INTRODUÇÃO
Este artigo analisa aspectos da Escola Primária Rural Santo Antônio (EPRSA), uma instituição que foi inaugurada em Pelotas-RS, em 1932, por membros da Igreja Católica e, no ano de 1946, passou ao status de Grupo Escolar, ao mesmo tempo em que, oficialmente, foi subvencionada pelo governo do estado do RS. Até o ano de 1946, a EPRSA recebia ajuda dos governos Federal e, esporadicamente, estadual, como veremos a seguir.
Convém destacarmos, inicialmente, que a EPRSA era vinculada à Sociedade de Educação Cristã1 (SEC), uma instituição criada por membros da Igreja Católica em 1 de janeiro de 1930, com a finalidade de assistir educativamente a parcela mais pobre da população de forma gratuita, fato que exploraremos ao longo do texto2. Durante a República Velha, principalmente no RS, houve uma propensão a iniciativas privadas em relação à educação, pois o Estado estava atrelado à ideologia positivista que respaldava a possibilidade de liberdade de escolha dos indivíduos no que tangia ao encaminhamento do processo educacional. Os princípios de educação positivista, baseados nos pressupostos de Augusto Comte, estavam vinculados ao Partido Republicano Rio-Grandense e principalmente ao castilhismo3. Tais ideias vigoraram durante a República Velha e, sob certos aspectos, se mantiveram no período pós 1930, o que levou o setor educativo à preponderância da escolarização em caráter particular.
Assim, este artigo se detém na investigação da escola quando remete ao período que se denominou Primária Rural Santo Antônio, portanto, entre 1932-46. Para tanto, utilizamo-nos da análise de fotografias escolares, bem como de outros documentos auxiliares, principalmente as atas produzidas pela SEC, a fim de observarmos como esta instituição foi mantida e aspectos de sua cultura escolar. Os documentos escolares produzem modelos representativos dessa cultura escolar que, neste caso, se identificava com o Ensino Primário voltado para a educação rural no município de Pelotas. Para Juliá (2001), a comunidade de uma instituição escolar fomenta debates, age sobre normativas e pode ou não incorporar ideias do espaço em que vive, mostrando parte da realidade e das relações que a escola mantém. Assim, seus hábitos, práticas e suas condutas são permeadas pela constituição particular de cada espaço e de cada realidade vivida.
Os documentos históricos, imagéticos e escritos são vistos na perspectiva de documento, pois concordamos com Le Goff (2003, p. 535) quando afirma que “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham poder”. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo foi compreender as relações presentes no espaço da Escola Primária Rural Santo Antônio, identificando como Estado (Público) e Igreja Católica (Privado) interferiram naquela cultura escolar.
Para alcançar esses objetivos, escolhemos fotografias que se enquadrassem no recorte temporal escolhido e que retratassem o corpo docente e discente e suas diversas realidades escolares. Também tivemos acesso a atas e relatórios da SEC, o que nos proporcionou visualizar aspectos significativos da nacionalização, uma vez que a condução dos comportamentos e das práticas morais permeavam interesses do Estado e da Igreja Católica à época.
Dessa forma, inicialmente, abordamos o Ruralismo Pedagógico e seus princípios para a Educação Primária rural, quando passamos a destacar a relação público e privado, Estado e Igreja Católica e, posteriormente, passamos a analisar os documentos da EPRSA com o objetivo de percebermos a presença dos preceitos varguistas e católicos e sua imbricada relação na cultura escolar dessa instituição educativa.
A ESCOLA PRIMÁRIA RURAL: CONCEPÇÕES E LEGISLAÇÃO
A educação rural suscitou debates e discussões na emergente República brasileira devido aos processos de urbanização que se intensificaram nesse período e, neste sentido, a Escola Primária rural revestiu-se de um importante e peculiar alvo de discursos, que a tornou responsável pela solução dos problemas sociais rurais e republicanos. Nela, eram depositadas esperanças na contenção do êxodo rural e no aperfeiçoamento técnico da produção que fomentariam o sistema capitalista. Segundo Souza (2008), hábitos morais e cívicos seriam sanados por meio das instituições educativas que deveriam investir em sociabilidade, saúde e higienismo. Os republicanos baseavam-se em ideias liberais, principalmente nos anos 1920, e “nos modelos de modernização educacional em voga nos países ditos civilizados, ratificando a distinção entre educação do povo e educação das elites e estabelecendo clivagens culturais significativas” (SOUZA, 2008, p. 19). Neste sentido, a Escola Primária seria destinada à maioria da população, tendo como objetivo fornecer os “saberes elementares e os rudimentos das ciências físicas, naturais e sociais” (SOUZA, 2008, p. 19), enquanto a escola secundária atenderia às elites e traria conhecimentos mais gerais e humanísticos. Rocha (2005) corrobora tais afirmações ao mencionar que, inclusive após 1930, a dualidade na educação do povo versus educação das elites foi mantida no país.
Uma República com traços de modernização, além de passar pela modificação da organização do espaço da urbe, também urgia por transformações no modo de produção rural nomeadamente quando a agricultura passou a ser domínio da ciência. Desde o século XVIII, países europeus, como França, Alemanha, Reino Unido e, na América, os Estados Unidos, buscavam uma saída para o que consideravam um atraso, pois “a agricultura não poderia mais ser praticada por métodos transmitidos de geração para geração, pela rotina e pelos costumes [...]” (ZARTH, 2007, p. 132). Os discursos de alguns representantes das oligarquias, dos setores da agricultura e de intelectuais da época enfatizavam a necessidade dessa formação, a qual se apregoava diferenciada, dependendo da classe social ocupada, como já referido. O destacado intelectual e político Torres Filho (1926), precursor do Ruralismo Pedagógico no Brasil, esclarecia que o ensino agrícola deveria ter grau médio para as classes populares, de modo que intermediasse a relação entre o trabalhador rural e o proprietário rural, adquirindo conhecimentos práticos considerados suficientes para os que “sequer sabem ler e escrever”. Tal pensamento expressava a propagação de discursos dicotômicos e que consagraram por longa data ideias que segregaram a escolarização às classes populares e as reduziram a graus menores de escolarização, tendo em vista que o estudo em “liceus e ginásios” seria destinado aos mais abastados. Segundo Pinheiro (2006, p. 137), “a educação escolar seria uma instância intermediária entre esses dois espaços (campo e cidade), acreditando-se em seu enorme potencial para minimizar as contradições do sistema capitalista e conflitos por ele gerados”.
