Notas introdutórias sobre o “novo” Ensino Médio
No mês de fevereiro de 2017, a Medida Provisória 746/2016 foi convertida na Lei 13.415 e sancionada pelo presidente em exercício Michel Temer. A proposta anuncia mudanças significativas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9.394/1996 e no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB 11.494/2007. Ademais, promove importantes alterações na concepção do Ensino Médio, bem como em sua estrutura, impactando tanto em sua organização curricular e pedagógica quanto em seu financiamento.
O documento de Exposição de Motivos nº 00084/2016/MEC, assinado pelo Ministro da Educação Mendonça Filho, justifica a necessidade da reforma nesta etapa da Educação Básica. Conforme o documento, um dos objetivos prioritários é melhorar o desempenho dos alunos nas avaliações de aprendizagem do Ensino Fundamental e Médio, respectivamente, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), a Prova Brasil e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). É com base nisso que a nova proposta pretende justificar-se e também ante à necessidade de atender as orientações de organismos internacionais - a exemplo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O tópico 14 da Exposição de Motivos expressa a urgência de investimentos na educação tendo em vista a carência de trabalhadores qualificados para impulsionar o desenvolvimento econômico, preenchendo vagas no mercado de trabalho. Outrossim, na mesma Exposição de Motivos, o Ministério da Educação considera que o Ensino Médio não está cumprindo com o seu papel social instituído pela LDB em virtude da inexistência de diálogo entre currículo, alunos e setor produtivo.
As deficiências na oferta do Ensino Médio brasileiro são históricas e inegáveis. Não obstante, o projeto em execução pretende chegar a uma solução desconsiderando os condicionantes dessas deficiências, que vão do sucateamento de um grande contingente de escolas públicas e da precariedade da formação e valorização dos professores que nelas atuam, à desigualdade social, econômica e cultural dos alunos. Além disso, a recente história de oferta do Ensino Médio no conjunto da Educação Básica brasileira3 revela que este é um processo em vias de implementação e universalização, razão pela qual o argumento do MEC de que a urgência da reforma se deve ao fato de apenas 58% dos jovens estarem na escola em idade certa, mostra-se insustentável. Além de ignorar a brevidade dessa oferta no Brasil, o MEC ignora o grande número de jovens que, em nome da subsistência, se vê obrigado a trocar as salas de aula por qualquer oportunidade de trabalho e renda. As variáveis são inúmeras e merecem ser acuradamente avaliadas, ainda mais quando fundamentos e sentidos historicamente constituídos estão em jogo, ameaçados por medidas que não foram submetidas a uma ampla discussão com os agentes implicados e com especialistas de reconhecido saber e experiência na área.
É justamente devido ao caráter arbitrário da proposta, que ao menos três de seus desdobramentos merecem ser problematizados: a instrumentalização da escola, que passa a servir aos interesses dos organismos internacionais e ao mercado financeiro; a suspensão de dois importantes princípios que orientam a escola republicana, nomeadamente a universalidade e a democracia; e a transferência da responsabilidade do Estado, da escola, dos pais e dos professores de educar as crianças e jovens para os próprios alunos.
Uma escola servil
A Lei 13.415/2017 pouco difere da proposta anterior, isto é, da Medida Provisória 746/2016. As pequenas mudanças, inclusive, são fruto de pressões e manifestações contrárias ao seu conteúdo, bem como de problematizações a respeito das suas consequências, iniciadas em diferentes entidades educacionais, com ocupações de escolas e debates encetados em inúmeros espaços do território nacional. Um apelo democrático relativamente em vão, pois foi incapaz de impedir as profundas mudanças legais efetuadas pela reforma, sobretudo porque ela remodela 6 artigos importantes da LDB (art. 24; 26; 36; 44; 61 e 62) e introduz um novo artigo (art. 35-A) que extingue, grosso modo, a eficácia das normas legais referentes à formação humana, à valorização dos profissionais da educação e, principalmente, à autonomia pedagógica das unidades escolares. Mas a principal violação produzida na LDB refere-se ao caput do Art. 36 da nova Lei, que passa a apresentar o seguinte conteúdo:
[...] o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional (Brasil, 2017, p. 1).
