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Contrapontos

versão On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.20 no.2 Florianopolis  2020  Epub 01-Fev-2021

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v20n2.p412-427 

Artigos

FILOSOFIA DIFERENÇA E PERFORMANCE ART RESSONÂNCIAS E RIZOMAS DO PERFORMER PROFESSOR

PHILOSOPHY DIFFERENCE AND PERFORMANCE ART - RESONANCES AND RHIZOMES OF THE PROFESSOR PERFORMER

FILOSOFÍA ARTE DE DIFERENCIA Y PERFORMANCE ART - RESONANCIAS Y RIZOMAS DEL PROFESOR PERFORMER

Cláudia Madruga Cunha1 

Leomar Peruzzo1 

1Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.


Resumo:

Neste artigo, aproximamos a filosofia de Gilles Deleuze e a deleuziana-guattariana, com o objetivo de buscar as ressonâncias filosofia diferença e arte da performance (GOLDBERG; GLUSBERG, COHEN) para fins de alcançar a análise de um processo de educação de professores no qual se fez sensibilização artística voltada aos professores de arte da cidade de Blumenau. Dividimos o texto em quatro abordagens: na primeira, tratamos das vizinhanças entre a filosofia de Gilles Deleuze e da performance arte; no segundo, desdobramos a relação estabelecida no primeiro percurso; no terceiro, apresentamos o “Rizoma” como prática metodológica performática; no último percurso, olhamos para as possibilidades de uma experiência em arte educação que quis desfazer de um corpo educado nos performers professores.

Palavras-chave: Performance Arte; Corpo; Educação; Metodologia Rizoma

Abstract:

In this article, we focus on the philosophy of Gilles Deleuze and the Deleuzian- Guattarian philosophy, looking for resonances of difference philosophy and performance art (GOLDBERG; GLUSBERG, COHEN) in order to analyze a process of teacher education aimed raising artistic awareness among art teachers in the city of Blumenau. The text is divided into four approaches: in the first, we focus on the areas bordering on Gilles Deleuze’s philosophy and performance art; in the second, we unfold the relationship established in the first approach; in the third, we present the “Rhizome” as a methodological performance practice; and in the final approach, we look at the possibilities of an experience in art education that aims to remove a body educated in performing teachers.

Keywords: Performance Art; Body; Education; Rhizome methodology

Resumen:

En este artículo, reunimos la filosofía de Gilles Deleuze y la filosofía Deleuzian- Guattarian, para buscar las resonancias de la filosofía de la diferencia y el arte de performance (GOLDBERG; GLUSBERG, COHEN) con el fin de lograr el análisis de un proceso de formación docente en el que hizo conciencia artística dirigida a profesores de arte en la ciudad de Blumenau. Dividimos el texto en cuatro enfoques: en el primero, tratamos los vecindarios entre la filosofía y el arte escénico de Gilles Deleuze; en el segundo, desarrollamos la relación establecida en la primera ruta; en el tercero, presentamos “Rhizome” como una práctica metodológica de desempeño; en la última ruta, vimos las posibilidades de una experiencia en educación artística que quisiera disponer de un cuerpo educado en maestros de actuación.

Palabras clave: Performance Art; Cuerpo; Educación; Metodología del Rizoma

ENCONTROS E RESSONÂNCIAS...

Nesse artigo, reunimos duas áreas, filosofia e arte, para pensar o processo de sensibilização dos corpos através de práticas educativas que envolvem a arte da performance que se realizam na escola básica. Ousamos, entre dois, perguntar se a filosofia da diferença proposta por Gilles Deleuze junto com outros conceitos desenvolvidos no conjunto da obra escrita com Félix Guattari1 não trazem reverberações, nuances éticas e estéticas, que dialogam com a linguagem e as práticas artísticas que conhecemos por arte da performance2? Percebemos entre esses dois territórios encontros possíveis e outros traçados colaborativos, quando os aproximamos como um duplo que não se assemelha, mas se conjuga e se transverte.

Por que a filosofia de Gilles Deleuze? Parafraseando Machado (in. DELEUZE, 2010), Deleuze não coloca seu pensamento como metadiscurso ou metalinguagem acima de outros saberes, que venham da ciência, da arte; sua produção filosófica convive com outros domínios, ele se permite criar conceitos no contágio com outras formas de saber. No livro Conversões, disse que “a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada vez e por relações intrínsecas. É em função de uma evolução própria que elas percutem uma na outra” (DELEUZE, 1992, p.156). Também afirmou que “criar conceitos não é menos difícil que criar novas combinações visuais, sonoras, ou criar funções científicas” (idem, p. 156). Deleuze abre a criação de conceitos aos agregados sensíveis da arte, percebemos ressonâncias entre seu modo de pensar o pensamento filosófico e a performance. A performance arte tem se configurado uma prática em arte com tendência a valorizar o momento de criação, de colocar a atenção mais no processo do que no produto final; assume o corpo como bodyart ou como lugar da arte, tenciona a matéria corpórea como potência criativa, faz do corpo um território experimental do sentido. Essas, entre outras características, fazem dela uma prática experimental dinâmica, espontânea e múltipla. Ou seja, um tipo de movimento artístico que, por seu conteúdo simbólico, ritualístico, emocional, antropológico, opera com instâncias subjetivas, mobiliza estruturas de poder e fluxos de resistência e desejo que, sobrepostos, sensibilizam uma unidade múltipla. Essa forma de produção artística aspira traduzir em mensagem estética uma ação dramática, rompendo, contudo, com os limites do drama; quando envolve o território do irrepresentável e do invisível e reclama por novos conceitos (COHEN, 2013).

