Introdução
A educação tem sido uma das principais frentes de atuação do movimento negro brasileiro (Gomes, 2012a), incidindo efetivamente na formulação da agenda de políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial. Avançamos, nos anos 2000, na conquista de legislação que assegura o ingresso de negros no ensino superior, por meio da reserva de vagas para pretos e pardos em universidades federais e na maioria das estaduais. Além disso, garantimos, ao menos na legislação, a incorporação da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira ao currículo da educação básica, ensejada pela promulgação da Lei n° 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
Apesar das conquistas, os indicadores educacionais continuam a evidenciar desigualdades na escolarização entre negros e brancos, especialmente no que concerne aos índices de evasão escolar, repetência e desempenho em avaliações de larga escala. Os dados desagregados por quintis de renda, sexo e cor/raça demonstram que, enquanto 97,6% das jovens brancas com 19 anos de idade e de maior renda concluíram o ensino médio, apenas 40% dos jovens negros do quintil de renda mais pobre concluíram essa etapa da escolarização básica (Simões, 2019). Em se tratando do desempenho escolar, o quadro se repete, sendo que, em 2017, a porcentagem de alunos brancos matriculados no 5º ano com desempenho adequado em Matemática era de 59,5%, quase o dobro dos 29,9% de alunos negros na mesma condição (Saeb, 2017 apud FCC et al., 2020).
Tais dados, acrescidos de outras tantas evidências, que não caberiam enumerar neste artigo, revelam que a existência de aparato legal relacionado à promoção da igualdade racial, por si, não tem sido suficiente para amainar desigualdades escolares entre negros e brancos. Fato que parece decorrer, especialmente, da implementação deficitária da Lei n° 10.639/2003 e da ausência de medidas efetivas de combate aos condicionantes da evasão e repetência escolar mais acentuadas em se tratando da população negra.
Vários(as) autores(as) destacam que, para que a tal legislação se cumpra desde a educação infantil, como preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER), publicadas em 2004, faz-se necessário o investimento massivo na formação de professores (Dias, 2011; Silva, 2012; Luiz, 2013). Contudo, pesquisas acadêmicas, realizadas em pequena escala, retratam um cenário oposto: as iniciativas de busca por aperfeiçoamento profissional relacionado à Educação das Relações Étnicas-Raciais (Erer) são quase sempre individuais, portanto, não obrigatórias ou abrangentes da perspectiva da rede de ensino como um todo (Demarzo, 2009; Garcia, 2019). A partir da leitura desses estudos de caso, aventamos a hipótese de que o quadro, neles retratado, se repete em larga escala, mas não encontramos trabalhos que pudessem corroborar essa suposição em nosso levantamento bibliográfico.
Para entender como vem se dando a implementação da legislação educacional ora discutida, na percepção de professores e professoras, realizamos uma pesquisa com base na aplicação de questionário a professores(as), coordenadores(as) pedagógicos(as), diretores(as) e vice-diretores(as), todos(as) atuantes em escolas de educação infantil1 e de ensino fundamental I, oriundos(as) de diferentes regiões brasileiras.
Neste texto, apresentamos um breve panorama acerca dos estudos sobre formação de professores, as escolhas teórico-metodológicas que fizemos, os resultados obtidos via questionário e, por fim, tecemos algumas considerações finais sobre os aspectos discutidos e seus desdobramentos políticos e acadêmicos. Como se verá, mesmo 18 anos após a promulgação da Lei n° 10.639/2003, temos muito a caminhar na construção de uma educação para as relações étnico-raciais, especialmente no que concerne à formação docente e à oferta de experiências educativas às crianças relacionadas ao tema.
A literatura acadêmica sobre formação de professores para as relações raciais e a infância
Ao consultar a base digital de periódicos e artigos SciELO, utilizando como descritor de busca o termo “formação de professores”, encontramos uma profusão de estudos que tomam como objeto as ferramentas de formação (diários, cursos, rodas de conversa), as propostas ligadas a campos disciplinares (como a formação de professores de Química, Matemática, etc.), as políticas de formação inicial e continuada, entre tantos outros temas abordados nos mais de 3.600 artigos dedicados a compreender a questão nas últimas décadas. No entanto, ao acrescentar o termo “relações raciais” ao descritor previamente empregado, o número encontrado despenca para 13, o que evidencia a necessidade de intensificação de pesquisas e sua publicação em periódicos academicamente qualificados e indexados à plataforma.
