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Roteiro

versão impressa ISSN 0104-4311versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.44 no.2 Joaçaba jan./dez 2019  Epub 14-Maio-2019

https://doi.org/10.18593/r.v44i2.16425 

Artigos de Demanda Contínua

Livro didático Português - Linguagens: questões de interpretação e emancipação

Didactic book Português - Linguagens: questions of interpretation and emancipation

Libro didáctico Português - Linguagens: cuestiones de interpretación y emancipación

Mateus Mariot Nascimento1I 

Antonio Serafim Pereira2II  , Docente Pesquisador

IFaculdade SATC, Curso de Jornalismo, Professor de Língua Portuguesa, Brasil

IIUniversidade do Extremo Sul Catarinense, Programa de Pós-Graduação em Educação, Docente Pesquisador, Brasil


Resumo:

O presente trabalho descreve o estudo analítico da coleção didática Português: Linguagens, de Cereja e Magalhães (2013), em específico, das atividades de leitura nela propostas com vistas a identificar as que guardam em suas proposições possibilidades emancipadoras. Com tal intuito, a análise dos volumes que compõem a coleção recaiu sobre as atividades de interpretação de texto, tendo por base a tipologia de questões sistematizadas por Marcuschi (2008). O processo analítico permitiu apreender que, na coleção estudada, as questões propostas para interpretação, em sua maioria, visam possibilitar ao aluno uma compreensão para além do funcionamento estrutural e formal da língua, ou seja, evidenciamos a preocupação dos autores em mobilizar o estudante para a prática de leitura mais próxima da concepção interacionista, com possíveis reflexos positivos para o seu desenvolvimento como leitor crítico e emancipado.

Palavras-chave: Livro didático; Língua Portuguesa; Leitura; Questões de interpretação; Possibilidades emancipadoras.

Abstract:

This paper describes the analytical study of the didactic collection Português: Linguagens, by Cereja and Magalhães (2013), in particular the study of the proposed reading activities in order to identify the ones which keeps in its propositions emancipatory possibilities. For this purpose, the analysis of the books that compose the collection was concerned about the text interpretation activities based on the typology of questions organized by Marcuschi (2008). The analytic process enabled the understanding that in the studied collection the proposed questions for interpretation, mostly, aim to provide the comprehension beyond the structural and formal function of the language for the student, that is, we highlighted an authors’ concern about mobilizing the student for a reading practice closer to the interactionist conception, with possible positive reflections for its developing to be a critical and emancipated reading student.

Keywords: Didactic book; Portuguese language; Reading; Questions of interpretation; emancipatory possibilities.

Resumen:

Este artículo describe el estudio analítico de la colección didáctica Português: Linguagens, del Cereja y Magalhães (2013), en particular, las actividades de lectura previstas en la misma con el fin de identificar aquellas que mantienen en sus proposiciones posibilidades emancipadoras. Con tal propósito, el análisis de los volúmenes que componen la colección recayó sobre las actividades de interpretación de texto, teniendo como base la tipología de cuestiones sistematizadas por Marcuschi (2008). El proceso analítico permitió aprehender que, en la colección estudiada, las cuestiones propuestas para interpretación, en su mayoría, visan posibilitar al alumno una comprensión más allá del funcionamiento estructural y formal de la lengua, o sea, evidenciamos preocupación de los autores en movilizar al estudiante a la práctica de lectura más cercana a la concepción interaccional, con posibles reflejos positivos para su desarrollo como lector crítico y emancipado.

Palabras clave: Libro didáctico; Lengua portuguesa; Lectura; Cuestiones de interpretación; Posibilidades emancipadoras.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nossa experiência docente tem nos permitido identificar que os alunos, em particular do Ensino Médio, apresentam dificuldade de alguma ordem no que se refere à leitura e compreensão de textos escritos, não só no componente curricular Língua Portuguesa, mas em outras áreas com as quais compartilhamos projetos e atividades pedagógicas.

A confirmar nossas apreensões, os resultados das avaliações nacionais e internacionais têm demonstrado, ao longo dos anos, que o estudante brasileiro pode e deve melhorar sua competência em leitura, no sentido de compreensão e crítica. Os dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) de 2015 provam isso ao evidenciar que o desempenho dos estudantes brasileiros em leitura piorou em relação a 2009, uma vez que o Brasil somou 407 pontos nesse quesito, três a menos do que a sua pontuação na última avaliação. Além disso, aproximadamente metade dos alunos brasileiros, 50,99%, não atingiu o nível dois de desempenho na avaliação, para um índice máximo de seis pontos (BRASIL, 2016). Isso significa que os estudantes brasileiros não são capazes de deduzir informações do texto, estabelecer relações entre suas diferentes partes e compreender as significações textuais para além do sentido denotativo.

Tal cenário tem nos mobilizado a pensar/refletir sobre os suportes e instrumentos pedagógicos mais presentes nas escolas de Educação Básica em que atuamos, com especial atenção para apostilas e livros didáticos, quanto ao potencial que podem dispor para o desenvolvimento da capacidade leitora de seus usuários.

No que diz respeito aos últimos recursos, vale realçar que o estudo realizado por Marcuschi (2008), detalhado adiante, identificou, nos livros de Língua Portuguesa por ele analisados (1980-1990), o predomínio de questões de identificação dos elementos estruturais do texto. Esse resultado é reafirmado por Pereira (2014, p. 125) em estudo realizado nos livros de Língua Portuguesa adotados no, hoje, Ensino Fundamental (anos finais) das escolas públicas estaduais mais antigas do Sul catarinense, particularmente das cidades de Araranguá e Criciúma, no período de 1970-1990, que captou em seus “textos, atividades e exercícios, a presença pouco significativa de propostas emancipadoras de apropriação e socialização do conhecimento pela predominância das proposições de caráter reprodutor.”

Instigados por estudos como estes nos propusemos a compreender em que medida as atividades de interpretação de texto propostas na coleção didática Português: Linguagens, volumes 1, 2 e 3, dos autores Cereja e Magalhães (2013),3 contribuem para a formação de leitores na perspectiva emancipadora. Ou melhor dizendo, se as proposições contidas na referida coleção possibilitam experiências de leitura que elevem a compreensão do signo linguístico à condição de fenômeno social, isto é, para além da simples codificação.