Deleuze vai dizer que filosofar é singularizar, encontrar os conceitos adequados para as ações e paixões. “Fazer filosofia é um trabalho inventivo [...] arte do conceito, tanto estética como lógica do conceito” (DIAS, 2012, p. 22). Esses dois campos da filosofia deleuziana e arte se atraem. Proust, Mallarmé, Michaux, Klee, Dubuffet, Hantaï, Boulez, René Thom, Perrault, cada um desses artistas em seu campo, entre outros artistas, tiveram retirados das suas criações elementos que funcionaram como intercessores na obra de Deleuze. Os intercessores deleuzianos são dispositivos que intercedem numa espécie de captura de elementos de outro domínio, que é relançada noutra combinação. “Eu preciso dos meus intercessores para me exprimir [...] sempre se trabalha com vários, mesmo quando isso não se vê” (DELEUZE, 1992, p. 156).

Combinar de elementos externos para compor um conceito filosófico o atualizando apresenta um modo de fugir à representação e à codificação do pensamento. As análises deleuzianas se fazem propondo rupturas e desvios que são ora filosóficas, ora clínicas do concreto ou do acontecimento, cartografias e traçados que se fazem de modo estilizado. A questão que nos convoca a essa escrita tece linhas entorno do pensar as possíveis reverberações entre filosofia da diferença e arte da performance quando se pesquisa no campo da/em arte educação.

Para dar conta dessa demanda, dividimos esse artigo em quatro percursos. No primeiro, “momentos/movimentos de criação”, tratamos das vizinhanças no momento da criação da filosofia de Gilles Deleuze e da performance arte; no segundo, chamado de “outros percursos do pensamento”, expomos de modo breve o encontro com Felix Guattari e o legado desse encontro; no terceiro, discutimos o “Rizoma - uma prática metodológica performática”; e no quarto e último percurso, com o título “uma experiência em arte educação ou para desfazer um corpo educado”, tratamos de um convite realizado a professores de arte para participar de uma sensibilização artística que teve por finalidade sensibilizar performances que envolviam o corpo dos professores em novas expressões de si.

MOVIMENTOS/MOMENTOS DE CRIAÇÃO

No ano de 1925, ano que em nascia Gilles Deleuze, Paris era uma capital cultural florescente. Tempos da publicação do Manifesto Surrealista na França (GOLDBERG, 2015). Entre tantos outros fatos que marcavam a efervescência em arte dessa época, em 1927, Antonin Artaud criava, junto a Roger Vitrac, o Téatre Alfred Jarry, buscando desenvolver no teatro uma total liberdade.

O surrealismo havia introduzido os estudos psicológicas na arte, de modo que vastos domínios de mente se tornaram literalmente, material para novas explorações da performance. Com sua concentração na linguagem, a performance surrealista afetaria mais fortemente o mundo do teatro do que as subsequentes expressões da arte performática. (GOLDBERG, 2015, p. 86).

O teatro francês ousava, conforme Golbgerg (2015) depois da Segunda Guerra Mundial; os artistas da performance se voltaram direta ou indiretamente para princípios básicos do dadaísmo e do futurismo, eram eles: acaso, simultaneidade e surpresa. No plano do pensamento, por volta dos anos 50, se publicava na França uma obra antológica comemorativa do cinquentenário da morte Friedrich Nietzsche. Era um tipo de pensamento que chegava operando a golpes de martelo, desconstruindo conceitos e valores estabelecidos pela tradição filosófica.

Na França da década de 1960, “o jornal parisiense Dimanche trazia uma foto de Klein saltando para o vazio” (GOLDBERG, 2015, p. 135). Essa imagem do performer Yves Klein punha-se contra os limites da tradição, centrava-se na desconstrução do binarismo entre ator e arte. Essa concepção de arte se envolvia com a busca de encontrar um espaço pictórico espiritual, nela o artista se percebia sem precisar pintar a partir de modelos, mas com eles. Rupturas!

Na arte do pensamento, Deleuze participava da retomada da filosofia nietzschiana. Seus estudos organizaram uma maneira especial de propor as ideias de Nietzsche, estilo que se repetiu com outros autores. Chamamos atenção aos conceitos nietzschianos de vontade de potência, niilismo e eterno retorno. Além de afirmar que tudo que se produz retorna, o eterno retorno se centrava num princípio de superação que pretendia romper com a teoria das forças na qual toda reação (força reativa) pode ser transmutada em afirmação (força ativa); o que conduz à relação: querer é igual criar. Esse modo de proceder, na filosofia, recorre a certa dramatização. Vasconcelos (2005) vai dizer que há uma tendência para um teatro filosófico em Deleuze. Em outra oportunidade, refletimos que

... [a] aproximação de Gilles Deleuze com o teatro se dá quando estuda o pensamento nietzscheano e percebe a disposição de Nietzsche em encontrar outras formas de expressão [...] Ao intérprete cabe analisar os fenômenos e sintomas, e ao artista e ao avaliador considerar e criar perspectivas. Os estudos sobre Nietzsche matizam a filosofia deleuziana, pensamento trágico e as relações entre pensamento e vida dão a ela o tom de teatro filosófico. (CUNHA, 2017, p 86).

