Apresentação
Embora sejam observadas ações voltadas para a melhoria da segurança em ambientes potencialmente de risco, nota-se que algumas parcelas da sociedade ainda necessitam de ferramentas e recursos que possam transmitir de forma clara e objetiva informações fundamentais que circulam nesses ambientes. Neste sentido, destaca-se a Comunidade Surda e Surdocega que trabalha, pesquisa e faz uso de laboratórios, locais esses em que devem ser praticadas certas medidas para minimizar a ocorrência de acidentes. O objetivo geral deste trabalho é apresentar um Glossário multilíngue ilustrado de Biossegurança para Surdos e Surdocegos.
Com a chegada ao Brasil do vírus SARS-CoV-2, a Pandemia de Covid-19 consolidou-se no país em março de 2020. Assim, temas relacionados a essa doença ganharam bastante evidência na vida do brasileiro, acarretando ao uso cotidiano palavras técnicas que eram empregadas somente dentro da área de saúde e biológicas. Tais palavras começaram a fazer parte do dia a dia da população em geral, como máscaras N95, máscaras cirúrgicas, luvas, equipamentos de proteção individual (EPI), risco, perigo, álcool gel 70o, distanciamento social, vacinação, tipos de vacinas, dentre outros termos que precisaram ser esclarecidos para a população leiga para ajudar no entendimento e combate a essa pandemia. As Comunidades Surda e Surdocega, já pertencentes a grupos de pesquisa ou que de alguma forma manuseavam equipamentos de laboratórios, necessitavam estreitar relações com as informações até então transmitidas.
Dessa forma, a comprovada carência de materiais e meios de divulgação de grande parte dos sinais nas áreas de Saúde e Biossegurança, bem como os novos sinais surgidos durante a Pandemia, precisaram ser amplamente difundidos para as Comunidades Surda e Surdocega. Por isso, a presente pesquisa se inicia a partir de uma revisão de literatura especializada nessa temática, para depois avançar nas investigações e nos levantamentos dos recursos digitais existentes em Libras, estreitando o conhecimento adquirido pelas Comunidades Surda e Surdocega, principalmente nas áreas de Saúde e Biossegurança. Como resultado será apresentado o Glossário Multilíngue de Biossegurança, que integra os resultados obtidos na pesquisa de doutoramento de FRANCISCO, 2022.
Biossegurança em laboratórios
Diversos fatores que envolvem os laboratórios os tornam ambientes complexos em termos de biossegurança, isto porque eles podem integrar seres humanos, animais, vegetais, manipulação de substâncias e compostos químicos perigosos à saúde, como substâncias irritantes, neurotóxicas, carcinogênicas, além de microrganismos patogênicos que apresentam diferentes níveis de risco à saúde humana.
Esse assunto torna-se ainda mais importante quando se examina o cotidiano e a atuação de qualquer profissional presente nesses locais. Neste contexto de prevenção de acidentes é preciso que o profissional possua um conhecimento prévio dos riscos envolvidos, mantendo a sua atenção focada nos passos a serem seguidos para o manuseio dos reagentes, obedecendo e acatando as rígidas normas de segurança requeridas e indicadas pelo Ministério da Saúde (MS).
A classificação dos riscos biológicos, criada pelo MS, está descrita no documento Classificação de risco dos agentes biológicos2, que apresenta os cinco níveis de exposição que devem ser cuidadosamente observados para que a prevenção ocorra de forma eficiente:
Risco 1: baixo risco individual e para a comunidade por agentes biológicos conhecidos por não causarem doenças no ser humano ou nos animais adultos sadios.
Risco 2: moderado risco individual e limitado risco para a comunidade por agentes biológicos que provocam infecções no ser humano ou nos animais, com disseminação limitada no meio ambiente.
Risco 3: alto risco individual e moderado risco para a comunidade, causado por agentes biológicos, em especial por via respiratória.
