Introdução
Na cibercultura nossas possibilidades de comunicação e interação são potencializadas pelo avanço das diversas tecnologias digitais. Elas permitem a circulação de informações e saberes geradores de práticas sociais que redimensionam os modos de ser e estar no mundo. Nesse movimento, há abertura para a produção e circulação de conhecimentos que alteram os modos como entendemos e vivemos as experiencias corporais e sexuais. Sobretudo porque as diversas possibilidades tecnológicas para materializar e construir os corpos e as sexualidades em rede mostram que não existe mais um fundamento que garanta a existência de um sujeito anterior à ação, com origem em si mesmo. Ao contrário, a constituição do sujeito é uma resposta às relações e discursos de si e externos a si. Os corpos e as sexualidades são performances materializadas por redes que conectam signos, hormônios e tecnologias. Corpos e sexualidades, no contexto das tecnologias digitais, são performances exibidas e cultuadas em meio às nossas conectividades. A conexão móvel e onipresente e o estimulo da cultura participativa nas redes sociais digitais favorecem a interação, produção e compartilhamento de conteúdo corporais e sexuais em plataformas digitais. Nesse caminho, gays utilizam seus dispositivos digitais para produzir vídeos e compartilhar suas performances sexuais bareback no Twitter.
No Twitter, as performances bareback são narrativas pessoais e grupais que possibilitam uma discussão do fenômeno das pornografias em rede e sinalizam novas pedagogias de corpos e sexualidades. Tais pedagogias, produzidas em ambiências digitais, nos orientam e nos ensinam diferentes modos de viver e experimentar as sexualidades nas conexões amorosas nas telas digitais. Elas produzem novos discursos e relações de poder que operam formas de experimentar o sexo e os afetos.
Nesse contexto, o objetivo do artigo é analisar pedagogias de sexualidades performadas em vídeos de pornografias amadoras bareback produzidas e compartilhadas por um grupo de gays no Twitter. A pesquisa utilizou aportes teóricos da Cibercultura, do Porn Studies e dos Estudos Culturais em Educação. O método usado foi o da pesquisa qualitativa, de cunho descritivo e analítico. A estratégia metodológica para a produção dos dados foi a da observação não participante e a técnica para a análise foi a da análise de conteúdo.
Os resultados apontam que as performances bareback em estudo são articuladas através de outros subgêneros da pornografia, do quais destacamos três na análise: o sexo interracial, o sexo em local público e o sexo grupal. As análises mostram que as performances raciais constroem pedagogias que articulam discursos de objetificação racista, mas também de transgressão. As performances em locais públicos, por sua vez, reconstroem a centralidade do espaço público como espaço de socializações sexuais gay e aparecem entrelaçadas com o desejo de entrar em contato com fluidos de desconhecidos. No sexo grupal, as performances conferem centralidade ao ânus e o destaque é para os corpos que desejam e têm a coragem de receber e acumular os fluidos sexuais. Destacamos que estas performances são repletas de pedagogias, que operam sobre os corpos e as sexualidades de homens gays no Twitter.
Aportes teóricos
Na área da Educação, os Estudos Culturais permitem a construção de um espaço intelectual que amplia a ideia de local de aprendizagem pois, ao salientar as conexões entre Educação e Comunicação, destacam o caráter pedagógico dos artefatos e objetos de cultura, demonstrando que as relações de ensino e aprendizagem estão presentes em diferentes nichos sociais mediados pela cultura e mídia (GIROUX, 2018; ANDRADE, COSTA, 2017; CAMOZZATO, CARAVALHO, ANDRADE, 2016.)
Esse espaço intelectual possibilitou a emergência do conceito de pedagogias culturais para explicar que outros espaços, além da escola, funcionam como produtores de conhecimentos, saberes, formas de pensar e agir. O conceito de pedagogia cultural indica que a educação ocorre numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando à escolar (SILVA, FELIX, 2020).
Nesse sentido, os objetos e ambientes de cultura funcionam como espaços educacionais que, de maneira explícita ou não, produzem pedagogias muito particulares sobre os modos de ser e estar no mundo, coordenando as múltiplas dimensões da vida, incluindo as formas de viver os corpos, os afetos e as sexualidades. As pedagogias de sexualidades são um conjunto de métodos, procedimentos e técnicas que garantem a adaptação de conteúdos informativos e educativos sobre os comportamentos sexuais, os prazeres e os desejos. Elas orientam e prescrevem práticas socializadoras do gosto e do exercício do sexo. Elas mobilizam, refazem e repetem modos de viver as sexualidades considerados como legítimos por normas de nossa cultura (LOURO, 2017; LIMA, COUTO, 2019).