Buscando atender ao anunciado anteriormente exposto, o texto que segue apresenta algumas indicações históricas sobre o livro didático, situa na sequência as concepções teóricas de leitura, estabelece relação entre atividades e estratégias de leitura e descreve a análise da coleção - objeto de estudo - pertinente às questões de compreensão com destaque para as possibilidades emancipadoras.

2 LIVRO DIDÁTICO: ALGUMAS INDICAÇÕES HISTÓRICAS

A trajetória do livro didático (LD) em terra brasileira se inicia ainda no período da colonização por meio dos jesuítas, que, objetivando catequizar os nativos e ensinar-lhes a Língua Portuguesa, para cá vieram munidos de cartilhas produzidas, obviamente, em Portugal. Entre estas, Scheffer et al. (2007) mencionam que A Cartilha de João de Barros, datada de 1540, pode ser tida como uma das primeiras. Produzida em Língua Portuguesa, trazia o alfabeto em letras góticas ilustradas com desenhos. Além disso, apresentava os Mandamentos de Deus e da Igreja, no caso a Católica, além de uma quantidade significativa de orações.

Ainda conforme Scheffer et al. (2007), três séculos após, em 1850, Antonio Feliciano de Castilho escreve o livro intitulado Método portuguez para o ensino do ler e escrever, com alfabetos picturais ou icônicos e textos narrativos. Reeditado em 1853, intitulou-se Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, numeração e do escrever: obra tão própria para escola como para uso das famílias. Para o autor, a referida cartilha produziu avanço significativo no tocante à alfabetização das pessoas por sua difusão tanto em Portugal quanto nas suas colônias, incluindo o Brasil. Pode-se dizer que a A Cartilha Maternal foi o primeiro manual de alfabetização dos brasileiros.

Passados os anos 1870, no Rio de Janeiro, surge o Manual explicativo do método de leitura, dedicado aos professores, de autoria do brasileiro Francisco Alvez da Silva Castilho. Nesse período, crianças pobres eram alfabetizadas pelo escritor, logo após, as técnicas apresentadas por ele também chegaram aos adultos.

Em 1892, foi publicado o Primeiro Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, que defendia a silabação como princípio de alfabetização. Logo em seguida, 1907, Arnaldo Barreto desenvolve a Cartilha Analítica, utilizada em muitos Estados do Brasil, que, apesar do nome, constituía-se de partes: decifração e compreensão. A obra enfatizava o ensino a partir de historietas, nas quais estavam presentes frases curtas que repetiam propositalmente palavras que continham o mesmo fonema, como, por exemplo, a tão conhecida frase “Ivo viu a uva”.

Ainda que houvesse o movimento da Escola Nova preconizando o princípio de estudo analítico, em 1920, a Reforma Sampaio Dória, Lei n. 1.750, concede liberdade para que as instituições seguissem o método de alfabetização que julgassem melhor. Logo após, em 1928, integrante do Movimento dos Pioneiros, Lourenço Filho produz a Cartilha do Povo, estruturada a partir de métodos mistos e ecléticos de alfabetização.

Conforme afirma Dias (2010), somente na metade do Século XX é que o Livro Didático (LD) como objeto de estudo passou a receber atenção especial com relação a sua constituição e funcionalidade no tocante às práticas de ensino na escola. É nesse período que os LDs começam de fato a apresentar estratégias didáticas, visando ao desenvolvimento da aprendizagem, ganhando status de política pública de educação. Prova disso, foi a criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), cujo objetivo era gerenciar e distribuir os LDs para as escolas brasileiras (PESSOA, 2012).

Entretanto, é a partir de 1980, segundo Pessoa (2012), que o Governo Federal brasileiro inicia um novo projeto, visando distribuir LDs de forma gratuita às escolas públicas do então 1º grau,4 considerado nível de ensino obrigatório. O primeiro deles a entrar na lista foi o Livro Didático de Língua Portuguesa (LDLP), objetivando garantir seu espaço na sala de aula como relevante e fundamental ferramenta para a aprendizagem de leitura e escrita. Conforme Ota (2009), o LDLP, nas características em que se apresenta hoje - com textos, vocabulário, interpretação, gramática, redação e ilustração -, aparece no cenário educacional brasileiro no fim dos anos 1960, concretizando-se já na década de 1970 a sua distribuição.

Ainda nesse período, por influência da Linguística Estrutural e da Teoria da Comunicação, a concepção de texto no LDLP é ampliada, e o texto literário passa a conviver com outros textos, como histórias em quadrinho e produções jornalísticas. A partir desse momento, o LDLP passou a incorporar em sua estrutura textos e atividades com base nos gêneros textuais de acordo com a organização dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNs/LP) (BRASIL, 2000). Para Rodrigues (2008), a concepção de gêneros discursivos, que sustenta as orientações para o ensino de Língua Portuguesa nos PCNs, baseia-se nas obras de Mikhail Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem e Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2006, 2011), cuja abordagem teórica conduz a uma nova perspectiva de tratamento de interação da linguagem, em substituição à tradicional, fundamentada no tripé das tipologias textuais: narração, descrição e dissertação.

Dessa maneira, as mudanças efetuadas na construção do LDLP no Brasil proporcionaram avanços significativos na seleção e organização dos conteúdos do componente curricular com vistas ao desenvolvimento da competência comunicativa e crítica do aluno.

3 LEITURA: CONCEPÇÕES TEÓRICAS

Sabemos que a leitura é, de certa forma, modulada de acordo com a área de interesse e de conhecimento de cada um. Entretanto, para efeitos deste trabalho, priorizamos a perspectiva estruturalista, discursiva (análise do discurso) e interacionista, uma vez que acreditamos na ideia de que a língua é a principal ferramenta utilizada pelo ser humano no seu lugar de interação, por meio da qual os indivíduos se (re)constroem e interagem socialmente e se constituem dialogicamente (KOCH; ELIAS, 2006).

