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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.16 no.42 Vitória da Conquista  2020  Epub 16-Maio-2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i42.6249 

Artigos

FORMAÇÃO DE PROFESSORES CONTRA O DUALISMO DA PELE DE ONAGRO

TEACHER TRAINING AGAINST ONAGRO SKIN DUALISM

FORMACIÓN DE PROFESORES CONTRA EL DUALISMO DE LA PIEL DE ONAGRO

1Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Brasil rafaelrossied@gmail.com


RESUMO

Resumo: O presente texto é instrumento por meio do qual abordamos a importância dos conhecimentos clássicos na constituição da formação de professores. Para atingir este objetivo, partimos da dinâmica entre apropriação e objetivação a partir das contribuições da ontologia lukacsiana. Abordamos o conto “A Pele de Onagro” de Balzac como recurso para demonstrar a tese de que a apropriação dos conhecimentos clássicos numa orientação crítica ontológica é indispensável para uma ampliação e aprofundamento da concepção de mundo e de sociedade dos alunos e não o seu rebaixamento. Isto demanda um esforço teórico e ao mesmo tempo prático. Teórico no sentido de compreender os aspectos formativos dos seres humanos ao longo da dinâmica de reprodução social e, também, no que se refere à identificação das formas mais desenvolvidas do conhecimento. Ao mesmo tempo e indissociavelmente está o desafio prático em concretizar ações educacionais que possibilitem a elevação do nível intelectual dos alunos.

Palavras chave: Formação de Professores; Educação; Conhecimento.

ABSTRACT

Abstract: This text is an instrument by which we address the importance of classical knowledge in the constitution of teacher education. To achieve this goal, we start from the dynamics between appropriation and objectification from the contributions of Lukacsian ontology. We approach Balzac's tale “The Skin of Onager” as a resource to demonstrate the thesis that the appropriation of classical knowledge in an ontological critical orientation is indispensable for a broadening and deepening of the students' conception of the world and society and not its demotion. This requires a theoretical and practical effort. Theoretical in the sense of understanding the formative aspects of human beings along the dynamics of social reproduction and also with regard to the identification of the most developed forms of knowledge. At the same time and inseparably is the practical challenge in implementing educational actions that enable the elevation of the intellectual level of students.

Keywords: Teacher Traning; Education; Knowledge.

RESUMEN

Resumen: Este texto es un instrumento a través del cual abordamos la importancia del conocimiento clásico en la constitución de la formación docente. Para lograr este objetivo, partimos de la dinámica entre la apropiación y la objetivación a partir de las contribuciones de la ontología lukacsiana. Nos acercamos al cuento de Balzac "A Pelé de Onagro" como un recurso para demostrar la tesis de que la apropiación del conocimiento clásico en una orientación ontológica crítica es indispensable para ampliar y profundizar la concepción del mundo y la sociedad de los estudiantes y no su degradación. Esto requiere un esfuerzo teórico y práctico. Teórico en el sentido de comprender los aspectos formativos de los seres humanos a lo largo de la dinámica de la reproducción social y, también, con respecto a la identificación de las formas de conocimiento más desarrolladas. Al mismo tiempo e inextricablemente, existe el desafío práctico de implementar acciones educativas que permitan elevar el nivel intelectual de los estudiantes.

Palabras clave: Formación de profesores; Educación; Conocimiento

Introdução

O jovem Raphael de Valentin, personagem principal do conto “A Pele de Onagro” do escritor francês H. Balzac (1799-1850), se encontrava desiludido, confuso e com forte intenção de cometer suicídio. Num antiquário, recebe de presente de um senhor idoso um pedaço de couro de um animal oriental: o onagro. Todavia, não se trata de qualquer coisa sem menor importância. A pele de onagro, dizia o velho, era poderosíssima e carregava uma fatal dualidade:

Se me possuíres, possuirás tudo. Mas tua vida me pertencerá. Deus quis assim. Deseja, e teus desejos serão realizados. Mas regula teus desejos por tua vida. Ela está aqui. A cada desejo, decrescerei assim como teus dias. Queres-me? Toma-me. Deus te atenderá. Assim seja! (BALZAC, 2018, p. 57)

Ou seja: todos os desejos de Valentin se realizariam a custa da redução de seu tempo de vida. Riqueza? Poder? Fama? Glória? Tudo poderia ser alcançado, mas é preciso lembrar: há sempre um preço vital a ser pago. Balzac, já tinha, portanto, apreendido no século XIX, que numa sociedade em que o mercado domina e subjuga todos os interesses, os preços a serem pagos são sempre baseados no sacrifício da vida. Podemos lembrar ainda, nessa questão, a famosa frase do Prêmio Nobel de Economia de 1976, o economista Milton Friedman, quando afirmava que: “não existe almoço grátis no capitalismo”.