Nesse sentido, enquanto artefato cultural, a pornografia acompanha a história da sexualidade e articula as práticas e os imaginários sexuais. Foucault (1999, p.11) considera que a sexualidade é uma instância construída na relação entre cultura e subjetividade; seu saber é socialmente produzido por processos similares ao dos demais conhecimentos humanos. Para o filosofo, as sexualidades “são as práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo”.
Por sua vez, Butler (2001) argumenta que os corpos e as sexualidades são performances produzidas pela linguagem, através da repetição de discursos carregados de normas e condutas que são incorporadas e performatizadas pelos sujeitos. Portanto, os significados sexuais não são a extensão conceitual ou cultural do sexo biológico, mas práticas discursivas que, por meio das pedagogias de sexualidades hegemônicas, nos educam e nos fazem pensar a partir da natureza/normalidade.
Nessa perspectiva, um filme pornográfico não é apenas um filme de performances sexuais. A exibição explícita do sexo traz questões sociais, culturais, históricas, políticas e pedagógicas que organizam a compreensão sobre o corpo e o sexo. Apresenta performances que estão relacionadas com a condução e fabricação de expectativas e funcionalidades atribuídas aos corpos e aos sexos. Para Hunt (1999) a pornografia é uma invenção, com historicidade e sentidos socialmente construídos para as representações das sexualidades, que a classe dominante evita deixar por conta de grupos minoritários. Mijnhardt (1999, p. 311) descreve a pornografia como um fenômeno cultural, situacional e histórico, definindo-a como “representações realistas do ato sexual e suas variações, com o fim de excitar a sensibilidade sexual”. Maingueneau (2010) argumenta que as produções pornográficas funcionam não apenas como categoria ou gênero fílmico, mas como efeito e atravessamento de uma linguagem que começou a se expandir a partir da indústria pornográfica.
A pornografia possui um vínculo complexo e sutil com a comunidade gay, pois, para este grupo, o consumo desse artefato cultural tem historicamente efeitos de libertação. Durante o século XX, por exemplo, a popularização da pornografia quebrou muitos tabus e inibições culturais, deu visibilidade e ampliou as experiências sexuais não organizadas em torno da reprodução humana. Nesse sentido, para o público gay, as pornografias possuem papel significativo, pois ajudaram a legitimar representações visuais de imagens homoeróticas e de sexo gay (ESCOFFIER, 2012).
Nesse ponto, a iconografia da pornografia gay é ma terial cu ltural e pedagógico que forma o tecido das maneiras pelas quais as sexualidades masculinas não procriativas podem ser entendidas. Dyer (1985) pondera que a pornografia gay é uma afirmação do desejo gay, que inverte a definição de desejo, diz que o mal é bom, o doente é saudável e assim por diante. Defende, assim, a prática do contato físico do mesmo sexo. Para ele, o pornô tornou a vida suportável para milhões de homens gays. Do mesmo modo, Escoffier (2012) e Cante e Restivo (2004) ponderam que a pornografia gay não pode ser vista sem conexão com as implementações e surgimento de movimentos de libertação gay. Para eles, a produção de filmes longa-metragem de hardcore gay está estritamente ligada à Rebelião de Stonewall, marco americano do atual movimento de orgulho gay.
A produção pornográfica gay torna v isível práticas e desejos sexuais já estabelecidos nos círculos sociais gays, como a pratica do bareback, que em tradução livre significa montar em cavalos sem a sela, mas ressignificada por gays para designar a prática sexual sem o uso de preservativo (BRENNAN, 2018; FELBERG, 2011; HALPERIN, 2010; SILVA, 2010; PAULA, 2010).
A prática do sexo desprotegido é estudada a partir de duas perspectivas. A primeira considera o bareback como uma decisão intencional em não usar preservativo no sexo. Sua definição aparece como “sexo anal desprotegido, intencional em circunstâncias em que o risco não foi descartado” (CARBALLO-DIÉGUES; et al., 2006, p. 990). Os autores que utilizam dessa descrição argumentam que as performances sexuais sem camisinha erotizam o risco de contaminação por HIV e é essa possibilidade de infecção que dá sentido e evidência o sexo gay sem camisinha (SILVA, 2010). O bareback, nesse entendimento, é visto como uma transgressão das normativas de saúde pública em relação ao sexo seguro (MEYER; FELIX, 2014).