A perspectiva estruturalista desenvolvida por Saussure (2004) concebe a língua como um sistema construído a partir de um código, de um conjunto de signos que se combinam segundo regras, que é capaz de transmitir uma mensagem/informações de um emissor a um receptor. Para o autor, a língua não passa de um sistema de valores puros, por meio da qual seria possível a descrição do mundo. Segundo Rodrigues (2008), o referido linguista enfoca a língua como um fato social, produto da coletividade, que estabelece os valores desse sistema por meio da convenção social. Entretanto, o indivíduo não tem nenhum poder sobre a língua pelo fato de esta ser objetivamente externa à consciência individual.

Saussure (2004), na verdade, concebia a língua como um fenômeno social, mas a analisava como um código e um sistema de signos. Para ele, interessava apenas o sistema e a forma, não o aspecto de sua realização na fala ou no seu funcionamento em texto. Segundo Marcuschi (2008), o estruturalismo saussuriano volta-se para a análise do sistema da língua como um conjunto de regularidades que subjazem à língua, enquanto interioridade e forma; a variação fica por conta das realizações individuais. Nessa concepção de língua como código, o texto é resultado da codificação de um emissor a ser decodificado por um receptor, e a leitura “é uma atividade que exige do leitor o foco no texto, em sua linearidade, uma vez que ‘tudo está dito no dito’.” (AZEVEDO, 2010, p. 22).

Nessa perspectiva, conforme Azevedo (2010), a aproximação entre texto e leitura com base nas condições sócio-históricas de sua produção é apagada, e as determinações que se estabelecem entre leitor-texto-autor não são relevantes, visto que o leitor se restringe à ideia de des-cobrir ou des-vendar a construção textual. Nesse contexto de leitura, o emissor, o receptor, a situação e o contexto, por exemplo, ficam fora da análise, não participam do jogo linguístico e comunicativo.

A perspectiva discursiva ou Análise do Discurso (AD), por sua vez, tem como principal precursor Michel Pêcheux, a partir da década de 1960. À época, pensar em AD com base no funcionamento linguístico do indivíduo era defender a perspectiva de que a leitura não é uma só, nem infinita, mas tomá-la como possíveis leituras. Segundo Orlandi (2007), nessa visão, o sujeito é considerado como leitor que age perante a leitura conforme sua historicidade e interpelado pela ideologia. Desse modo, tudo o que é pronunciado tem um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos. Isso não está na essência das palavras, mas na discursividade, ou seja, na maneira como, no discurso, a ideologia produz efeitos, materializando-se neles.

A perspectiva discursiva, para Azevedo (2010), transita pelo entendimento do texto enquanto um entrelaçamento de relações estabelecidas com outros textos, com os sujeitos e as condições de produção que o projetaram. Diz-se, desse modo, que esses aspectos são fundamentais para que se possa falar do funcionamento discursivo do texto, uma vez que o trajeto que este percorre durante o processo de sua produção não se restringe aos arranjos formais que o constituem, nem à sua estrutura empírica, que compreende começo, meio e fim.

Segundo Orlandi (2007), a AD compreende que os sentidos constituídos são historicamente construídos, sendo impossível estabelecê-los fora do contexto em que foram enunciados. Por essa direção, uma construção ideológica comporta mais de uma posição discursiva que pode se contrapor, aliar-se ou predominar sobre outra.

Portanto, a concepção de leitura a partir da AD, conforme Azevedo (2010), está relacionada às condições de produção do texto e da leitura, aos sujeitos e às relações dialógicas; desloca a prática leitora de uma atividade de mera decodificação do texto e identificação do seu significado literal para uma leitura que parte do pressuposto de que, antes de procurar saber o que o autor do texto diz, é necessário saber como ele diz o que diz. Portanto, na concepção discursiva as condições de produção de um discurso e os sentidos múltiplos produzidos pela leitura englobam os sujeitos, a situação e a memória. Tais condições compreendem desde o contexto imediato até o contexto sócio-histórico e ideológico.

De outro modo, na concepção interacionista, a língua é vista como um lugar de interação humana e não apenas como produto ou sistema de regras isolado, de modo que não se pode analisá-la sem levar em consideração o contexto sociocultural em que os indivíduos estão inseridos no momento da comunicação (PESSOA, 2012).

Nesse sentido e concordância, Leffa (1996, p. 10, grifo nosso) afirma que “a leitura é basicamente um processo de representação.” De modo geral, o ato leitor não se desenvolve diretamente conectado a uma realidade, mas permeado por outros elementos que constituem também a realidade considerada. Para Leffa (1996, p. 11): (a) ler é extrair significado do texto e (b) ler é atribuir significado ao texto. Cada um dos polos valoriza um elemento: no primeiro caso, extrair dá enfoque ao texto; no segundo, atribuir direciona a importância ao leitor.

No caso de extrair sentido da leitura - ascendente - associa-se à ideia de que o texto tem um significado preciso, exato e completo, que o leitor-minerador5 pode obter a partir do esforço e da persistência (LEFFA, 1996). Desse modo, se o texto for rico, o leitor se enriquecerá com ele, aumentará seu conhecimento de mundo. Caso o texto seja pobre, o leitor não conseguirá se desenvolver em meio à mina de ouro, uma vez que não há riquezas para serem descobertas. O outro polo - descendente -, também apresentado por Leffa (1996), diz respeito à atribuição de significado ao texto. Ou seja, o mesmo texto pode incitar em cada leitor uma visão diferente da realidade. Desse modo, o leitor necessita ter experiências prévias já constituídas para trazê-las à leitura. Logo o nível da ação leitora não é condicionado pelas propriedades essenciais internas ao texto, mas pela qualidade advinda do leitor no momento em que vai preenchendo as lacunas deixadas pelo texto com seu conhecimento prévio de mundo.

Considerados os elementos descritos (ascendentes e descendentes) referentes à leitura, Leffa (1996) e Kato (1999) ressaltam a importância de se integrar o papel do leitor e a função do texto ao processo de interação entre o leitor e o texto. Nessa perspectiva, a inserção do elemento interação ao processo de leitura é condição para que a leitura faça sentido; não basta apenas a existência de leitor-texto, mas é essencial a condição adequada de interação entre eles. Há necessidade do conhecimento prévio do indivíduo acerca de informações da realidade, assim como a correspondência com os dados fornecidos pelo texto.