Para Malassis (1979, p.89), os agricultores de países em desenvolvimento seriam “formados pela Escola Primária, e quase exclusivamente por ela. Portanto, esta escola deve fazer amar a vida rural e criar as bases de compreensão e de receptividade do progresso agrícola”. No Brasil, era evidente o alto índice de analfabetismo e o reduzido número de escolas rurais, se comparado ao número de habitantes existentes. Neste sentido, houve uma intensificação nas políticas voltadas para a educação rural devido à influência das ideias dos Ruralistas Pedagógicos, estabelecidas principalmente a partir dos anos de 1920, haja vista que a escola instituiria os saberes elementares para grande parte da população. Dentre os pensadores que defendiam o Ruralismo Pedagógico, destacaram-se figuras marcantes como Sud Menucci e Alberto Torres, que denunciavam os equívocos realizados pelo Estado ao destinar mais recursos para a escolarização urbana, enquanto que o Brasil ainda era um país essencialmente agrícola. Tais autores fomentaram políticas organizadas para a educação rural em todo o Brasil. Além disso, participaram de sociedades como a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, a Sociedade Nacional de Agricultura e estiveram envolvidos com o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MENDONÇA, 1997).
Na concepção dos Ruralistas Pedagógicos, investir na educação dos moradores do campo aumentaria e modernizaria sua produção, fixando o trabalhador nas zonas rurais, arraigando e intensificando o espírito brasileiro nacionalista tão difundido no país, principalmente a partir do Governo de Getúlio Vargas. Para Bezerra Neto (2003, p. 20), “não se pode entender, porém, o ruralismo pedagógico sem que compreendamos os ideais nacionalistas que predominavam à época”.
Um dos maiores reflexos deste pensamento nacionalista foi a instalação do Decreto-Lei nº 35, de 13 de janeiro de 1938, que implantou a proibição de diretores estrangeiros nas escolas e oficializou o português como única língua oficial, uma vez que o descumprimento dessas medidas poderia levar ao fechamento de escolas e à punição dos envolvidos.
Neste sentido, fortalecer os sentimentos nacionalistas foi uma ação que ocorreu em conjunto aos preceitos para a educação primária rural. O ensino primário, desenvolvido em quatro anos, tinha na zona urbana o predomínio dos grupos escolares (turmas seriadas, geralmente com prédios próprios), enquanto na zona rural ou periférica das cidades, preponderavam as escolas isoladas (multisseriadas, geralmente em precárias condições e nem sempre em prédio próprio). A criação de grupos escolares e escolas isoladas aumentou a partir dos anos de 1930, durante o governo Vargas, e teve forte predomínio até a década de 1970. Essa expansão foi fruto de políticas de escolarização resultantes de que “em meados dos anos 1930, por exemplo, 77,04% da população vivia na zona rural, contra 22,96% na zona urbana. [...]. Na zona rural 19.763. 782 (72%) da população adulta não sabia ler nem escrever e o sabiam apenas 7.556,007 (28%)” (SOUZA; ÁVILA, 2014, p. 9 e 10).
No campo do financiamento da educação primária, as décadas de 1930 e 1940 foram momentos em que a promiscuidade entre a destinação de recursos estatais para o setor privado se manteve no Brasil, uma vez que já remetia aos primórdios da época colonial, em que os jesuítas eram responsáveis pelos parcos conhecimentos fornecidos à população e assim também recolhiam o dinheiro público.
Segundo Rocha (2005), a Constituição de 1934 avançava ao assegurar que o direito à educação cabia à família e aos poderes públicos, retratando certa vitória dos renovadores escolanovistas devido à responsabilização do Estado para com parte da população. No entanto, o direito à educação em instituições privadas ficou mantido, enquanto que o Estado levou muitas décadas para de fato atender à integralidade da educação primária, que somente se consolidou no século posterior. A destinação de recursos presentes na Constituição de 1934 foi considerada por Rocha (2005, p. 128) um dos “aspectos mais significativos” daquela legislação. Abriram-se os primórdios de uma responsabilização pública diante dos recursos para o ensino, pois ficava estabelecido que a União e os Municípios não deviam gastar nunca menos de 10% de suas arrecadações, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de 20%, sendo que a União deveria aumentar essa destinação para 20% quando se referisse às zonas rurais. Mantiveram-se a isenção de tributos aos estabelecimentos particulares e a distribuição de subsídios públicos para alunos carentes, em instituições privadas, fato que beneficiou a Escola Primária Rural, foco deste estudo, uma instituição privada que recebia dinheiro de instituições públicas para manter-se.
Muito embora a Constituição de 1937, símbolo da ditadura estadonovista, tenha suspendido os índices orçamentários de aplicação de recursos públicos para a educação, duas outras ações foram efetivadas em direção a políticas para o Ensino Primário. Em 1938, o governo criava a Comissão Nacional de Ensino Primário (CNEP) e, em 1942, o Fundo Nacional de Ensino Primário (FNEP), em que autorizava a União, por meio do Ministério da Educação, a fazer acordos com Estados, Territórios e Distrito Federal, fixando para o ano de 1944 o orçamento de 15% para a educação e estes estabelecendo com municípios o índice orçamentário de 11% iniciais. Para Rocha (2005, p. 134), não houve, em 1934, o tensionamento necessário por parte dos renovadores para que fundos públicos não fossem direcionados para o ensino privado, o que só começou a ocorrer na década de 1950, muito embora o empresariado da educação não abdicasse do seu “beneplácito público”, fato que remete consequências até hoje4.
Assim, as décadas de 1930 e 1940 foram períodos de predomínio da política varguista, de modo que Vilela e Ribeiro (2011) destacam que a principal característica foi a centralização da organização educativa, principalmente após 1937. Neste sentido, somente após a renúncia de Getúlio Vargas, quando foi elaborada a Constituição de 1946, é que se deu mais autonomia aos estados e, ao mesmo tempo, assistência financeira aos municípios. A partir daí, a própria legislação forçou os municípios a darem conta do Ensino Primário, tanto que, em 1947, 49,7% da matrícula geral dos estudantes no Brasil estava sob a responsabilidade dos municípios (TAMBARA et al., 2007), o que pode ser considerado um número relevante para a época.
