, determinando como homens e mulheres devem se portar, então, quando o tema é velhice, as personagens idosas de nossa amostra apareceram nos títulos atreladas a adjetivos que (des)qualificam seu modo de ser.
A questão de gênero, na amostra, evidenciou que 53 livros trazem como personagem principal o avô, também chamado de “vô”, “vovô”, “velho”, “velhinho” e “velhote”. Com relação ao gênero feminino, foram encontradas 57 obras que, no título, se referem às avós. Para a personagem feminina, há de destacarmos títulos que remetem à esfera familiar, como em:A velhinha na janela;Colo de avó;Avó com cheiro de pão caseiro;Casa de vó é sempre domingo; eO mistério da sopa da vó Leninha.
Para o personagem masculino, os títulos apontam para enredos em torno de aventuras no rio, na montanha, no carro e no cavalo, por exemplo. Tal achado vai ao encontro da análise das narrativas estudadas porSilva (2008), que traziam personagens do conto infantojuvenil brasileiro contemporâneo, na qual a pesquisadora concluiu que o papel de cidadão do mundo é reservado ao homem, e à mulher resta a função de membro da família.
Quanto à caracterização dos personagens idosos, o cômico decorreu de expressões, como: “babá do vovô”, “babá da vovó”, “agarrei o velhote”, “vovó que veio do ovo”, “minha avó botou um ovo”, “o velho gigante que engoliu um relógio” e “velhinha que engoliu uma mosca”. O humor na literatura infantil aparece no encontro entre a realidade e a fantasia, sendo objeto de estudo e análise deBergmann e Sassi (2007, p. 203), as quais afirmam que: “Vários autores já publicaram histórias engraçadas, que divertem, porque transgredem”.
Observamos que algumas obras apostaram nos animais como personagens:Histórias da velha coruja;O velho lobo do mar;O velho urso que engoliu uma mosca;Meu avô é um urso polar;O segredo do avô urso;Minha avó é uma gorila;A avó dos dinossauros; eO presente da vovó loba. Os animais, segundoSilva e Piassi (2014), quando transportados para a literatura infantil, apresentam características antropomórficas e, perdendo sua relação com a natureza e a realidade, passam a personificar ações, sentimentos e emoções humanas.
A análise do uso do tempo verbal nos títulos, indicou o momento em que a história ocorreu. Foi possível notarmos que foram empregados verbos no passado e no presente. Nenhum título enunciou um fato que deva ocorrer em um tempo vindouro. Desse modo, a relação entre o personagem idoso, o autor e o tempo, não convocam o leitor-criança a pensar na sua própria experiência de velhice no futuro que, segundo a OMS (2015, p. 11), “[...] será muito diferente das experiências de gerações anteriores”.
As doenças e a morte apareceram como temas, explícita ou implicitamente, em seis títulos:Meu avô desencarnou;Minha avó tem Alzheimer;Minha vó sem meu vô;Cadê vovô?;Vovô teve um AVC; eO anjo da guarda do vovô. Quando buscamos as obras nossites, lemos as sinopses que indicaram outros livros que também tratavam do tema “morte”, como:Vovô vai para as estrelas;Vô estrela;O dia em que minha avó envelheceu;A casa do meu avô;Vovó inventa palavras;Vovó viaja e não sai de casa; eUma vovó italiana. Encontrarmos 13 livros sobre os temas morte e doença em um universo de mais de 100 livros, o que indica a pouca presença desses temas, como apontaMendes (2013).
O destaque da amostra se deu em relação às etnias, pois a etnia branca sobressaiu sobremaneira na amostra. Apenas um título traz a expressão “Preto velho”, referindo-se a uma pessoa idosa negra. Ao entrarmos nossitesde busca, foi possível vermos que, na capa do livroMeu avô é um tatá, a ilustradora desenhou um idoso negro, representando a personagem que deu título à história. Na obraMeu avô africano, também encontramos imagens de pessoas negras. Tal qualDebus (2012), chamamos a atenção para a necessidade de uma estética literária negra, como conscientização, em livros voltados para as crianças que tratam da temática “velhice”.
Todaro (2008) derivou de sua pesquisa cinco categorias de imagens sobre velhice e idosos, segundo critérios gerontológicos, a saber: estereotipadas; realistas; fantásticas; divertidas; e novos velhos. A imagem estereotipada indica a velhice como uma etapa de afastamento social, de inatividade e de comprometimento cognitivo (TODARO, 2008, p. 59). A realista apresenta a velhice como possibilidade de proximidade da morte e da sabedoria advinda de um maior número de experiências adquiridas ao longo da vida (TODARO, 2008, p. 61). A imagem fantástica se refere ao mundo imaginário, em que todo o tipo de aventura é possível (TODARO, 2008, p. 65). As imagens divertidas são as que se referem ao comportamento e ao bom humor das personagens idosas (TODARO, 2008, p. 67). Novos velhos é uma categoria que traduz uma velhice ativa, independente e autônoma (TODARO, 2008, p. 68).
Ao buscarmos categorizar os títulos dos livros, no presente estudo, lemos as sinopses divulgadas nossitesvisitados. Nelas, encontramos termos recorrentes, como: sábio; engraçada; doença; morte; sozinha; confusa; hilária; aventura; mágico; imaginação; jogar; trabalhar; casar; e dançar. O uso das palavras nas sinopses é um indicativo daquilo que as obras trazem em seus conteúdos.