Risco 4: alto risco individual e para a comunidade e rápida contaminação na comunidade, com riscos graves à saúde e que podem levar à morte. Neste caso, os agentes biológicos possuem alto poder de transmissibilidade, por via respiratória ou de transmissão desconhecida.
No entanto, nem sempre tais conhecimentos estão disponíveis de forma acessível para os profissionais que atuam em laboratórios e são surdos.
Integração da Comunidade Surda no meio acadêmico e o ensino de Biotecnologia nas universidades
A literatura descreve trabalhos que procuraram tratar da temática biotecnologia e surdez e/ou inclusão, tais como: Dias e Campos3, que mencionam a educação inclusiva e o ensino de Ciências; Fernandes e Lage4, que abordam o ensino de Biotecnologia como uma proposta inclusiva para Surdos; e Malajovich5, sobre a apresentação de conteúdos em Biotecnologia e manuais de atividades práticas na vida cotidiana com enfoque em ensino e divulgação.
Ainda que relevantes, esses trabalhos não resultaram em estratégias de longo alcance como sites bilíngues que permitem aos Surdos, professores e intérpretes ter acesso contínuo, atemporal e de qualidade aos conteúdos desenvolvidos. Com relação à expansão lexical, Oliveira (2015, p. 33)6 afirma:
Mesmo com a inserção de pessoas Surdas nos espaços acadêmicos (...) manteve-se a prática comumente utilizada em situações de interpretação simultânea, inclusive em áreas de especialidade: estudo prévio do assunto e combinações provisórias para representar as unidades lexicais (sinais).
A respeito da produção de materiais na área da surdez, nota-se a necessidade de encontrar o vocabulário em Libras correspondente ao léxico científico registrado nos livros didáticos das mais variadas áreas do conhecimento. Neste sentido, diversas pesquisas são impulsionadas com relação à área de Ciências e Biotecnologia, com o intuito de criar/aperfeiçoar materiais que registram termos específicos para o desenvolvimento dos recursos tecnológicos usados por pesquisadores e estudantes da Comunidade Surda e demais interessados.
Normas e legislações para inclusão e acessibilidade da Comunidade Surda
Em 24 de abril de 2002 foi criada a Lei 10.436 que, em seu artigo 1º, reconhece a Língua Brasileira de Sinais e outros recursos de expressão associados como meio legal de comunicação e expressão7. É considerada uma das leis mais importantes para a Comunidade Surda do país, promovendo maior visibilidade à Libras por meio de iniciativas que buscavam torná-la cada vez mais acessível.
É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de Comunidades de pessoas Surdas do Brasil (BRASIL, 2002, art. 1º).
Conforme apresentado anteriormente, é possível verificar que o art. 1º manifesta o reconhecimento à Libras, esclarecendo objetivamente a respeito das diferenças entre esse sistema linguístico e a Língua Portuguesa. Desta forma, evidencia-se a independência da Libras e sua estrutura gramatical própria. Outra legislação que trata das questões para a Comunidade Surda é o Decreto 5.626/05, que regulamenta a Lei 10.436, de 24 de abril de 2002.
Destaca-se, ainda, a existência de barreiras de comunicação para proporcionar acessibilidade das pessoas surdas em função de aspectos sociais e culturais, principalmente quando se trata de políticas públicas adequadas na área da Educação, na qual aspectos de igualdade podem ser ampliados de modo considerável. Nesse sentido, a Lei 10.098, conhecida como “Lei de Acessibilidade”, promulgada em 19 de dezembro de 2000, esclarece em seu Art. 18:
O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação (BRASIL, 2000).
Chaveiro e Barbosa (2005) discorrem que a acessibilidade e a assistência ao Surdo na área da Saúde se relacionam como aspectos que devem estar vinculados ao fator de inclusão social. Segundo elas, a colaboração e o empenho dos profissionais para a construção de uma sociedade mais inclusiva.