A segunda perspectiva pensa a experiência sexual gay além de uma epidemiologia de risco; orienta uma fuga para discursos que buscam associar o sexo gay com quaisquer doenças (HALPERIN, 2010). A performance bareback, neste caso, é compreendida em aspectos subjetivos e socioculturais mais singulares. Tem a intenção de experimentar um sexo pré- aids mais livre, “sem controlar o erotismo e as práticas sexuais como se fossem do âmbito da mecânica” (FELBERG, 2011, p.11). É resistência à normalização do sexo seguro baseado nas hierarquias de risco associadas ao sexo gay. Nessa direção, esta perspectiva propõe poensar o bareback junto as transformações e deslocamentos políticos ocorrido a partir de 1995, no pós-aids. Considera que mudanças tecnológicas e farmacológicas, como os ARVs (coquetel antirretroviral) e a terapia múltipla, fortaleceram o sexo sem camisinha. As medicações transformaram a AIDS em doença crônica, o que contribuiu para o desenvolvimento da performance bareback, sobretudo por meio da sua comercialização na indústria pornográfica, através de produtoras menos conhecidas, por volta de 1997 (STORMS 2015). Os estúdios de vídeos de pornografia gay adicionaram linguagem e estética específicas, que transformam a ejaculação em um ato ritualístico e a troca de fluidos em um tipo de comunhão entre os praticantes (FELBERG, 2011).
Atualmente, as interações ciberculturais abrem novos caminhos para produzir e distribuir as pornografias. Conectada a internet, a pornografia é vista como uma atividade de lazer, as performances corporais e sexuais são experimentadas em redes sociais digitais como uma narrativa pública. Através de dispositivos digitais como smartphones e tablets, gays gravam suas performances sexuais bareback e compartilham na plataforma Twitter, construindo a pornografia digital amadora gay ou ‘realcore gay’. As produções colaborativas de pornografias amadoras gay visibilizam a estética realcore. Dery (2007) afirma que realcore são pornografias domésticas com produção e distribuição na rede, feitas com equipamento digital não profissional, frutos de um cenário de convergência entre pessoas, dispositivos digitais e internet, que atendem a uma demanda crescente de pessoas que sentem prazer em espetacularizar e assistir performances sexuais “reais”, feitas por prazer, sem fins lucrativos. Essas produções revelam “o desejo de ver alguém fazendo algo porque gosta de ser visto. Eles estão filmando porque você também faz parte do jogo. Você é o público. Eles ficam com tesão porque alguém está ficando excitado com eles” (DERY, 2007, p. 25, tradução nossa).
Por muito tempo considerada um objeto indigno de pesquisa, as produções pornográficas experimentaram um renascimento do interesse pela comunidade científica com as mudanças tecnológicas iniciadas no fim da década de 1960. A facilidade de produção, distribuição e consumo fornecidos pelas diversas mídias (revistas, VHS, DVD) tornaram o sexo e suas performances mais acessíveis e partes da cultura popular. Hoje, com as tecnologias digitais, a possibilidade de visualização segura e privatizada produz cada vez mais discursos especializados sobre os corpos e as sexualidades, ampliando a necessidade de uma abordagem científica da pornografia (PAASONEN, 2010; ATTWOOD, SMITH, 2014).
No Brasil, os estudos pornográficos ganharam força a partir dos anos 2000, com destaque, dentre outros, para os trabalhos sobre pornografia bizarra (LEITE JR, 2006); mulheres e práticas BDSM (FACCHINI, 2008), bastidores da indústria pornográfica mainstream nacional (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010), pornografia de estética amadora (MIRANDA, 2016), a pornificação de si unida as educações e convenções dos gêneros (BALTAR, BARRETO, 2014) e das sexualidades (COUTO, JUNIOR, CARMO; 2017). Conectados, humanos e aparelhos digitais estão provocando significativas alterações nas experiências com o sexo e nas maneiras de produzir e consumir pornografia. Seja em sites especializadas em pornografias ou em algumas plataformas de redes sociais digitais as práticas de expressão sexual não cessam de ser estimuladas e valorizadas. São conteúdos produzidos e enviado por milhões de usuários em todo o mundo. Isto faz emergir a pornografia digital como uma categoria de pornografia específica, estruturada por sujeitos acostumado a interagir, produzir e compartilhar suas experiencias sexuais nas redes.
Paasonen (2010) e Miranda (2016) destacam que o aumento na produção e no consumo da pornografia digital amadora, como prática comunicativa que visibiliza diversas subculturas e preferências sexuais, estimula as pessoas a se agregarem por interesses comuns e a participarem da rede de produção e compartilhamento destes conteúdos de nicho na internet. Os estudos dessa pornografia em consumidores gays trazem alegações de efeitos na socialização gay como: a morte da intimidade ou um aumento da pornificação de si (DEAN, 2009; MOWLABOCUS, 2020) e a morte dos guetos gays (GIANO, 2019) para a criação de comunidades online (MOWLABOCUS, 2010).