Algumas expressões do texto merecem ser questionadas. Afinal, o que vêm a ser “arranjos curriculares”? Quais os critérios e orientações adotados para sua configuração? O que significa estar em conformidade com a “relevância para o contexto local”? Quem define o que é “relevante” e o que deve ser concebido como tal? Por que da área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas foi retirada a expressão “e suas tecnologias”? Com isso, Ciências Humanas deixa de ser área e passa a ser o que exatamente?
Tal eleição de áreas prioritárias e a subsequente hierarquização de campos do saber, a exemplo da Matemática e da Língua Portuguesa e Inglesa acenam para outra subversão empreendida pelo projeto. Uma ação novamente justificada no texto de Exposição de Motivos, no qual os tópicos 7, 8, 9, 11 e 12 apresentam justamente a ênfase dada aos ínfimos resultados dos exames externos e o desejo de superá-los. Assim, são considerados obrigatórios os “estudos e práticas” dos conteúdos de Educação Física, Artes, Sociologia e Filosofia, mas serão diluídos em outras disciplinas. Em não havendo as respectivas disciplinas, presumimos que tampouco haverá quaisquer “estudos e práticas”, posto que, no currículo, a disciplina cumpre um importante papel na delimitação do campo epistêmico, enquanto guardiã da constituição histórica dos conceitos, das teorias, dos problemas, das discussões, das especificidades dos saberes com os quais se ocupa. Trata-se de um recorte necessário, inclusive, para que estudos de aprofundamento e expansão possam emergir. A sua ausência, nesse sentido, não indica senão também o fim de seus conteúdos.
Por isso, em termos gerais, a ênfase e a eleição de certas áreas prioritárias, na oferta e na escolha dos itinerários, se não expressam um equívoco epistemológico primário, revelam uma intenção ardilosa do projeto. No primeiro caso, sustentando-se somente no específico, são desconsideradas as articulações e vínculos constitutivos das áreas, por conseguinte a possibilidade da própria interdisciplinaridade. No segundo caso, exibe uma noção de formação reducionista e unilateral justamente pela privação de disciplinas com maior potencial crítico-reflexivo e capacidade relacionante, favorecendo, assim, a consolidação da lógica do capital e a atuação dinâmica do mercado, porque um sujeito com visão igualmente reduzida e parcial é mais facilmente manipulável e subserviente.
Outro problema da reforma diz respeito à oferta de Ensino Médio em Tempo Integral, respaldada pela alteração do artigo 24 da LDB:
A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no Ensino Médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017 (Brasil, 2017, p. 1).
A proposta de Ensino Médio em Tempo Integral suscita ao menos duas preocupações. A primeira, refere-se à realidade econômica dos Estados e também dos brasileiros; a segunda, aquilo que historicamente se tem entendido por educação integral. É verdade que, em um país com rendimento escolar deficitário e grande número de famílias de baixa renda, a escola de turno integral poderia ser uma alternativa para a qualificação do ensino e uma solução provisória para que alguns alunos pudessem fazer ao menos três refeições diárias. Ocorre que os Estados já alegam a falta de verbas para investimento em escolas de turno único, como serão mantidas escolas em tempo integral? Mesmo que no artigo 13º da Lei seja instituída a política de fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, prevendo o repasse de recursos e a sua adequação num período de 10 anos, não há garantias de sua efetivação, pois o déficit de investimentos na educação é grandioso, resultado de décadas de negligência.4
A segunda preocupação refere-se aos importantes avanços no debate sobre a Educação Integral no Brasil, pautado que sempre esteve numa ideia de formação que pudesse contemplar as múltiplas dimensões do humano. Exatamente aí encontramos uma das contradições da proposta emergente: ela defende um Ensino Médio em Tempo Integral com uma jornada de sete horas diárias, mas expressa uma visão reducionista de formação pela indicação de apenas três disciplinas obrigatórias e pela opção de um itinerário formativo dos cinco ofertados. Ou seja, a proposta abandona a busca por uma formação integral e diversificada para assumir uma visão produtivista e funcional de educação, curiosamente sem expressar qualquer proposta pedagógica que sustente tanto tempo de permanência dos alunos na escola.
