INTRODUÇÃO
Para contextualizar o significado do Crossfit, realizou-se primeiramente a tradução dos termos em inglês através do website “world reference”, o que permitiu fragmentar a palavra, já que a mesma não possui um significado linguístico específico. Crossfit vem da mistura de duas palavras distintas da língua inglesa. A primeira, “Cross”, que significa cruzar, misturar, e o segundo termo, “fit”, que expressa aptidão, em forma, preparar, qualificar. Ao unir as duas palavras, o termo Crossfit refere-se à mistura de aptidões, cruzamento de preparo, sendo essa a tradução para o português, diretamente relacionada aos métodos utilizados nos treinamentos apresentados principalmente no manual Crossfit (2012).
Observa-se que atualmente inúmeras práticas corporais têm se intensificado e a cada dia um número maior de indivíduos vêm buscando praticar essas novas atividades, como por exemplo, os treinamentos funcionais (TEIXEIRA et. al. 2016), corridas de rua (ROJO, et. al. 2017) e o Pilates (BOLSANELLO, 2015). O Crossfit, segundo apontam Dawson (2015) e Kalin (2017), se encaixa como uma dessas práticas corporais em processo de popularização, que vem conquistando espaço significativo no cenário hodierno. Tais práticas ganham destaque, principalmente pelo crescimento daquilo que o sociólogo francês Alain Ehrenberg (2010), denominou de cultura do empreendedorismo e/ou da performance. Segundo aponta o autor, nesse novo momento social o indivíduo seria o único responsável pelo seu destino. Sendo assim, valores relativos ao empreendedorismo, poder de iniciativa e desempenho foram os escolhidos como requisitos para o sucesso pessoal no cenário hodierno.
Com essa construção de uma identidade na prática do Crossfit, observa-se uma movimentação empresarial em torno da modalidade com o surgimento de grandes marcas e patrocinadores apoiando a expansão do método, sem deixar de lado a espetacularização da prática e a busca individual de seus praticantes (TAO, 2013; DAWSON, 2015; FORTUNATO, 2015; KALIN, 2017; PAZ, 2017). Além da criação de uma comunidade que se ajuda nos treinamentos e na divulgação por mídias sociais, o Crossfit se fortalece em virtude da popularização horizontal realizada pelos seus praticantes (DAWSON, 2015)
Ao observar a importância do Crossfit e toda a abrangência que a prática corporal vem ocupando atualmente, tornando-se um grande nicho de mercado no setor fitness e esportivo, surgem as seguintes indagações: Quais são as origens da modalidade? O Crossfit recebeu influência de outras práticas corporais? O Crossfit se configura realmente como uma prática inovadora?
Assim, o presente artigo objetivou verificar se tais práticas sistematizadas anteriormente possuem algum vínculo com o que o Crossfit se tornou, principalmente na sua relação com os aspectos relativos à Ginástica (Ginástica Alemã e Calistenia) e ao esporte. Buscou perceber os potenciais vínculos com as atividades gímnicas e esportivas e o que delas permanece dentro da nova modalidade, em um intento de verificar se essa prática corporal realmente se configura como inovadora.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo qualitativo de cunho analítico, visto que as informações foram encontradas em locais bem específicos e diretamente relacionados aos conceitos do Crossfit, conforme estabelece a metodologia descrita por Günther (2006). Utilizou-se como fontes de pesquisa os principais documentos relacionados à temática: a) Guia de Treinamento Crossfit Level I (CROSSFIT, s.d); b) Reebok Crossfit Games (CROSSFIT, s.d.); c) Crossfit Courses (CROSSFIT, 2013).
Para a realização do estudo empregou-se como fonte primária o documento base do Crossfit, o manual de treinamento de Coaches Level One (CROSSFIT, 2012). O referido documento apresenta a construção teórica do funcionamento da prática em si, que é dividida pelo denominado “Triângulo do Crossfit”. Trata-se da forma hierárquica como o Crossfit se configura, tanto na parte de movimentos corporais quanto em certas “regras” técnicas e fisiológicas para que o método funcione. Coletou-se também dados em sites de membros oficiais e colaboradores do Crossfit, nos quais se encontram os registros históricos do método e como ele foi profissionalizado recentemente, e desde os locais de treinamento até os de competições.