Os usuários portadores de deficiência auditiva se deparam com uma dificuldade acrescida, devido ao problema da comunicação interpessoal, pois no momento de acolhida o usuário surdo precisa comunicar sua necessidade e ser orientado quanto à conduta a ser seguida (TEDESCO; JUNGES, 2013, p. 1686).
A partir do Decreto 5.626/05 busca-se igualar os direitos dos alunos Surdos diante dos demais estudantes ouvintes, considerando as dificuldades enfrentadas por eles ao longo dos anos para garantir uma inclusão social e “deslocando essa educação das discussões gerais sobre a especial e constituindo-a como uma área específica de saber” (LODI, 2013, p. 53).
A Lei Federal 12.319/2010 regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras, considerada uma enorme conquista para os profissionais da área, estabelecendo aspectos legais voltados para sua formação, as atribuições necessárias para o exercício da profissão e os direitos e deveres associados ao exercê-la. Levando em conta a relevância da Libras no âmbito educacional, é importante mencionar que muitos intérpretes não possuem formação e capacitação apropriadas, “pois a maioria se qualifica em uma especialidade e atua em praticamente todas as áreas, o que torna o trabalho bastante árduo e sem a devida qualidade” (Ibid., p. 43).
A Lei 13.146, promulgada em 6 de julho de 2015, conhecida como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), está “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015, art. 1º). A partir da legislação em questão foram concebidas novas prioridades e reforçadas outras já existentes, com base na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (Ibid.).
Por fim, é válido mencionar a respeito da Lei 14.191, de 3 de agosto de 2021, que altera a Lei de 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e dispõe sobre a modalidade de educação bilíngue de Surdos. A educação bilíngue em Libras e em Português como segunda língua também é garantida pelo Plano Nacional de Educação (PNE), a partir da Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão, e, mais recentemente, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB.
Dificuldades para a Comunidade Surda no acesso à informação em Biossegurança e Saúde
Cada vez mais observa-se que uma das maiores dificuldades no ensino de Ciências para Surdos, mais especificamente na área de Biossegurança, é a barreira linguística, pois sem linguagem constituída o surdo fica à margem do processo de ensino-aprendizagem. Sabe-se que a linguagem oral é social, e funciona como um elo comum de interação entre as pessoas. A surdez dificulta ou impede que o indivíduo adquira a linguagem oral, comprometendo, assim, seu processo de socialização. Então, é necessário trabalhar com os surdos, convenientemente, os conceitos científicos em língua de sinais envolvendo conhecimentos abstratos, de modo que eles possam apropriar-se desses conceitos como estes são entendidos na modalidade da língua escrita.
A respeito das necessidades de pessoas Surdocegas, verifica-se, ainda, a carência de materiais acessíveis nas áreas da Saúde e Biossegurança. A pessoa Surdocega, seja ela congênita ou adquirida, carece de um aprendizado na área comunicativa/adaptativa capaz de possibilitar uma melhor interação com as demais pessoas da sociedade e, consequentemente, que também possa contribuir no processo de inserção no mercado de trabalho, na educação superior e em diversas outras áreas.
Observa-se, então, que grande parte dos recursos de acessibilidade atualmente disponíveis em sites, materiais impressos ou digitais e plataformas virtuais de disseminação de conteúdo necessitam de adequações para atender de maneira efetiva ao público Surdocego.
Pandemia de Covid-19 e as informações em Libras
A partir da instalação da Pandemia de Covid-19 no Brasil em 2020, surgiram diversos questionamentos com relação à transmissibilidade, contágio, sintomas e outras dúvidas que foram sanadas conforme as pesquisas sobre o vírus avançavam. Acompanhando as necessidades da Comunidade Surda em adquirir informações sobre a doença, observou-se a criação de sinais relacionados com o vírus que se modificaram com o passar dos meses.