Sabemos que o ensino profissionalizante pretende ser uma das ênfases ofertadas para o preenchimento dessa jornada diária integral. O questionamento que daí se segue novamente diz respeito às condições materiais e estruturais para tal oferta, bem como à disponibilidade de profissionais capacitados. O que, aliás, vem justificar a possibilidade de contratação de profissionais de “notório saber” para exercer a docência, pois, conforme o novo inciso V, artigo 61 da LDB, qualquer profissional graduado e que tenha apenas uma complementação pedagógica poderá lecionar no Ensino Médio. Nesse sentido, fica salvaguardado o estabelecimento de parcerias com o setor privado, uma vez que ao alterar a Lei nº 11494/2007, que regulamenta o FUNDEB e a Valorização dos Profissionais da Educação, a “Formação Técnica e Profissional” pode ser ofertada por meio de parcerias com o setor privado e o sistema de ensino servir-se do recurso público do FUNDEB para isso.
Não é a relevância da educação profissional que está em questão, e sim o modo como o projeto a concebe e o desdobramento atroz de sua efetuação: permite que o setor produtivo faça da escola uma grande extensão de sua gerência, cooptada para servir à produção de mão-de-obra em série com vistas ao atendimento de suas necessidades e o sucesso de seus empreendimentos. Ao fazer isso, o projeto cria a falsa ideia de que a escola ofertará possibilidades para a preparação profissional e que, diante delas, o aluno poderá fazer a sua escolha. Não revela, porém, que, antes, a escola já terá sido “escolhida”. Ofertará um reduzido número de cursos intencionalmente sugeridos pelo mercado, definidos segundo aquilo que o projeto denomina de “relevância dos contextos”. O aluno acreditará estar escolhendo, sem saber que se trata do seu futuro matematicamente premeditado por outros. Mecanismo perverso de uma sociedade, segundo Flickinger (2010, p. 179), que “[...] se baseia em um modelo social não orientado pelas necessidades do homem, senão pelas exigências do mercado financeiro, isto é, do capital”.
Qual, então, o sentido possível da profissionalização no Ensino Médio? Talvez a experiência e a aprendizagem de um modo digno pelo qual cada aluno poderá, futuramente, não apenas emancipar-se intelectualmente, atendendo uma das finalidades primordiais da educação desde Kant (2012), mas também materialmente, pela ampliação das condições de sua realização como sujeito autônomo e livre. Assim concebida, a educação profissional soma-se ao compromisso da escola com a humanização dos que chegam ao mundo, pois não ignora a dinamicidade e complexidade que lhes são características. O turno integral para isso seria perfeito: um ensino profissionalizante de competência reflexiva que caminha de mãos dadas com uma formação igualmente integral, sem sacrifícios ou privilégios de áreas e sem [...] a submissão do homem à lógica coisificadora da mercadoria [...]” (Flickinger, 2010, p. 179).
É justamente em oposição a uma noção de escola concebida como lugar de operatividade e funcionalidade instituída por esferas exteriores a ela mesma que Masschelein e Simons defendem uma escola como lugar de potencialidade e de igualdade hipotética (2015, p. 70-72). Sendo assim, o projeto em pauta pode perfeitamente ser acusado de tê-la sequestrado desse seu sentido de suspensão e de experiência do possível e de aliciá-la para servir ao mercado, aos projetos pessoais e familiares, aos sistemas avaliativos internacionais, ao recrutamento ideológico político, aos caprichos de uma elite que detém os meios de produção e carece de mão-de-obra disponível, barata e rapidamente substituível. Se, hoje, eventualmente a escola acaba assumindo funções que inicialmente não eram de sua competência, com esta proposta o seu papel funcional passa a ser sublinhado. Tudo estrategicamente pensado para maquiar a imagem do Brasil no exterior e criar falsas ilusões sobre si e para si mesmo.