Os resultados censitários demonstravam a pouca efetividade dessas políticas, haja vista o crescimento do êxodo rural no país. Segundo Soares (2007), os censos demográficos do RS, por exemplo, relativos aos anos de 1940, 1950 e 1960, demonstravam que havia progressivamente um processo de crescimento da população urbana em detrimento do crescimento da população rural. O município de Pelotas, na década de 1940, era um dos núcleos mais importantes do RS, contando com 104.553 habitantes, ficando entre os 4 municípios gaúchos mais populosos do estado. Porém, o número de instituições existentes na mesma década demonstrava a pouca efetividade no que tange ao atendimento da população. Segundo Pimentel (1940), em 1940, havia a existência de 172 escolas primárias, 2 secundárias, 2 normais, 6 escolas superiores e 3 profissionais na cidade de Pelotas, o que certamente não atendia às necessidades existentes, pois muitas dessas escolas eram pequenas, em zonas distantes que atendiam a um número reduzido de alunos.
Tendo em vista esse contexto, a Escola Primária Rural Santo Antônio foi criada como reflexo da atuação da Igreja Católica junto à educação e do governo de Getúlio Vargas no processo de escolarização rural. Essas instituições aproveitavam-se dos princípios do Ruralismo Pedagógico e de necessidade de formação do cidadão brasileiro para intensificarem suas ações junto aos camponeses.
Dessa forma, não é coincidência, portanto, que em Pelotas, bem como em outras partes do estado do RS, a Igreja Católica estivesse à frente da formação para Educação Primária rural, que nesse Estado herdava também uma boa inserção escolar devido à política positivista.
PÚBLICO E PRIVADO NA RELAÇÃO ESTADO E IGREJA CATÓLICA
Para analisar a relação Estado e Igreja Católica, é fundamental compreender o significado de público e privado no campo educacional. O senso comum vincula escola pública à educação não paga, disponibilizada pelo Estado, tendo como concepção de escola privada aquela paga, não estatal. De forma geral, público também é entendido como indicativo de povo, de uso comum ou referente ao governo, e privado é alusivo ao que é particular. Partindo dessas assertivas, pomos como necessário analisar se a educação pública está a serviço público, de acesso de todos e, ainda, se somente a educação privada defende os interesses particulares.
Segundo Severino (2005), o significado social de público está relacionado ao interesse coletivo, enquanto que o privado ligado está ao interesse particular que, ao deslizar para o significado burocrático, sofre um empobrecimento dos termos, em que público passa a significar estatal e privado, não estatal. Isso ocorre devido à concepção liberal de que ao Estado moderno caberia cuidar do interesse comum. O discurso desse bem comum, entretanto, serve como uma forma de distorcer o significado das relações sociais e, com isso, favorecer a classe dominante a serviço da qual está o Estado. Segundo Alves (2005, p. 107),
...existiria, concretamente, uma esfera educacional pública voltada para o atendimento da maioria da população? A resposta categórica é não. Afinal, numa sociedade de classes, o Estado, que administra e controla a educação vista por muitos como pública, é, ele próprio, um instrumento de realização dos interesses privados da classe que detém o poder. Logo, só por equívoco poderia ser tomado como a expressão tácita do público, pois não lhe é pertinente o tratamento das questões sociais pela perspectiva do bem comum. Por isso, no plano institucional da educação, caberia, mais apropriadamente, falar em escola estatal e em escola particular.
Podemos afirmar que a escola pública é, na verdade, a escola estatal que defende os interesses dos grupos hegemônicos que controlam o governo, e a escola privada defende os interesses privados dos grupos a que ela pertence. No período que analisamos, de 1932 até 1946, a escola estatal defendia os interesses do governo varguista e a privada, em tela, defendia os interesses da Igreja Católica. No entanto, o que observamos nos documentos foi que os interesses, tanto do governo quanto os da Igreja Católica, se aproximavam e eram difundidos no interior da Escola Santo Antônio, demonstrando que não havia um limite claro em certas instituições escolares.
Deve-se destacar que a escola pública não é mera reprodutora das ideias dominantes dos grupos hegemônicos que governam o Estado; ela também pode ser um local de luta contra hegemônica. Segundo Tambara (1995, p. 41), “se é inquestionável que a educação constitui elemento utilizável pela classe hegemônica para legitimamente usar seu poder sobre os demais, não é menos verdade que pode se constituir em objeto destinado a minar o poder constituído”. A possibilidade dessa luta será determinada pela capacidade ou incapacidade da classe dominante de reproduzir a sua concepção de mundo e, também, “isto depende da peculiar correlação de forças decorrente de um específico estágio de desenvolvimento das forças produtivas e da especificidade das relações sociais” (TAMBARA, 2000, p. 28-29).
A educação no Brasil no segundo quartel do século XX tinha por objetivo superar o atraso industrial brasileiro e ser instrumento de contraposição à política dos coronéis, passando a ser um elemento importante no ideal de desenvolvimento nacional, uma vez que a população instruída era compreendida como a força propulsora nacional. No entanto, a instrução deveria ser proporcionada de forma escalonada conforme a função de cada parcela da sociedade na ocupação dos postos de trabalho no desenvolvimento capital-industrial brasileiro. Nesse período, “a educação fica a serviço da satisfação da lógica privada, dos interesses dos grandes industriais, dos grupos econômicos, enfim, da lógica do capital” (PIRES, 2015, p. 40).
Como já referido, havia também a defesa do ensino rural para desenvolver a produção agrícola nacional e evitar o êxodo rural por meio de uma distribuição racional entre o rural e o urbano, de modo que os governantes brasileiros buscassem manter em equilíbrio a ordem social.
A escola deveria também incutir na população os valores nacionais, dando unidade ao povo brasileiro por meio da língua e dos princípios cívicos. No Estado Novo, o Governo Vargas passou a desempenhar papel de destaque na difusão da instrução e dos valores morais para a população, sendo a escola importante espaço de socialização para incutir essas ideias, intervindo no espaço escolar, tanto público, quanto privado. Segundo Bastos (2005, p. 51),
Ao Ministério da Educação e Saúde caberia a criação de escolas nas zonas de preponderância de grupos estrangeiros; a subvenção das escolas primárias coloniais; o favorecimento às escolas primárias e secundárias fundadas por brasileiros; a orientação ao preparo e ao recrutamento de professores para escolas primárias dos núcleos coloniais; o estimulo à criação de organizações patrióticas destinadas à educação física; o fornecimento às bibliotecas de obras de interesse nacional e a promoção de comemorações cívicas e viagens para outras regiões do país; a fiscalização do ensino da língua e da história e geografia do Brasil; a distribuição de folhetos com notícias e informações sobre o Brasil, seu passado, sua vida presente e suas aspirações.