Para Couto (2018) e Shirky (2011) as redes sociais digitais estimulam a cultura da participação e nos incitam a produzir e narrar acontecimentos e experiências com os corpos e as sexualidades. Plataformas de redes sociais, como o Twitter, permitem a divulgação de produções sexuais explicitas, tornam o sexo público e são utilizadas por gays para compartilhar suas performances sexuais, dar visibilidade a seus próprios desejos e encontrar parceiros sexuais.No Twitter essas pornografias são moldadas por vários aspectos ligados as características e usos específicos dessa rede. Não possuem roteiro e tampouco requerem o mesmo nível de preparação que a maioria das produções mainstream. No geral, são vídeos curtos, entre 2 e 5 minutos, produzidos em um momento em que os corpos já estão se roçando intensamente. Em geral são vídeos produzidos com o smartphone, com aspectos que do ponto de vista da indústria pornográfica seriam defeitos, mas que contribuem para o realismo da cena, como baixa resolução, iluminação ambiente, trabalho de câmera instável e filmagem geralmente não editada. Características aceitas com prazer pela audiência, pois garantem que são produções amadoras, com conteúdo considerado real, isto é, não ficcional.
As performances sexuais amadoras produzidas e compartilhadas por homens gays no Twitter permitem estabelecer conexões com outros gays que possuam afinidades quanto aos desejos a serem performados, cruzando, assim, a pornografia digital amadora com alguns subgêneros da pornografia gay e construindo comunidades sexuais digitais que comungam de determinadas práticas, como a performance bareback.
Metodologia da pesquisa
O método de pesquisa utilizado foi o qualitativo, de cunho descritivo e analítico (MINAYO, 2017). A estratégia metodológica para produção e análise de dados foi o da observação não participante encoberta (JHOSON, 2010) e para analisar os dados usamos a análise de conteúdo (BARDIN, 2011). O lócus da pesquisa foi a rede social digital Twitter, amplamente utilizada para experimentações com os corpos e as sexualidades. Os perfis estudados são públicos e as postagens circulam livremente. Qualquer pessoa com uma conta no Twitter pode acessar as informações, construir e compartilhar seus conteúdos.
A escolha dos sujeitos iniciou a partir das hashtags #pornografiagay e #bareback na aba “explorar” do Twitter. A partir delas mapeamos 73 perfis de gays que produzem e compartilham pornografia. A partir desses perfis, fizemos uma curadoria a fim de construir um campo empírico apenas com os perfis que fazem do sexo uma narrativa pública, através da produção de mídia sexual caseira, sem fins lucrativos. Para tanto, utilizamos o Foller-me, um software gratuito que analisa as estatísticas mais importantes sobre qualquer usuário do Twitter.
O Foller.me permitiu visualizar os tópicos de interesse de cada perfil e as estátisticas de exposição. Levamos em conta os perfis com conteúdo amadores, com mais de 10 mil seguidores e com grau de relevância com proporção igual ou maior a 10. O grau de relevância de um ator considera o alcance dos tweets publicados através da proporção de seguidores. Uma proporção alta significa que mais pessoas estão seguindo aquele ator. Com estes critérios selecionamos os 10 perfis para a pesquisa. Na tabela abaixo vemos os perfis, o número de seguidores e o número de relevância:
Perfil | Seguidores | Relevância |
---|---|---|
Perfil 1 | 20.888 | 271,27 |
Perfil 2 | 236.879 | 237,83 |
Perfil 3 | 15.542 | 39,55 |
Perfil 4 | 33.858 | 10,50 |
Perfil 5 | 36.205 | 411,42 |
Perfil 6 | 21.021 | 10,94 |
Perfil 7 | 35.616 | 80,58 |
Perfil 8 | 101.940 | 30,54 |
Perfil 9 | 13.571 | 128,53 |
Perfil 10 | 41.162 | 240,07 |
Fonte: dados da pesquisa, 2021.
A observação foi realizada entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021. Para fins de produção de dados utilizamos publicações realizadas entre os meses de setembro 2020 a janeiro de 2021. Para identificar a frequência e a repetição de determinados conteúdos os dados foram trabalhados em três fases. A primeira fase foi a de pré-exploração do material. Selecionamos 43 vídeos que foram assistidos na integra. Fizemos algumas capturas de telas e anotamos observações e descrições preliminares, como o tempo de duração dos vídeos, número de pessoas nas performances, uso ou não de objetos, local, número de visualização, curtidas e compartilhamentos.