Enquanto o vírus sofria mutações e eram descobertas novas informações sobre a doença, os sinais eram readequados e outros foram criados, o que contribuiu para o entendimento das questões que envolviam o vírus e suas formas de atuação no organismo humano. Tais variações foram fundamentais para a consolidação do status linguístico da Libras, visto que favorecem a ampliação do léxico da língua.
Complementarmente, buscou-se analisar as produções de materiais em Libras sobre a Covid-19 durante a Pandemia. Nesse sentido, a pesquisa de Francisco et al. (2021) aborda os materiais de inclusão para Surdos e deficientes auditivos de 123 universidades públicas e institutos federais do Brasil, sendo 48 estaduais e 75 federais, realizada entre março e setembro de 2020. Ao final desse estudo, os autores verificaram a existência de materiais bilíngues disponibilizados em diferentes mídias sociais, como: YouTube (38,29%), sites das universidades (25,53%), Facebook e Instagram (19,14%), e outros (17,02%).
Além dos materiais levantados nessa pesquisa que estão hospedados na internet, foram observados materiais desenvolvidos em universidades federais - que representaram 63,8% das produções - e nas universidades estaduais - que totalizam 27,7%. As demais instituições que elaboraram materiais representam cerca de 8,5% do total.
Considerando que muitos dos termos utilizados em Português concebidos durante a Pandemia de Covid-19 ainda não existem de forma correspondente em Libras, destacam-se dois fatores importantes que estão diretamente relacionados com o vírus: os riscos associados à saúde dos surdos e as dificuldades de comunicação deles com os profissionais de saúde.
Aspectos de lexicografia e terminologia da Libras
Nosúltimosanos,houve um aumento no númerode pesquisadores da Comunidade Surda na pesquisa de diversos temas, principalmente temas relacionados aos Surdos como língua, cultura, identidades,educação, dentre outros. Nesse movimento, a Língua Brasileira de Sinais se torna uma língua acadêmica, tantode produção quanto de circulação de conhecimento.
Segundo Castro Júnior (2011), as línguas de sinais possuem gramática, léxico, semântica, pragmática e sintaxe, ou seja, toda a base de constituição que possibilita a sua análise científica.
No ano de 2009, dois pesquisadores Surdos na Universidade de Brasília - UnB, sob a orientação da Professora Dra. Enilde Faulstich, juntamente com os discentes de sua turma na pós-graduação, promoveram a discussão em torno do valor do sinal no meio de textos científicos. Assim, a partir da reflexão de Faulstich (2013, s.p.), surgem as seguintes definições:
Sinal. 1. Sistema de relações que constitui de modo organizado as línguas de sinais. 2. Propriedades linguísticas das línguas dos surdos. Nota: A forma plural - sinal - é a que aparece na composição língua de sinais. Termo. Palavra simples, palavra composta, símbolo ou fórmula que designam os conceitos de áreas especializadas do conhecimento e do saber. Também chamado unidade terminológica.
Ao trabalhar com o registro do léxico necessita-se também olhar o registro dos sinais da Libras, pois ambos estão relacionados e precisam ser olhados como um fenômeno que repercute e organiza a língua, e por isso, na língua de sinais, essa análise não deve ser diferente.
Nesse sentido, Costa (2012, p. 35) complementa: “parâmetros são entidades visuais que formam significados, científicos ou não científicos”. Como exemplo, o autor ilustra o sinal-termo “coração de bebê”, descrevendo os parâmetros que o compõem (Figura 1), apresentado com clareza para facilitar a sua compreensão.
Com relação à criação de sinais em Libras, o autor explica que “(...) em vista da expansão terminológica que a área do conhecimento exige, utilizamos as palavras comuns da Libras como base para criar novos sinais-termo” (Ibid., p. 47). O referido trabalho explica o conceito de sinal-termo em obras lexicográficas e terminográficas, em que é destacada a diferença entre o sinal comum correspondente ao léxico geral e o sinal-termo que alude ao conceito científico de determinada área.