A partir da concepção interacionista, podemos compreender que grande parte das interpretações efetuadas pelos leitores depende/parte do seu próprio objetivo, colocando em evidência que, ainda que o conteúdo de um texto seja invariável, é possível dois leitores com finalidades diferentes obterem informações distintas do mesmo texto. Por isso que os objetivos da leitura são tão relevantes e devem ser levados em consideração quando se deseja ensinar leitura, compreensão e produção de sentidos. Desse modo, ao longo do processo, de acordo com Kato (1999), o leitor proficiente será aquele que faz uso apropriado desses processos, o que o torna ao mesmo tempo fluente e preciso.

Além disso, na presente concepção de leitura, para Ferreira e Dias (2004), o leitor, na interação que mantém com o autor via texto, ao compreendê-lo, vai modificando, ajustando e ampliando as suas concepções, as quais exercem impacto sobre a sua percepção. Para as autoras, o leitor envolve-se na leitura instigado pelo processo de previsão e inferência contínua, apoiado na informação proporcionada pelo texto e na sua própria bagagem, em um processo que lhe permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências antes mencionadas.

Marcuschi (2008), como Ferreira e Dias (2004), sustenta que a leitura não é um simples ato de extração de conteúdos ou de identificação de sentidos. O ato de ler vai além disso, uma vez que compreender o outro é uma aventura, e nesse terreno não há garantias absolutas e completas de sentido. A língua é um sistema que tem relação direta com práticas sócio-históricas, ou seja, não funciona sem vínculo à realidade humana ou simplesmente como um sistema. Por isso, para Marcuschi (2008), quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, em uma espiral que quase não acaba. É nessa constante, do mundo da leitura à leitura do mundo, que o trajeto se cumpre rotineiramente, por meio do qual o indivíduo se refaz, reconstrói-se, transformando a leitura em prática circular e infinita.

4 RELAÇÃO ENTRE ATIVIDADES E ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Segundo Cantalice (2004), as estratégias de leitura são técnicas ou métodos procedimentais utilizados pelo indivíduo a fim de adquirir informação, que ora se adaptam ao texto a ser lido, ora à abordagem elaborada de forma prévia pelo leitor com o intuito de efetivar a compreensão textual.

Várias estratégias, de acordo com Solé (1998), são utilizadas no processo de leitura, mas que nem sempre são explícitas ou facilmente identificáveis. Assim, por meio delas se realizam o processamento do texto e a mobilização de diferentes níveis de conhecimento do leitor, entre os quais costumam ser enfatizados: os conhecimentos linguístico, o de mundo, o enciclopédico, o interacional, que se dão por meio de relações e inferências não necessariamente claras, conscientes, propositais e planejadas, mas, de modo geral, como capacidade de articulação do repertório pessoal no ato da leitura.

As estratégias de leitura, para Solé (1998), podem ser distribuídas em três etapas: antes, durante e depois do ato de ler. Como estratégia de compreensão que antecipa a leitura em si, a autora indica a antecipação do tema ou ideia principal do texto a partir de elementos como título, subtítulo, imagens e levantamento do conhecimento prévio sobre o assunto. Para o momento da leitura, sugere atividades, como confirmação, rejeição ou retificação das antecipações ou expectativas criadas antes da leitura, como esclarecimentos de palavras desconhecidas a partir da inferência ou consulta ao dicionário, bem como formulação de conclusões implícitas no texto com base em outras leituras, por exemplo. Nesse sentido, Pereira (2015) afirma que os leitores, durante o ato de ler, devem estar orientados a ser independentes e abertos a mudanças, pois se for constatado que uma ou mais estratégias não estão produzindo efeito para cumprir o objetivo desejado, há a possibilidade de se recorrer a outras mais pertinentes. Como estratégia pós-leitura, Solé (1998) indica a construção da síntese semântica do texto; a utilização do registro escrito para melhor compreensão; a troca de impressões a respeito do texto lido; a relação de informações para efetuar conclusões; a avaliação das informações ou opiniões emitidas no texto; e a avaliação crítica do texto.

Assim, torna-se importante trazer à discussão a maneira como Freire (2008) entende e explica a leitura. Para o autor, a leitura acontece na perspectiva da interação entre autor, texto e leitor, sendo este último composto vivamente de experiências e leituras prévias, que dialogarão com o texto lido, alçando-o além, em releituras e re-significados. Uma das bases da visão de leitura emancipadora, crítica e libertadora de Freire (2008, p. 20) é: “A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente.” Isso porque a leitura do texto está relacionada com a leitura do mundo, com a capacidade de compreender o próprio contexto em que se está inserido, muito além de uma visão meramente decodificadora de palavras. Logo, Freire (2008) coloca a importância da relação dinâmica que vincula linguagem e realidade com o propósito de se construir significações acerca do próprio mundo pelos indivíduos. Assim, o leitor interagindo com o texto pode relacionar dialogicamente suas experiências anteriores com o texto lido.

Por esse ângulo, compreende-se que a leitura, além de uma atividade cognitiva, também pode ser caracterizada como atividade social construída, dialógica e interativamente, que necessita da participação ativa do leitor, das suas experiências, seus objetivos de leitura, seus conhecimentos e ideias prévias, sua visão de mundo, suas expectativas. Por isso, Freire (2008) reconhece que os processos cognitivos que envolvem a leitura não devem se esgotar logo na decodificação, mas devem se antecipar e se alongar na inteligência do mundo.

Para Freire (2005), a dialogicidade apresenta-se como fenômeno humano. Em outras palavras, o diálogo é uma exigência existencial, por meio da qual se conquista o direito à fala em uma relação entre os sujeitos do mundo, que não se sobrepõem aos outros de forma totalitária. Ao contrário, ambos se projetam, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Assim, por meio das relações dialógicas constituídas pelos sujeitos inseridos em uma determinada realidade histórica é que pode haver educação e leitura como prática da liberdade.