O escritor francês, em nossa compreensão, traduziu as tendências históricas de seu tempo, empregando o método realista, ao tratar de temas sociais em suas dinâmicas essenciais, em suas múltiplas determinações com a totalidade social. Nesse aspecto, do ponto de vista do debate educacional, compreendemos que a importância dos conteúdos escolares está intimamente relacionada às autênticas demandas formativas dos seres humanos.

Expliquem-nos melhor: argumentar a favor da valorização dos clássicos das artes, da filosofia e das ciências (exatas, biológicas e sociais) no âmbito dos conteúdos escolares não significa um desprezo pelas formas de ensino (SAVIANI, 2011). Compreendemos que há uma interação mútua, uma reciprocidade dialética entre conteúdos escolares e formas de ensino. Todavia, neste artigo, focalizaremos na questão dos conteúdos e a importância da transmissão dos conhecimentos mais elaborados pela humanidade, por meio da abordagem crítica ontológica (isto é, a crítica que se predisponha a agarrar e explicitar os fundamentos das questões analisadas). Isso se justifica, pois compreendemos que a formação de professores, de um ponto de vista humano-genérico e não mercadológico, deve se preocupar com o desenvolvimento intelectual e cultural dos alunos e não reforçar a segregação dos trabalhadores perante o patrimônio cognitivo, filosófico e estético amealhado pelo gênero humano ao longo da história.

A tese geral que estrutura este texto é a de que: os conteúdos escolares quando se baseiam nos conhecimentos clássicos e são transmitidos numa orientação crítica (confrontando as terias com a essência da realidade, este é, em nosso entendimento o sentido de crítica) ampliam a compreensão de mundo e na formação de professores. Nesse aspecto, são contra o dualismo da fantástica pele de onagro. A cada necessidade e desejo, a vida diminui no conto do escritor francês. Quando os alunos, por outro lado, se apropriam dos clássicos, o inverso ocorre: novas apropriações intelectuais geram demandas formativas mais elaboradas e este processo, ao longo da dinâmica formativa humana, possibilita a ampliação dos horizontes culturais e cognitivos e não o seu rebaixamento.

Para explicitar tal tese dividiremos este escrito em mais três partes: a seguir, abordamos as linhas gerais da reprodução social a partir das contribuições de Lukács (2013), pois este entendimento é fundamental para compreender a relação entre apropriação e objetivação. Posteriormente, avançamos para a explicitação da necessidade de transmissão das formas mais desenvolvidas de conhecimento na educação escolar a partir das elaborações de Duarte (2016). Por fim, nossas considerações finais a respeito deste polêmico e necessário debate.

Aspectos Gerais da Reprodução Social

A reprodução biológica, ou seja, a reprodução da natureza, visa sempre à “preservação de si e da espécie” e, em geral, “apenas mudanças radicais do meio ambiente produzem alguma transformação radical” (LUKÁCS, 2013, p. 160). A reprodução no ser social, por sua vez, mostra tendências qualitativas de transformação progressivas que encontram respaldo no fato de que o trabalho enquanto um pôr teleológico que desencadeia cadeias causais - como abordado no item anterior - comporta a possibilidade [dýnamis] “de produzir mais que o necessário para a simples reprodução da vida daquele que efetua o processo de trabalho” (LUKÁCS. 2013, p. 160).

Na reprodução social, portanto, há a criação e desenvolvimento de categorias e complexos existentes apenas no âmbito da humanidade e não no contexto do mundo animal ou vegetal, ou seja, exclusivos à esfera do ser social. Já demonstramos como que este processo possui seu momento predominante nos atos de trabalho e, agora, podemos avançar para explicitar a característica mais elementar dessa dinâmica: o afastamento das barreiras naturais. Vejamos com mais detalhe.