Para Daniela Prometi (2013, p. 43), o procedimento de criação dos sinais-termo é precedido por algumas etapas: “analisamos a configuração de mãos, o movimento, o ponto de articulação, a orientação de mão e as expressões não manuais, que são importantes na formação dos sinais-termo (...)”. Já Douettes (2015) levanta questionamentos a respeito da constituição e apresentação de glossários em língua de sinais.
É preciso refletir sobre até que ponto os glossários de Libras/Português são realmente eficazes para o consulente surdo, já que apresentam o significado do léxico em Língua Portuguesa, uma língua que a maioria dos sujeitos surdos não domina fluentemente. Essas e outras são questões a se considerar nas futuras pesquisas nesta área (2015, p. 219).
A respeito das estruturas bilíngues, Faulstich (2013) evidencia que:
Um elaborador de glossário ou de dicionário bilíngue português-língua de sinais brasileira e vice-versa precisa conhecer as duas línguas para, necessariamente, representar os léxicos de acordo com os conceitos em harmonia. Harmonizar as línguas é combinar seus sistemas, de tal forma que, no léxico, o resultado apareça no bilinguismo explícito em conformidade conceitual entre os itens lexicais. Nesse caso, não basta traduzir a língua de sinais para o português e o português para a língua de sinais, porque poderá prevalecer, na língua de sinais, palavras soletradas manualmente (FAULSTICH, 2013, p. 5).
Conforme explicado por Tuxi (2017, p. 35), “Faulstich (2013) mostra que o glossário bilíngue não é apenas uma obra traduzida (...), mas sim dois sistemas linguísticos que (...) possuem constituições do termo e do sinal-termo diferenciadas”. Segundo informado pela autora, tal distinção possui relação direta com a “representação conceitual que cada léxico especializado tem nas respectivas línguas e na modalidade linguística diversa” (TUXI, 2017, p. 35).
Macroestrutura e microestrutura de glossários bilíngues
A macroestrutura contempla todas as partes necessárias que devem compor uma obra terminográfica e/ou lexicográfica: prefácio, introdução, especificações tanto para a forma de uso quanto a ordem de registro, anexos, bibliografia e, caso existam, ilustrações, fotos e mapas. De acordo com Tuxi e Felten (2018, p. 92):
Macroestrutura é entendida como o conjunto de informações e identificação de um glossário constituído de elementos que indicam a forma de registro, bem como sua organização. (...) A macroestrutura inclui, além dos verbetes, os textos que explicam ao usuário a composição da obra para fins de facilitação de consulta. Serve também para organizar o macrodiscurso do repertório, por meio do qual se identifica quem o elaborou, para quem definem e com intenção. Não pode faltar a apresentação, porque nela aparece a composição da obra (FAULSTICH, 1995, p. 10).
Por outro lado, a microestrutura corresponde à parte interna da obra e está relacionada ao verbete pronto, que, para Faulstich (1995, p. 23), corresponde ao local “onde ocorre a organização dos dados”.
A estrutura das obras lexicográficas e terminológicas diz respeito à macroestrutura e à microestrutura, e às suas bases teóricas extensivas tanto à Lexicografia quanto à Terminologia. A macroestrutura apresenta a organização das entradas, o número de entradas e as partes complementares, a parte introdutória e os anexos. Já a microestrutura corresponde à organização interna dos termos e aos conjuntos de informações e detalhes nos termos (MARTINS et al., 2018, p. 78).
Contudo, é válido mencionar que, segundo Martins et al. (2018, p. 82): “não há padrão para as informações dos termos, cada glossário ou dicionário tem suas estruturas”. Com relação aos verbetes, Barros (2004) explica que devem ser considerados três importantes aspectos na microestrutura: a quantidade de informações transmitidas no enunciado, a constância de informações dos verbetes numa mesma obra e a ordem sequencial em que se organizam tais informações.