Entre os 13 artigos responsivos aos descritores, destaca-se o estudo do tipo estado da arte escrito por Coelho (2018) que analisa teses, dissertações e artigos acadêmicos desenvolvidos entre os anos de 2003 e 2014. A autora salienta a prevalência de quatro temáticas na produção acadêmica analisada: 1) contribuições da formação continuada para a prática de Erer; 2) concepções, discursos e representações sobre questões étnico-raciais; 3) processos de ruptura que ensejam novas práticas sobre diversidade na escola; 4) implementação dos marcos legais relativos à LDB alterada pelas Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008, indicando fragilidades no percurso de formação dos professores para o trabalho com Erer.
Quanto à metodologia adotada, destaca-se o enfoque qualitativo, com técnicas de coleta de dados circunscritas a entrevistas de diferentes tipos, observações de campo e análise de documentos. Coelho (2018) assevera que os estudos são concluídos em duas perspectivas: a necessidade de incrementar as oportunidades de formação, tanto inicial quanto continuada, e a de apreender o sentido atribuído à formação por parte dos(as) docentes, percepções essas que balizam a incorporação ou não do que foi debatido na formação ao fazer pedagógico daquele que se forma.
As conclusões dos artigos analisados pela autora se coadunam com aquelas que encontramos em levantamento bibliográfico extensivo, realizado pela leitura de teses e dissertações sobre infância e racismo.2 Entre os 104 trabalhos que analisamos, seis abordavam diretamente a formação de professores. Nesse grupo, destacam-se as pesquisas-ação de Alves (2018) e Ivazaki (2018), ambas baseadas na proposição de atividades formativas para docentes e sua posterior avaliação.
Alves (2018) avalia que, após participarem da oferta de um curso sobre Erer, as professoras descreveram o desejo de desdobrar os aprendizados em projetos pedagógicos junto às crianças com as quais atuavam, mas também sinalizaram outros entraves para além da disposição ao trabalho: escassez de materiais que permitissem retratar a diversidade racial de maneira positiva; falta de abordagem à temática em reuniões pedagógicas e de trabalho coletivo na escola; ausência de um trabalho coletivo e institucional; e dificuldade em realizar a transposição didática do que aprenderam. Este último aspecto é bastante emblemático, pois evidencia que somente a formação em cursos não é suficiente para a modificação das práticas. Já Ivazaki (2018) propõe uma formação mais conectada com o cotidiano de uma escola de educação básica. Partindo da realização de um projeto com professoras, centrado na apropriação de aspectos relacionados à capoeira e aos elementos ligados à corporeidade e às culturas africana e afro-brasileira, a autora buscou repertoriá-las para que pudessem desenvolver experiências com as crianças.
Além dessas duas pesquisas-ação, outros quatro estudos de nosso levantamento se debruçam sobre a formação de professores, enfatizando as lacunas desde as secretarias de educação até o chão da escola (Demarzo, 2009; Pereira, 2015; Rego, 2019; Sousa, 2009). Discorrendo sobre as percepções docentes a respeito da insuficiência de formação para trabalhar as questões étnico-raciais, chamou-nos atenção o resultado da investigação de Pereira (2015), ao destacar que um dos ganhos advindos da possibilidade de formação é a explicitação aos(às) professores(as) das lacunas que marcam seus fazeres pedagógicos e conhecimentos.
Para avançar o entendimento das relações entre formação continuada e desenvolvimento de projetos educativos junto aos(às) alunos(as), optamos por não circunscrever nosso campo de pesquisa a uma escola ou rede de ensino específica, mas por ampliar o escopo de nossa investigação, abarcando o maior número de sujeitos que pudéssemos alcançar. Somos uma instituição com vasta tradição na proposição de projetos de intervenção social na área de relações raciais3 e nossa história institucional nos permitiu efetivar tal propósito, uma vez que somos pioneiros na oferta de cursos de formação docente na temática racial. Desde as primeiras ofertas, interessamo-nos pelo perfil dos(as) participantes e, para além das questões sociodemográficas, nossas fichas de inscrição contemplam aspectos relacionados ao fazer docente e ao trabalho com a Erer.