Também era momento, para Deleuze, de buscar novo entendimento para o pensamento, alçar novos métodos para se dizer sobre o que é pensar na filosofia, uma trama que envolvesse corpo, pensamento e sentido. Pretendia esse filósofo desenvolver “uma teoria dos conceitos de sentido e de valor que relega ao segundo plano a questão da verdade” (DOSSE, 2010, p. 114).

É no corpo que o pensamento se expressa ou reprime seus desejos, insinuavam os estudos de Nietzsche (Nietzsche e a filosofia, 2000a;Nietzsche, 1965). Já na performance, prática experimental artística que se evidencia nos anos 1950 e se desenvolve e difunde nas décadas seguintes (principalmente entre 1970 e 1980), se proliferavam linguagens estéticas que visavam desconstruir e reinventar a relação entre o pensar e o agir. A característica da performance é fazer do sujeito, do uso do corpo humano, força motriz por detrás de um ritual, o que congregava a arte a outros campos: antropológico, retomada de simbologias, rituais tribais, busca de uma pré-história do gênero (GLUSBERG, 2013).

A forma estética que tem caracterizado a performance desde então caminha na direção das rupturas, buscando desmontar a tríade da expressão cênica: atuante, texto e público (GLUSBERG apudCOHEN, 2013). Rompidos os limites entre ator e espectador, a performance buscava uma composição da forma ritual que se tornou expandida, pois já não se apresentava nos limites dos espaços cênicos. Essa linguagem trazia a encenação ao mundo da vida. Deslocada dos lugares instituídos, multiplicava as possibilidades de seus acontecimentos temporais, passava a operar com o instante, no qual todo início segue um fim e vice-versa. Diversificadora de linguagens, a performance ousava conectar as linguagens textuais (semiológicas), as cênicas, as visuais, as plásticas.

Rupturas com as noções espaço, tempo e lugar de origem do pensamento acompanhavam a aventureira filosofia nietzschinana, de carácter intempestivo, pensar passava a ser ação que atualiza conceitos ao tempo presente. Deleuze destacava dessa filosofia um modo de operar que invertia questões básicas da epistemologia. Não interessa perguntar pelo “o que é?”; “mas quem?”; “quais forças?” estão por detrás de um fenômeno estudado. Esse formato de questionamento foi nomeado de método de dramatização (DELEUZE, 2010b).

No pensamento nômade de Nietzsche, Deleuze3 localizava um acordo que defendia a relação entre arte e pensamento filosófico, incentivava a criação de conceitos e a insubordinação à tradição epistêmica. O nomadismo e a ruptura entre pensar e viver se fizeram condições que inspiravam. O pensar próximo à materialidade da vida significava refletir a inconstância dos estados vividos, entender que o sentido do que acontece é múltiplo. Daí a necessidade de abrir a filosofia a outros campos, literatura, cinema e artes plásticas.

Nesse tempo de pré-construção de uma filosofia própria, Deleuze aprendeu com Nietzsche que o filósofo deve diagnosticar seu tempo. Artistas e suas obras de arte, filósofos e seus conceitos, colaboraram para a construção de uma teoria deuleziana que funda a diferença (CUNHA, 2011). Entre esses filósofos, destacamos Henri Bergson (Bergsonismo, 1999) e os conceitos de multiplicidade, atual, virtual, gênese, atualização, duração; e Espinosa e os conceitos de afecção, percepção, intensidade, imanência, univocidade. Essa tríade Nietzsche, Bergson e Espinosa (junto a outros vários filósofos) foi utilizada na tese Diferença e Repetição (2000b) e em obras posteriores.

Essa obra chega ao público em 1968, período culturalmente agitado na França e no mundo todo (DOSSE, 2010). Também era época em que surgia a geração mídia. “Ao mesmo tempo que [...] artistas trabalhavam seus corpos como objetos, manipulando-os como o fariam como uma escultura ou poema, outros desenvolviam performances mais estruturadas, que exploraram o corpo como elemento no espaço” (GOLDBERG, 2015, p. 127). O espectador começa a ser estudado em sua conduta ativa e passiva. O gesto é transformado em consciência. Eram os tempos de Brecht, do “corpo no espaço” de Trisha Brown, de ritualísticas que exploravam expressões dramáticas e escultura viva (GOLDBERG, 2015).

Tempos nos quais o corpo na arte era muito evidenciado. Tempos de nus artísticos, automutilações em nome da arte. “Os cortes auto infligidos por Gina Pane nas mãos, costas e rosto” (GOLBERG, 2015, p. 155) denunciavam um contexto que apostava na quebra de paradigmas. Algumas artistas buscavam entender a dor através da performance, ritualizando o abuso no próprio corpo, como o fez Marina Abramovic, em Belgrado (apudGoldberg, 2015) e outras artistas que produziam obras nas quais expunham o corpo à mutilação. Eram tempos de rejeição da arte conceitual, períodos em que se utilizava a intuição de espectador, propondo pistas por meio de elementos narrativos.

PÓS 68, OUTROS PERCURSOS DO PENSAMENTO E DA ARTE

Em 1969, Gilles Deleuze é apresentado a Felix Guattari. Esse encontro resultará na produção de várias obras e conceitos. Nesse contexto de muitas produções culturais experimentais, Deleuze propõe a radicalização da natureza fundamentalmente ontológica do múltiplo, como unidade da diferença. Entender que tudo difere também significava “que um novo pensamento é possível; o pensamento, de novo, é possível” (NEGRI, 2019, p. 34). Machado dirá que a partir de Diferença e repetição (2000b) e Lógica do sentido (1974) “se torna possível afirmar a diferença, pensar sem subordinar a diferença” (2010, p. 9).