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA MODALIDADE
A origem do Crossfit se deu por volta dos anos de 1980, com Greg Glassman, um ex-ginasta que iniciou a prática juntamente com alguns amigos, em sessões de treinamento em que utilizavam barras fixas, barras com pesos e o próprio peso corporal. Glassman percebeu que a proposta sistematizada proporcionava alguns resultados e, assim, encetou uma possível nova prática corporal (REBOOK CROSSFIT BCN, 2015). Em pouco tempo, o treinamento de Greg Glassman chegou ao conhecimento das forças especiais da polícia e do exército dos Estados Unidos, profissões nas quais são exigidas aptidão física e um condicionamento acima da média, passando a ser utilizado a fim de garantir a sobrevivência dos policiais e soldados em diversas situações que exigissem tais capacidades (CFJ, 2003).
Sendo assim, em 1995, nasceu a primeira sede de Crossfit localizada na cidade de Santa Cruz, no estado norte-americano da Califórnia. Nessa cidade, Greg Glassman foi contratado pelo Departamento de Polícia para treinar todos os policiais com seu método, considerado inovador à vista dos seus contratantes. Nos anos 2000, o Crossfit, Inc; foi criado formalmente, sendo suas primeiras filiais em Seattle e Washington. Porém, devido à crise de 2008, que afetou os Estados Unidos, as ações das sucursais também sofreram uma queda significativa (REBOOK CROSSFIT GAMES, 2015). Posteriormente, visando desenvolver e aumentar a comunidade do Crossfit, registrou-se a Crossfit, Inc; em um domínio na internet. Foi então que se deu o início do processo de popularização e divulgação do Crossfit em todo o mundo (REBOOK CROSSFIT GAMES, 2015).
Atualmente, o Crossfit possui mais de 10 mil afiliadas (TIBANA; ALMEIDA; PRESTES, 2015) oficiais pelo planeta1. No Open2 realizado em 2014, para o Crossfit Reebok Games, houve 209.585 inscritos de todo o mundo (ACHAUER, 2014).
O que é o Crossfit?
Segundo o manual do Crossfit (2012), a base para a construção de um atleta dentro da modalidade deve seguir uma hierarquia, idealizada em uma pirâmide que, da base para o topo, se divide da seguinte maneira: Nutrição; Condicionamento Metabólico; Ginástica; Levantamento de Peso e Arremesso e, finalmente, Esporte. Tal representação pode ser visualizada na imagem abaixo:
Como pode ser visto a base da pirâmide é a Nutrição. Conforme esclarece o Manual, (CROSSFIT, 2012), uma boa alimentação é utilizada para maximizar o potencial dos atletas e praticantes. A “Dieta da Zona” - utilizada pela maioria dos atletas - é baseada em um consumo de 40% de carboidratos, 30% de proteínas e 30% de gorduras. Essa dieta tem como fundamentação um equilíbrio dos níveis de glicose no sangue, de forma que, ao mesmo tempo em que se perde gordura e ganha massa magra, é possível maximizar o ganho de força e resistência do indivíduo melhorando o processo inflamatório de recuperação.
Parte-se então para o próximo nível, o Condicionamento Metabólico. Tal etapa utiliza-se dos sistemas anaeróbico e aeróbico, em uma sintonia muito próxima. Resumidamente, o metabolismo anaeróbico é utilizado em atividades de curta duração, que exigem mais força, potência e agilidade. Já o metabolismo aeróbico, é mais ativado em atividades contínuas de longa duração, superando a barreira dos 2 minutos (GUYTON; HALL, 1998). Segundo o Manual (CROSSFIT, 2012), para um desenvolvimento completo do atleta, com um desempenho acima da média, é necessário que o praticante seja forte, com resistência muscular e cardiorrespiratória, grande potência muscular e boa adaptação às mudanças nos treinamentos. O método de “Treinamento Intervalado” é mais adequado para alcançar tais objetivos, pois se baseia na utilização tanto do metabolismo anaeróbico quanto do aeróbico e não leva à perda de massa muscular e das características já mencionadas (CROSSFIT, 2012).