Escolhas teórico-metodológicas
Entendemos racismo como sistema de dominação que se baseia na ideia de que os seres humanos podem ser subdivididos em grupos raciais hierarquizados, com valorização de sujeitos socialmente reconhecidos como brancos e depreciação de grupos negros e indígenas,4 aos quais se acredita corresponderem capacidades, características e comportamentos inferiores em comparação aos brancos (Munanga, 2004).
Embora avanços no campo das ciências biológicas tenham comprovado que a raça não existe do ponto de vista genético, continuamos a experimentar os efeitos do racismo e a nos classificar com base na ideia de raça (Guimarães, 2003). Mais do que uma crença, o racismo se expressa em diferentes dimensões sociais que sintetizamos no Quadro 1, segundo os estudos de Mills (1997) e Almeida (2018).
Obviamente, a divisão do racismo em dimensões separadas é meramente analítica, uma vez que estas não apenas se sobrepõem em diferentes momentos, como se retroalimentam. Isso implica, por exemplo, que as normativas implícitas que dificultam a ascensão negra no mercado de trabalho podem estar pautadas por crenças das equipes de recrutamento e pessoal que privilegiam sujeitos brancos; ou que haja um reforço das desigualdades raciais pela ação ou omissão de instituições diante das evidências de sua existência. Por essa razão, abordamos as três dimensões juntas quando estas foram mencionadas em nosso questionário.
Vários trabalhos enfocam como o racismo se manifesta na instituição escolar, seja nas interações cotidianas (Cavalleiro, 1998; Fazzi, 2006), nos materiais didáticos (Rosemberg; Bazilli; Silva, 2003), na ausência de um currículo que retrate a história de povos indígenas e africanos para além da perspectiva europeia (Gomes, 2012b), entre tantos outros exemplos fartamente documentados em nossa literatura acadêmica sobre o tema.
Partimos da hipótese de que os entraves à implementação da Lei n° 10.639/2003 não estão apenas relacionados à formação precária de professores. Para avançar esse entendimento, elaboramos um questionário em que parte das perguntas se destinava a captar as percepções docentes a respeito: 1) das oportunidades de reflexão sobre a Erer a partir de propostas formativas; 2) da avaliação que os(as) respondentes faziam a respeito do avanço - ou não - da implementação da referida lei em suas instituições ou redes e, por fim, 3) o que justificaria o não avanço, caso fosse essa a opção assinalada no questionário.
O instrumento de coleta de dados foi dividido em quatro seções e composto por perguntas fechadas e abertas. Na primeira seção, coletamos dados pessoais, que nos permitiram caracterizar a amostra em termos sociodemográficos; na segunda seção, coletamos dados profissionais que versavam sobre nível de instrução e etapa da educação básica ou nível de ensino em que os(as) professores(as) atuavam; na terceira seção, apresentamos questões de ordem mais pragmática relacionadas ao acesso à internet e a equipamentos de informática, o que poderia nos indicar a pertinência de formações oferecidas na modalidade EaD; por fim, na quarta seção, coletamos o que estamos denominando de “percepções docentes” a respeito da implementação da Lei n° 10.639/2003. Aqui, entendemos por percepções os modos como os sujeitos dão sentido ao mundo segundo sua subjetividade. Não pretendemos, pois, traçar um retrato objetivo das realidades das redes de ensino, mas sim considerar tais realidades com apoio na interpretação feita pelos(as) docentes participantes da pesquisa.
O questionário foi distribuído entre candidatos(as) à participação de um curso de EaD cujo objetivo era fornecer subsídios teórico-metodológicos sobre educação para a igualdade étnico-racial. Obtivemos mais de três mil respostas de pessoas com diferentes perfis: estudantes de cursos de licenciatura, advogados(as), trabalhadores(as) de organizações da sociedade civil e, majoritariamente, educadores(as).
A implementação da Lei n° 10.639/2003 no Brasil: o que dizem professores(as) e gestores(as)
Dado o perfil heterogêneo dos(as) respondentes, e apesar de compreendermos a infância na perspectiva sociocultural, portanto, não circunscrita à idade cronológica, tampouco às divisões etárias utilizadas no campo educacional (Faria; Finco, 2011), optamos por trabalhar apenas com as respostas fornecidas por docentes, diretores(as), coordenadores(as) pedagógicos(as), auxiliares de classe, etc. dedicados(as) à educação infantil e à primeira etapa do ensino fundamental. Isso porque a pesquisa se inseria numa agenda mais ampla de investigações sobre os impactos do racismo na infância.