Deste modo, uma das justificativas da SEC, em 1932, quando decide deixar de assistir outras instituições escolares, era de que apenas a EPRSA estava localizada em região colonial, necessitando maior dedicação e assistência. Ao analisarmos as atas dessa escola, constatamos doações vindas do governo federal e estadual e, inclusive, do próprio presidente Getúlio Vargas e de sua esposa, conforme observamos no Quadro 1:
O Quadro 1 nos oportuniza fazer algumas observações quanto aos gastos e aos serviços realizados pela Sociedade. Notamos que, a partir de 1934, a Sociedade passou a receber verbas federais e estaduais e, com elas, além de manter a Escola, ainda investia pesado na expansão do seu patrimônio, haja vista a progressiva construção de espaços sendo possível, assim, primeiro a compra do próprio terreno para que as obras da EPRSA fossem efetivadas e posteriormente sua expansão até a construção de um internato5. Não há registro de que, em todos os anos, o governo federal e estadual subvencionasse o Colégio, mas, quando havia falta ou interrupção de verba, isso era declarado nas atas, o que nos leva a crer que até o ano de 1946, pelo menos, houve essas subvenções, embora muitas vezes a SEC mencionasse atrasos nesses repasses. As atas ainda revelam a colaboração de outras instâncias públicas no funcionamento da EPRSA, questão que se deu de diversas formas. A Prefeitura Municipal de Pelotas enviava algumas professoras estagiárias, incentivo que, tão logo interrompido, levou à SEC a recorrer a mais uma solicitação de financiamento do governo estadual, buscando um convênio, haja vista a perda dessa assistência municipal e que foi assinado em 1946. Pelo Quadro 1, identificamos que a EPRSA recebia subvenção do estado rio-grandense e, pelo convênio, passou a receber a nomeação de professoras. Outro vínculo que destacamos nas atas foi referente à Legião Brasileira de Assistência. Tal instituição foi criada em 1942 por Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, com a função de realizar assistência por meio do cooperativismo e do voluntariado, dando também auxílio a diversas instituições escolares nos estados brasileiros (BARBOSA, 2017). Parece que as esposas eram responsáveis por essa entidade, pois, a partir das atas, podemos observar que o núcleo do RS tinha como presidente a companheira do interventor Ernesto Dorneles, Fabíola Dorneles. Assim, nossa intenção ao trazer o Quadro 1 não foi fazer um balanço de gastos e custos da SEC, mas sim apontar a origem das verbas cujo montante ajudou na progressiva expansão dos bens privados da Igreja Católica.
Podemos observar que a análise do campo educacional pode evidenciar várias facetas das relações entre público e privado. Essa relação não estava presente somente na educação. A escola aqui analisada reforçava e incutia os valores que eram importantes para os grupos que lutavam pela hegemonia no campo econômico e político. Assim, por meio de uma observação mais minuciosa de fotografias da Escola Santo Antônio, buscaremos demonstrar a presença dessa relação imbricada entre o Estado varguista e a Igreja Católica, bem como as concepções ali vigentes.
ESCOLA PRIMÁRIA RURAL SANTO ANTÔNIO: “QUEM PLANTA TAMBÉM APRENDE A AMAR O BRASIL”
Em 1º de janeiro de 1930, como já referimos, foi criada, pela Igreja Católica em Pelotas, a SEC, que tinha como um dos seus objetivos “amparar e promover gratuitamente a educação moral, cívica e religiosa e a instrução primária, técnica e profissional, das crianças pobres na Diocese de Pelotas” (SOCIEDADE, ata nº 10, 1934). Em 1934, essa Sociedade mantinha diversos colégios na cidade de Pelotas, dentre eles o Colégio Santa Filomena (de meninas); Colégio Sagrado Coração de Jesus (de meninos); Colégio Santo Cura d’Ars (Misto); Colégio São Francisco (com 3 turnos, sendo masculino, feminino e noturno para adultos); Colégio Nossa Senhora da Luz (misto); Colégio São Pedro (misto); Colégio Santo Antônio (misto) e o Colégio Dom Bosco (misto).
O conjunto de fotografias selecionadas para análise neste estudo foi feito com base no critério de semelhança que caracterizou os grupos de fotos pesquisadas. Sendo assim, alguns conteúdos temáticos repetiam-se, levando-nos a selecionar imagens que traziam maiores evidências sobre o funcionamento da instituição. Para Abdala (2013, p. 113), a utilização da fotografia como objeto de análise tem contribuído para aprofundar o conhecimento em diversas áreas, pois se ampliam “as possibilidades temáticas acompanhando a diversificação da cultura escolar e de suas práticas”. No entanto, a utilização deste tipo de documento traz certo consenso de que, tanto quanto outros materiais que nos ajudam a estudar o passado, a fotografia tem um conteúdo imbuído de intenções cuja análise do contexto em que foi produzido é essencial para compreensão de processos vividos. Assim, concordamos com Bencostta (2011, p.404), quando defende que “a imagem é uma fonte possuidora de sentido”, que só pode ser apreendido quando o historiador compreende “as tramas e realidades no ambiente histórico em que foi gerada”.
Burke (2004) e Kossoy (1989) ressaltam que não é fácil contextualizar a fotografia, pois elas, muitas vezes, trazem identidades do fotógrafo e do fotografado que são desconhecidas ou que foram separadas do álbum ou projeto do qual tiveram origem. As fotos que selecionamos estavam dispostas em diferentes maneiras, sendo que algumas integravam um álbum e outras se encontravam soltas, o que nos impediu de entender como se configurou seu arranjo documental. Por isso, a análise das fotografias foi realizada junto a outros indícios que nos ajudaram a perceber o processo que as envolviam.
Como afirma Burke (2004, p. 27), os “historiadores, da mesma forma que fotógrafos, selecionam que aspectos do mundo real vão retratar”. E, neste sentido, o rastro deixado pelas imagens levou-nos à escolha do objeto a ser analisado, o que nos faz afirmar que o próprio arranjo legado do passado já retratava uma seleção, esta feita pela sociedade que produziu e escolheu o que achou relevante informar, cabendo a nós indagar por que certos aspectos da cultura escolar foram evidenciados.