A segunda fase consistiu na organização das performances pornográficas em unidades de análise, considerando os temas que se repetiam com muita frequência. Identificamos três temas recorrentes: sexo interracial, em locais públicos e grupal. A terceira parte da análise, conforme proposto por Bardin (2011), consistiu na inferência e interpretação de dados. Nesta etapa, foi necessário intenso diálogo entre os videos e as teorias norteadoras, culminando nas inferenciais e interpretações.
Nosso estudo revelou que 14 dos 43 vídeos da pesquisa foram sobre performances bareback, tema deste artigo. Na tabela 2, abaixo, é possível visualizar com mais detalhes os vídeos dessa temática: o vídeo, o perfil que o publicou, a duração, número de likes, número de retweet, os que são da categoria interracial, em local público e grupal. Indicamos outros vídeos bareback, mas que não são das três categorias principais e estudadas e, por isso, não entraram no corpus de análise.
Vídeos | Perfil | Duração | likes | Retweet | Interracial | Local Público | Grupal | Outros |
V. 01 | @perfil 05 | 1m30s | 1030 | 263 | X | |||
V. 02 | @perfil 02 | 1m26s | 2380 | 12500 | X | X | ||
V. 03 | @perfil 08 | 53s | 653 | 321 | X | banheiro | ||
V. 04 | @perfil 09 | 1m35s | 341 | 43 | X | |||
V.05 | @perfil 10 | 1m15s | 1825 | 280 | ônibus/coletivo | X | ||
V. 06 | @perfil 05 | 1m13s | 952 | 110 | X | |||
V.07 | @perfil 03 | 2m50s | 631 | 72 | banheiro | |||
V.08 | @perfil 10 | 3m20s | 290 | 230 | X | |||
V. 09 | @perfil 05 | 1m26s | 162 | 145 | X | praia | X | |
V. 10 | @perfil 07 | 2m56s | 372 | 259 | X | |||
V.11 | @perfil 06 | 1m16s | 94 | 20 | X | |||
V. 12 | @perfil 07 | 2m10s | 28 | 6 | X | |||
V.13 | @perfil 02 | 1m32s | 62 | 3 | X | |||
V. 14 | @perfil 09 | 3m24s | 23 mil | 743 | banheiro | X |
Fonte: dados da pesquisa, 2021.
A tabela 2 funciona como uma ficha descritiva das pornografias amadoras em análise. Dessa maneira, por exemplo, o vídeo 07 descreve um produto de dois minutos e cinquenta segundos com a performance de sexo sem camisinha em banheiro público.
Mesmo considerando que os vídeos estudados foram publicados em perfis públicos, neste artigo, optamos por fazer menção aos perfis através de uma sequência numérica, de forma que são nomeados por uma sequência que vai de @perfil1 a @perfil10, evitando, assim, a identificação dos perfis e dos sujeitos. Além disso, as imagens usadas, a seguir, passaram por um tratamento, com o uso do aplicativo Blur, para impedir a visualidade explícita dos órgãos genitais e, quando for o caso, dos rostos dos participantes das performances sexuais analisadas, impedindo, assim, a identificação dos sujeitos. Tais cuidados visam atender a Resolução CNS n. 466/2012 (Ética na Pesquisa com seres humanos) e a Resolução CNS n. 510/2016 (Ética na Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais).
Resultados e Análises
Nossa pesquisa construiu dados sobre o bareback nas pornografias amadoras gay compartilhadas no Twitter no intuito de analisar as pedagogias de sexualidades estruturadas nessas pornografias. Nos 14 vídeos estudados neste artigo, as performances bareback são articuladas e atravessadas por outros subgêneros da pornografia, do quais destacamos os três mais recorrentes na análise: o sexo interracial, o sexo em local público e o sexo grupal. Há, ainda, a categoria outros, com performances de casais transando em casa e sem indicação de diferenças raciais. Esse grupo consta de 3 vídeos e foram produzidos pelos perfis 05, 07 e 09. São performances amadoras que fazem repetição da pornografia mainstream e, por isso, não entraram diretamente nas análises das três primeiras categorias.