A leitura de mundo aqui posta implica, segundo Britto (2012), reconhecer e ter a percepção da vida-vivida, desde as experiências subjetivas mais íntimas às relações histórico-sociais mais complexas. Entendida desse modo, a leitura, para o autor, constitui-se também instrumento de conquista de poder. O acesso à leitura das camadas sociais subalternas implica que esta e a produção de texto se tornem ferramentas de pensamento por uma experiência social renovada. Nessa visão, a leitura supõe a busca de novos pontos de vista sobre a realidade vivida, tornando o indivíduo livre em sua visão e atuação no mundo.

Nesse sentido, o leitor emancipado é autônomo e capaz de interpretar por si próprio; de significar o texto a partir de suas próprias experiências. Por isso, na concepção de Freire (1977, 2008), o ato de ler o texto para dissecá-lo e analisá-lo deve apontar para objetivos e resultados desejáveis, atribuindo-lhe importância/significado pessoal e social para o leitor e sua coletividade. Pelo exposto, podemos considerar que a proposta do autor se aproxima mais das perspectivas de leitura discursiva e interacionista, visto que aspectos como interatividade entre leitor e texto, ideologia, leitura de mundo, experiências prévias, importância do contexto, aspectos sócio-históricos de produção, entre outros, são elementos comuns às duas perspectivas mencionadas.

Todavia, a diferença básica entre a proposta de leitura freiriana e as concepções de leitura apresentadas concerne a que estas estão interessadas em explicar e analisar o ato de ler e aquela na importância do ato de ler, que diz respeito à formação do leitor emancipado capaz de intervir criticamente no processo de transformação social. É nessa direção que caminha a análise das atividades de leitura propostas na coleção didática estudada, que descrevemos a seguir.

5 INTERPRETAÇÃO TEXTUAL E ESTRATÉGIAS DE LEITURA: POSSIBILIDADES EMANCIPADORAS

De início, cabe esclarecer que a seleção da obra Português: Linguagens se deve ao fato de ser, na atualidade, a obra mais distribuída pelo Ministério da Educação em todo o Brasil, obtendo 31% do mercado com a tiragem de mais de dois milhões de exemplares (FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO, 2015). Além de ser a mais utilizada nas escolas públicas de Ensino Médio da região de Criciúma, SC. Por se tratar de material histórico, temporal e contextualmente situado, entendemos que sua análise, difundida nos meios acadêmicos superiores e escolas de educação básica, especialmente entre pesquisadores/professores da área de Língua Portuguesa, pode contribuir para suscitar reflexões e intervenções, que venham elevar o potencial emancipador da obra em apreço.

Importa esclarecer também que a coleção didática alvo do estudo realizado traz, entre outras partes, uma seção, cujo título é Interpretação de Texto, de onde tomamos as questões para análise. Tais questões foram analisadas, tendo-se como referência a categorização produzida por Marcuschi (2008), a partir do estudo que desenvolveu entre 1980 e 1990 com o intuito de investigar os tipos de perguntas apresentados nos livros didáticos referentes às atividades de leitura e, por conseguinte, as estratégias de leitura acionadas pelos leitores.

Os dados obtidos por Marcuschi (2008) constantes na Tabela a seguir revelam que há um predomínio de questões de identificação de elementos essenciais do texto (70%), que demandam simples identificação e transcrição de informações textuais como resposta (cópia). Os 30% restantes estão assim distribuídos: 10% das questões - que o autor denomina de inferenciais e globais - exigem de alguma forma reflexão crítica mais acurada para respondê-las; próximo ao percentual anterior (11%) situam-se as chamadas subjetivas, vale-tudo e impossíveis e, por fim, as questões de ordem estrutural (9%) - metalinguísticas.

Tabela 1 - Perguntas de compreensão em livros didáticos do ensino básico 

GRUPOS TIPOS FREQUÊNCIA %
1 Cor do cavalo branco 1 70%
Cópias 16
Objetivas 53
2 Inferenciais 6 10%
Globais 4
3 Subjetivas 7,5 11%
Vale-tudo 3
Impossíveis 0,5
4 Metalinguísticas 9 9%

Fonte: adaptada de Marcuschi (2008, p. 273).

Por meio dessa Tabela, percebe-se que a compreensão textual, a partir do LD, pode ser proposta com base em perguntas que exigem mínima competência de leitura por parte do aluno, por se configurarem como autorrespondidas, ou em questões que requerem meramente a transcrição de frases ou palavras.

Segundo Marcuschi (2008), os tipos de perguntas apresentados não podem ser considerados únicos, nem definitivos, não obstante, possibilitam apontar aspectos fundamentais da prática escolar quanto às atividades de compreensão: revelam o predomínio da compreensão textual como simples ato de extração de informações ou abrem/garantem espaço para as atividades que favorecem a reflexão crítica do leitor.

A propósito, cabe enfatizar que o autor se alia a essa última possibilidade ao recomendar que a compreensão textual seja proposta a partir de perguntas de cunho inferencial e global que, por considerarem o aspecto multimodal dos textos em situações da vida cotidiana, são capazes de mobilizar habilidades mais complexas de pensamento, possibilitando, dessa maneira, que o aluno tenha maiores chances de produzir raciocínio e inferências de caráter crítico, na busca de respostas às questões formuladas.

As categorias propostas por Marcuschi (2008), para efeitos do presente trabalho, foram reconsideradas pela compreensão de que podem ser agrupadas em duas perspectivas básicas: uma que diz respeito às atividades que desenvolvem, em sua maior parte, a capacidade reprodutora do aluno e outra que abre a possibilidade de emancipá-lo criticamente.

Assim, a primeira perspectiva apresenta-se nas atividades de leitura quando a obra didática apresenta perguntas com possibilidade de explorar somente aspectos de reprodução durante os exercícios de compreensão. Nessas atividades, o aluno precisa ser capaz de perceber que há necessidade apenas de transcrever frases ou palavras, requer apenas sua decodificação, ou ainda as perguntas propostas admitem qualquer resposta.