Universalidade e Democracia em risco
O perfil da escola republicana define-se por três aspectos fundamentais: a laicidade, a publicidade e a universalidade. Apesar de o projeto de reforma do Ensino Médio afetar, direta ou indiretamente, cada um deles, este último é o ponto que sofre maior impacto. Por apresentar-se como o aspecto inegociável de toda educação republicana (Cossetin, 2017, p. 298), ao ser ignorado o princípio da universalidade, fica também comprometida a perspectiva democrática que orienta a educação brasileira desde a LDB 9.394/96, enquanto possibilidade de acesso irrestrito à educação de qualidade a todos. Assim, o que a atual reforma anuncia é a exclusão de um grupo social específico desse suposto ampliado processo formativo. Além disso, deixa importantes questões políticas inerentes à educação, tais como a discussão sobre quem somos e quem desejamos nos tornar, para serem definidas e respondidas pelas forças do mercado (Biesta, 2013, p. 43). Forças estas, segundo Biesta, que não hesitam em manipular-nos para assegurar seu próprio futuro, privando-nos da oportunidade de intervirmos democraticamente na renovação educacional da sociedade (2013).
Desde a Antiguidade grega a educação somava-se aqueles privilégios concedidos a uma minoria aristocrática. Não obstante as intenções educativas universalizadoras da modernidade, alguns campos de estudo e de cultura, tais como Filosofia, Artes, Línguas, demoraram até que pudessem ascender às massas. E quando o foram - ainda que questionemos a sua efetividade - o direito e acesso de todos a estas áreas trataram de ser extintos. Muito provavelmente não resistiria a um debate coletivo e público entre instituições públicas e privadas, profissionais da educação, especialistas da área, organizações da sociedade civil. Exatamente nesse ponto o projeto fere o princípio democrático republicano e se impõe autoritária e arbitrariamente.
Na nova proposta, Matemática, Língua Portuguesa e Inglesa permanecem obrigatórias, enquanto as demais disciplinas, tornadas áreas, passam a ser ofertadas ao modo de itinerários formativos, configurando-se em oferta restrita para as escolas públicas e opcionais para os alunos. Como as escolas privadas receberão a proposta, não é difícil antever: ofertarão todos os cinco itinerários - e não apenas dois como é o mínimo previsto para as escolas públicas - a fim de continuarem atendendo a diversidade de demandas formativas e não perderem clientela. Com isso, parece óbvio que a proposição do “novo” Ensino Médio nega o direito universalíssimo de uma Educação Básica comum a todos os alunos brasileiros. Hodiernamente, o currículo do Ensino Médio estabelece uma formação comum para os três anos e em todas as escolas públicas e privadas, enquanto o “novo” Ensino Médio prevê o uso de apenas metade desse tempo como medida a ser tomada apenas pelas escolas públicas. O prejuízo para estes estudantes será gritante, pois terão a sua formação básica reduzida em 50%.
É possível, assim, inverter o argumento do Ministério da Educação que, no tópico 19, alega que o Ensino Médio brasileiro estaria em retrocesso. Retrocesso há de vir com uma reforma que aborta o direito de crianças e jovens de receberem uma educação promotora das potencialidades do humano, sem restringi-las a priori. Retrocesso há de vir com uma proposta que promete algo que será incapaz de cumprir, pois anuncia a viabilidade de escolha por determinadas áreas de interesse do aluno, mas que não serão necessariamente ofertadas pelas escolas. Por exemplo, um aluno morador de uma pequena cidade, onde há uma única escola de Ensino Médio e cujo compromisso é o de ofertar apenas dois itinerários formativos ver-se-á obrigado a matricular-se em um deles e a cumprir com um itinerário que talvez não condiga com suas expectativas. E por que a escola não ofertaria os cinco itinerários? A resposta pode ser dada com outra pergunta: e por que o faria se ela está desobrigada de fazê-lo, especialmente se isto implicará em mais investimentos pela construção de laboratórios, compra de livros, contratação de professores?
A justificativa do MEC é de que a proposta de oferta de itinerários (por parte da escola) e de escolha (por parte dos alunos) conduzirá a um currículo mais atrativo e convergente com as demandas para um desenvolvimento sustentável:
Um novo modelo de Ensino Médio oferecerá, além das opções de aprofundamento nas áreas do conhecimento, cursos de qualificação, estágio e ensino técnico profissional de acordo com as disponibilidades de cada sistema de ensino, o que alinha as premissas da presente proposta às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância - Unicef (Brasil, 2016, p. 2).