Interracial
Os dados produzidos e analisados, referentes as performances sexuais bareback, indicam as diferenças raciais no sexo gay sem camisinha e foram publicizados por perfil@05, perfil@02, perfil@08, perfil@10 e perfil@07, como demonstrado na imagem 1, abaixo:
A pornografia interracial é um subgênero popular entre gays e é problematizada em diversas pesquisas que interseccionam sexo e raça. Elas consideram que para gays de minorias raciais a pornografia é uma das poucas validação e ferramenta educacional disponível, seja em práticas consideradas negativa ou positivas (ARRINGTON, 2015). Mas é preciso considerar que, de modo geral, a pornografia interracial gay mainstream é feita pensando no gay branco como consumidor e mercantiliza subjetividades sexuais racializadas, sobretudo as negras, de forma redutiva, marginalizada e exótica (PINTO, 2012).
Nossas analises focaram nas experiencias racializadas na pornografia amadora bareback. Elas tratam das fantasias racializadas, mas com corpos que estão de acordo quanto aos desejos performados, são pontos de tensão e conflitos, que apresentam hierarquizações e preconceitos, mas, também, geram transgressões. É importante, então, pensá-las a partir de uma perspectiva contextual e relacional, na qual os significados sociais atribuídos a essa prática moldam as experiências sexuais interraciais, mas que também interagem e modificam esses significados (CORNEAU et al., 2020; ARRINGTON et al., 2015).
Na ambiência do twitter, os sexos bareback interraciais são performances amadoras que retratam as porosidades da relação sexo/raça com base nas relações de poder em torno da circulação do sêmen. No geral, essas relações são construídas a partir das posições sexuais, ativo e passivo, que atribuem, a partir das diferentes tonalidades de pele, os corpos que devem receber e os que devem dar os fluidos sexuais. Nos vídeos em análises, essas relações apontam para dois discursos que se contrapõem. O primeiro revela a objetificação racista do corpo negro através de performances que associam a ideia pedagógica de hipervirilidade e violência ao corpo negro, construindo a imagem do negro ativo ‘leitador’. O segundo discurso mostra performances de transgressão do primeiro por meio de performances que reivindicam o desejo negro pela passividade e pela recepção dos fluidos sexuais.
No primeiro discurso, os corpos não negros, em posição ativa, parecem estar submetidos a performances mais violentas, como na imagem 2, abaixo:
A imagem acima apresenta três vídeos compartilhados por @perfil 01, @perfil 11 e @perfil 12. Na descrição do vídeo (v.01), por exemplo, podemos ler: “Negão maloka, não perdoou meu cuzinho e socou tudinho. Como comer e como dar um cu. O cara sente a porra machucar, mas não arrega até tirar leite do macho”. Segundo a descrição do vídeo, o corpo negro deve realizar uma performance hiperviril, violenta e ser o doador de esperma. A frase “como comer e como dar o cu”, demonstra que, na percepção desse sujeito, as posições sexuais nas performances bareback interraciais devem ser bem demarcadas. Cabe ao corpo negro ser o ativo, aquele que sacia a necessidade do outro em receber e sentir os fluidos sexuais e contato direto da pele. Essa ideia é ratificada nos vídeos (v.11 e v. 12), mostrando que, para esses sujeitos, o corpo negro não pode se deslocar dessa lógica.
No contexto erotizado das sexualidades e das raças, a descrição do vídeo fortalece o racismo das subjetividades sexuais de gays não brancos, sobretudo as negras. Sobre essas características, Pinto (2012) e Corneaul et al. (2020) consideram que as subjetividades sexuais de gays negros têm sido exaltadas pelo senso comum em uma estrutura falocêntrica que alimenta o modelo racista, posicionando-o como superior a outras raças do ponto de vista do desejo sexual. Contudo, outros cruzamentos entre marcadores de raça e sexo gay sem camisinha podem ser observados. Alguns vídeos, (v.02, v.03, v.08, v.09 e v.13,) demonstram o aspecto transacional dessas performances bareback e questionam essa subjetividade sexual que estabiliza o corpo negro no papel de ativo sexual e provedor de fluidos sexuais. Selecionamos duas imagens:
A imagem apresenta dois vídeos (v.02 e v.08) em que há transgressão do imaginário social do corpo negro como hiperviril e ativo. A passividade sexual de negros gays, nesses vídeos, aparece como transgressão que busca transformar a imagem do negro dotado e provedor de sêmen e reinventar suas performances sexuais sem camisinha. A frase descritiva do vídeo, v.02: “o negão pirocudo ao mesmo tempo que atola os 25cm no meu rabo... também curte levar pirocada e leite no cuzinho” tem potencialidades para desconstruir normatizações que causam sofrimento e permite construir novas possibilidades de performances bareback entre gays que desnaturalizam e desconstroem discursos racistas.