Após esse primeiro filtro, restaram em nossa amostra 3.316 respostas, cujo perfil de sexo, cor/raça foi o que segue:
Considerando as categorias do IBGE, qual a sua cor/raça? | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | Branca | Preta | Parda | Amarela | Indígena | Total |
Feminino | 37,7 | 28,5 | 27,7 | 0,85 | 0,30 | 95,20 |
Masculino | 1,25 | 2,11 | 1,11 | 0,03 | 0,06 | 4,58 |
Não binário | 0,01 | 0,01 | 0,03 | - | - | 0,21 |
Total | 38,9 | 30,6 | 28,8 | 0,88 | 0,36 | 100 |
Fonte: Elaboração própria.
Como é possível observar, a maioria dos inscritos era composta por mulheres (95,2%), sendo 37,7% brancas, 56,2% negras (28,5% pretas + 27,7% pardas), 0,85 amarelas e 0,3% indígenas. Dois dados chamam a atenção nessa comparação: primeiro, a semelhança entre os dados gerais relativos à composição de gênero do professorado brasileiro e das candidatas à nossa proposta formativa. No Brasil, segundo dados do censo educacional de 2017, as mulheres representavam 96,6% dos docentes de educação infantil e 89% do ensino fundamental (Carvalho, 2018). Segundo, a composição racial indica a sobrerrepresentação de negros em nosso estudo (59,7%), o que significa nove pontos percentuais a mais do que a média brasileira (Carvalho, 2018). Tal fato pode estar relacionado às conclusões de Garcia (2019) de que o engajamento docente no trabalho e na busca por referências metodológicas relacionadas à Erer decorre de suas inclinações pessoais, notadamente da vivência de situações de preconceito racial experimentadas em diferentes momentos da vida:
Percebe-se nos relatos das docentes que, a partir da conscientização de suas posições como mulheres negras, somada a tudo o que isso implica, buscaram garantir espaços educacionais mais igualitários. Reconhecer-se negra e assumir a responsabilidade de possibilitar relações étnico-raciais equânimes nos espaços em que atuam foram falas marcantes e de engajamento diante das propostas [de Erer]. (Garcia, 2019, p. 115).
Nesse mesmo sentido, ao analisarmos dados de seis edições de uma premiação destinada a professores(as) que efetivam projetos de Erer em suas escolas, percebemos ser esse um fator não isolado, uma vez que “o protagonismo negro é evidenciado pela autoria de 59% do total das práticas, com destaque para a atuação da mulher negra” (Ceert, 2013, p. 32).
Tal protagonismo possivelmente explique o porquê, na percepção dos(as) educadores(as) que participaram de nosso estudo, de a realização desse tipo de projeto estar relacionada à iniciativa individual dos(as) profissionais. Indagados sobre qual diagnóstico faziam da realidade da escola em que atuavam quanto à implementação da Lei n° 10.639/2003, a maioria, 46,6%, acredita que o desejo de estudantes e professores(as) em abordarem a temática racial, interessando-se por questões relacionadas à diversidade racial, dá-se a partir de iniciativas individuais.
Esse número está bem próximo daqueles que alegam a temática racial estar presente nos projetos político-pedagógicos (PPP) de seus estabelecimentos de ensino, o que poderia significar avanços rumo à efetiva implementação da Erer. Todavia, como demonstram pesquisas qualitativas, a menção à temática racial nos PPP não assegura práticas efetivas junto às crianças, uma vez que parece cumprir mera exigência burocrática em alguns contextos (Freitas, 2016; Miranda, 2017).
Quanto ao perfil profissional dos(as) inscritos(as), observa-se certa maioria de professores(as) de educação infantil, quase 65% do total, o que pode configurar um sinal de alerta a respeito da exiguidade da oferta de cursos voltados a esse público em específico. Este parece ser, no entanto, um problema geral país afora, uma vez que 72,3% de nossa amostra jamais haviam realizado curso relacionado à temática racial, aspecto ainda mais preocupante tratando-se de gestores(as) e coordenadores(as) de escola, profissionais que, na maioria das redes de ensino, são responsáveis pela formação em serviço nos horários de trabalho pedagógico coletivo e em outras reuniões realizadas na instituição. Nota-se que cerca de 65% dos coordenadores e coordenadoras pedagógicas nunca haviam participado de formações do tipo.