A referida passagem reforça a preocupação do MEC em flexibilizar o currículo e alinhar as políticas educacionais brasileiras às orientações dos organismos internacionais - lembrando que a influência de tais organismos não é recente na proposição e implementação das políticas públicas brasileiras5. A Medida Provisória baseia-se no argumento capcioso de que o Brasil é o único país do mundo que tem apenas um modelo de Ensino Médio, com as treze disciplinas obrigatórias, enquanto, “em outros países, os jovens, a partir dos quinze anos de idade, podem optar por diferentes itinerários formativos no prosseguimento de seus estudos” (Brasil, 2016, p. 2).
Ora, como tal comparação com outros países pode ser considerada sem ressalvas se eles apresentam constituições históricas radicalmente distintas daquelas que configuraram o Brasil, sobretudo quanto ao lugar ocupado pela educação6? Raras vezes vimos a educação receber um lugar de destaque nos programas de governos brasileiros, mais raro ainda ser sua prioridade. Por isso é controversa uma proposta que desconsidere as características sociais, econômicas e culturais que diferenciam o Brasil desses países tomados como referência, como se um modelo de escolarização pudesse ser aplicado externamente ao nosso país sem a observação dos condicionantes históricos que o constituíram e continuam a determiná-lo.7
Do Ensino Médio à la carte à orfandade instituída
Além de todos os apontamentos efetuados até então há uma questão chave que, de longe, parece ser a mais nefasta do projeto. Concerne ao abandono declarado, institucionalizado e legalmente amparado de toda uma geração pela dispensa da responsabilidade adulta. Uma orfandade produzida, nomeadamente transvertida de “protagonismo juvenil”. Um Ensino Médio à la carte, para usar a expressão de Juremir Machado (2016), configurado pela livre escolha de itinerários formativos segundo os projetos de vida dos alunos (para aqueles que acham que têm ou, simplesmente, dizem tê-lo). Estamos diante daquilo que Gerd Biesta diz não passar de uma transação econômica,
[...] em que (1) o aprendente é o (potencial) consumidor, aquele que tem certas “necessidades”, em que (2) o professor, o educador ou a instituição educacional são vistos como o provedor, isto é, aquele que existe para satisfazer as necessidades do aprendente, e em que (3) a própria educação se torna uma mercadoria - uma “coisa” - a ser fornecida ou entregue pelo professor ou pela instituição educacional, e a ser consumida pelo aprendente (Biesta, 3013, p. 38).
O autor prossegue, afirmando que é justamente “essa a lógica que existe por trás da ideia de que as instituições educacionais e os educadores individuais devem ser flexíveis, que devem responder às necessidades dos aprendentes” (Biesta, 2013, p. 38). O próprio documento não deixa dúvida de que a promessa do “novo” Ensino Médio é tornar a escola mais aprazível e mais conformada com os desejos dos estudantes pela oferta de uma formação supostamente mais atenta aos aspectos cognitivos e socioemocionais, de uma escola mais ampla, significativa e menos inflada de disciplinas8 (Brasil, 2016). Ora, em que medida haverá ampliação da formação se, na prática, o que teremos é a sua redução pela eliminação de componentes curriculares, pela possibilidade de a escola definir certos itinerários a serem ofertados e de o aluno optar por um deles? O afunilamento e a precarização da formação são visíveis, com destaque para o seu ponto de partida: é muito provável que aquilo que o documento chama de “protagonismo juvenil” não passe de uma adesão irrefletida do estudante ao princípio do prazer e à lei do menor esforço, que resistem a qualquer argumento sobre necessidades, valores e exigências; ou de uma escolha sugerida (para não dizer imposta) pela lógica do mercado. Qual o jovem que optará por uma área que, no momento da escolha, lhe impute renúncias e sacrifícios? Ou, então, diante da necessidade, como resistirá ao argumento que alega ser a opção pelo itinerário “x” mais favorável à empregabilidade? O que nos garante que estas crianças e jovens sabem quais são suas necessidades e o que de fato desejam? Ora, quem é mesmo que define suas necessidades e produz seus desejos?