Locais Públicos
Algumas das performances bareback, nos vídeos em análise, publicadas pelos perfis @ perfil08, @perfil05, @perfil07, @perfil09 e categorizados como v.3, v.5, v.7 e v.9, reconstroem a centralidade do espaço público como ambiente de socializações sexuais gay. Frequentar parques, banheiros, praias e outros locais, por muito tempo, era um dos poucos meios de conhecer parceiros sexuais em potencial e até hoje faz parte das experimentações sexuais gays (BRENNAN, 2017; DYER, 1985; SOUZA, 2012). Perseguidas, criminalizadas e agredidas até hoje, essas experiências sexuais tiveram que desenvolver intimidades fluídas, sem nenhuma relação necessária com o espaço doméstico e com a propriedade privada.
O espaço público como local de performance sexual foi imensamente capitalizado e comercializado pela pornografia comercial. Dyer (1985) argumenta que a pornografia gay estimula o modo de expressão sexual em público entre seus consumidores e isto pode ser entendido como parte da educação experimental do corpo gay. A literatura sobre esse assunto aponta o sexo gay em público como um confronto à heteronormatividade (HUMPHREYS, 1970; DYER, 1985; SOUZA, 2012; BRENNAN, 2017). Essas pesquisas argumentam que as performances sexuais gays desenvolvidas em público constroem pedagogias que desafiam a privatização do sexo dentro do casamento e do quarto do casal procriador.
A apropriação desses locais transforma o espaço em paisagem, isto é, modifica os significados de uma localização e atribui a ela outra função, um modo particular de ver e experimentar o local, que permite negociar desejos e exercer práticas homoafetivas (HUMPHREYS, 1970; DYER, 1985; SOUZA, 2012; BRENNAN, 2017). Nesse sentido, o espaço é
tanto incentivo para o sexo em público quanto um significante nas performances do sexo gay amador, sem camisinha, em público. Nos vídeos v.09, v.05, v.03 e v.07 é possível perceber que os locais mais utilizados são banheiros, ônibus coletivo e praias, como demonstra a imagem 4, abaixo:
Na imagem é possível ver os quatro vídeos que compõem essa categoria. Os v.5 e v.9 são apresentados em duas capturas para mostrar que se trata de um sexo grupal. Os vídeos mostram performances sexuais de homens que, durante sua rotina diária, enquanto circulam na cidade, buscam sexo rápido, impessoal, sem conexão duradoura. Alguns se identificam como gays, outros como héteros. Existem vários locais para encontrar parceiros para essas performances. O local mais utilizado foi o banheiro público, como foi possível observar nos vídeos v.03 e v.07, na imagem abaixo:
Como foi ilustrado na imagem acima, as performances acontecem em qualquer tipo de banheiro público. No primeiro vídeo, v.03, um rapaz filma o sexo no banheiro do aeroporto, já o segundo, v.07, acontece no banheiro de um shopping. Como apontado por Souza (2012) e Humphreys (1970), os banheiros são os locais mais procurados por quem gosta de sexo em local público poque são mais acessíveis e permitem reconhecer com facilidade quem está disposto ao sexo no ambiente. Esses vídeos demonstram que a tensão entre prazer e risco dá sentido ao sexo sem camisinha em local público. Nessas performances bareback, a prática do sexo em local público aparece entrelaçada com o desejo de entrar em contato com fluidos de desconhecidos. Isso pode ser percebido nas descrições que acompanham estes vídeos no tweet: “levando rola no cuzinho de um desconhecido” e “tomando leite de estranho entre as divisórias do w.c”. Nesses vídeos, os sujeitos não elaboraram técnicas de gestão ao risco de infecções sexualmente transmissíveis. Essas performances, portanto, parecem erotizar o risco de contaminação.
Sexo grupal
Barreto (2019) considera que o sexo coletivo diz respeito a um modo de existência atrelada ao desejo por encontros e interações de intensidades poderosas. A intenção dos seus participantes, segundo o pesquisador, é testar os limites e capacidades do corpo de maneira quantitativa, número de parceiros que o corpo aguenta transar e, também, qualitativa, no sentido da intensidade dos afetos, até que ponto o corpo suporta as interações, se elas são fortes, calmas, rápidas ou devagar. No caso dos vídeos v.02, v.05, v.09, v.13 e v14, na imagem 6, a intensidade é proporcionada pela quantidade de parceiros nas performances e pela quantidade de ejaculação recebida.