ATUAÇÃO | Já fez curso de aperfeiçoamento em temas de educação e diversidade racial e de gênero? | |||
---|---|---|---|---|
Sim | Não | Total | Total em % | |
Coordenador(a) pedagógico(a) | 37 | 68 | 105 | 3,2 |
Gestor(a) escolar | 59 | 93 | 152 | 4,6 |
Orientador(a) educacional | 5 | 7 | 12 | 0,4 |
Docente de EI | 533 | 1.613 | 2.146 | 64,7 |
Docente de EF1 | 276 | 609 | 885 | 26,6 |
Supervisor(a) escolar | 7 | 9 | 16 | 0,5 |
TOTAL | 917 | 2.399 | 3.316 | 100 |
Fonte: Elaboração própria.
A lacuna na formação de educadores(as), no que tange à Lei n° 10.639/2003, se expressa nas oportunidades educacionais oferecidas às crianças. Ao cruzarmos os dados relativos à frequência anterior em curso sobre relações raciais com o trabalho pedagógico sobre diversidade desenvolvido nas escolas, vemos que professores(as) que frequentaram cursos dessa natureza têm três vezes mais chance de desenvolverem projetos alinhados à perspectiva da equidade racial em comparação àqueles que nunca acessaram esse tipo de formação.
Na Figura 1, vemos como a ausência de aperfeiçoamento profissional impacta negativamente as oportunidades de Erer: 85,3% dos(as) educadores(as) que não tiveram oportunidade de aperfeiçoar seus conhecimentos na temática ainda não desenvolvem uma prática alinhada ao preconizado na legislação educacional.
Observe-se também que a frequência a cursos, embora de suma importância, é insuficiente para ensejar práticas de Erer para 56,6% de nossa amostra, sugerindo a necessidade de outros mecanismos que assegurem a prática, vinculados especialmente à atuação das secretarias de educação e equipes gestoras. Estas últimas, como vimos no Tabela 2, encontram-se possivelmente despreparadas para encarar tal tarefa.
Ainda que a formação sobre relações raciais seja precária, ela não é o principal argumento acionado pelos(as) participantes da pesquisa para explicar os desafios interpostos à implementação da Lei n° 10.639/2003. Os(as) profissionais citaram a presença do racismo em suas diferentes dimensões (institucional, estrutural e individual) como o principal fator dificultador.
O fato de terem citado o racismo como principal desafio na efetivação de uma educação comprometida com a igualdade racial revela que esse projeto não está circunscrito apenas à mera acumulação de novos conhecimentos por parte de educadores(as). Trata-se da construção de novas referências sobre o mundo, a diversidade humana e as relações que se estabelecem em nossa sociedade.
McIntyre (1995) já asseverava que o trabalho pedagógico, em uma perspectiva multicultural, esbarrava em obstáculos ligados às concepções de raça, racismo e cultura adotadas por professores(as), revelando a necessidade de incorporar aspectos subjetivos à formação docente. Trata-se também da desconstrução de hierarquias raciais presentes em nossa sociedade que se configuram como pano de fundo estrutural nas quais as percepções ora analisadas são construídas e encontram sustentação, o que estende os objetivos da Erer para além dos muros da escola, transformando-a em um projeto mais amplo de reorganização social.
Obviamente, não só de iniciativa individual e disposição subjetiva depende a implementação de projeto educativo de tal envergadura. O poder público desempenha papel central na oferta de subsídios aos(às) docentes, acompanhamento, avaliação e aprimoramento da política pública; tarefa na qual tem falhado terrivelmente, uma vez que a percepção de 57% dos(as) respondentes é de a implementação da Erer ser inexistente ou insatisfatória em suas redes de ensino (respectivamente 2,7% e 54,3%).
Dos(as) 43% que acreditavam ser a implementação da Lei n° 10.639/2003 satisfatória (40,5%) ou plenamente satisfatória em suas redes de ensino (2,5%), mais da metade (52%) declarou ainda não desenvolver temas ligados à diversidade racial em seu cotidiano profissional. Neste caso específico, cabe indagar: se, na avaliação desses(as) 43% a implementação é satisfatória, por que mais da metade deles(as) ainda não desenvolve uma prática pedagógica de Erer? Ao que parece, uma vez mais, vemos corroborada a hipótese de que a formação deve abarcar aspectos que incentivem os(as) docentes a incorporarem o debate em suas práticas, indo além da oferta de novos conteúdos ou informações, ponto que exige aprofundamento em investigações futuras cujos resultados poderão ajudar a delinear novas políticas educacionais.