A segunda perspectiva comporta perguntas com possibilidades emancipatórias, como as globais e as inferenciais, por exigirem do aluno conhecimentos textuais e outros, como pessoais, contextuais e enciclopédicos, que promovam a análise crítica para a busca de respostas. Desse modo, então, as categorias utilizadas para a análise da coleção didática Português: linguagens foram as seguintes: perguntas com possibilidades emancipatórias e perguntas com possibilidades reprodutoras.

Na sequência, então, descrevemos a análise relativa às questões de compreensão (178 corresponde ao total de questões propostas na Coleção) presentes nos três volumes da Coleção Didática de Cereja e Magalhães (2013), tendo por base, conforme mencionado, a tipologia de Marcuschi (2008) apresentada na Tabela 1. Cabe sublinhar que a apresentação dos grupos das questões segue a ordem decrescente de incidência na Coleção analisada, a saber: grupo 2 (55,1%), grupo 1 (32%), grupo 4 (11,3%) e grupo 3 (1,6%).

5.1 ANÁLISE DAS QUESTÕES DO GRUPO 2

O Grupo 2 é representado pelas questões inferenciais e globais, que correspondem a 55,1% das identificadas em relação ao total do corpus analisado. Importa frisar que tal achado se diferencia, significativamente, dos resultados de Marcuschi (2008) concernentes a esse Grupo, conforme Tabela 1 (apenas 10%).

É bom lembrar que as questões desse Grupo tendem a mobilizar a capacidade inferencial do aluno em torno da compreensão textual, exigindo-lhe que recorra à busca e integração/articulação de informações necessárias para que avance na leitura de forma progressiva e coerente, segundo Marcuschi (2008). O leitor, desse modo, necessita se envolver na leitura, instigado pelo processo de previsão e inferência contínua, apoiado na informação disposta pelo texto e no seu próprio repertório cultural, que lhe permitirá encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências antes constituídas por ele próprio. Isto é, o processo inferencial possibilitará a organização dos sentidos elaborados pelo próprio leitor na sua aproximação ao texto, que, nesse caso, é visto como uma unidade de sentido aberta, que lhe favorecerá produzir significados, a partir do seu horizonte de possibilidades e significações. Essas relações, no entanto, não são aleatórias, como advertem Ferreira e Dias (2004), mas se originam no encontro-confronto de dois mundos em situação de leitura: o do autor e do leitor.

Ilustra bem esse Grupo a questão de interpretação proposta no volume 2 da obra de Cereja e Magalhães (2013, p. 20), a partir dos versos do Soneto de Álvares de Azevedo - poeta brasileiro - em destaque a seguir:

Fonte: Cereja e Magalhães (2013, p. 120). Nota: A apresentação da questão segue o formato original da obra analisada.

Figura 1 Questão sobre o Soneto de Álvares de Azevedo 

De antemão, pode-se afirmar que a atividade encaminhada, propondo ao leitor a compreensão acerca dos sentidos do poema de Azevedo, relaciona-se à perspectiva Interativa discutida por Solé (1998), Leffa (1996) e Kato (1999), para quem a leitura, essencialmente, é um processo que ocorre a fim de haver a compreensão da linguagem escrita, transcendendo aspectos formais.

Pelo enunciado, com base no poema, o leitor necessita estar atento à estrutura do texto, reconhecendo prontamente as características do soneto, além de retomar, a partir de seus conhecimentos prévios, as características da segunda geração romântica. Logo, para efetivação da leitura, é necessário, simultaneamente, que o leitor, além de manejar as habilidades de decodificação, aporte-se de seus saberes e experiências prévias. A resolução da questão em apreço exige que o leitor recorra ao conceito e características da vertente romântica da literatura e das artes em geral, bem como perceba e se envolva com as emoções desencadeadas a partir de temas como morte e sofrimento. Abre, ainda, possibilidade de ir mais além, visto que as alternativas apresentadas exigem conexões e reflexões com o poema para que se possa caracterizar o lirismo do soneto. Mais ainda, a questão pode possibilitar ao estudante pensar na história do homem e do próprio poeta Álvares de Azevedo.

Desse modo, as atividades de interpretação de texto características desse Grupo, abrem possibilidades à construção de múltiplas relações com o conhecimento próprio e de mundo do aluno, que pode se tornar leitor das palavras para além do código, visto que, utilizando as palavras (informações), desse modo, teremos maiores chances de dar sentido ao que somos e ao que nos acontece; de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como vemos ou sentimos o que nomeamos (BONDÍA, 2002).

5.2 ANÁLISE DAS QUESTÕES DO GRUPO 1

As atividades identificadas na obra em consideração relativas a esse Grupo englobam questões do tipo cor do cavalo branco, cópias e objetivas (MARCUSCHI, 2008), representando 32% do total analisado. O percentual de questões nesse agrupamento foi menor do que o apresentado em Marcuschi (2008), 70%.

O autor considera que os tipos de perguntas desse Grupo não passam de descomprometida atividade de cópia. Nesse caso, a atividade de compreensão resume-se, em geral, a uma atividade de identificação e extração de dados oferecidos nos textos de suporte. Tal condição proposta/imposta ao aluno pode afastá-lo da oportunidade de expandir sua condição de leitor competente para além do código, como pode ser observado na proposta seguinte, extraída da Coleção:

Fonte: Cereja e Magalhães (2013, p. 120). Nota: A apresentação da questão segue o formato original da obra analisada.

Figura 2 Questão que destaca a tendência de personificar as coisas 

A questão apresentada, a nosso ver, enquadra-se nesse Grupo, posto que solicita ao estudante que apenas busque os elementos personificados ditos no texto; que é justamente o tema e a explicação que a crônica traz, principalmente em suas primeiras 10 linhas. Feita a leitura, identificados os elementos no texto, basta assinalar a alternativa correta. Tal procedimento dá ênfase à língua como sistema de códigos e à ideia de que, para compreendê-la, basta decodificar seus elementos. Nesse enfoque, conforme Azevedo (2010), o significado encontra-se depositado nas palavras ou nos signos. Por conseguinte, o texto é considerado um fim em si mesmo, e a leitura encontra sua plena realização no reconhecimento das palavras, da estrutura e do sentido dado pelo texto. Dessa maneira, a interpretação “é uma atividade que exige do leitor apenas o foco no texto, em sua linearidade, uma vez que ‘tudo está dito no dito’.” (AZEVEDO, 2010, p. 22).