Os quatro vídeos da imagem acima mostram sexo grupal realizados em diversos contextos, seja em orgias organizadas entre parceiros já conhecidos até sujeitos que circulam por locais públicos a procura de desconhecidos dispostos a trocarem fluidos sexuais. Nessas performances bareback, o desejo pela intensidade, característica que marca o sexo grupal, confere ao ânus a centralidade dessas práticas. Como ilustrado na imagem 7, abaixo, o ânus é significado como força à medida que o desejo dessas performances está em s uportar a penetração de vários parceiros que têm o intuito de receber o maior número de esperma.
O primeiro vídeo, v. 14, tem a descrição “duas gozadas dentro e contando...” mostra um sexo grupal realizado em um banheiro de uma estação de metrô. Nele, o passivo já recebeu o esperma de dois rapazes e está de bruços para que os outros rapazes, em fila, também o penetrem e ejaculem no seu ânus. O segundo vídeo, v.02, tem a descrição: “quantas leitadas já tinha dentro dessa cucetona?” e mostra um rapaz de quatro com o ânus escorrendo esperma enquanto é penetrado.
As expressões “cucetona”, “buceta de macho”, “cu devorador” e o desejo pela maior quantidade de parceiros conferem a centralidade do ânus e o investe de discursos políticos, deslocando-o da passividade para ser um agente desafiador. Nesse sentido, a construção social do ânus e sua penetração nas performances bareback em análise estão recobertas de relações de poder:
O cu cumpre um papel primordial na construção contemporânea da sexualidade, na medida em que está carregado de fortes valorações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, o que é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo ‘bicha’ e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e do feminino” (SÁEZ, CARRASCOSA 2011, p. 172).
Dessa forma, a centralidade do ânus nas performances bareback amadoras constrói uma economia libidinal no qual os fluidos são valorizados, mas o destaque é para os corpos que os desejam e têm a coragem de recebê-los. Nessas performances, ser penetrado pelo maior número possível de homens, receber e acumular em si os fluidos sexuais funcionam como potencializadores de pedagogias da masculinidade.
Considerações Finais
No século XX, o telefone, o carro e as pílulas anticoncepcionais favoreceram para que os corpos e as sexualidades se emancipassem das influências religiosas e familiares. Isto aponta que o sexo sempre foi condicionado pelas tecnologias de sua época. Agora, no século XXI, uma nova transformação tecnológica e pedagógica se encaminha: o sexo no contexto das tecnologias digitais é performance para ser exibida e cultuada em meio às nossas conectividades. Nesse cenário, o artigo analisou pedagogias de sexualidades performadas em vídeos de pornografias amadoras bareback produzidas e compartilhadas por um grupo de gays no Twitter.
A partir do conjunto de dados construídos e analisados no artigo é possível indicar algumas conclusões. A primeira é que os estudos de performances possuem potência teórica e analítica nos estudos que relacionam cibercultura, corpos e sexualidades por sugerirem uma realidade que é construída e performada.
A segunda é que no contexto da cibercultura, de intenso fluxo de interações em plataformas digitais, o Twitter é uma ambiência propicia para a espetacularização das performances corporais e sexuais e de experimentações videográficas que impulsionam novos debates em torno das pedagogias de sexualidades que, por fora do disciplinamento, permitem ampliar as perspectivas em relação com a dimensão educativa dessas pornografias.
A terceira é que estas performances corporais e sexuais criam e propagam pedagogias com diferentes sentidos e significados acerca do bareback. Os sujeitos parecem não se importar com os riscos de infecções sexualmente transmissíveis, pois colocam a prática no campo da autonomia e da liberdade individual, questionando e construindo novas políticas e pedagogias de poder, controle e aprisionamento dos corpos e das subjetividades sexuais gays nos ambientes digitais.
Este estudo aponta que as performances do sexo barebach são frequentes no Twitter. A visibilidade desta prática sexual, por meio de vídeos pornográficos produzidos por homens gays, numa das redes sociais digitais mais utilizadas, que mobiliza milhares de pessoas no mundo inteiro, ressalta que, mesmo frente ao risco da contaminação de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente do HIV/AIDS, uma doença ainda sem cura e que mata milhares de pessoas todos os anos, o sexo desprotegido opera desejos e práticas individuais e coletivas.
Essas pedagogias do prazer vinculadas ao risco são controvérsias da nossa época. Estas transgressões, ao mesmo tempo que supostamente libertam os corpos e as sexualidades dos imperativos do cuidado e da saúde, também podem criar outros aprisionamentos em ideais de lutas e liberdades nos limites da contaminação, da doença e da morte. Estas controvérsias precisam ser mais investigadas, politizadas e, sobretudo, compreendidas.