Deleuze tinha o hábito narrativo de roubar conceitos e expressões vindas de outros domínios, tal qual já mencionado. Entretanto, fazia-o criando um estilo que nunca reproduzia o mesmo sentido do elemento apanhado tal como estava posto em outro domínio. Essa filosofia de rupturas, cortes, rasgos e desvios de conceitos e outros elementos, como faz Lapoujade (2015), pode se chamar de “filosofia dos movimentos aberrantes”. Ela ganhará amplo significado e diferente quando o filósofo se une a Guattari, criando novas formas de fazer filosofia.

Em plena efervescência cultural, entre as décadas de 1970 e 80, os dois passam a produzir juntos. Tempos em que a performance se expandia na França e nos Estados Unidos. Época na qual os jovens revolucionavam costumes e passavam das escolas de arte para as práticas da performance (GOLDBERG, 2015). Dramaturgos, músicos, artistas plásticos transpunham suas criações para o contexto da performance, adotando formas de expressão artística inspiradas nos precursores das décadas anteriores.

A respeito do seu encontro com Deleuze, Guattari irá dizer “Eu estava perturbado, e tudo isso correspondia exatamente àquilo que nós, a partir de Marcel Duchamp e John Cage, tentávamos fazer. Por um caminho diferente eles chegaram a mesma coisa” (cf. DOSSE, 2010, p.159). Esse caminho diferente se desenhou no Anti Édipo (1966), obra que fazia crítica à psicanálise freudiana e lacaniana, e a outras estruturas vindas da modernidade. Nessa obra, começa a se esboçar o conceito de Corpo Sem Órgãos, que também referiremos como “CsO”.

O Anti Édipo se caracterizava como um livro

[...] capaz de borrar os códigos, de operar a partir de outro tratamento das palavras. Sua busca por formular, conceituar uma teoria do desejo enquanto fluxo e corte de fluxo acaba sendo encarnada na própria escrita do livro. A escrita de O anti-Édipo dramatiza, ela mesma, essa dinâmica do desejo, a partir do momento em que se faz como um fluxo vertiginoso de linguagem e, ainda, misturando diversos campos de saber, autores, imagens e conceitos. Em O anti-Édipo, os autores conceituam o fluxo do desejo como sendo, exatamente, um fluxo de cortes: algo que só corre ao ser cortado por um outro fluxo. (MALUFE, 2015, p. 237).

Essa obra proposta como criadora de estilos na escrita teve um sucesso estrondoso na França. Em seguida, os autores escrevem juntos Kafka por uma literatura menor (2014). Como analisa Barcelos,

[a] parceria Deleuze/Guattari tem na literatura um lugar privilegiado de pesquisa e de experimentações para suas teses. Não por acaso dois conceitos fundamentais na obra de ambos, Rizoma e Agenciamento, foram construídos sob a forte influência da obra de outro grande pensador: Franz Kafka (1883-1924). Ao estudar a obra de Kafka, se referem a ela como um grande rizoma ou como uma cova por onde se pode entrar por diferentes portas, sabendo, contudo, que são desconhecidas suas formas possíveis de organização. Um desafio que pode ser assustador para as mentes acomodadas e afeitas ao previsível, ao programável. (BARCELOS, 2011, p. 253).

Sempre envolvida com a arte, seja literatura, seja cinema, pintura ou teatro, a filosofia deleuziana, no encontro com Guattari, prolifera os campos sobre os quais debate. Na obra seguinte, escrita a quatro mãos, Mil Platôs (1995b)4, o conceito de CsO será explorado próximo ao conceito de rizoma. Essa obra extensa e múltipla caracterizou-se por ser uma escrita filosófica com um enredo próximo à vida, que tornava o sensível uma espécie de irrupção da linguagem, fazia do discurso filosófico uma forma de multiplicidade e de fluxo. Propunham o corpo como lugar do encontro entre sentido e discurso, corpo intenso, múltiplo, intensivo, corpo entre corpos, Corpo Sem Órgãos (CsO).

Conforme Negri (2019) expressou, toda a narrativa desenvolvida em Mil Platôs era um exercício de contra-sentido do sentido; enfrentar o limite discursivo que em parte se sustentava na concepção de Artaud. Sim, Antonin Artaud (1993), especialmente, fornece os elementos para os autores proporem o conceito de Corpo Sem Órgãos. Esse corpo do sentido trazia uma reviravolta, indicava que o não sentido na linguagem (discurso) era uma forma de significar, de precipitar o significado, autoengendramento entre sentido e não sentido.

RIZOMA: UMA PRÁTICA METODOLÓGICA PERFORMÁTICA

Na última década do século XX, esses dois filósofos nos deixam. Guattari um pouco antes de Gilles Deleuze. Deleuze ainda escreveu inúmeras obras filosóficas que discutiram e utilizaram elementos vindos da arte. Retomamos aqui parte desse legado e é por necessidade de recorte e adequação a um espaço de artigo que não adentramos à obra posterior à desenvolvida com Guattari. Interessa-nos chamar atenção ao conceito de Rizoma, desenvolvido em Mil Platôs, conceito que envolve uma teoria de expressão e dos agenciamentos (NEGRI, 2019). Conceito este que criou novas perspectivas para as ciências humanas. Essa obra, cujo tema é deslocar os sujeitamentos que, vindos da tradição, implicam como produção e como produtos tanto o ser como a história, abre outros modos possíveis para se desdobrar o presente, ao entender os acontecimentos que nos rondam como unidade múltipla.