Atividades de leitura centradas nessa perspectiva podem afastar o leitor da possibilidade de desenvolver reflexão crítica sobre o texto lido, que poderia ser potencializada por meio da prática de leitura emancipatória.

5.3 ANÁLISE DAS QUESTÕES DO GRUPO 4

As questões representativas do Grupo 4 são relativas à categoria das metalinguísticas. Das 178 questões estudadas, apenas 11,3% compõem este total bastante próximo do resultado obtido por Marcuschi (2008) nos livros que analisou (9%).

Para o autor, as questões de ordem metalinguística discutem aspectos formais, geralmente da estrutura do texto ou do léxico. Assim, as perguntas têm como objetivo principal levar o aluno a identificar vocábulos e caracterizar o significado que mais condiz com o contexto em que os termos analisados estão presentes, como se constata na atividade a seguir selecionada da Coleção Didática em apreço:

Fonte: Cereja e Magalhães (2013, p. 291). Nota: A apresentação da questão segue o formato original da obra analisada.

Figura 3 Questão de completar lacunas 

Pelas características das alternativas apresentadas, pode-se inferir tratar-se de uma típica questão de completar lacunas, com uma sequência de palavras de acordo com a norma culta da Língua Portuguesa. Entre as cinco alternativas, o estudante precisa encontrar aquela em que as três palavras se encaixem, sintática e morfologicamente, nas lacunas do texto. Marcuschi (2008, p. 271) considera esse tipo de questão “uma atividade mecânica de transcrição de palavras”, uma vez que exige do leitor apenas conhecimento gramatical. A partir das alternativas dadas, como falante nativo da Língua Portuguesa, ao leitor basta decidir aquela em que as palavras se enquadram melhor ao contexto frasal.

Cabe salientar que questões desse tipo são importantes para o desenvolvimento do indivíduo leitor, conforme Marcuschi (2008), Kleiman e Moraes (1999). A linguagem deve ser apreendida, a fim de suscitar compreensões relevantes acerca das relações sociais constituídas nas mais diversas esferas sociais. Entretanto, o estudo do texto não deve ser voltado simplesmente a tópicos de gramática por meio de práticas pedagógicas que persistem na perspectiva reducionista do estudo da palavra e da frase descontextualizada.

5.4 ANÁLISE DAS QUESTÕES DO GRUPO 3

Na análise das questões de interpretação propostas na Coleção, identificamos apenas três representantes do Grupo das subjetivas, vale-tudo e impossíveis (1,7%). Quantidade bem inferior à identificada por Marcuschi (2008), que contabilizou 11% delas em sua pesquisa.

Questões como as desse agrupamento dizem respeito às atividades que têm a ver com o texto de maneira apenas superficial, ou seja, a resposta fica por conta do aluno e não há como testá-la em sua validade (MARCUSCHI, 2008). Nesse caso, a produção de uma prática leitora emancipatória se situa no âmbito da subjetividade do aluno, que pode não existir ou ser eventual, porque não intencional, conforme atividade a seguir:

Fonte: Cereja e Magalhães (2013, p. 389). Nota: A apresentação da questão segue o formato original da obra analisada.

Figura 4 Questão sobre a usina de biodiesel: contradição das afirmações 

Na atividade em destaque, evidenciamos que o aluno precisa identificar o que a questão deseja problematizar com a interrogação Como, no texto, essa contradição poderia ser solucionada?, a partir do termo em destaque no enunciado: se prepara para ser a grande produtora e abastecedora de biodiesel da região Nordeste. Ele deve ser capaz de perceber a contradição existente de acordo com a resposta esperada por Cereja e Magalhães (2013). Para os autores, o problema encontra-se na palavra grande, assim, o aluno pode fazer a substituição pelo termo principal. Entretanto, cabe ressaltar que grande, a partir do Dicionário de Sinônimos (SINÔNIMO..., 2017), possui 72 sinônimos e nove sentidos. Dessa forma, além de terem problema para a validação da resposta correta, os envolvidos na relação leitora, terão pouco estímulo para desenvolverem associações críticas com relação ao conteúdo disposto no texto. Isso porque a condição dialógica está posta em segundo plano. Por conta disso, recorremos a Freire (2005), para quem a dialogicidade se apresenta como fenômeno humano, isto é, torna-se relevante nas relações interpessoais, bem como por meio da leitura do texto. Em outras palavras, o diálogo é uma exigência existencial, seja aqui entre o texto e o leitor, seja entre as pessoas e suas relações sociais em geral.

Afinal, a leitura não é apenas ato de identificação de sentidos ou simples troca de um termo pelo outro, como no caso da questão analisada (MARCUSCHI, 2008). O ato precisa transcender aos meros reconhecimentos estruturais, visto que a língua é um sistema que tem relação direta com práticas sócio-históricas, ou seja, não funciona sem vínculo à realidade humana.

6 A CONDIÇÃO EMANCIPADORA DE PAULO FREIRE E AS QUESTÕES REPRODUTORAS

Em Freire (1977, 2005, 2008), a leitura precisa ter como finalidade fundamental emancipar o leitor, capacitando-o para a compreensão e formação de suas próprias opiniões a partir do texto. Nesse sentido, importa salientar que as discussões sobre práticas de leitura, discutidas pelo autor possuem caráter extremamente político, no sentido de defender a condição de liberdade do indivíduo diante das opressões do sistema social, que hierarquiza e controla as relações sociais humanas. Nesse sentido, vemos como necessário considerar alguns pontos de principal interesse na proposta de Freire (1977, 2005, 2008), entre eles:

a) a importância do ato de ler vai além da leitura da palavra e está intimamente relacionada à leitura de mundo, à capacidade de compreensão do mundo, do seu próprio mundo, sua própria história;

b) a leitura é um ato de interação entre o autor, o leitor e o texto, considerando o leitor vivamente composto de experiências e leituras prévias, que dialogarão com o texto lido, alçando-o além, em releituras e ressignificados;

c) na educação e na linguagem há sempre relações de poder e tanto uma quanto outra deve ser libertadora, no sentido de transformações sociais e relações dialógicas.