O terceiro nível do processo é a Ginástica. De acordo com o Guia (CROSSFIT, 2012, p.21), a Ginástica “[...] não inclui apenas o esporte competitivo tradicional que podemos ver na televisão, mas todas as atividades como escalada, ioga, exercícios calistênicos e dança, em que o objetivo é o controle do corpo”, por isso são utilizados exercícios de ginástica para maior aperfeiçoamento das habilidades e capacidades físicas.
A quarta etapa é a de Levantamento de Peso e Arremesso. O Levantamento de peso trata-se do chamado “Powerlifting” ou “Levantamento de Peso Olímpico”. Tal prática foi aderida ao Crossfit por abranger vários exercícios que trabalham capacidades físicas de força, velocidade, potência, flexibilidade, equilíbrio, agilidade, precisão e coordenação (CROSSFIT, 2012). Esses exercícios são compostos por três movimentos fundamentais: “The Clean and Jerk” também denominado de “Arremesso”; “The Snatch” ou “Arranque”; e, finalmente, o “Deadlift” chamado popularmente de “Agachamento Terra” (CROSSFIT, 2012).
A última etapa, ou topo da pirâmide, é o Esporte, que é “[...] a aplicação do condicionamento físico em uma atmosfera fantástica de competição e maestria” (CROSSFIT, 2013, p.24). O esporte é visto como o último nível, pois é nele que será decidido quem é o mais forte, mais rápido, mais resistente ou, no caso do Crossfit, o atleta mais completo, aquele com melhor condicionamento físico geral. Na visão dos seus adeptos é através da disputa esportiva que os atletas superam os limites.
Contudo, para o presente artigo optou-se por realizar uma análise enfocando principalmente a etapa da Ginástica, pois nele foi possível realizar uma aproximação com modelos ginásticos anteriores, como a Ginástica Alemã e a Calistenia.
ALGUMAS DAS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS: A GINÁSTICA ALEMÃ E CALISTENIA
A presente sessão do artigo tem como objetivo analisar as principais influências do Crossfit, aproximando práticas corporais mais antigas com as utilizadas atualmente no método de treinamento da modalidade em questão. Essa análise se deu por meio de uma revisão dos temas acerca da Ginástica Alemã e da Calistenia, considerando suas características hipoteticamente semelhantes à configuração atual do Crossfit.
A Ginástica Alemã é um exemplo de sistematização apropriada de alguma maneira pelo Crossfit. Conforme apontam os trabalhos de Tesche (2002), Hofmann (2011), Quitzau (2012) e Quitzau; Soares (2016) o método alemão tem suas bases sistematizadas, principalmente no livro de Guts Muths, publicado em 1793 e intitulado “Gymnastik für die Jugend” (Ginástica para a Juventude). A proposta tinha uma forte influência de Jean Jacques Rousseau, John Locke e do pedagogo alemão Bernhard Basedow e estava em sintonia com o contexto alemão daquele período, buscando seguir o princípio de que a educação intelectual somente seria bem-sucedida se ocorresse em harmonia com a educação corporal. Posteriormente, ela serviu como base e acabou até mesmo suprimida pela sistematização desenvolvida por Friedrich Ludwig Christoph Jahn e disseminada por meio do manual “Die Deutsche Turnkunst” (A ginástica alemã), publicado em 1816.