Interpretar o múltiplo implicou na necessidade de um plano de composição. Esse plano desenvolvido pelos filósofos no que O que é filosofia? (1995a) implica em composição na qual é possível estabelecer de modo mais claro as relações entre multiplicidades propostas no rizoma. Esse processo imanente é sugerido que seja um composto ou sobreposto de elementos, tal um rizoma, algo que se esparrama em várias direções. (DIAS, 2012).

O rizoma como processo aberto de forma cartográfica pode ser comparado a um modo performático de se pensar a atualidade, diagnosticá-la; oferece uma clínica do tempo presente. Contudo, o entendimento de que esse processo envolve um plano de imanência permite a compreensão de uma imagem de pensamento que serve para orientar o processo do pensar. Daí o plano ser um “corte no Caos” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 74). Corte que deve ser entendido como aquilo que permite analisar a multiplicidade das multiplicidades, as que implicam hoje a realidade virtual, a globalização do capital, a flexibilização da força de trabalho, o desenvolvimento das máquinas de dominação no horizonte planetário. Todo esse cenário pós-década de 1980 que pode ser intuído por aí.

Retomando a análise que Cohen (2015) fez em Perfomance como linguagem, encontramos que a performance está “ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira de se encarar a arte; A live art. A art live é a arte ao vivo [...] arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo” [...] (2013, p. 30). Em Mil platôs 1, Deleuze e Guattari (1995) organizam uma teoria das multiplicidades que, pelas características de seus elementos, busca dar visibilidade aos processos totalizantes, às subjetividades, às unificações, que ultrapassam a relação consciente e inconsciente, natureza e história, corpo e alma. O que a filosofia da diferença desconstrói no campo do pensamento filosófico forma paralelo com os elementos que a arte da performance traz no processo de desconstrução de certa tradição em arte.

A performance como movimento artístico atualiza as formas de expressão artística às questões de sua época, as atualiza (GLUSBERG, 2013), assim como a filosofia da diferença de Gilles Deleuze. A performance não parte do zero quando rompe com certa tradição e se abre a outros campos e linguagens. Ao operar com o presente, se abre a atualização e, no rupturar com as condicionantes do espaço, se conluia com o nomadismo. Abrindo-se a criar novas linguagens na arte, se aproxima da multiplicidade e, ao rescindir com certa cronologia do tempo, vai de encontro aos tempos livres. Por fim, ao tentar superar a duplicidade estrutural ator-expectador, tenciona subjetividades e máquinas abstratas, nesse feitio libera devires.

Os elementos que no parágrafo anterior associamos às características da arte da performance foram extraídos das características do Rizoma, listadas no Mil Platôs 1. Em uma passagem de seus estudos, Zourabichvili diz que “o Rizoma é, portanto, um antimétodo que parece tudo autorizar - e de fato autoriza, pois esse é seu rigor [...]. Não julgar previamente qual caminho é bom para o pensamento” (2004, p. 74). Compostos por princípios constitutivos, essa metodologia possui regras ou orientações que se impõem contra o equívoco da representação.

Ao propor que o Rizoma seja flexível, processo aberto, remontável, os filósofos descrevem que esse conceito se faz contra o pensamento arborescente. Composto por linhas flexíveis, possui, entre outros elementos, “[...] fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas é o rizoma” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 22). O mapa ou a forma do rizoma que se oferece como metodologia não busca significar ou marcar presença, mas desterritorializar, agrimensar sentidos em zonas de intensas turbulências que desestruturam os moldes hegemônicos de existência (cf. DELEUZE; GUATTARI, 1995b).

E em se falando da estreita relação entre a arte da performance e o corpo, outro conceito que vem desses filósofos e pode ser útil numa análise de práticas artísticas é o já mencionado conceito de Corpo Sem Órgãos. Esse conceito sensibiliza uma noção de corpo criador. O CsO não propõe movimentos contrários aos órgãos. O que figura como inimigo do corpo intenso é o organismo; logo, o CsO não é o oposto aos órgãos, mas uma percepção corporal que se impõe contra as ordens do organismo. O corpo é corpo, algo singular e único. Pode ser percebido como um plano intenso sem a necessidade de órgãos, mas de conexões, linhas e fluxos que o atravessam com fluências. “As linhas se inscrevem em um Corpo sem órgãos, no qual tudo se traça e foge, ele mesmo uma linha abstrata, sem figuras imaginárias nem funções simbólicas: o real do CsO” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 71).

Se considerarmos que o corpo composto por órgãos compõe o organismo vivo, cada órgão com suas materialidades, tecidos, modo de funcionar, estabelece uma função que, assim como uma ferramenta, principia o funcionamento de um todo. Sua função e funcionamento garantem a sobrevivência biológica de um sistema vivo e as dinâmicas entre os devidos órgãos compõem a unidade orgânica do corpo. Atribuir ao CsO um plano do desejo permitiria descontruir predeterminações, fundamentos do controle dos fluxos que mecanizam o ser e que anestesiam a existência.

UMA EXPERIÊNCIA EM ARTE EDUCAÇÃO OU PARA DESFAZER DO CORPO EDUCADO

Usamos os conceitos da filosofia da diferença na análise de uma pesquisa em performance arte ou arte educação por entender que um conceito

[...] chama nossa atenção para certas coisas, deixando outras em segundo plano. Um conceito não diz arrogantemente “é assim”, mas provocativamente pergunta “e se fosse assim?”