Havia um tipo de fotografia escolar que geralmente era produzida no início do século XX. Segundo Souza (2001, p. 79), essas fotos tendiam a manter uma organização de exigência social, visto que se consagraram perante um grupo social. “Entre os diversos tipos de conteúdo temático retratados, o mais popular é a foto de classe” (SOUZA, 2001, p. 79), aliada a foto do corpo docente, da arquitetura escolar, da sala de aula e das atividades escolares.
No acervo pesquisado, apenas duas fotografias encontradas foram referentes ao contexto de classe escolar. Muitas remetiam a atividades cívicas e várias foram tiradas no pátio da escola. Nossa seleção se deu pelo critério de melhor definição e enquadramento, por possuírem legendas ou algo que nos indicasse o período temporal a que remetiam, ajudando-nos a enquadrá-las no recorte escolhido e por retratarem elementos que mostrassem o envolvimento da instituição com questões rurais. Neste sentido, optamos por analisar duas fotografias que remetiam a atividades cívicas e uma que mostrava o corpo escolar na frente da escola; duas na sala de aula e uma que remetia a aspectos da nacionalização do ensino, questão contundente para a época.
A seguir, a Figura 1 apresenta a fachada do prédio da nova escola, construída em 1937, e exemplifica aspectos dessa Escola Primária Rural. Apesar de esse retrato não estar datado, ele transmite o fragmento do cotidiano escolar por meio de uma foto posada, onde todos pararam para o retrato que, de propósito, acabou eternizando aqueles olhares. Sua legenda destoa do que ali é visualizado, pois o público escolar remete a uma escola mista, embora a legenda indicasse que a foto era de “alunas”.
De fato, não sabemos quem escreveu na foto, mas podemos identificar alguns meninos. Fato mais do que aceitável para a época, visto que, sendo uma foto posterior ao ano de 1937 (ano em que a Escola passou para o prédio que está ao fundo), já era comum escolas primárias com turmas mistas.
Faria Filho e Vidal (2000, p. 28) caracterizam a Escola Primária brasileira após 1930 como uma escola mais hegemônica, pois o Estado Novo, por meio do Ministério de Educação e Saúde, tendia a “homogeneizar conteúdos, métodos, tempos e espaços escolares”. Para tais autores, a Escola Primária, após 1930, tinha intenção de ser funcional, ou seja, deveria conter a alta taxa de analfabetismo de forma mais eficaz e, portanto, com menor custo. Assim, juntava meninos e meninas numa clara contenção do tempo e do espaço utilizado.
No entanto, até o ano de 1946, a EPRSA ainda não era reconhecida como um Grupo Escolar, porém já apresentava características consideradas pela historiografia como afeitas aos Grupos. Segundo Souza (2008), no Brasil, predominaram 3 tipos de escolas primárias durante quase todo o período republicano. Seriam os Grupos Escolares, as escolas isoladas e as escolas reunidas. Os Grupos Escolares eram tipos de escolas-modelo que surgiam nos centros urbanos, geralmente instituídas pelo governo do estado ou pelos municípios e advindas de fins do século XIX. Como deviam representar a imponência do sistema republicano, as escolas eram erigidas em construções grandiosas, cujo prédio próprio, inicialmente, funcionava em locais mais centrais dos espaços urbanos. Souza (2008) ressalta que somente estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul tiveram expansão expressiva desses Grupos até meados do século XX, sendo que a expansão primária se deu em grande parte em escolas isoladas ou reunidas.
O Grupo Escolar possuía algumas características que nos importa destacar. Trazia, além do edifício próprio, uma organização do espaço escolar dividido em várias salas com diversos professores. Ao mesmo tempo, trazia uma classificação mais homogênea e adiantamentos em diferentes classes, séries e salas de aula. Administrativamente, tratava de dividir funções entre direção escolar e professores, até mesmo incluindo funcionários para exercerem funções de limpeza e alimentação escolar. O tempo incitava organizações consideradas mais modernas por incluírem o calendário letivo e a jornada escolar com divisões de conteúdos por séries. Já nas escolas isoladas, “o mesmo professor continuava ministrando o ensino para diferentes classes de alunos, numa mesma sala”, embora adotassem maior organização de programas, horários e exames (SOUZA, 2008, p. 45). Segundo a autora, essas escolas passaram a ser consideradas “escolinhas” menores, destinadas à população carente e “cada vez mais foram identificadas como uma escola primária tipicamente rural” (SOUZA, 2008, p. 46). Já as escolas reunidas, também fruto do início do século XX, consistiam na reunião de escolas isoladas em um mesmo edifício.
Sendo assim, é neste sentido que passamos a refletir um pouco mais sobre a EPRSA, quando podemos inferir que essas diferenciações espaciais e temporais relativas aos tipos de instituições primárias trazem muito mais descontinuidades e rupturas do que permanências. Bencostta (2011), ao elaborar um estudo sobre os Grupos Escolares no estado do Paraná, ajuda-nos a evidenciar que os processos históricos não são rigidamente pautados por modelos ou divisões gerais.
Ao analisarmos a Figura 1 com mais critério, podemos perceber a disposição dos alunos na imagem. As meninas aparecem mais à frente, sentadas e de pé. Os meninos atrás, de pé e, bem ao fundo, duas meninas maiores que pareciam não estar à vontade com o registro. Como já afirmou Bencostta (2011), essa disposição delimita as fronteiras entre os sexos, muito embora possamos notar que alguns alunos sobrepõem a mão sobre o ombro do colega, de certo modo confrontando esta fronteira e mostrando certa intimidade em suas relações escolares. Por alguns instantes, temos de forçar os olhos para tentar tal distinção.
Ou seja, ao retratar alunos carentes, cujo tapa-pó masculino era exatamente igual ao feminino, parecia que as fronteiras esbarravam, por vezes, apenas numa peça do vestiário, em que as meninas utilizavam saias (evidente na 1ª menina da segunda fila, esq. para a dir.) e os meninos, calças (evidente no 1ª menino da terceira fila, esq. para a dir.) sem, no entanto, disfarçar a hegemonia da principal característica que os identifica: a pobreza e os rostos humildes de todos aqueles estudantes. Também podemos constatar que havia disparidade entre a idade, evidenciando alunos de adiantamentos diferentes ou em distorção idade-série. Outra questão aparente na Figura 1 se refere à etnia dos fotografados, pois a maioria pareceria remeter à etnia negra. Desse modo, é notável o fato de que os alunos eram carentes e não representavam o público principal do bairro para quem a escola fora criada, pois, segundo atas da SEC, a instituição era localizada em zona colonial com predomínio de imigrantes alemães, ficando situada na Avenida Argentina, segundo distrito de Pelotas (SOCIEDADE..., 1938; RELATÓRIO..., 1945). É possível que a Instituição, muito embora tenha justificado sua instalação para atender a um público “imigrante de zona colonial”, mas ao mesmo tempo carente financeiramente, tenha se defrontado com uma realidade que não conciliou tais princípios. Afinal, a história de Pelotas remete aos resquícios da mão de obra escravista, provavelmente sendo os nativos moradores do bairro os mais pobres e necessitados de escolarização. Desse modo, parece-nos que o elemento mais importante para o funcionamento da instituição era sua característica de ruralidade aliada à atribuição de dever pátrio cívico, pois, desde 1939, a escola já recebia a visita da Diretoria Estadual de Educação, que “prometia conseguir um auxílio estadual, pois reconhecia que o Colégio prestava relevantes serviços de nacionalização naquela zona colonial” (SOCIEDADE, 1939) o que, de fato, levou o governo rio-grandense a subvencioná-la junto ao governo federal.