Quitzau (2012) salienta que existem algumas características que devem ser mencionadas quando se refere à argumentação realizada por Guts Muths sobre a importância da utilização da Ginástica. A saúde, segundo a autora, era um eixo central na obra do pedagogo alemão, bem como atributos da destreza e da capacidade física. Precisa-se ainda destacar que, além da “[...] medicina, obras de pensadores do período, como Locke e, principalmente, Rousseau, são base para a defesa não apenas da inserção dos exercícios físicos no cotidiano da juventude, mas também de um retorno à natureza, combatendo os males decorrentes da vida urbana e inativa” (QUITZAU, 2012, p.362). A autora, na sequência de sua análise, cita um importante trecho da obra, em que Guts Muths afirma estar:
[...] ciente de que uma verdadeira teoria da ginástica deveria ser elaborada baseada em princípios fisiológicos, e a prática de cada exercício regulada pelas qualidades físicas de cada indivíduo, mas tal perfeição não é esperada deste trabalho, feito somente pela genuína experiência de 8 anos de prática, que me convenceram que a ginástica é necessária à educação... (GUTS MUTHS, apud QUITZAU, 2012, p. 362).
Nota-se, assim, que a fase inicial da Ginástica Alemã possui nitidamente uma ligação de valorização da dimensão do corpo, de maneira que praticando, existia a possibilidade do indivíduo se desenvolver como um ser humano fisicamente mais completo. Guts Muths considerava a prática da ginástica como elemento central para a constituição do indivíduo moderno. Tais questões se materializam na seguinte passagem de Quitzau (2012, p.368-369):
Se fosse necessário dar uma definição aos exercícios ginásticos, esse autor diria que a ginástica é o trabalho na forma de alegria juvenil [...] Esse trabalho deveria promover a circulação e o fortalecimento dos músculos e nervos, devendo às vezes colocar o corpo inteiro em movimento, às vezes apenas algumas partes, mas nunca sobrecarregando o organismo com exercícios excessivos. [...] Os exercícios ginásticos aplicáveis aos propósitos da educação defendidos por Guts Muths podem ser divididos em três classes, denominadas exercícios ginásticos propriamente ditos, trabalhos manuais e jogos sociais para a juventude. Define, então, um sistema de ginástica organizado de forma “genérica”, em que os exercícios são agrupados segundo seu tipo, não segundo seus benefícios ou princípios anatômicos. Guts Muths traz em seu livro indicações para o trabalho do saltar, correr, arremessar, lutar, escalar, equilibrar, levantar e carregar, pular corda/arco, dançar, andar, exercícios militares, banhar-se, nadar, exercícios aleatórios, declamação, exercício dos sentidos e trabalhos manuais (QUITZAU, 2012, p.368-369).
Esses mesmos exercícios, com diferenças muito pequenas, se encontram também na proposição de Friedrich Ludwig Christoph Jahn. Ainda que seus propósitos para a ginástica fossem muito mais relacionados a questões políticas do que a preocupações higiênicas e pedagógicas, Jahn propunha uma ginástica composta por 17 grupos de exercícios, cujo objetivo era restabelecer o equilíbrio entre formação corporal e espiritual. São eles: andar; correr; saltar; exercícios no cavalo; exercícios de equilíbrio; exercícios na barra fixa; exercícios nas barras paralelas; escalar; arremessar; puxar; empurrar; levantar; transportar; esticar; lutar; saltar arco; saltar corda (QUITZAU, 2015).
Muitos desses exercícios listados na citação também estão inclusos no Crossfit, desde a parte do treinamento até em suas grandes competições. Como exemplo dessas práticas, podemos destacar o Rope Climb ou subida/escalada na corda, Jump Box ou salto na caixa, Team Squat ou agachamento em equipe, Medicine Ball Clean, agachamento com arremessos, Pistol ou agachamento sobre apenas uma das pernas, as corridas, entre outros movimentos corporais.
Notam-se elementos existentes na bibliografia da Ginástica Alemã referentes aos exercícios inseridos dentro do método do Crossfit. Assim, saltos, corridas, arremessos, transportar objetos e subir em cordas, deixam claro a apropriação do Crossfit frente a exercícios já existentes nos métodos ginásticos sistematizados por Guts Muths no final do século XVIII e, posteriormente, Friedrich Ludwig Christoph Jahn no começo do século XIX.