Para Tuxi (2017, p. 108): “a Terminografia é a área responsável pelo estudo e pela elaboração de glossários, léxicos, e dicionários especializados de uma determinada área”. Conforme explica a autora, o glossário bilíngue descreve dois termos escritos em línguas distintas. A partir da visão de Faulstich (2010, p. 175), simplesmente o ato de registrar duas línguas não configura a obra como bilíngue: “(...) não é somente a presença de duas línguas que torna um dicionário bilíngue, mas principalmente o motivo pelo qual as duas línguas são postas em contato”.
O sinal-termo é uma entidade com características do termo da linguagem especializada da Língua de Sinais Brasileira. Denota conceitos e representações linguísticas tal qual o termo nas línguas orais, pois detém os aspectos e as estruturas de conteúdo específico, que dizem respeito às peculiaridades próprias de cada área especializada (TUXI; FELTEN, 2018, p. 109).
A constituição de glossários bilíngues segue as definições de Felten (2016) e Tuxi (2017), a saber: glossários bilíngues possuem dois sistemas terminológicos e, portanto, teria como língua-fonte para os surdos a língua de sinais (L1), e o português como língua-alvo (L2). No registro e organização de obras bilíngues destinadas aos Surdos, recomenda-se utilizar a língua de sinais como L1.
Proposta de um Glossário Multilíngue Ilustrado 2D contendo sinais-termo relacionados à Biossegurança e Saúde
Quando a Pandemia se instalou no Brasil, surgiu a necessidade de buscar meios de contribuir com a Comunidade Surda. Um deles foi a partir do Glossário multilíngue ilustrado com termos específicos sobre o vírus, a fim de evitar equívocos ou desinformação, considerando a ausência de sinais e as possíveis dúvidas que poderiam acarretar graves problemas de comunicação e informação.
Para isso, foi necessário contar com a colaboração dos intérpretes e tradutores de Libras, que se encarregaram de divulgar e tornar esses sinais acessíveis e claros para a Comunidade Surda. Nesse sentido, a fim de que tal proposta obtivesse êxito, foi realizado um levantamento a fim de verificar a existência de sinais sobre o Coronavírus.
É importante ressaltar que, devido às variações presentes na Libras, pesquisaram-se minuciosamente os diversos dicionários (on-line e impressos), sites de universidades contendo glossários em Libras, aplicativos para celulares existentes no mercado e até mesmo vídeos presentes no YouTube que pudessem conter discussões sobre o tema.
Outra questão observada durante a pesquisa se volta a alguns pesquisadores e suas preocupações com o formato de glossário e sinalários, inserindo a macroestrutura e a microestrutura que utiliza o nome de sinais-termo sem uma pesquisa com lexicólogos Surdos ou pessoas Surdas que atuam com experiências em glossários. Tal situação remete às teorias sem validação na prática, pois não apresenta uma imagem do sinal nem sequer conta com os três parâmetros da língua de sinais: Configuração de Mãos (CM), Ponto de Articulação (PA) e Expressão Facial e Corporal.
Inicialmente, a escolha das palavras-chave “biossegurança”, “saúde”, “Libras”, “recurso acessível” e “terminologia” expressam as ideias centrais desta pesquisa e, portanto, foram utilizadas para facilitar a busca pelo leitor. Além disso, as investigações realizadas estão fundamentadas em Faulstich (1997; 2001; 2013) e nos estudos lexicais de Castro Júnior (2014), Andrade (2019) e Pereira (2021), seguindo a metodologia proposta por Tuxi (2017).
Diante da relevância social mencionada inicialmente no presente trabalho, é necessário ponderar sobre a inclusão de alunos Surdocegos nos espaços acadêmicos e quebrar barreiras linguísticas, proporcionando igualdade de direitos nas áreas científicas e de educação. Portanto, o site a ser utilizado para hospedar o material desenvolvido contará com acessibilidade para Surdos e Surdocegos, visto que a maioria dos sites de universidades levantados no presente estudo dispõem apenas de um único sistema para atribuir páginas com contraste.