Essa escola era fator de orgulho da SEC pela singularidade do processo educacional que lá se desenvolvia: educação rural destinada a alunos carentes. Uma constante preocupação era a manutenção financeira desta instituição, remetendo-se, por vezes, à manutenção da estrutura física e pedagógica, uma vez que também era necessário conseguir alimentação, material escolar e vestimentas para os que ali eram atendidos, bem como pagamento para os docentes. Sendo assim, a Figura 1 remete a um período posterior ao ano de 1938, quando a Sociedade “adquire nas Casas Pernambucanas os uniformes escolares: são tapa pós de linho branco” (SOCIEDADE, ata nº 20, 1938).
A Figura 2 também não foi datada, porém estava disposta em um álbum junto à Figura 3 e mais fotos datadas do ano de 1942, o que nos leva a crer que ambas mostram a mesma sala de aula, porém em lados opostos. As fotos demonstram aspectos da cultura escolar e do corpo discente. Na Figura 2, as mesas, ainda de madeira e dispostas por duplas de alunos, aparecem envoltas por símbolos religiosos, como a estátua de Nossa Senhora Aparecida ao fundo e, abaixo, um pedestal com imagem em símbolo de cruz, um provável material para suporte e reforço da fé católica, por sinal um dos objetivos da criação de tais instituições, ou seja, propagar a fé. Outra simbologia remete ao relógio pendurado na parede, reforçando a prática instaurada com o advento da República de controle do tempo e do espaço escolar, como nos aponta Faria Filho e Vidal (2000). Ainda sobre a Figura 2, podemos notar uma janela grande para entrada de luz natural e uma folhagem ao fundo, o que demonstra um ambiente mais descontraído, apesar de retratar momentos selecionados e não ao acaso. As alunas de pé, ao fundo, parecem ter-se deslocado das cadeiras ao lado para entrar no enquadramento do fotógrafo.
Todos sorriem para a foto e não demonstram timidez ao serem clicados. Parecem estar à vontade naquele espaço montado para a fotografia. Não há preocupação em retratar o possível disciplinamento e hierarquia organizacional dos corpos e do espaço de sala de aula. A professora, ao fundo, e a imagem de Nossa Senhora parecem acolher e conduzir o grupo que está à frente (seria esse um efetivo aspecto da cultura escolar dessa instituição?). Tanto na Figura 2 quanto na 3 a luz que adentra nas janelas transmite uma ideia que pode ir além da simples luminosidade necessária a uma fotografia tirada do interior de um prédio. Transmite-nos, também, uma aura de sagrado e espiritual, que se mistura com a alegria de estar ali: um espaço onde gostaríamos de estar, influenciado pela Igreja Católica, ali inserida na constituição do cidadão.
Outra questão que pode ser identificada, principalmente a partir da legenda presente na Figura 3, refere-se à organização do espaço escolar, mostrando uma escola graduada e multisseriada, pois alunos de diferentes séries, no caso 3º e 4º anos, usavam o mesmo espaço. Tal questão se manteve presente durante longa data da história da educação e nos exemplifica o sentido dado ao espaço escolar naquelas décadas. Para Benconstta (2011, p. 400), os registros fotográficos são “objetos culturais que guardam fortes vínculos entre a memória dos personagens da escola e a memória da própria instituição, visto que enquanto documentos, essas fotografias se consistem em testemunho e representação da Escola Primária em determinada época”, revelando concepções sobre o funcionamento da escola e sua cultura escolar. Conforme analisamos melhor esse ambiente, notamos já uma provável expansão das salas de aula da instituição. Vejamos que as janelas basculantes e a grande porta de madeira parecem não ser identificadas na Figura 1, provavelmente não remetendo à mesma construção, o que corrobora a expansão descrita no Quadro 1.
Neste sentido, as fotografias confirmam escritos presentes em outros documentos, pois, em 1941, a escola já possuía até o 4º ano escolar, funcionava em dois turnos e dispunha de 5 professoras. Na parte da manhã, funcionava o 2º e 3º anos, cada um com sua própria professora, sendo que o 3º e 4º anos eram regidos pela mesma docente. À tarde, a escola atendia o 1º ano, além de ter uma professora específica para a disciplina de Trabalhos Manuais (SOCIEDADE..., 1941). Notamos uma progressiva expansão da escola pelo número de turmas atendidas, pois, em 1942, passaram a funcionar duas turmas de 1º ano no turno da tarde, cada uma com sua professora própria (SOCIEDADE..., 1942a). Quanto à administração da instituição, esta era exercida pela mesma professora que ministrava a disciplina de Trabalhos Manuais, a professora Maria Rachel Ribeiro de Mello, que se destacou como religiosa devota à causa educativa e era reconhecida pelas boas relações políticas em busca de financiamento para a SEC.
A Figura 4 mostra os alunos em desfile no ano de 1945, conforme manuscrito na fotografia a mão e abaixo. A bonita mascote vai à frente carregando uma cesta com prováveis produtos agrícolas que representavam aspectos que eram importantes serem demonstrados para toda aquela sociedade, como forma de destacar condutas escolares ali vividas. A menina, meiga no olhar, chama atenção pelo seu tamanho, provavelmente cursava o 1º ano escolar e talvez tenha sido essa uma forma de comover a sociedade pelotense, mostrando a necessidade da benemerência à população.