[...] Um construcionista tem que acreditar em mundos co-possíveis. Não se trata de descrever o mundo, mas um mundo. (SILVA, 2002, p. 53).

Nesse sentido, o rizoma é conceito que arranja um sobreposto de várias ordens, que se relacionam uma com as outras em plano de composição, no caso deste texto, as ressonâncias entre essa filosofia e a arte da performance. Propomos o rizoma como forma metodológica que permite trabalhar a multiplicidade e a sobreposição para se alcançar uma unidade de sentido. O rizoma implica num procedimento de pesquisa no qual o pesquisador demarca um território, um mapa, no qual sujeito e objeto se confundem, pois um instaura o outro.

No nosso mapa ou rizoma, pensamento e corpo são dados que se deslocam mergulhados nas sensações, em percursos que podem ser sempre reabertos, desmontáveis, conectáveis, reversíveis, construindo e desconstruindo relações que podem ser modificadas, ter múltiplas entradas e saídas para inúmeras linhas de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 1995b). Trazemos, na última sobreposição do nosso rizoma, dados sensibilizados pelas criações artísticas da arte da performance. Dados que não entendemos como resultados encerrados, pois tratam do retorno a um desafio de sensibilização artística, são os produtos colhidos em uma pesquisa que se movimentou no campo da arte educação. No ano de 2018, um de nós, com o auxílio da Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, selecionou 8 professores de Educação Artística que atuavam nas escolas públicas da cidade. O processo de seleção começou como um convite disponível na página virtual do Museu Municipal. A secretaria facilitou contatos telefônicos que resultaram na seleção desse grupo. Os professores foram convidados a discutir as ressonâncias entre a experiência estética e o corpo do profissional que atua na educação em arte. Tais reverberações implicavam um processo de mediação cultural que se daria no museu local. A proposta, em termos gerais, era sensibilizar o corpo desses professores através de experiência estética organizada em três momentos: i) o primeiro momento consistia em aproximá-los do Material Educativo Elke Hering; ii) o segundo, provocá-los a escrever cartas para esses corpos visuais; e iii) o terceiro e último momento, discutir e descrever como essa obra que expõe partes do corpo da artista convoca a uma performance que desdobra essa obra/corpo em outras criações performáticas. A obra Elke Hering era o ponto de partida e de chegada do processo. O desafio proposto visava transformar o percurso de pesquisa em criação singular. A questão por detrás da pesquisa não era simplesmente adequar os professores a novas práticas, a sensibilização tinha por objetivo provocá-los à abertura de novos processos de si. Afinal, como disse Silva, “Não se trata mais da questão da formação ou do desenvolvimento de um corpo - o do saber-objeto ou o do educando-sujeito. O que interessa agora é saber quais composições são feitas e quais composições podem ser feitas [...]” (2002, p.54/55). Instigados a fazer uso de reproduções fragmentadas na sensibilização da obra da artista, as ações do grupo foram registradas por fotografia. Foi proporcionado o tratamento digital dessas fotografias e, posteriormente, os registros foram retomados, implicando em ação de performatização do pesquisador, que se registrou fotograficamente para criar imagens que compusessem a estrutura textual/corpórea. O estudo ampliou olhares e repertórios culturais em arte e tornou possível perceber o corpo como campo sensível, principal território para uma educação estética criativa e rupturante que elabora saberes sensíveis para uma docência potente em arte. Um ser e estar em relação à arte que se torna devir, processo aberto à sensibilidade e à atualização do sensível, condição principal para criação de uma educação dos sentidos. Essa pesquisa, que envolveu o corpo do professor, mostra que esse corpo fala, produz presença e sentido, atua como campo de expansão e controle das intensidades, das expressões e dos gestos que remetem a certa ordenação das funções do organismo. “A significância cola na alma assim como o organismo cola no corpo e dela também não é fácil desfazer-se” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21). As colagens, as conexões temporárias, as apropriações e as adaptações para fins de propor um pensamento ainda não pensado com os usos de conceitos criados em outro campo permitem dizer que se performa em campo filosófico, se performa criando mapas que atualizam o pensamento por outros saberes e pensares. Dos oito performances professores que participaram: (7) sete eram do sexo feminino e (1) um do sexo masculino; de idades entre 29 e 59 anos; possuíam formação acadêmica diferenciada, compondo certa diversidade artística; (1) um era graduando do curso de licenciatura em Artes Visuais, outros (2) dois possuíam graduação em música, (5) cinco em Artes Visuais. Um dos docentes atuava como professor em projeto de musicalização e outros sete professores atuavam na rede de educação de Blumenau. Como se disse, essa mediação cultural quis deslocar esse grupo para fins de sensibilizar no professor o “performer” ou o artista. Cumprida a sequência de etapas descrita anteriormente, os dados colhidos dessa experiência resultaram em performances visuais e narrativas. Os performers professores escreverem uma carta para o corpo da obra de Elke Hering, sensibilizador da experiência. A questão que agenciou essa escrita e mobilizou possíveis conexões perpassava a relação entre sentido e pensamento, sensibilizando a ideia de corpo por via de um processo artístico que implicava a arte no próprio corpo do performer professor. As cartas percorreram um caminho sem começo ou fim, sem ocultarem pontos de partida ou chegada em nenhum momento, pois, na perspectiva rizomática, “não seria mais caminho, ele só existe enquanto caminho no meio” (DELEUZE, 2006, p. 25). Os procedimentos dessa experiência de pesquisa intencionaram sensibilizar o corpo desses performers professores, corpo que se mostra insensível, cansado, esgotado em suas potencialidades de criar e agir no ensino da arte. Corpo sacrificado aos binarismos; aos dualismos; às forças em nome do bem ou do mal, do branco e do preto, do homem e da mulher; às forças ambíguas que geram agenciamentos que engessam as potências docentes e instauram modos de pensar e agir que atingem esse corpo e o aprisionam. Cada professor escreveu uma carta direcionada à concepção de corpo que os perpassava e, após a divisão do grupo em dois, se realizou a socialização das cartas. Depois da partilha de suas impressões sobre o corpo, os professores foram desafiados a criar duas performances para serem executadas em sequência. As performances5 foram registradas em vídeo. Em grupo de discussão realizado ao final do percurso, os docentes apresentaram suas impressões da experiência do corpo em arte e em performance e as conexões que estabeleceram com a docência. A primeira performance foi realizada pelos docentes Pedra, Cristal, Fluir e Estrela6 e o esquema apresentado era dinâmico e explorava o espaço escolhido para a exibição. As ações no plano da performance eram distintas: a atuação de Cristal era de ficar estática com o rosto coberto; Fluir movimentava-se pelo espaço em uma espécie de dança pessoal; já Pedra repetia a ação de andar e, em determinado momento, deixava o corpo cair, permanecia parado por um tempo e retomava a caminhada para uma nova queda; Estrela, a quarta componente desse grupo, movimentava-se pelo espaço abraçada ao próprio corpo e aos participantes que encontrava pelo caminho.