Outra prática corporal considerada bastante presente no Crossfit é a Calistenia. Segundo Corrêa (2002) calistenia é uma palavra de origem grega Kallstenés, cujo significado é Kallós = belo + sthenos = força + sufixo ia, em que o significado final seria “Cheio de Vigor”. O termo “cheio de vigor” pode pressupor a ideia de força, potência e virilidade, noção explorada no trecho a seguir:
[...] se nos remetermos ao passado, poderemos ver que para os Helenos, esse termo tinha o significado de "força harmoniosa", que pode ser um termo interpretado como o equilíbrio entre as qualidades físicas, mentais e espirituais. Isso se explica, porque no período clássico, os gregos se baseavam na máxima ‘Mens sana in corpore sano’, projetando nos objetivos educativos a tentativa de formar cidadãos "com uma alma bem colocada num corpo são e vigoroso” (CORRÊA, 2002, p. 15).
Pode-se fazer uma alusão ao Crossfit no que se refere à busca do melhor condicionamento físico por seus praticantes nos tempos atuais. Com isso, ocorre uma inegável aproximação à Calistenia. O treinamento calistênico baseia-se em utilizar o peso do próprio corpo para a prática de exercício físico:
[...] a Calistenia é um método ginástico, baseado em exercícios analíticos praticados com aparelhos manuais ou com as mãos livres, a fim de contrapor os efeitos nocivos do modernismo, resultado do avanço tecnológico e do crescimento das grandes cidades (CORRÊA, 2002, p. 18).
Ao contrário da Calistenia ou mesmo dos métodos ginásticos alemães, o Crossfit trata-se somente de um método de treinamento e não de uma construção de exercícios, ou seja, muitos dos exercícios que o compõe tiveram suas origens em práticas corporais sistematizadas em períodos anteriores.
Stanquevisch (2004, 26), ao analisar a Calistenia aponta que tal prática corporal apresentava determinadas características:
[...] os exercícios calistênicos eram divididos em oito grupos: de braços e pernas, para a região póstero-superior do tronco, para a região póstero-inferior do tronco, para a região lateral do tronco, de equilíbrio, abdominais, gerais de ombros e espáduas, saltos e corridas.
Com base na citação de Stanquevisch (2004), pode-se fazer uma analogia entre os praticantes da Calistenia e os do Crossfit em suas rotinas de treinos e seus tipos de movimentos. Como exemplo, cabe elencar o movimento de Pull Up ou barra fixa supinada. Trata-se de um movimento básico da Calistenia que nos dias atuais é amplamente utilizado pelos praticantes do Crossfit. Outros movimentos supostamente apropriados da Calistenia são o L’Stit ou prancha na paralela e o Hand Stand ou parada de mão. Nesse contexto, verifica-se que a Calistenia pode ser encarada como uma das bases do Crossfit, visto que no sentido filosófico, respeitando os tempos e espaços das duas práticas corporais, ambas buscam desenvolver o condicionamento dos indivíduos para a vida cotidiana. Além disso, é nítida a apropriação pelo Crossfit dos exercícios originários da Calistenia, sendo os mesmos utilizados dentro da nova modalidade.
Outro ponto bastante semelhante, tanto no Crossfit como na Calistenia, é a divisão das aulas. O treinamento do Crossfit se dá através do denominado WOD, sigla para a frase em inglês Workout of the Day. A tradução para o português seria algo como o “Treino do Dia”, que significa uma sequência de exercícios a serem executados na parte final do treino (CROSSFIT BRASIL, 2015). Geralmente, o treino de Crossfit tem a duração de 1 hora, dividido em uma sequência de aquecimento, parte técnica e por fim o WOD, que pode durar de 10 minutos até 30 minutos (CROSSFIT, 2012). Como aponta o clássico estudo de Inezil Penna Marinho (1953), os principais métodos de treinamentos corporais, principalmente a Calistenia e o Método Desportivo Generalizado, também operavam com essa lógica compartimentalizada utilizada pelo Crossfit nos dias atuais. Cada uma à sua maneira se apropria dessa clássica divisão das aulas em aquecimento, parte principal e volta à calma.