Podemos observar alunos preparados para o desfile, com uniformes mais adornados do que os presentes nas figuras 1 a 3, pois, ao expor seus discentes para a comunidade pelotense, oferecia-se ao público maior asseio e cuidado com a aparência, mostrando aspectos higiênicos clamados à época. Os trabalhos manuais pareciam também ser destaque no desfile pela simbologia que representavam junto ao nome do colégio: primário rural.
Antes mesmo, em 1939, já realizavam exposições destas atividades, as quais davam enfoque à carpintaria (SOCIEDADE..., 1939). Porém, vejamos o que o jornal A Palavra noticiava sobre a EPRSA. Sob o título de “Escola Rural Santo Antônio”, o jornal dedicou um bom espaço para destacar o encerramento do ano letivo na instituição. A reportagem enfatizava os trabalhos rurais ali efetivados, além de informar a presença de autoridades locais no encerramento do ano letivo. O peculiar da instituição, segundo o periódico, era que “a exposição de trabalhos manuais estava linda. Dir-se-á apenas que outros colégios os fazem em ocasiões semelhantes, porém, é preciso falar (e que por ser especialidade desse colégio, chamou a atenção dos visitantes)” (A PALAVRA, 17/12/1943, p.4). Segundo a mesma reportagem, a exposição era composta por conservas de ervilha, tomate, pêssego, vagem, repolho, etc. e referia à existência de horta e criação de aves, exemplificando um trabalho que era produzido pelos alunos. Aqui encontramos uma reprodução do imaginário da época:
Plantar é a ordem do dia! E lá na Escola Santo Antônio se faz isso muito bem! A criança, junto com as letras, aprenderá a ter o seu canteiro de verduras, de hortaliças, de feijão, de tomates, de batatas! O trabalho dignifica o homem! O trabalho defende o homem de muitos inimigos! Quanta falta faz esta educação integral nos colégios! [...] É por isso que quem planta aprende também a amar o Brasil (A PALAVRA, 17/12/1943, p.4).
Assim, o jornal católico que representava a Diocese de Pelotas, junto com sua instituição escolar, dava visibilidade ao que traduzia as condutas e os bons comportamentos indicados para aquele momento: “quem planta também aprende a amar o Brasil”. Essa frase, carregada de significado, corrobora o que Juliá (2001) dizia traduzir-se em uma “ciência do governo”, ajustada e aplicada ao ambiente escolar. Esse testemunho trazido pelas fotografias com anotações escritas do passado deve considerar o propósito daqueles que as produziram, representando uma história registrada basicamente do ponto de vista institucional. Assim, esses documentos, evocando o passado, também perpetuam o modo de educar na época por meio dos exercícios práticos, remetendo ao trabalho rural e transformando-se nos monumentos evidenciados por Le Goff (2003).
Na Figura 5, percebemos importante aspecto da cultura escolar rural para o período analisado. É provável que esta foto também seja do ano de 1945, apesar de não estar datada. O Clube Agrícola da EPRSA foi criado em 1942, quando “houve eleição secreta entre os alunos para ser composta diretoria do Clube Agrícola” (SOCIEDADE, ata nº 28, 1942a) e foi nomeada superintendente do Clube a Professora Marília Sica. O desfile dos integrantes do Clube Agrícola Rural Santo Antônio representava aspectos do conhecimento sobre o mundo rural desenvolvidos na instituição e que eram apresentados à população que assistia ao desfile no centro da cidade em frente ao Mercado Público Central e à Prefeitura.
Percebemos um bom número de pessoas interessadas no desfile, prática instigada pelo governo varguista e que estimulava o patriotismo. Portanto, é muito provável que esse momento tenha sido alusivo à Semana da Pátria, pois esse tipo de efeméride era realizado pelas escolas, principalmente num período de nacionalização e exaltação da juventude aos valores pátrios. O fotógrafo, neste momento, enfoca alunos do gênero masculino que carregavam com orgulho instrumentos agrários como rastilhos, enxadas e pás, numa clara demonstração da sociedade patriarcal daquele momento, em que os meninos assumiriam as tarefas agrícolas, enquanto que as meninas ficariam com as tarefas domésticas.
Conforme já citamos, a partir dos anos de 1940, a escolarização rural adquiriu cada vez mais o sentido de fixar as populações em seu ambiente original e também orientar ações e condutas dos rurícolas. O crescimento urbano levou à busca por uma educação integral que foi apregoada por meio do Clube Agrícola e que deveria funcionar junto às escolas primárias influenciando a organização da comunidade rural, inclusive com ideias para ensinar os rurais a administrar suas propriedades, melhorar a produção e formar hábitos para a prática de sociabilidade na escola rural e na comunidade. O Clube Agrícola surgiu com a ideia de ser um elo entre a escola e a vida rural. Ele “fazia parte de uma malha solidária de instituições que articularam uma rede de poder instruindo escolares e, por extensão, suas famílias” (WESCHENFELDER, 2007, p. 241). Os ensinamentos propostos pelo Clube deveriam dinamizar, na prática, as atividades modernas agrícolas propostas, que se contrapunham aos hábitos da comunidade rural, hábitos esses considerados atrasados e inadequados para um país que buscava o progresso. Ao mesmo tempo, pretendia-se o controle daquelas comunidades. Outra forma de exercer atividades práticas na EPRSA era por meios da disciplina de Trabalhos Manuais, oferecida pela Professora Rachel Mello, que também era diretora, como referimos. Sobre os trabalhos manuais, sabemos que:
Os alunos executaram os trabalhos de agulha, costura, serrinha e carpintaria, na parte doméstica fazendo conservas, doces dos produtos do Clube Agrícola, bem como velas de sebo e sabão, merecendo estes últimos grande destaque. Os alunos aprenderam a mobiliar suas casas com economia, gosto e arte. A exposição de 1945 mereceu das autoridades escolares amplos elogios por considerá-los apropriados a uma escola rural (SOCIEDADE, RELATÓRIO ANUAL, 1945).