Assim, como síntese das 178 questões analisadas em Cereja e Magalhães (2013), construímos a Tabela 2, comparando os resultados de nosso estudo e os de Marcuschi (2008). Na referida Tabela, reagrupamos os quatro grupos de questões de interpretação em apenas dois: o das emancipadoras (possibilidades) e o das reprodutoras, como segue:

Tabela 2 -  Questões emancipadoras x reprodutoras 

TIPOS DE QUESTÕES CEREJA E MAGALHÃES (2013) MARCUSCHI (2008)
Emancipadoras 55% 10%
Reprodutoras 45% 90%

Fonte: os autores.

A Tabela 2 reveste-se de importância por expor novas facetas do livro didático, uma vez que o número de questões que favorecem a reflexão por parte do aluno aumentou consideravelmente. Como se pode perceber, as questões com possibilidades emancipadoras tiveram aumento de 45% em relação à pesquisa de Marcuschi (2008) efetuada na década de 1990. Naquele tempo, o autor identificou apenas 10% de questões que demandavam conhecimentos textuais, contextuais e enciclopédicos, bem como relação com processos inferenciais complexos, suplantadas pelos 90% de questões analisadas de natureza reprodutora centradas apenas no texto, sem inferências ou raciocínio crítico.

Assim, a partir das questões analisadas em Cereja e Magalhães (2013), evidenciamos uma questão básica que Freire (1977) discute: a possibilidade de a leitura na escola contribuir para fortalecer a concepção de educação como atividade política, que deve ser libertadora e não dominadora. À medida que o livro didático avança na proposição de atividades de leitura com possibilidades emancipadoras, crescem também as possibilidades de o ser humano se desenvolver com base no diálogo e na conscientização. Ao contrário disso, pode-se instaurar um clima de irracionalismo e sectarismo.

Em suma, é nas relações entre sujeitos que se pode produzir experiências significativas e emancipatórias, segundo Freire (1977). Por isso, a importância de o professor estabelecer relações dialógicas com o aluno, situação que pode ser feita a partir da própria prática de leitura, tendo, entre outras estratégias, o livro didático como instrumento para constituí-la, uma vez que o conhecimento não está totalmente no texto, ou seja, o material, enquanto propriedade física, apenas contribui para que o professor, com o aluno, construa uma reflexão crítica acerca do tema abordado.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu a constatação de que a obra analisada demonstra maior preocupação em instigar o aluno a relacionar o conhecimento teórico gramatical com o literário, com o de mundo, bem como às suas experiências cotidianas, pelo enfraquecimento do número de questões que exigem do aluno/leitor mais o reconhecimento de aspectos formais relativos à classe gramatical, a sua classificação em funções sintáticas e semânticas.

Sabe-se, no entanto, que a capacidade emancipadora que o livro didático pode ter está na dependência, em boa parte, da capacidade do professor de intervir na sua proposta e mobilizar os alunos na direção de uma leitura fundamentada na concepção interacional. Para desenvolver-se nesse sentido, é imprescindível que o docente venha superando a condição de leitor codificador pela apropriação crítica das estratégias e concepções teóricas de leitura para que, desse modo, qualifique-se no sentido de identificar as possibilidades e fragilidades das obras didáticas à sua disposição, em termos da contribuição que possam dar ao processo de formação do leitor autônomo e emancipado. Inclusive, que consiga reconhecer as armadilhas mercadológicas que os livros didáticos escondem e reduzem o professor à condição de usuário distribuidor, fiel seguidor da proposta neles contida. Nesse sentido, reveste-se de importância pensar a formação docente inicial e continuada (em particular, de Língua Portuguesa), que objetive a superação da abordagem do livro didático como texto normativo, que predita ao professor e ao aluno todas as respostas.

Pelo exposto, um dos aspectos a merecer discussão fundamentada refere-se à forma como se dá o processo de escolha dos livros didáticos distribuídos nas escolas brasileiras, especialmente quanto aos critérios selecionados para sua adoção. São pertinentes, pois, a nosso ver, questionamentos como estes: a escolha do livro centra-se no apelo estrutural e estético-visual? Nas facilidades apresentadas por suas orientações prescritivas, sistematização linear dos conteúdos, da fartura de questões resolvidas, entre outros? Ou mais, por seu contexto global, político e pedagógico, considerando seu potencial na formação do leitor crítico?

Essas questões merecem estar na pauta dos programas de formação de todos os professores e continuar merecendo o olhar diligente de projetos de pesquisa que se debrucem sobre essa temática. A propósito, considerando o limite do estudo realizado, pesquisas que busquem compreender o uso do livro didático de Língua Portuguesa e as intervenções dos professores, visando à formação do aluno leitor emancipado parecem-nos relevantes, especialmente em nosso contexto local e regional. Evidentemente, uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, que tenha a observação participante como um de seus procedimentos básicos, seria a mais conveniente para cumprir tal desígnio.

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3Uma das coleções mais adotadas no Ensino Médio das escolas públicas da região de Criciúma, SC.

4Equivalente ao Ensino Fundamental instituído pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9.394/1996.

5 Leffa (1996) cria a analogia mina/minerador por acreditar que a leitura produzida a partir do texto possui, possivelmente, inúmeros corredores subterrâneos, cheios de riquezas, mas que precisam ser persistentemente explorados pelo leitor.

1 Mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina; https://orcid.org/0000-0001-9679-3073; http://lattes.cnpq.br/6491966728802213.

2Pós-doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Buenos Aires; Doutor em Educação pela Universidade de Santigo de Compostela, Espanha; https://orcid.org/0000-0002-2608-7357; http://lattes.cnpq.br/7893847512356239.

Recebido: 15 de Janeiro de 2018; Aceito: 13 de Dezembro de 2018

Endereços para correspondência: Rua Tupinambá, 152, Bairro Argentina, 88813-565, Criciúma, Santa Catarina, Brasil; mateusmariot@gmail.com

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