A partir desses dados, pressupõe-se que a execução/realização de muitos exercícios presentes atualmente no Crossfit não é algo novo e/ou desenvolvido pelo método em questão. Nesse sentido, sugere-se que o método Crossfit preocupou-se em sistematizar e aperfeiçoar práticas utilizadas em vários tipos de treinamentos e com variados objetivos. Entretanto, considera-se necessário pontuar que no processo de apropriação desses distintos exercícios e de criação como sistema de treinamento, o Crossfit o faz com um sentido muito distinto daquele pensado pelos precursores da Ginástica a partir de fins do século XVIII e pelos pensadores da Calistenia em fins do século XIX.
Quando os sistemas ginásticos começaram a ser elaborados entre o fim do século XVIII e início do século XIX, tinham como objetivo a formação de indivíduos que, educados a partir do equilíbrio entre desenvolvimento corporal, espiritual e mental, pudessem atuar socialmente em benefício de objetivos comuns. Ao partir do caso alemão observou-se que em Guts Muths, influenciado diretamente pelos ideais educacionais iluministas, a preocupação maior era formar cidadãos plenos capazes de agir na vida pública, enquanto de Friedrich Ludwig Christoph Jahn o principal anseio era contribuir especialmente para a formação de indivíduos imbuídos de um profundo espírito patriótico, capazes de defender seu país e lutar por sua unificação (QUITZAU, 2015). Ainda que apresentassem certas particularidades, compartiam essa característica de buscar formar cidadãos plenos para atuar em diferentes esferas da vida pública. No que diz respeito à Calistenia, já não se observa mais um discurso tão direcionado à formação de indivíduos aptos para atuar na vida pública. Esse “modo de praticar ginástica”, ritmado a partir da música, composto por exercícios fragmentados com claras referências aos métodos sueco de Ling e do dinamarquês de Bukh (BORTOLETO, 2014), apresenta fundamentações muito mais próximas de propósitos médico-higiênicos e corretivos.
Ao lançar o olhar para o Crossfit, observa-se que partem de exercícios clássicos dos métodos ginásticos, da Calistenia e do treinamento esportivo dando-lhe uma nova roupagem. Ao questionar os resultados dos métodos mais comuns de fitness, como a ginástica coletiva ou o treinamento resistido, Glassman afirma que modalidades como triatlo e ciclismo são “cheias de pessoas maravilhosas fazendo pessoas maravilhosas, mas que não podem fazer o que nós fazemos” (CFJ, 2003, p.1).
Os comentários realizados por Glassman evidenciam que o Crossfit se torna um grande investimento em si, um novo estilo de vida empreendedor. Sobre esta nova forma de viver as questões levantadas por Ehrenberg (2010, p.17-18) se tornam fundamentais:
Um estilo de vida, e não apenas um exercício físico; um estado de espírito mais do que distração ou uma pedagogia virtuosa do corpo. Isso porque essa extensão das práticas e do acesso às práticas não se concerne somente aos universos dos lazeres esportivos. Ela é um aspecto de uma modificação que afeta o próprio estatuto e a significação do esporte no seu relacionamento com a sociedade. Em uma década, o esporte está a tal ponto ancorado no cotidiano que ele não constitui apenas uma forma de lazer ou uma atividade corporal específica pensada e organizada em vista de performances a se alcançar, mas a manifestação de uma relação generalizada com a existência [...] o esporte saiu dos estádios e ginásios; ele abandonou o contexto restrito das práticas e dos espetáculos esportivos: é um sistema de condutas de si, que consiste em implicar o indivíduo na formação de sua autonomia e responsabilidade (grifos do autor).