Com o intuito de apresentar a metodologia seguida, o Quadro 1 demonstra as etapas que serviram de base para o desenvolvimento do Glossário multilíngue. Nele, observa-se a primeira etapa de definição do objetivo da pesquisa e a seleção do público-alvo. Com relação a este último, é válido mencionar que os sujeitos da pesquisa são professores, biólogos, universitários, pesquisadores e surdos que atuam em laboratórios.
Fonte: Elaborado por FRANCISCO (2022).
O Código de Resposta Rápida - do inglês Quick Response Code (QR Code) -é uma ferramenta considerada inovadora na área tecnológica.
Por ser um código de baixa complexidade para leitura, até mesmo celulares considerados simples, desde que possuam câmera de vídeo, têm a capacidade de “ler” o código, o que significa que o QR Code se tornou uma tecnologia acessível para todos e sem custos para quem consome ou fabrica (TUXI, 2017, p. 176).
Após a filmagem e a edição dos vídeos de conceito e exemplo, estes foram publicados no YouTube e, posteriormente, gerados os QR Codes para cada um ser acessado. Todos os vídeos que correspondem à ficha terminológica possuem a opção do QR Code e o link para consulta, e ambos estão hospedados nos siteswww.libras.uff.br e http://glossariolibras.com.br.
Fichas terminológicas como parte integrante fundamental para a elaboração do Glossário Multilíngue Ilustrado
As fichas terminológicas fazem parte da metodologia de produção de dicionários e glossários. Segundo Fromm (2005, p. 2): “a criação de uma ficha terminológica é essencial para o desenvolvimento de um vocabulário técnico”. O autor propõe também a informatização das fichas terminográficas que constroem os bancos de dados dos dicionários e glossários terminológicos.
Existem vários modelos de ficha terminológica, algumas mais simples e outras mais complexas. Neste sentido, optou-se por utilizar a proposta de Andrade (2019) a partir da adaptação de um modelo de ficha terminológica. Após a coleta, foram elaboradas e organizadas as fichas terminológicas em Libras, Língua de Sinais Americana (ASL), Língua de Sinais Chilena (LSCh) e Língua de Sinais Argentina (LSA).
Esta etapa foi dividida em: organização dos sinais-termo; busca de definições dos termos em obras lexicográficas de referência; organização de questionário e de sinais-termo; validação dos sinais-termo; registro provisório arquivado em meio digital; análise e preenchimento das fichas terminológicas; elaboração das ilustrações e da escrita dais dos sinais-termo; e a elaboração dos links para YouTube e do QR Code.
Divulgação dos resultados obtidos ao final do estudo
O Glossário de Libras do Coronavírus foi disponibilizado no canal do YouTube da Unitevê - a TV Universitária da Universidade Federal Fluminense (UFF) - e possui adesão de 10 mil inscritos. O vídeo atingiu mais de 18 mil visualizações (Figura 2), que mostra o interesse do público pelo material que foi desenvolvido.
Além do canal de YouTube mencionado, o glossário pode ser visualizado nos seguintes endereços eletrônicos:
O Glossário sobre Covid-19 foi referenciado em diversos trabalhos, como, por exemplo, no documento da Universidade Federal de Sergipe (UFSE) intitulado “Vocabulário de Saúde em Libras”, de Costa (2020), que cita a carência por materiais nessa área.
Um levantamento buscou comprovar o índice de impacto dos vídeos, como o resultado observado em um período de pouco mais de 24 horas: no dia em que os vídeos foram inseridos na plataforma obteve-se um total aproximado de 600 visualizações, denotando a procura de usuários e interessados no conteúdo abordado. Complementarmente, avaliou-se o número de acessos ao site em um determinado período, no qual foi possível perceber um total de mais de 2 mil visualizações, que representa uma expressiva quantidade de usuários interessados na temática abordada nos vídeos.