O ser social não pode existir sem o ser orgânico, ou seja, a humanidade, para continuar existindo, necessita da natureza para sua sobrevivência e reprodução, bem como o ser orgânico, por sua vez, necessita, irremediavelmente, do ser inorgânico para continuar se reproduzindo. Todavia, a maneira como os seres humanos passam a se relacionar com a natureza ao longo do processo histórico é, cada vez mais, mediada por relações sociais. Por exemplo: a fome continua a ser uma necessidade vital entre os homens, entretanto, a maneira como nós, hoje, saciamos a fome é qualitativamente mais social do que os seres humanos que viveram em sociedades primitivas. Poderíamos também pensar na maneira como lidamos com as intempéries da natureza: tsunamis, terremotos, furacões e incêndios continuam a assolar a humanidade, contudo, nós, hoje, lidamos com esses eventos naturais de uma maneira muito mais social, a tal ponto que estes mesmos eventos podem até acarretar na morte de alguns indivíduos, mas não, no fim da própria espécie.

Lukács afirma a este respeito que:

O afastamento da barreira natural, como consequência da socialização cada vez mais resoluta e pura do ser social, expressa-se sobretudo no fato de que esse princípio originalmente biológico da diferenciação acolhe cada vez mais momentos do social e estes assumem um papel predominante nela, degradando os momentos biológicos à condição de momentos secundários. (LUKÁCS, 2013, p. 162)

No trecho acima pode-se perceber que os eventos decisivos no que se refere ao ser social, dizem respeito, predominantemente, aos aspectos puramente sociais e não biológicos. Além disso, outro aspecto de igual importância é a vinculação que a educação possui frente a totalidade social, sendo esta o “momento predominante” na sua orientação mais geral.

Desse modo, no tocante à reprodução social, à medida que o trabalho se desenvolve, surgem outros complexos com funções sociais distintas das do trabalho no processo de reprodução social, porém que devem sua existência à capacidade humana de trabalhar (dependência ontológica de que falamos anteriormente). Estes novos complexos sociais em interação recíproca entre si, apresentarão uma síntese e esta síntese será o germe para a formação da totalidade social que, por seu turno, desempenhará papel de momento predominante ao determinar os limites e as possibilidades de orientação e atuação de cada complexo.

Avançando em nossa análise, na segunda parte (“Complexo de complexos”) do capítulo dedicado à reprodução social de sua Ontologia, Lukács afirma que o homem, agora, uma vez efetuado o salto ontológico do ser orgânico ao ser social, passa a se relacionar com a natureza, com outros seres humanos e até consigo com o “médium da sociedade”, de modo que o homem não aceita passivamente as interferências do meio ambiente, mas sim, “reage ativamente” (LUKÁCS, 2013 p. 204). Novamente neste aspecto, o trabalho é tão somente ponto de partida, pois não se trata de simplificar tudo à esta categoria. Ao contrário, com o desenvolvimento dos atos do trabalho, novos complexos se originam e, desse modo, “surgem totalidades complexas, que propiciam a mediação entre homem e natureza de maneira cada vez mais abrangente, cada vez mais exclusivamente social” (LUKÁCS, 2013, p. 205). Isso tem como efeito, o surgimento de sociedades mais complexas e socialmente ricas/mediadas, como, ao mesmo tempo, individualidades mais ricas socialmente e complexas em suas várias articulações.

Toda esta dinâmica evidencia o caráter do trabalho enquanto “fenômeno originário” na formação do ser social. Justamente por isso que “o trabalho, já como ato do homem singular, é social por sua essência; no homem trabalhador, consuma-se a sua autogeneralização social, a elevação objetiva do homem particular para a generidade” (LUKÁCS, 2013, p. 207). Em suma, “o trabalho, até o mais primitivo, cria continuamente o novo, tanto subjetiva como objetivamente” (LUKÁCS, 2013, p. 215).

Um ponto de fundamental importância para nossa reflexão no tocante à educação, no que diz respeito ao trabalho e à reprodução social, se refere ao papel da consciência. Vimos, no item anterior, como que a consciência humana possui uma relevância muito grande para a criação da vida social e o desenvolvimento do pôr teleológico. Isto, contudo, não deve ser entendido no sentido de uma supervalorização desmedida da consciência. Por outro lado: toda consciência deve refletir, captar, compreender e analisar elementos da própria realidade objetiva para nela intervir. Abandonar do horizonte de análise a realidade histórica tal como ela é em si mesma, é caminhar a largos passos para um idealismo que tenta exigir da objetividade aquilo que ela não pode oferecer.