Após a análise da amostra, concluímos que há livros que trazem histórias com diferentes personagens idosos. Há personagens, por exemplo, que são apresentados como sábios, e há aqueles que vivem uma velhice ativa. A categorização por imagens é uma forma de organizarmos as temáticas para compreendermos quais foram as mais enfocadas na amostra. Foi possível perceber que, quanto mais detalhada é a trama, mais imagens circulam na obra fazendo com que ela retrate a velhice em sua heterogeneidade.
O que é importante ressaltarmos, nesse estudo, é a pequena quantidade de livros que trazem personagens idosas estereotipadas e o grande número de obras que retratam a velhice como uma etapa do ciclo da vida que pode ser vivida ativamente. A análise da amostra indica que os livros tratam de diferentes velhices, cada um à sua maneira, não indicando a idade cronológica, mas o papel social de avós ou a denominação de “velhos”. A problematização da complexidade dessa etapa da vida, que é resultante da interação entre as condições econômica, social, educacional e de saúde, terá mais potência se forem apresentadas às crianças, como instrumento educativo, pelo menos uma de cada imagem sobre velhice: estereotipadas; realistas; fantásticas; divertidas; e novos velhos.
Considerações finais
Em linhas gerais, esse estudo revelou a presença de personagens idosas na literatura, destinada a crianças, publicada no Brasil entre os anos de 2000 e 2019. Todavia, tal presença comparada ao acelerado processo de envelhecimento populacional e à necessidade de inserção da temática velhice na educação, nos faz refletir se tais livros estão nas bibliotecas das escolas de Educação Básica. Isso porque o acesso à linguagem literária se dá muito mais via instituição escolar do que instituição familiar. Visto que vivemos em um país desigual economicamente e em termos de nível de escolarização, é importante que o Estado invista em políticas públicas de fomento à leitura.
Quando pensamos em educação gerontológica, mais especificamente em umageroalfabetização, questionamo-nos se tais obras são conhecidas por formandos e formados em Educação e em Gerontologia que têm, ou não, em suas matrizes curriculares, conteúdos ligados à temática em questão, visto que trabalharão direta ou indiretamente com as crianças e com as pessoas idosas. Além disso, preocupa-nos se tais livros estão disponíveis nas bibliotecas escolares, o que merece outra pesquisa.
A literatura infantil, ao propor a representação da velhice, propicia um interessante processo de aprendizagem para as crianças que têm, ou não, contato com pessoas idosas em suas famílias. Coloca em movimento discursos sobre os diferentes modos de viver o processo de envelhecimento por meio das narrativas apresentadas. Por isso, ela traz uma importante contribuição para a área da Educação.
Em uma visão otimista, é possível afirmarmos que a literatura infantil, como meio simbólico, pode ser considerada como um valioso instrumento educativo para rever atitudes em relação à velhice. As obras trazem para o contexto educativo, formal, não formal ou informal, um tema que pode fomentar o respeito pelo outro que não tem a mesma idade que a criança.
Geroalfabetizar pode ser uma ação educativa cuja intenção seja proporcionar experiências de leitura nas quais a personagem idosa passe a ser associada aos diferentes modos de ser na velhice. O termogeroalfabetização,cunhado por Todaro (2020, p. 3) no seu projeto de Pós-Doutorado, significa “[...] ensinar as crianças a lerem, com criticidade, um mundo que envelhece e a escreverem uma nova história sobre sua velhice no futuro, lutando por uma vida digna e boa para pessoas de todas as idades”. Acreditamos que o protagonismo idoso inverte o processo histórico que sempre colocou a velhice como uma etapa da vida inferior em relação à juventude.
O atual perfil demográfico brasileiro afeta as instituições de ensino e requer modificações urgentes na gestão escolar, de forma a lidar melhor com esse novo contexto, geroalfabetizando. Se os livros destinados às crianças colocam as personagens idosas em movimento, então é necessário que, nas escolas, os profissionais da Educação selecionem diferentes obras para garantir que todos entrem em contato com a diversidade etária.
Podemos apontar algumas limitações metodológicas dessa pesquisa para futuros aperfeiçoamentos e futuras investigações. Em primeiro lugar, destacamos que, como a amostra foi coletada com base em apenas trêssitesde consulta, isso pode ter limitado, quantitativamente, o encontro de obras, publicadas no Brasil, entre os anos de 2000 e 2019, que tratam do tema velhice. Consideramos, ainda, a possibilidade de que futuras investigações levantem dados sobre a ocorrência dos termos no interior das obras, ou melhor, em seus conteúdos e não apenas nos títulos. Por fim, salientamos a importância de mais estudos sobre a temática que possam auxiliar na compreensão dos discursos sobre idosos que circulam nos livros que são, ou serão, oferecidos às crianças, via profissionais formados em Gerontologia e em Educação, instituições de ensino (formal ou não formal) e/ou familiares.
Concluímos que, mediante uma amostra tão vasta e disponível no mercado editorial brasileiro, torna-se possível partilhar diferentes obras que circulam na literatura infantil e que podem potencializar, nas crianças, a construção de novas concepções de velhice, visto que é pelas linguagens que expressamos pensamentos e sentimentos. Contudo, diante do escopo limitado desse artigo, não foi possível discutirmos as complexidades que envolvem os conteúdos e a interpretação dessas obras, uma vez que seria necessário levar em conta as questões atinentes à leitura e à interpretação dos textos completos. Dito isso, propomo-nos a seguir nos aprofundando no estudo do tema.