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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 12-Dez-2023

https://doi.org/10.5902/1984644438948 

Resenha

Lugar de fala?

Review of Place of speech?

1Doutorando na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: lucarato@gmail.com.

2Doutoranda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: deiseandreia@gmail.com.


Em uma conjuntura de intolerâncias institucionalizadas e silenciamentos legalizados pelo poder dominante em que reverberam machismos, racismos e LGBTTfobias1, a obra Lugar de fala, primeiro livro da coleção Feminismos Plurais, apresenta, de maneira didática e atrativa, a pluralidade de vozes, epistemologias e saberes que contestam a universalidade eurocêntrica firmada historicamente nos princípios dabranquidade2, da masculinidade e da heterossexualidade. Na obra resenhada, a autora discorre sua análise centrada em conceitos de intelectuais negras, com destaque para o pensamento de Lélia Gonzalez, bel lhooks3, Linda Alcoff, Patricia Hiil Collins, Grada Kilomba, Sueli Carneiro, Audre Lorde e Luiza Bairros4

Djamila Ribeiro é uma filósofa negra natural de Santos -SP. Seu nome, de origem africana, foi uma escolha de seu pai, que se tornou uma de suas grandes referências e influências. Ainda muito jovem, iniciou sua participação naCasa da Cultura da Mulher Negra,espaço de resistência e organização santista, onde passou a estudar e a se relacionar com temas relacionados a gênero e raça. Graduou-se e se tornou mestra em Filosofia, com ênfase em teoria feminista. Em maio de 2016, foi nomeada secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo durante a gestão do prefeito Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores. É colunistaonlineda Carta Capital, dositeBlogueiras Negras, da revistaAzminae tem forte presença nas mídias digitais. Entre seus principais temas de atuação destacam-se: relações raciais, gênero e feminismo.

O livro encontra-se dividido em quatro seções: 1 - Um pouco de história; 2 - Mulher negra: O outro do outro; 3 - O que é lugar de fala; e 4 - Todo mundo tem lugar de fala. Apesar de a autora não ter numerado a obra em partes, optou-se por assim proceder, para tornar mais didático o desenvolvimento dessa resenha.

A primeira seção, intituladaUm pouco de história, está centrada no percurso e na luta das intelectuais negras ao longo da história. A afro-americana e abolicionista Sojouner Truth é um exemplo daprimeira onda.5 Nascida num cativeiro em Nova Iorque, no século XIX, Truth tornou-se abolicionista, e seus discursos atentavam para os limites do feminismo hegemônico que universalizava a categoria mulher, abdicando, assim, da análise de outras intersecções como raça e orientação sexual. Voz dissonante do feminismo hegemônico demonstrava a urgência de existir e evidenciar insurgências e novas narrativas.

Ribeiro apresenta perspectivas propostas pela feminista negra Lélia Gonzalez, que criticava a hierarquização dos saberes, alicerçada na lógica eurocêntrica e um modelo universal de ciência que determinava quem podia, ou não, falar e quais vozes eram, ou não, legítimas. Para aprofundar essa análise, cita-se a filósofa Linda Alcoff, que questiona a imposição de uma epistemologia universal, desconsiderando outros saberes e outras cosmogonias. Descolonizar o conhecimento exige olhar a identidade social, não somente visando a evidenciar como a colonização criou essas identidades, mas para perceber como elas têm sido historicamente silenciadas e desautorizadas. Uma descolonização epistemológica exige pensar na identidade e na localização para a construção do conhecimento.

Os críticos das teorias abordadas no livro nomeiam seus pensadores como aficionados por políticas identitárias .A autora conclui a seção negando essa pecha e destacando a importância de desvelar o uso que as instituições fazem das identidades, a fim de oprimir, privilegiar e entender como o poder e as identidades funcionam de forma conjunta, ligadas ao seu contexto, como é o caso do colonialismo. Logo, essas teorias não são reducionistas, pois defendem que as desigualdades são criadas pelo modo como o poder engendra as identidades.

Na segunda seção,Mulher Negra: o outro do outro, Ribeiro aponta que para o feminismo negro falar a partir das mulheres negras é uma premissa limitada por um olhar colonizador, que coloca a mulher em comparação ao homem. Simone de Beauvoir cunha a categoria doOutrona medida em que, em seu percurso filosófico, a mulher não é definida em si mesma, mas em relação e através do olhar do homem. Se, para a filósofa francesa, a mulher é oOutro,a professora e pesquisadora afro-portuguesa Grada Kilomba sofistica essa percepção e propõe a ideia de mulher negra como ooutrodoOutro. Desta forma, critica a pretensa universalidade, que apaga as diferenças existentes e que marca somente parte dessas mulheres, no caso, as brancas. Para fugir dessas análises simplistas e romper com a tentação de fazer generalizações, o olhar interseccional mostra-se fundamental.