Considerações finais
As constatações da pesquisa confirmam os achados dos estudos de caso (ou daqueles realizados em pequena escala) a respeito dos desafios interpostos à efetivação de uma educação para as relações étnico-raciais (Alves, 2018; Garcia, 2019; Ivazaki, 2018). Nossos dados revelam que tais desafios estão relacionados a três fatores correlatos: à exiguidade da oferta de cursos de aperfeiçoamento docente e de outros(as) profissionais ligados(as) à educação; à ausência ou precariedade das iniciativas institucionais de implementação da Erer nos municípios e escolas; e, não menos preocupante, às barreiras de ordem ainda pouco exploradas ligadas às disposições individuais de educadores(as) para trabalhar com a temática, mesmo após acederem a cursos de formação continuada.
Em relação ao primeiro fator, parece-nos urgente a criação de mecanismos de monitoramento e pressão social para que o poder público cumpra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), alterada pelas Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008. Embora de suma importância, o dispositivo legal vem sendo sistematicamente ignorado em diversas redes e em estabelecimentos públicos e privados de ensino. Outro ponto que urge aprofundarmos se refere às barreiras subjetivas à Erer, única hipótese aventada pela literatura especializada no tema para explicar o motivo de, mesmo obtendo a formação necessária à consecução de projetos ligados à diversidade racial, parte dos(as) profissionais da educação opta por não os efetivar. As pesquisas qualitativas dão pistas sobre a natureza dessas barreiras: elas têm a ver com o racismo em suas diferentes dimensões e com inseguranças provenientes das poucas oportunidades formativas em relação ao tema.
Se nossa sociedade é marcada estrutural e institucionalmente pelo racismo, a institucionalização de uma nova maneira de educar, voltada para a equidade racial, pressupõe amplo projeto de ressignificação do papel social da escola, bem como das relações estabelecidas dentro e fora dela. Ao que parece, o sucesso de propostas de formação docente, entendido como potencializador de efetivas práticas de Erer junto às crianças, não pode negligenciar o debate mais amplo a respeito das desigualdades raciais.
Ainda entre as necessidades de novas pesquisas, a realização de estudos estatisticamente representativos, que evidenciem quais redes de ensino municipais e estaduais de ensino implementaram a legislação sobre Erer e elucidem as estratégias utilizadas por elas, parece-nos também urgente. Não há soluções simples para resolver os entraves apontados, mas nos arriscamos a levantar alguns pontos que nos parecem fundamentais para o delineamento de estratégias para esse fim.
Em relação à exiguidade de propostas formativas, as parcerias entre poder público, universidades e organizações negras da sociedade civil já se mostraram profícuas em diferentes contextos (Ceert, 2013). Muitas organizações negras têm, com suas histórias de militância e ativismo, participação essencial no delineamento de políticas públicas voltadas à construção da igualdade racial e foram as primeiras a propor iniciativas educacionais com essa finalidade, mesmo antes do poder público. Tal expertise, atrelada às mais recentes discussões realizadas no campo acadêmico, tem originado bases teóricas e metodológicas para a formação docente. Para que essas diligências não fiquem circunscritas à vontade individual, municípios e estados podem desenvolver políticas de formação massiva, que abarquem todos(as) os(as) professores(as) de todas as etapas da educação básica e contem com o saber acumulado pelo movimento negro e por estudiosos(as) das relações raciais.
No caso de omissão do poder público na elaboração, no monitoramento e na avaliação de políticas como as descritas, a criação de instrumentos jurídicos para demandar o cumprimento da legislação educacional configura alternativa potente. Não raro, encontramos termos de ajustamento de conduta, petições e abaixo-assinados entre as estratégias de pressão social com vistas à garantia de direitos. Essa mesma lógica pode ser motor para mudança no cenário ora apontado.
É preciso ressaltar que se os desafios são muitos, as possibilidades de uma efetiva implementação das leis supracitadas são também variadas. Com o incremento do debate público sobre relações raciais motivado por episódios recentes de racismo ocorridos no Brasil e no mundo, abre-se nova janela de oportunidades para que a educação para as relações étnico-raciais se constitua efetivamente como o centro do debate público a respeito de políticas para a educação brasileira.