Também aqui, Lukács aponta a consciência como órgão responsável pela preservação e reprodução do ser social. Sua função social “consiste mesmo em converter o que foi adquirido no passado em base para um desenvolvimento subsequente, para uma solução de novas questões postas pela sociedade” (LUKÁCS, 2013, p. 215). Importante, em igual medida, é notar que as novas alternativas a serem colocadas perante os indivíduos não emanam exclusivamente da própria consciência, mas sim, “é o próprio desenvolvimento objetivo, socioeconômico da sociedade que confronta os seus membros com novas decisões alternativas ou encerra seu horizonte no que já foi alcançado” (LUKÁCS, 2013, p. 216). Esta é uma reflexão indispensável para não supervalorizarmos a educação com tarefas que não pode realizar como as que se fazem presentes nos discursos tão aplaudidos de “conscientização”, quanto para não menosprezá-la de modo pessimista e acrítico.

Na parte 03, com o título de “Problemas da prioridade ontológica” do capítulo aqui em análise, o filósofo húngaro apresenta elaborações que, ao lado do papel da consciência no processo de reprodução social, permitem refletir sobre a educação de modo racional e historicamente crítico. Para nosso autor “a reprodução física do homem enquanto ser vivo biológico é e permanece o fundamento ontológico de todo e qualquer ser social.” (LUKÁCS, 2013, p. 253). Este raciocínio, entretanto, não possui caráter algum de reducionista ou economicista. Ao afirmar que a reprodução biológica e a maneira como os homens se relacionarão entre si no processo de transformação da natureza, é o “fundamento ontológico”, Lukács, deixa claro, contra qualquer tipo de postura idealista ou escolástica, que para produzir a vida social, os seres humanos contraem determinadas relações sociais e são estas relações sociais de produção que permitirão o desenvolvimento das possibilidades objetivas tanto para a orientação geral da sociedade, quanto para a formação das próprias individualidades.

Obviamente que estas relações sociais de produção não são as únicas a interferirem neste processo, todavia, desempenham papel de “momento predominante”, por garantirem as premissas objetivas que garantirão o funcionamento posterior dos demais complexos sociais. Ou seja, estamos diante do “caráter do ser econômico, da atividade econômica enquanto momento predominante diante de todos os demais complexos sociais” (LUKÁCS, 2013, p. 269).

O processo de reprodução social, portanto, exerce influência sobre as individualidades humanas, uma vez que a totalidade social historicamente determinada é o momento predominante na orientação de cada complexo social particular, porém, isto não significa uma influência rígida e fechada. Estas influências sociais, segundo nosso autor, “não são determinações definitivas, fixadas de uma vez por todas, mas possibilidades, cuja índole específica de se tornarem realidades de modo nenhum pode ser concebida independentemente do seu processo de desenvolvimento”, isto é, “do devir homem socialmente efetuado do homem singular” (LUKÁCS, 2013, p. 295).

Importante assinalar que a reprodução social sofre impacto da existência das classes sociais com interesses antagônicos. Os complexos sociais como o trabalho, a educação, a arte, a ciência etc. continuam a existir, todavia, com uma série de mediações, também interferem e sofrem interferência da dinâmica das classes sociais. Balzac representa muito bem esse processo ao ponderar em seu conto “A Pele de Onagro” que:

O homem esgota-se por dois atos instintivamente realizados que secam as fontes de sua existência. Dois verbos exprimem todas as formas que essas duas causas de morte possuem: Querer e Poder. Entre esses dois termos da ação humana, há uma outra fórmula que é a dos sábios, e devo a ela a minha felicidade e longevidade. Querer nos queima e Poder nos destrói, mas Saber deixa o nosso frágil organismo num perpétuo estado de calma. Assim o desejo, ou o querer, está morto em mim, morto pelo pensamento; o movimento, ou o poder, decidiu-se pelo funcionamento natural de meus órgãos. Em poucas palavras: coloquei minha vida não no coração que se cansa, não nos sentidos que se embotam, mas no cérebro que não se desgasta e que sobrevive a tudo. Nenhum excesso machucou minha alma nem meu corpo. (BALZAC, 2018, p. 58)

A reflexão sobre a reprodução social é indispensável para o debate educacional. Não se trata de uma reprodução, como vimos, que repõe sempre o mesmo. No âmbito da humanidade a reprodução social se realiza por rupturas, continuidades e, sempre, a produção do novo: novos atos de trabalho, novas necessidades sociais, novos conhecimentos, novas habilidades, novas possibilidades de intervenção na realidade objetiva etc. O desenvolvimento e complexificação das sociedades e das individualidades nos evidenciam a importância do processo de transmissão e assimilação, na formação de professores, dos conhecimentos elaborados historicamente perante os seres humanos na educação escolar.