Ao fazer isso, coloca as “pessoas comuns” praticantes do Crossfit em um patamar igual e/ou superior ao dos grandes atletas, tornando-se expressão daquilo que Ehrenberg (2010), ao estudar as relações entre esporte e corporativismo na França, já dos anos 1980, chamou de uma “nova mitologia esportiva”, a qual
[...] não coloca em cena apenas um indivíduo que cuida de sua forma e sua aparência numa sociedade em que a juventude é uma norma e não mais uma classe de idade; ela forja o indivíduo, um indivíduo heroico que assume riscos, em vez de buscar proteger-se deles por meio das instituições do Estado-providência; que busca agir sobre si mesmo, em vez de ser comandado por outros (EHRENBERG, 2010, p.25, grifos do autor).
Nesse sentido, ainda que seja composto pelos exercícios mais tradicionais que compuseram a ginástica - desde fins do século XVIII - o Crossfit organiza-se e se comercializa de maneira a se tornar uma expressão dessa sociedade em que o objetivo máximo é superar-se, inclusive esteticamente. Se a ginástica do século XIX preconizava “[...] retidão do corpo e rigidez do porte, obtidos com o máximo rendimento e o mínimo esforço; composição corporal equilibrada - nem tão frágil, nem tão grotesco [...]” (FRAGA, 2006, p.69), o Crossfit apregoa a eterna busca da superação dos limites, sejam eles físicos ou psicológicos, típicos dessa sociedade em que cada indivíduo “[...] busca governar-se por si mesmo como o único mestre do seu futuro” (EHRENBERG, 2010, p.40), em que não basta simplesmente ter uma vida ativa e praticar exercícios, mas é necessário fazê-lo com a mesma disciplina e doação de um atleta.
Ao aproximar o Crossfit das reflexões realizadas por Ehrenberg (2010) nota-se que a modalidade faz um uso extra esportivo do esporte. O sociólogo francês indaga que as transformações sociais, ocorridas a partir da década de 1980, possibilitaram uma proliferação das significações sobre as práticas esportivas. O esporte, na opinião de Ehrenberg (2010) passa a simbolizar e promover a imagem de um indivíduo autônomo, produtor de sua saúde, aparência, vida profissional, ou seja, um empreendedor de sua própria existência. Sendo assim, o estilo de vida performático surge como um elemento que se materializa no universo do Crossfit, contribuindo significativamente na expansão e crescimento da referida prática corporal.
CONCLUSÃO
Ao realizar uma análise das fontes e cruzá-las com os elementos presentes na Calistenia, Ginástica Alemã e nas lógicas esportivas - práticas corporais muito anteriores ao Crossfit - é possível perceber uma clara relação de apropriação e ressignificação. Logo, é evidente que o Crossfit se utiliza de outras práticas corporais, executando-as de maneira praticamente idêntica e/ou as ressignificando. Nesse sentido, pode-se concluir que o Crossfit não se configura como uma prática revolucionária e nova, mas sim como uma ressignificação e apropriação de práticas corporais anteriores, com um importante apelo mercadológico.
Foi nessa relação de utilização de práticas corporais variadas, buscando desenvolver diferentes capacidades físicas, que o Crossfit começou a ganhar sua popularidade atual, pois a modalidade une vários tipos de treinamento e visa o pleno desenvolvimento do praticante, apresentando-lhe sempre a ideia de superação de limites. Nesse sentido, o Crossfit, se propõe a utilizar o “melhor” de cada tipo de treinamento conhecido, surgindo como uma maneira de treinar pouco sofisticada e com resultados variados. A novidade que a prática representa refere-se à junção de todos esses aspectos numa atividade única que, inclusive, se manifesta com as lógicas do esporte moderno3.
O Crossfit se manifesta atualmente como uma prática institucionalizada, regrada e esportivizada. Emerge como uma maneira regrada de treinar e competir, visando o pleno condicionamento físico e a transformação do indivíduo comum em um verdadeiro atleta completo. Um empreendedor de si mesmo, visto que o investimento pessoal tem o intuito em ser convertido em sucesso, conforme sugerem as reflexões levantadas por Ehrenberg (2010). Porém, tais relações com a lógica mais institucionalizada do cenário esportivo são cenas a serem exploradas nos próximos capítulos...