O curso de Letras-Libras na modalidade Educação à Distância (EAD) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) apresentou, inicialmente, um material em formato de dicionário, no ano de 2008, onde criou-se o Glossário de Letras-Libras. A partir de 2014 foram adicionadas outras áreas do conhecimento: Arquitetura, Cinema, Psicologia e Literatura.
Os vídeos gravados foram incluídos no sitewww.glossariolibras.com.br por meio de um software desenvolvido pelo programador Ramon Dutra Miranda, atendendo à característica bilíngue da proposta terminográfica como fonte original do código e inspiração do Glossário Libras da UFSC. A Figura 3 ilustra a macroestrutura do Glossário, que se encontra dividida em duas áreas: Superior e Surdocego. A primeira área se destina ao público Surdo e a segunda área possui um Glossário adaptado para o público Surdocego.
Elaborado por Francisco (2022). (Disponível em: http://glossariolibras.com.br. Acesso em: 15 abr. 2022).
Ao clicar no botão escolhido, o usuário é direcionado ao glossário contendo os 333 sinais-termo. A Figura 4 ilustra a aparência do site na aba de busca pelos sinais-termo, aos quais podem ser direcionados conforme as categorias Superior e Surdocego que o usuário tem como opção inicial.
Elaborado por Francisco (2022). (Disponível em: http://glossariolibras.com.br. Acesso em: 15 abr. 2022).
Com relação à microestrutura, ao clicar em um sinal-termo específico é possível visualizar o sinal em .GIF (vídeo em movimento) e nas línguas Libras, ASL, LSCh, LSA. A Figura 5 ilustra as opções de busca por meio da microestrutura do Glossário e seus parâmetros. Portanto, o usuário, ao clicar em um sinal-termo específico, poderá visualizar a Localização, Grupos de Configurações de Mãos e Movimento.
Elaborado por FRANCISCO (2022). (Disponível em:http://glossariolibras.com.br. Acesso em: 15 abr. 2022).
Conclusões e considerações finais
Com base na relevância demonstrada quanto à acessibilidade para Surdos e Surdocegos, foram produzidos e disseminados os materiais com recursos visuais (fotos, vídeos em Português/Libras). Também foi necessário envolver a produção de cada sinal na escrita de sinais. A pesquisa teve como base um estudo terminológico e lexicológico sobre os sinais-termo nas áreas de Biossegurança e Saúde, resultando no Glossário Multilíngue - em Libras, ASL, LSCh, LSA - totalizando 333 sinais-termo.
Além disso, a discussão teórica adotada para a criação apropriada dos níveis linguísticos dos sinais-termo das áreas da Biossegurança e Saúde ocorreu de modo a possuir uma interface com outras subáreas da Gramática da Libras. Foram utilizados todos os elementos paramétricos existentes e os elementos dos níveis linguísticos da Libras para a criação dos sinais-termo em Saúde e Biossegurança.
O levantamento de glossários em Libras existentes na web de diversas áreas revelou que não foram encontrados sites acadêmicos com recursos no formato acessível para Surdocegos, o que levou à proposição de um novo modelo de Glossário Multilíngue Ilustrado nas áreas de Biossegurança e Saúde.
Com o intuito de contribuir com a expansão terminológica e suprir a Libras, fez-se necessário entender e respeitar os processos de criação e validação de um sinal-termo sem prejudicar os surdos e a compreensão do conhecimento, atendendo a necessidade comunicacional em laboratórios.
Portanto, a partir do material apresentado nesta pesquisa - Glossário Multilíngue Ilustrado - espera-se contribuir com os Surdos acadêmicos e não acadêmicos, assim como tradutores/intérpretes de Libras que atuam em espaços acadêmicos ou em instituições onde se encontram Surdos atuando em laboratórios. Complementarmente, acredita-se que este estudo servirá de apoio a outros profissionais como fonte de futuras pesquisas.