A Importância dos Conteúdos Escolares na Formação de Professores

Precisamos, enquanto professores, refletir sobre os conteúdos escolares. O processo educativo é um processo de formação. Cabe a pergunta: investiremos esforços em qual direção de desenvolvimento? No sentido da manipulação e do relativismo irracionalista ou no sentido humano-genérico, a partir daquilo que de mais elaborado existe intelectualmente?

Inegavelmente a sociedade contemporânea é distinta daquela do século XIX, todavia, a essência de exploração que rege a dinâmica social ainda persiste e, inclusive, nossa crise é mais aguda. O realismo balzaquiano consegue apreender as mudanças essenciais na sociedade ao argumentar em seu conto que: “[...] havia todo o abismo que separa o século XIX do XVI. Este preparava, rindo, uma destruição, enquanto o nosso ri em meio às ruínas” (BALZAC, 2018, p. 72).

Trata-se, aqui, de retomar dois importantes alertas de Duarte (2016): “Reproduzir a função social de um objeto ou fenômeno cultural é colocar em movimento a atividade em repouso que existe como resultado dos processos de objetivação existentes na prática social” (DUARTE, 2016, p. 15). Isto significa que a reprodução social é sempre dinâmica e nunca a mesma, como abordamos anteriormente.

O segundo alerta de Duarte (2016) diz respeito ao fato de que “no caso dos alunos, os conhecimentos apreendidos podem lançar sementes que venham a germinar em luta com ideias que os alunos tenham em relação ao mundo” (DUARTE, 2016, p. 15). Ou seja, o estudo da reprodução das sociedades como o processo humano-genérico de incessante produção do novo coloca-nos o desafio de, na educação escolar, contribuir com a transmissão das objetivações intelectuais mais desenvolvidas que a humanidade produziu, como procedimento essencial para que os alunos possam confrontar aquilo que pensam sobre o mundo, com aquilo que o mundo de fato é. É preciso retomar o entendimento na formação de professores de que:

Os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa. Parece-me, pois, fundamental que se entenda isso e que, no interior da escola, nós atuemos segundo essa máxima: a prioridade dos conteúdos, que é a única forma de lutar contra a farsa do ensino. Por que esses conteúdos são prioritários? Justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação política das massas. Se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da seguinte forma: o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação. (SAVIANI, 2008, p. 45, grifos nossos)

A elaboração de Saviani (2008) é esclarecedora neste sentido. Não significa desprezar as formas e métodos de ensino. Todavia, trata-se de reconhecer a prioridade ontológica dos conteúdos escolares elaborados. A partir deste aspecto nuclear que as outras discussões se articulam e não de modo inverso. A prioridade ontológica, no processo formativo dos professores, cabe aos conteúdos escolares elaborados a partir das formas mais altas de objetivações científicas, filosóficas e estéticas. Não são quaisquer conteúdos que servem à educação escolar, se estivermos baseados numa postura crítica e ontológica. Importa contribuir para transmitir as objetivações intelectuais mais elaboradas e eruditas do gênero, pois estes conteúdos contribuem com o desenvolvimento e a promoção dos alunos. Esta é a meta a atingir. Este objetivo é lutar contra a avalanche que a sociedade impõe. O próprio Balzac apreendeu bem como a sociedade regida pelo mercado trata os seres humanos:

Todo aquele que sofre no corpo ou na alma, que não tem dinheiro ou poder, é um pária. Que fique no seu deserto; se transpuser esses limites, encontrará o inverno em toda parte: frieza de olhares, frieza de maneiras, de palavras, de coração; e será feliz se não colher o insulto onde esperava ver brotar um consolo. Moribundos, fiquem em seus leitos abandonados! Velhos, permaneçam sozinhos em seus lares frios! Pobres moças sem dote, gelem e ardam nos seu sótãos solitários! Se a sociedade tolera uma infelicidade, não é para moldá-la em seu uso próprio? Não é para tirar proveito dela, sujeitá-la, pôr-lhe um freio, uma sela, montá-la, fazer dela um prazer? Mal-humoradas damas de companhia, componham rostos alegres! Suportem os gases de sua pretensa benfeitora, carreguem seus cachorros! Rivais de seus cães de raça ingleses, divirtam-na, adivinhem os pensamentos dela e depois se calem! E você, rei dos criados sem libré, parasita descarado, deixe o caráter em casa; faça a digestão como faz seu anfitrião, chore com ele, ria com ele, considere suas piadas engraçadas; se quiser falar mal dele, aguarde sua queda. É assim que a sociedade honra a infelicidade: matando-a ou expulsando-a, aviltando-a ou castrando-a. (BALZAC, 2018, p. 248-249)