Há tempos vemos acirrar-se o debate sobre a quem compete a responsabilidade de educar as novas gerações: à escola ou à família. A disputa era até saudável, pois induzia educadores, especialistas e pais a discutirem sobre o que vem a ser educação, formação, responsabilidade, papeis, funções, apesar de não chegarem a nenhuma conclusão a termo. Com a proposta em vigor, o Estado resolve o impasse não apenas intervindo, mas aliviando a todos - inclusive a si mesmo - dessa importante incumbência, transferindo-a para os alunos. Como se a dinâmica educacional e a relação pedagógica não passassem, conforme Biesta (2013, p.39), de “transações econômicas” e os alunos de “clientes”. E mais, como se não fossem os adultos e, segundo o autor, os professores que devessem definir as suas necessidades, justamente onde residiria a sua competência profissional.
Dilemas, dramas e crises que naturalmente perturbam os alunos aos 17 ou 18 anos ao terem de decidir sobre seu futuro profissional, serão antecipados em dois anos. Destino trágico que se impõe a uma criança que, agora, terá de escolher por uma trajetória que não poderá deixar de trilhar: decidido o itinerário na área de Matemática, como optar por uma formação futura em Ciências Humanas? Estará impossibilitada de prosseguir nestas condições, pois lhe faltará a base mínima necessária.
Numa atitude audaciosa, o Estado assume expressamente o que, nas palavras de Maria Rita Kehl, parecia ser apenas uma hipótese: “a dificuldade que tanto os pais como os professores têm em sustentar o exercício mínimo da autoridade” (2017). Hannah Arendt já considerava que um dos equívocos da educação contemporânea é o de querer libertar as crianças da autoridade adulta, como se elas fossem “uma minoria oprimida” (2013, p. 240), desresponsabilizando os adultos da sua educação9. Nessa perspectiva, as crianças são abandonadas à imediatidade e urgência de suas demandas privadas ao invés de serem auxiliadas pelos adultos a ampliarem seus horizontes com vistas à construção de um mundo comum, que se estende para além do individual e do presente (Almeida, 2011). A denúncia arendtiana pode perfeitamente ser infligida às justificativas do projeto, a começar pelo argumento de que os jovens “poderão” decidir pelo o que mais lhes agrada e antecipar os contornos de seu destino. Um “poder” dissimulado, que omite obrigatoriedade e ônus, pois não será mais permitido às crianças e jovens simplesmente não decidir, retardar a decisão ou, ainda, experimentar a sensação, segundo Masschelein e Simons (2015), de “ser capaz de”.
O desamparo das novas gerações impossibilita qualquer tarefa educativa e nega a participação dos adultos na coautoria da constituição mundana, da exigência de terem de assinar embaixo diante do construído.
Uma criança cedo ‘liberada’ dos adultos não é uma criança livre, mas uma criança sob influência(s) [...] ambientais, midiáticas, grupais, comunitaristas, tribais. Os pares não são melhores que os pais. O problema é que o afastamento do adulto leva a não se inscrever no laço intergeracional, a não se situar em uma história [comum], a crer que um presente, de resto preservado, pode e deve renegar o passado odioso para fecundar um futuro radiante (Guillot, 2008, p. 27).
Tendo participado ativamente ou não na constituição do mundo, Arendt (2013, p. 239) afirma que “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação”. Nesse sentido, o ideal maior da educação, segundo a reforma, não é o da participação e o da renovação do mundo comum e público, mas o da obtenção de competências e habilidades para a produção numa sociedade de consumidores (Carvalho, 2017), uma vez que ela passa a organizar a experiência escolar segundo sua suposta funcionalidade social e deixa de concebê-la a partir de seu potencial formativo. Isto posto, podemos indagar com Carvalho (2017, p. 110), se “teria [o âmbito específico da experiência escolar] ainda algum sentido numa sociedade que trata o passado como obsoleto e o futuro ameaçador?”.