Definir-se é umstatusimportante de fortalecimento e de transcendência às normas colonizadoras, que resulta, nesse local, ser oOutro do Outro.O conceito deoutsider within, que na tradução literal seria algo como “forasteira de dentro”, da feminista negra Patricia Hill Collins, é utilizado para pensar a posição da mulher negra dentro dos espaços feministas, pela maneira como é vista e tratada dentro do próprio movimento. A autora cita Collin para afirmar que a posição deoutsider withinresulta num não lugar, local doloroso, mas igualmente potente às lutas imprescindíveis.

O desfecho dessa seção enfatiza as contribuições da teórica brasileira Sueli Carneiro, que apresenta uma perspectiva de compreensão da categoria mulher negra e a necessidade de que os movimentos feministas pensem em maneiras de combater a opressão racial, já que o racismo também determina hierarquias de gênero; e da feminista negra, caribenha e lésbica, Audre Lorde, que ressalta a importância de não hierarquizar as opressões e nem negar uma identidade para afirmar outra, o que legitima um discurso excludente.

Já na terceira seção, intituladaO que é lugar de fala?, encontra-se o bojo da discussão proposta pelo livro. A autora aponta que o conceitolugar de falasurgiu, provavelmente, da discussão sobre ofeminist standpoint, traduzindo-se comoponto de vista feminista. A hipótese proposta é que, a partir da teoria doponto de vista feminista, é possível falar dolugar de fala, que é um dos objetivos do feminismo negro. Marcar o lugar de quem propõe essa análise se torna necessário para entender as realidades consideradas implícitas dentro da normalização hegemônica. Não se trata de uma referência predominante aos indivíduos, mas às condições sociais que permitem, ou não, que determinados grupos acessem lugares de cidadania. Não se nega a perspectiva individual, mas é enfatizado o lugar social que os indivíduos ocupam a partir da matriz de dominação. Ofalarnão se resume em emitir sons, mas em poder existir. Assim, o lugar de fala é entendido como um ato de refutar a historiografia tradicional e a hierarquização dos saberes que resultam da hierarquia social.

O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar; porém, o lugar que se ocupa socialmente resulta em experiências distintas e diferentes perspectivas. Refutam-se as visões universais promovendo uma multiplicidade de vozes e, acima de tudo, é quebrado o regime de autorização discursiva. Aprofundando essa questão, a autora cita as contribuições teóricas de Luiza Bairros, com foco na indissociabilidade das diferentes experiências de opressão, como: raça, gênero, classe e sexualidade. Segundo Bairros, elas se entrecruzam e, por isso, não pode haver uma hierarquia das opressões. A escuta por parte de quem sempre falou é uma tarefa difícil. O não ouvir é tendência cômoda e confortável daqueles que, historicamente, falaram sobre osOutros. Essas novas narrativas geram conflitos nomeados por alguns comomimimi,6 entendidos na obra como fundamentais para as mudanças necessárias.

A quarta e última seção,Todo mundo tem lugar de fala, estabelece a ideia de que todos têm lugares de fala, pois estão inseridos numa localização social. Falar a partir desses lugares é romper com a lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, mas que os indivíduos pertencentes a um grupo social privilegiado, em termos delocussocial, consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar. O fundamental é perceber que ambos os grupos falam de lugares que são distintos.

É inequívoca a relevância deste trabalho, ao tratar do temafeminismo negroe dolugar de fala, sob uma ótica que potencializa novos olhares e novas epistemologias, que descolonizam o ser, o saber e o viver. Em tempos de retrocessos, as pautas relacionadas às mulheres, aos negros e à comunidadeLGBTTdesacomodam e instigam a pensar como o local social determina experiências e diferentes perspectivas que dão voz ou calam ooutro.

Referências

PINHEIRO, Adevanir A. O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante. São Leopoldo: Casa Leiria, 2014. [ Links ]

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala? São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. [ Links ]

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Recebido: 08 de Julho de 2019; Aceito: 20 de Outubro de 2020; Publicado: 10 de Março de 2021

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