Não se trata de resumir tudo aos conteúdos, todavia, sem a reflexão sobre eles e em qual orientação ideológica (como iremos discutir no próximo capítulo) o ensino se dará, não ocorrerá um processo de transmissão e apropriação que coadune com os interesses essenciais dos trabalhadores. É isto exatamente o que a formulação de Saviani (2008) problematiza:

Nesse sentido, eu posso ser profundamente político na minha ação pedagógica, mesmo sem falar diretamente de política, porque, mesmo veiculando a própria cultura burguesa, e instrumentalizando os elementos das camadas populares no sentido da assimilação desses conteúdos, eles ganham condições de fazer valer os seus interesses, e é nesse sentido, então, que se fortalecem politicamente. Não adianta nada eu ficar sempre repetindo o refrão de que a sociedade é dividida em duas classes fundamentais, burguesia e proletariado, que a burguesia explora o proletariado e que quem é proletário está sendo explorado, se o que está sendo explorado não assimila os instrumentos pelos quais ele possa se organizar para se libertar dessa exploração. Associada a essa prioridade de conteúdo, que eu já antecipei, parece-me fundamental que se esteja atento para a importância da disciplina, quer dizer, sem disciplina esses conteúdos relevantes não são assimilados. Então, eu acho que nós conseguiríamos fazer uma profunda reforma na escola, a partir de seu interior, se passássemos a atuar segundo esses pressupostos e mantivéssemos uma preocupação constante com o conteúdo e desenvolvêssemos aquelas fórmulas disciplinares, aqueles procedimentos que garantissem que esses conteúdos fossem realmente assimilados. (SAVIANI, 2008, p. 45, grifos nossos).

Cada professor, uma vez que entenda o processo de reprodução social historicamente efetivado pela humanidade, possui uma responsabilidade no modo como seus alunos compreenderão este mesmo processo histórico: ou irão contribuir em suas aulas com a transmissão de conteúdos escolares elaborados ou irão vulgarizar as reflexões e, dessa forma, auxiliar as classes dominantes no cerceamento do conhecimento erudito aos trabalhadores. A ciência, por exemplo, na atualidade, possui enormes avanços e desenvolvimentos, contudo, todo este arsenal científico, de modo geral, é subordinado aos interesses políticos e econômicos. Balzac conseguiu traduzir esta constatação em seu conto “A Pele de Onagro”, por exemplo, ao exprimir que: “- As cátedras dos professores não foram feitas para a filosofia, mas sim a filosofia para as cátedras! Ponha os óculos e leia a orçamento” (BALZAC, 2018, p. 80). Mais uma vez, também aqui, Saviani (2008) apresenta contribuições indispensáveis:

Exemplificando: um professor de história ou de matemática, de ciências ou estudos sociais, de comunicação e expressão ou de literatura brasileira etc. têm cada um uma contribuição específica a dar, em vista da democratização da sociedade brasileira, do atendimento dos interesses das camadas populares, da sociedade brasileira, do atendimento aos interesses das camadas populares, da transformação estrutural da sociedade. Tal contribuição consubstancia-se na instrumentalização, isto é, nas ferramentas de caráter histórico, matemático, científico, literário etc., cuja apropriação o professor seja capaz de garantir aos alunos. Ora, em meu modo de entender, tal contribuição será tanto mais eficaz quanto mais o professor for capaz de compreender os vínculos da sua prática com a prática social global. Assim, a instrumentalização desenvolver-se-á como decorrência da problematização da prática social, atingindo o momento catártico que concorrerá na especificidade da matemática, da literatura etc., para alterar qualitativamente a prática de seus alunos como agentes sociais. Insisto neste ponto porque, em geral, há a tendência a desvincular os conteúdos específicos de cada disciplina das finalidades sociais mais amplas. Então, ou se pensa que os conteúdos valem por si mesmos sem necessidade de referi-los à prática social em que se inserem, ou se acredita que os conteúdos específicos não têm importância colocando-se todo o peso na luta política mais ampla. Com isso dissolve-se a especificidade da contribuição pedagógica, anulando-se, em consequência, a sua importância política. (SAVIANI, 2008, p. 64, grifos nossos)