Evidentemente que tal interrogação não ganha ressonância no projeto do “novo” Ensino Médio, exatamente porque sua formulação pressupõe uma noção de formação e de educação escolar submissas à lógica instrumental e funcional em termos de conformação social, “[...] um processo que, à força de tentar imprimir à escola toda sorte de finalidades extrínsecas, dela parece retirar qualquer sentido intrínseco” (Carvalho, 2017, p. 111) - ainda que as finalidades extrínsecas também sejam motivos de felicidade para alguns. Exemplo disso podemos ler na matéria publicada por Helena Borges, intitulada Sob aplausos do mercado financeiro, empresários já lucram com reforma do Ensino Médio. A autora destaca a declaração do presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, que diz estar ocorrendo mudanças na política econômica, dentre as quais maior responsabilidade em termos de contas públicas e reformas trabalhista, da educação e dos gastos aprovados no final de 2016 (Borges, 2017).
Afinal, por que incluir a reforma do Ensino Médio na lista de medidas econômicas? E por que ela agrada tanto aos investidores internacionais? O grande deslize no pronunciamento do presidente do Banco Central está em citar uma mudança na política educacional como parte das políticas econômicas. Acabou revelando a lógica escondida no projeto da reforma, segunda a qual a educação deixa de ser concebida como um direito para ser encarada como um serviço a ser precificado.
Em outro artigo, Borges (2016) elenca uma lista dos convidados a “reformar” a educação brasileira, dentre os quais constam representantes de fundações10 autodenominadas apartidárias, mas ativamente envolvidas na criação e execução de políticas públicas - como no caso da reforma do Ensino Médio. O que pretendem as fundações ao “investirem” em educação, senão encontrar nela uma fonte para os seus rendimentos, em que o humano se revela tão somente em seu potencial produtivo?
Com efeito, por rezarem e serem co-autores da cartilha dos intelectuais do Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, etc., seus compromissos não são com o direito universal à educação básica, pois a consideram um serviço que tem que se ajustar às demandas do mercado. Este, uma espécie de um deus que define quem merece ser por ele considerado num tempo histórico de desemprego estrutural (Frigotto, 2016, p. 1).
A experiência escolar é reduzida a um meio cujo fim é a adaptação funcional dos indivíduos aos reclames de produção e consumo. Despojada de qualquer sentido intrínseco, ela fica à mercê da ilusão pelo “pathos do novo”11. Ilusão de que se nutrem as modernas teorias educacionais - com frequência constituídas de uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo - e cujo propósito é revolucionar todo o sistema educacional (Schütz, 2017). Sentem-se encorajadas a destituir, “como de um dia para o outro, todas as tradições e metodologias estabelecidas de ensino e de aprendizagem” (Arendt, 2013, p. 226). É quando o sentido público e político da educação cede lugar ao valor mercantil. Dito em outras palavras, é quando aquilo que deveria constituir-se em iniciação numa herança simbólica transverte-se em capital cultural privado e seu valor passa a residir em outras dimensões de existência, em geral, ligadas à produtividade e ao consumo de novos produtos. Trata-se de um recurso sedutor, que visa atrair as pessoas a partir de seus próprios interesses, encorajando-as a pensarem que as coisas apenas são dignas de serem aprendidas, experimentadas ou realizadas com dedicação se forem relevantes para algum fim extrínseco (Peters, 1979).
Para continuar pensando...
Visivelmente marcada por interesses mercadológicos, a reforma acentuou os contornos instrumentais do Ensino Médio e esvaziou esta etapa da Educação Básica - e, indiretamente, toda a educação - do sentido ético-político que ainda lhe restava, cujo fundamento primeiro se encontra na dependência necessária dos sujeitos em formação de outros sujeitos. Sem o reconhecimento desse vínculo, logo, do legado histórico-cultural transmitido pelas gerações que nos antecederam, não há educação possível, tampouco mundo comum.
Esta, aliás, é a primeira coisa que a escola transmite a cada um de nós: a de que não somos únicos, que nossa condição implica o intercâmbio significativo com outros parentes simbólicos que confirmam e possibilitam nossa condição (Savater, 2012). A escola, diferentemente do que quer o projeto, nos ensina que não somos os iniciadores da nossa história, que insurgimos num mundo marcado pelo humano de mil modos, expressos em tradições das quais somos resultado e herdeiros e nas quais imprimimos a marca de nossa ação.