A segunda performance foi realizada pelos professores Luz, Tati, Sol e Unicórnio. A ação realizada pelo grupo remetia a um ritual em que o foco era o corpo exposto a sensações na relação com outros corpos. Em círculo, as docentes ficaram de mãos dadas e voltadas para dentro com Unicórnio ao centro, que mantinha uma relação específica com cada integrante do grupo, de modo que mobilizava a ação dos corpos como um afetar-se e ser afetado pela ação do corpo ao centro e às conexões com os outros corpos do círculo. Metaforicamente, a performance remeteu aos condicionamentos que os corpos são submetidos diariamente em contextos sociais e as construções de sentidos corporais por meio das relações. As impressões foram externadas na voz da docente Tati:

E poder usar a poética da carta, também. E uma forma a mais de sensibilização, a escrita, conhecer um pouquinho da história da Elke Hering em um primeiro momento, depois fazer a leitura da obra e depois vivenciar a obra. Então, todo esse processo eu acho que... [pausa curta], e o fechamento dele. Com essa performance, eu acho que o corpo marca, então assim, vai ficar na nossa memória por muito tempo [...]. (TATI, Grupo focal, 2018).

Os artistas professores completaram o percurso de mediação cultural com as performances e, por meio delas, seus corpos experienciaram a criação inserindo-se integralmente na proposta, de modo que as dimensões do ser puderam ser mobilizadas, abrindo espaço para um CsO intenso. A experiência estética e as reflexões para a ação de um performer professor se deram por via da arte. O docente Pedra narrou: “[...] a gente teve uma vivência e a gente experimentou, nos colocamos a fazer” (PEDRA, Grupo focal, 2018). O fazer, olhar para si mesmo, aparece na voz da docente Estrela: “E essa parte de a gente olhar, de ter olhar é... [pausa] pra si mesmo, pro corpo porque até no nosso corpo ali nós questionamos um pouquinho [...]” (ESTRELA, Grupo focal, 2018).

No plano das intensidades, os professores que participaram do percurso de mediação cultural expuseram seu corpo desejante, composto de fluxos, de intensidades e inconstâncias. Estas intensidades estão para além dos órgãos, das funções, das organizações. Inseridas em um plano de fluxos desejantes, sensibilizam substâncias, potências, intensidades, matrizes e devires. “Os modos são tudo o que se passa: as ondas e as vibrações, as migrações, limiares e gradientes, as intensidades produzidas sob tal ou qual tipo substancial a partir de tal matriz” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13). Assim como para Artaud, o percurso de criação das performances inaugurou “[...] uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 9).

A proposta de transformar as cartas em performances mobilizou o corpo a trazer como matéria intensiva, como estruturas sensíveis, como capacidade de pensar o impensado, o não formatado, o entremeio de uma imagem pensamento, um plano de composição, entre dinamismos extensivos e intensivos, qualidades de representação que constituem, mais do que um desenho, um conjunto de linhas abstratas saídas de uma profundidade inextensa e informal (DELEUZE, 2006, p. 134).

Numa espécie de jogo de forças intermitentes, de potências do sentir-pensar, do irracional para a criação, as dimensões rizomáticas de uma filosofia da diferença forçam “[...] a sair das evidências da consciência para propor um exercício discordante que penetra ou se deixa penetrar pelos processos inconscientes” (CUNHA, 2019, p. 948). Assim, as performances promoveram um corpo intenso e intensivo sem desfazer do organismo, sem matar-se, mas permitiram aberturas do corpo a “[...]conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21) .