Podemos apreender, claramente, uma elaboração respaldada no processo de reprodução social. Os conteúdos escolares, na formação de professores, de cada disciplina precisam, numa abordagem crítica ontológica, precisam ser articulados à prática social global, ou seja, à totalidade social construída historicamente. Os conteúdos escolares são atravessados por lutas ideológicas, por antagônicas concepções metodológicas que expressam, por seu turno, distintas concepções de mundo, de sociedade e de ser humano. Nesse sentido, concordo com o entendimento de que a “identificação dos conteúdos escolares é uma tomada de posição nesse embate entre concepções de mundo não apenas diferentes, mas fundamentalmente conflitantes entre si” (DUARTE, 2016, p. 95). A crítica ontológica trabalha com a realidade em seu processo histórico de desenvolvimento e complexificação (LUKÁCS, 1981). Nesse aspecto:

Ora, a escola precisa ir além do cotidiano das pessoas e a forma de ela fazer isso é por meio da transmissão das formas mais desenvolvidas e ricas do conhecimento até aqui produzido pela humanidade. Não interessa, porém, à classe dominante que esse conhecimento seja adquirido pelos filhos da classe trabalhadora. Infelizmente há intelectuais marxistas que inadvertidamente acabam fazendo o jogo da burguesia ao desvalorizarem a educação escolar ou preconizarem uma escola descaracterizada, na qual a transmissão do conhecimento ocupa um papel secundário, subordinado às demandas da vida cotidiana dos alunos. (DUARTE, 2012, p. 155)

Os professores que se predisporem a trabalhar com a transmissão dos clássicos numa orientação crítica ontológica, terão suas próprias individualidades modificadas e mais possibilidades de se conectarem com o gênero humano de modo positivo, para além das alienações que a realidade social nos coloca. Isto ocorre, pois a grande arte, a ciência, a autêntica filosofia, por exemplo, permite o contato de nossa individualidade com as grandes questões da humanidade, entendendo os fenômenos sociais em sua essência, permitindo nos enxergarmos como membros da humanidade. É relevante esta compreensão, já que os conhecimentos científicos, por exemplo, em muitos casos, entram em contradição com aquilo que a aparência cotidiana dos fenômenos nos mostra. O próprio Balzac em seu conto apreende esta constatação: “No fundo da medicina há negação, como em todas as ciências” (BALZAC, 2018, p. 245). Desse modo, é preciso compreender que:

O ensino dos conteúdos escolares em nada se assemelha, portanto, a um deslocamento mecânico de conhecimentos dos livros ou da mente do professor para a mente do aluno, como se esta fosse um recipiente com espaços vazios a serem preenchidos por conteúdos inertes. O ensino é transmissão de conhecimento, mas tal transmissão está longe de ser uma transferência mecânica, um mero deslocamento de uma posição (o livro, a mente do professor) para outra (a mente do aluno). O ensino é o encontro de várias formas de atividade humana: a atividade do conhecimento do mundo sintetizada nos conteúdos escolares, a atividade de organização das condições necessárias ao trabalho educativo, a atividade de ensino pelo professor e a atividade de estudo pelos alunos. (DUARTE, 2016, p. 59)

Sem o conhecimento elaborado, nossas intervenções na prática social global tenderão a continuar inócuas. Isso quer dizer que para uma transformação positiva da realidade, em primeiro lugar, é preciso conhecê-la em sua estrutura mais íntima, em sua lógica própria e em seu movimento histórico dinâmico e contraditório. Isso, por sua vez, em razão do fato de que a “arte, a ciência e a filosofia sintetizam a experiência histórico-cultural constituindo-se em mediações que aumentam as possibilidades de domínio, pelos seres humanos, das circunstâncias externas e internas a partir das quais eles fazem sua história” (DUARTE, 2016, p. 44).

Nossa sociedade dominada pelo mercado, pelo imperativo do lucro e pelo “bem dos negócios”, rebaixa em cada um de nós a humanidade que poderíamos desenvolver e ampliar. Nossa preocupação primeira acaba se tornando sempre a questão financeira e, em segundo lugar, talvez, outras demandas formativas como a arte e o conhecimento. Tal como o estudante de direito no conto “A Pele de Onagro”: “O que faz esse aí para ser tão rico?”, diz um pobre estudante de direito que, sem dinheiro, não podia ouvir os mágicos acordes de Rossini” (BALZAC, 2018, p. 200).