Para ajudar nesses trabalhos, em 1942, a instituição solicitava a nomeação de um zelador. Os alunos faziam a limpeza do colégio, cuidavam dos animais e da horta e trabalhavam na carpintaria. Nesse ano, a documentação registrou que “a diretoria e alunos estão trabalhando com grande afinco na construção de um galinheiro para a qual estão angariando donativos” (SOCIEDADE, ata nº 28, 1942a). A ata de nº 29 já mencionava que o galinheiro havia ficado pronto, e juntamente um quarto para incubadora, um alpendre e 4 baias para as cabras. Em 1944, a Escola Santo Antônio recebeu materiais agrícolas enviados pela Secretaria Estadual de Educação (SOCIEDADE, ata nº 35, 1944a) e no mesmo ano a Secretaria de Agricultura enviou um porco para o início da criação de suínos, com intuito de ser mais uma fonte de renda para a escola. Assim, “os alunos auxiliados pelo zelador construíram uma moderna e higiênica pocilga” (SOCIEDADE, ata nº 37, 1944c) e a escola também instalou um apiário de abelhas italianas que receberam como doação de um apicultor da cidade. Além dessas atividades, os alunos do Clube Agrícola “plantavam grande área de milho, feijão e abóbora” (SOCIEDADE, RELATÓRIO ANUAL, 1945). Esses dados demonstram que essa instituição estava efetivamente envolvida com os ensinamentos agrícolas, tentando também cercear práticas e conduzir hábitos, ao mesmo tempo em que podemos notar a inserção do financiamento estatal numa instituição privada.
Em 1944, a presidente da Sociedade elogiava a participação dos alunos e dos respectivos pais na Semana da Pátria e a dedicação das professoras na organização dos desfiles (SOCIEDADE, ata nº 36, 1944b). Assim, por último, destacamos a Figura 6, por a considerarmos representativa da política vivida no momento histórico de período de nacionalização.
A única figura masculina em idade adulta encontrada nas fontes referentes a este período foi do zelador da instituição, Alcides Silveira, negro, que ajudava os alunos nas práticas agrícolas e, ao cuidar do jardim, decorou-o com a bandeira do Brasil, representada ao lado do prédio da EPRSA. Essa foto eterniza mais um olhar daquele que é fotografado e que demonstra orgulho para com a escola, fiel escudeira da Igreja e da Pátria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Escola Primária Rural Santo Antônio esteve atrelada às políticas que vincularam a atuação da Igreja Católica, do governo getulista e dos ideais dos Ruralistas Pedagógicos, aqui retratados por meio de aspectos identificados na cultura da escola.
Foi possível percebermos que a promiscuidade entre o público e o privado não apresentava entraves à política centralista ao governo varguista, pois beneficiava os seus aliados, como no caso da Escola Primária Rural Santo Antônio, que recebia manutenção financeira. Os governos eram beneficiados pela difusão de seus valores e da própria Igreja Católica, por meio daquilo que era valorizado como instrumento educativo naquele espaço. As legislações via constituições de 1934 e 1937, principalmente, amparavam interesses de cunho privado, cujo bem comum foi consubstanciado em educar por meio de ideias que contemplassem também os interesses públicos (estatais). Assim, favoreceu-se a reprodução de uma concepção de mundo afeita à classe dominante, qual fosse, a educação religiosa, importante meio de expansão do público confessional Católico, e a educação moral cívica, relativa principalmente às concepções do Estado. Tais interesses ideológicos justificavam que verbas públicas fossem injetadas para o enriquecimento de bens privados, engordando o patrimônio da Igreja Católica. Cabe destacar, também, que essa expansão acabou modificando algumas características do Ensino Primário naquela instituição, levando-a ao status de Grupo Escolar, uma vez que se tornava administrativa e pedagogicamente apta ao título.
Outra concepção presente no espaço da Escola Primária Rural Santo Antônio foi o direcionamento para o ensino de práticas agropecuárias, buscando traduzir aspectos ideológicos destacados pelos Ruralistas Pedagógicos, cujos preceitos não eram antagônicos aos estatais e aos catolicistas. A educação integral, por meio do Clube Agrícola, culminava na devoção católica que desfilava sua civilidade pelo centro da cidade pelotense, dando a ver a toda a população uma substancial justificativa para benemerências e financiamento público no seio do privado, haja vista que exibia a parcela pobre da população pelotense. Ao que indicam os estudos até agora realizados, o Clube Agrícola foi um espaço potencial para a realização de práticas voltadas para os conhecimentos rurais. Isso, a partir de variadas atividades agropecuárias que iam desde a horticultura, cunicultura, avicultura, até a preparação de alimentos, que ajudavam na manutenção da Sopa Escolar e da vida institucional. Esse fato distinguia a proposta pedagógica dessa escola, uma vez que ainda predominava a mentalidade de que, em instituições escolares primárias, o ensino deveria ser mais propedêutico e prático, principalmente para as classes populares.
No entanto, é inegável o esforço da Sociedade de Educação Cristã em expandir suas atividades à comunidade local, o que tirou um crescente número de alunos da miséria física e educativa, ao fornecer o alimento e também o básico apregoado aos pobres: o ensino das primeiras letras, suficiente para “plantar e aprender a amar o Brasil” de forma pacífica e ordeira.
Neste sentido, vale lembrar que tais ensinamentos - nacionalização do ensino, deveres cívicos e patrióticos, religiosos e atividades práticas manuais - representaram interesses da Igreja Católica e do Estado brasileiro diante do pobre citadino, mostrando que nunca houve neutralidade nos conhecimentos perpetuados em instituições escolares. Em que pese as possíveis resistências cotidianas a este formato educativo, aqui, visualizamos apenas uma reprodução de interesses comuns difundidos pelo público e o privado, sem dar espaço a conhecimentos e culturas diretamente relacionadas às questões sociais oriundas de coletivos minoritários, ou seja, daqueles que deveriam ser a essência daquela instituição: os alunos carentes, em sua maioria humildes e etnicamente diversos. Fruto do seu tempo, os anos de 1932 até 1946 revelam-nos a historicidade da educação ao mesmo tempo em que nos apontam e indiciam para uma atualidade: não houve escola sem interesses, assim como, atualmente, não há “Escola Sem Partido”. O que há são modificações nas formas históricas de dar a conhecer as relações de mundo de modo que os educadores, nem sempre coniventes com o instituído, passaram cada vez mais a buscar uma escola ideologicamente aproximada da cultura diversificada que o país apresenta, tentando incluir, ao longo dos processos educativos, pautas que revelem também outras concepções religiosas, outras relações de gênero e de classe social. Essa modificação tem levado a comunidade escolar a se aproximar da concepção de público como interesse coletivo, levando receio e ameaça a muitas entidades que passaram a reivindicar fortemente, na atualidade, o retorno das concepções evidenciadas neste estudo. Tal bandeira revela, na verdade, o interesse público em retrocesso, tendendo novamente a educação a favorecer os interesses apenas das classes dominantes que se traduz na máxima de que, aos pobres, deve-se instituir uma “pobre” educação.