Considerar as diversificadas abordagens conceituais dos estudos da performance consiste em ousadas propostas de estudo para aprofundar as interfaces como linguagem artística, como prática social, qualidade da ação corporal e sua performatividade (ICLE, 2010). Tendo por base as questões do CsO trazidas pelos filósofos da diferença e os princípios da arte da performance, decidimos chamar “performer professor” cada participante desse grupo de professores de arte que ousou responder ao chamado de uma proposta de criação performática.

IN/CONCLUSÕES

Nós nos provocamos a aproximar a filosofia da diferença e a arte da performance, experimentar ressonâncias entre esses dois campos. Ousamos ativar alguns conceitos deleuzianos e outros deleuzianos-guattarianos. Criamos nesse artigo um rizoma, realizamos um construtivismo performático, algo que arranjamos para fins de conectar: filosofia e arte ao campo da educação, um mapa que sobrepõe esses campos como platôs. Usamos o rizoma como metodologia que visa ser meio, plano de composição, para observar os movimentos dos processos subjetivos e objetivos, virtuais e reais, entendendo-os como múltiplos. Um processo dos processos ao qual é possível conectar elementos singulares que dizem de uma realidade; tecemos relações e encontros, alinhamos alguns acontecimentos, que talvez ainda se expandam em devires.

O rizoma é conceito que, junto a outros, desenvolvidos na filosofia da diferença, se mostra proveitoso para enfrentar o horizonte pós-moderno, revelar as dinâmicas das estruturas em que estamos inseridos nos ambientes públicos, privados, virtuais, reais, e as forças que os atravessam. As formas do rizoma se desvendam como instrumentos sensíveis para lidar com certas dramaturgias que se instalam superficialmente quando se reflete a realidade por via do pensamento ou da ação artística.

Ao analisarmos por essa perspectiva as propostas artísticas que resultaram como dados da pesquisa em arte e educação, podemos perceber um sutil movimento de “[...] desconstrução de arquétipos e estruturas que vêm da tradição identitária, na qual alguns modelos de saber e poder se conformaram em rotinas” (CUNHA, 2019, p. 954). Entendendo a performance como um tipo de linguagem artística que permite performatizar o pensar e os modos com os quais o corpo se expressa e se movimenta, instalando imagens corpóreas e atravessamentos de afecções entre vida e pensamento, refletimos a tensão entre sensibilidade e expressão.

Por fim, problematizamos o que se instala nesse “entre”, nesse paralelismo entre filosofia de diferença e arte da performance, algo que se passa como proposta de educação sensível e nessa passagem sugere as fissuras de uma estética da expressão. Quanto aos dados colhidos na atividade de pesquisa que quis sensibilizar o corpo dos professores através de experiência estética organizada em três momentos, podemos concluir que: todo o corpo é composto por ritmos, velocidades, linhas mensuráveis, múltiplos sentidos; é zona de agenciamento das sensibilidades em favorecimento de supostas capacidades racionais. Não podemos separar o racional do sentir. Não há limites entre corpo, pensamento e o sensível.

Assim, as performances realizadas romperam limites de um organismo maquinímico, agenciado por outros extratos de significâncias ou de subjetivações. A prática da performance serviu para borrar os limites entre corpo e linguagem, que, inserida no universo da arte, fez-se expressão que desafiou as práticas corporais. O corpo do performer também pode ser compreendido como o corpo do professor que atua em sala de aula emitindo linguagens performáticas, com as quais o fazer a performance e o dizer da performance se intercambiam no ato de educar.

Por fim, pensar a arte da performance ao modo do rizoma pode indicar que buscamos viver o rizoma, praticá-lo! Performatizando ou liberando seus elementos, o que nada tem a ver com a redutibilidade dura e inflexível que constituiu os modos sistêmicos de ensinar e propor uma educação em arte que copia e reproduz. Daí nossa proposta de aproximar a performance arte que se faz em sala de aula com outras sensibilizações que venham da filosofia e da arte. Esse ato implica um pensar a educação em arte de modo múltiplo. Essa filosofia da diferença que chamamos por aqui de performática, nos usos da forma do rizoma, permite criar conexões singulares entre multiplicidades e intensidades, convocando o criar e o viver, sensibilizando práticas artísticas rizomáticas e experimentais, performáticas, cujos procedimentos possam nos levar “a regiões ainda por vir” (DELEUZE;GUATTARI, 1995).

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1Félix Guattari foi um pensador filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês e praticamente autodidata que congregava reflexão teórica, prática clínica e ativismo político (cf. DOSSE, 2015).

2Chamamos “arte da performance” seguindo a denominação proposta por Rose Lee Goldberg (cf. GOLDBERG, R. A arte da performance – do futurismo ao presente. 3. ed. Tradução de Jefferson Luiz Carmargo. São Paulo: Martins Fontes, 2015).

3Sob esse entusiasmo, Deleuze se afastava da tradição de inspiração platônica, tradição que opunha a essência do fenômeno (um tipo de forma prévia da existência) à sua aparência (forma real da existência). A filosofia de Nietzsche se destacou para Deleuze, entre outras razões, por ser constitutiva de contracultura irredutível a qualquer recuperação institucional (DOSSE, 2010).

4No original francês: Mille Plateaux – capitalisme et schzophrénie ou Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia foi editado na França em um único volume em 1980.

5As imagens das performances registradas durante o percurso de mediação cultural estão inseridas na Dissertação de Mestrado: Referência suprimida para não identificar autor, mencionada anteriormente.

6Pseudônimos escolhidos pelos docentes para preservar suas identidades.

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 15 de Novembro de 2020

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