Os parâmetros ontológicos (isto é, históricos e essenciais) para o reconhecimento dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos mais desenvolvidos, que precisam ser transmitidos na educação escolar por meio dos conteúdos escolares são: 1) Tratam-se de obras e conhecimentos que ficam no plano da imediaticidade fenomênica ou permitem avançarmos para a reflexão da essência do real?; 2) Tratam-se de obras e conhecimentos que deturpam a humanidade presente em cada indivíduo (preconceitos de todo o tipo, por exemplo) ou possibilitam a conexão positiva, para além das alienações, dos indivíduos com a trajetória do gênero humano?; 3) Tratam-se de obras e conhecimentos que naturalizam as relações sociais ou apreendem e explicitam o movimento histórico em suas contradições? e; 4) Tratam-se de obras e conhecimentos que explicitaram as grandes questões do gênero humano ou se conformam em contribuir para a adaptação, o conformismo e a aceitação perante os indivíduos? O objetivo, nesta perspectiva que trabalhamos a formação de professores, é o desenvolvimento cultural e intelectual dos alunos. É preciso superar romantismos idealistas e conseguir traduzir a realidade social e natural como ela é em sua essência em seu movimento mais íntimo e, para isso, a dúvida é fundamental, já que a “chave de todas as ciências é, sem a menor dúvida, o ponto de interrogação; devemos a maior parte das grandes descobertas ao “Como? ” (BALZAC, 2018, p. 253).

Considerações Finais

O velho, no antiquário, ao presentear Raphael com a pele de onagro, afirma que: “Querer nos queima e Poder nos destrói, mas Saber deixa o nosso frágil organismo num perpétuo estado de calma” (BALZAC, 2018, p. 58). Temos aqui, nesta obra, mais um exemplo da compreensão de Balzac sobre as limitações e os progressos que a sociedade capitalista trouxe. Aqueles que querem sucesso acabarão com suas ilusões perdidas (aliás, expressão esta que dá título a outro de seus romances) e os que persistirem no caminho da integridade, provavelmente, terminarão no isolamento socialmente imposto. Aliás, “[...] havia todo o abismo que separa o século XIX do XVI. Este preparava, rindo, uma destruição, enquanto o nosso ri em meio às ruínas”. (BALZAC, 2018, p. 72).

O que demonstramos com o presente texto é que na formação de professores, os conteúdos escolares, baseados nos conhecimentos clássicos e na crítica ontológica, são indispensáveis para as demandas formativas intelectuais dos alunos. Obviamente os obstáculos para a concretização desta tarefa são enormes e inúmeros. O conto de Balzac, além de questões filosóficas que nos convidam a refletir o destino humano em meio ao turbilhão da sociedade, também apresenta inúmeras lições sobre o papel do conhecimento contra as ilusões e os romantismos idealistas.

Pretender socializar os conhecimentos clássicos em toda a educação escolar é não compreender como se dá a relação entre esta sociedade e a dimensão educacional. Todavia, pequenas ações educativas são passíveis em serem realizadas, numa premissa humanamente emancipatória. Para tanto, os conhecimentos elaborados das artes, das ciências e da filosofia, transmitidos numa orientação crítica ontológica, são da mais absoluta importância para a ampliação da compreensão de mundo e de sociedade. São fundamentais para não cairmos no perverso dualismo da pele de onagro: desejos espontâneos e um custo vital.

REFERÊNCIAS

BALZAC, H. A pele de onagro. Porto Alegre - RS: L & PM, 2018. [ Links ]

DUARTE, N. Os conteúdos escolares e a ressureição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo. Campinas - SP: Autores Associados, 2016. [ Links ]

LUKÁCS, G. Il Lavoro. In: Per una Ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, 1981, p. 11-131. (Tradução Mimeo.de Ivo Tonet, 145p.) [ Links ]

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social - II. São Paulo: Boitempo: 2013. [ Links ]

SAVIANI, D. Escola e Democracia. Campinas - SP: Autores Associados, 2008. [ Links ]

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª ed. Campinas: Autores Associados, 2011. [ Links ]

Recebido: 11 de Fevereiro de 2020; Aceito: 30 de Julho de 2020

Rafael Rossi Pós-Doutor em Educação pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP/FCT), Presidente Prudente - SP. Docente e pesquisador na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande - MS.

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