Nessa dinâmica, cada sujeito só atingirá autonomia quando tiver dominado os movimentos executados por seus predecessores, conservados que são nas tradições vivas. Por isso soa muito estranho uma concepção de educação que coloque seus fins fora dela mesma, como se não fossem adquiridas pelo contato com aqueles que já as vivenciaram e que têm a paciência, o zelo, a competência e a responsabilidade suficiente para iniciar os outros. À medida que compreendemos que as relações de responsabilidade podem oferecer um passado para o futuro, podemos afirmar que o elo da continuidade das gerações e a durabilidade do mundo comum são mantidos. Somente assim os jovens terão a oportunidade de “[...] escolher suas companhias entre homens, entre coisas e entre pensamentos, tanto no presente como no passado” (Arendt, 2013, p. 222).
Inspirado em uma narrativa de Umberto Eco, Brayner (2008) alega que vir ao mundo é como entrar numa peça de teatro depois de ter começado. Para participar do enredo, isto é, para se tornar um ator no palco do mundo público, é necessário saber o que ocorreu antes, qual o sentido da encenação e quais as regras a serem seguidas. Isso não significa que a peça siga um roteiro predeterminado, mas demanda que se ofereça aos recém-chegados condições mínimas de se orientarem, de atuarem no mesmo palco, inclusive, de darem novos rumos à peça. Nesse contexto, a educação escolar situaria as crianças, mostrando-lhes o que ainda não tiveram oportunidade de conhecer. Caminho inverso daquele que está sendo traçado pela presente reforma. Com ela, os alunos (os recém-chegados) são largados à própria sorte e precisam criar - sabe-se lá como - o seu próprio enredo pelo enfrentamento de uma situação dramática e paradoxal. Primeiro, precisam obrigatoriamente optar por um roteiro (percurso formativo) predeterminado e reduzido em possibilidades quanto a sua oferta (lembrando que a escola não é obrigada a ofertar os cinco itinerários formativos, mas apenas dois). Segundo, precisam “livremente” escolher por um roteiro desconhecido, visto que boa parte das disciplinas e conteúdos previstos para o Ensino Médio são inéditos para o aluno, como é o caso de Filosofia, Sociologia, Química, Física, Biologia - isso se tais áreas e conteúdos forem realmente contemplados e trabalhados; ou serão induzidos a escolher por áreas que lhes são muito familiares e que, por assim o serem, conduzem a uma segurança que impede que se esteja exatamente diante de uma escolha.
Diante de todas as ponderações tecidas até aqui, uma pergunta não pode deixar de ser feita: afinal, a quem interessa tal reforma? A explícita articulação com a lógica produtivista e mercadológica, com apoio do setor privado, parecem não deixar dúvidas. A pressa e a indiscutibilidade, justificadas pela necessidade de implementação do projeto, conduziram à divulgação de uma proposta endereçada não aos pais e responsáveis, mas às crianças e jovens, sob o capcioso argumento de que, agora, “eles poderão escolher”. O suposto é de que terão plenas condições emocionais e intelectuais para isso. Não é o que parece. Crianças e jovens estão sendo constrangidos a tomar decisões prematuramente. Em síntese, oficialmente desamparados, tornados órfãos por decisão estatal e com amparo legal. Inteiramente responsáveis por suas escolhas e pelo seu destino, estão sendo precoce e irresponsavelmente conduzidos à maioridade. Velha discussão que não encetaremos aqui, mas que se iniciou com o voto facultativo e se revela reiteradamente nas intenções de redução da maioridade penal. Assim, o que se anuncia já é possível antever. Nesse perverso sistema competitivo e nada inclusivo, sobreviverão os mais rápidos e decididos, os menos reflexivos e questionadores, os mais adaptados e menos resistentes. Qualquer espírito pensante mais demorado, minucioso, atento, duvidoso ou mesmo hesitante ficará sem lugar ou será dragado pelo sistema.
Certo é que a impossibilidade de pensarmos, investigarmos e revisarmos o sentido da educação nos expõe a consequências aparentemente inocentes, no entanto escondem o perigo de levar-nos a compactuar com projetos como se tivéssemos participado de sua elaboração. Por ter sido efetuada sem a participação da população interessada, resta-nos conhecer, discutir e combater os retrocessos que a Lei aprovada trará para a educação brasileira, numa postura coerente de quem ainda pensa e responde pela educação dos recém-chegados.