1 Panorama introdutório
O debate entre as posições agregativas e deliberativas constitui o topos ou o principal eixo em torno do qual se organizaram as discussões mais fundamentais da teoria democrática nas últimas décadas. Duma parte, os modelos agregativos caracterizam-se pela proposição duma agenda de pesquisa positiva, ou seja, estão interessados no exame axiologicamente neutro do funcionamento das regras e dos mecanismos de tomada de decisão coletiva empregados nos processos democráticos cuja função é agregar preferências tomadas como um dado quase naturalizado e exógeno ao processo político.1 Doutra, os modelos deliberativos apresentaram-se, pelo menos inicialmente, como teorias eminentemente normativas, ou seja, estavam interessados em avaliar os fundamentos da legitimidade democrática para além da simples análise do voto enquanto expressão dum ordenamento individual de preferências fixas, das regras e dos mecanismos de agregação e, portanto, sustentar uma justificação mais robusta da democracia.2 Para tanto, seria fundamental pôr em disputa as condições dos processos de formação das preferências, deslocando o foco das teorias democráticas do voto para o momento que o antecede, ou seja, atentar para os procedimentos deliberativos a partir dos quais são (trans)formadas as opiniões e vontades dos cidadãos. Nesse caso, a concepção de legitimidade das decisões políticas passa a ser orientada por um ideal de justificação pública esteada em razões.3
Não suficiente a oposição entre concepções positiva e normativamente orientadas, a tensão entre modelos agregativos e deliberativos está atravessada por uma primeira e mais fundamental questão acerca de como cada um deles encara a natureza das categorias de análise do funcionamento dos processos democráticos. Trata-se da conhecida distinção entre as teorias que interpretam a política à luz do mercado e do fórum (ELSTER, 2007). Se, duma parte, aquelas que interpretam a democracia à luz do fórum colocam como norte regulador dos processos decisórios o consenso,4 doutra, os modelos agregativos assimilam a lógica do mercado e, portanto, pensam a tomada de decisão coletiva como o resultado espontâneo, não-intencional e não-refletido duma miríade, ou agregado, de decisões individuais, quer aquelas de matriz elitista à la Schumpeter, quer as de matriz economicista à la Downs.5 Nesse caso, identificam-se teorias agregativas e mercadológicas da política por seu viés privatístico-instrumental da democracia ao passo que ambas borram a fronteira entre as categorias a partir das quais examinam o fenômeno político e àquelas forjadas pela ciência econômica para o exame do fenômeno de mercado numa interpretação muito específica deste termo.6 Entretanto, uma teoria agregativa da decisão democrática conduz-nos necessariamente a uma concepção economicista da política? Ou, por outra, subjaz a uma concepção agregativa uma interpretação mercadológica do arquétipo do social, uma compreensão que apreende o arranjo social enquanto o resultado espontâneo e não-intencional duma série de decisões individuais? E, mais, haveria vantagens metodológicas (ganhos explicativos e/ou preditivos) em observar as interações políticas isomorficamente aos processos desenvolvidos no mercado econômico e a partir dos conceitos forjados na ciências econômicas?
Em que pesem os avanços relevantes proporcionados pelas teorias da escolha racional e pelas teorias realistas ao estilo schumpeteriano, quero crer que tais abordagens enfrentam limitações. No limite, como demonstrado pelo paradoxo da ação coletiva em sua versão democrática (o paradoxo do eleitor), tais construções teóricas são incapazes de explicar a motivação daquele ato político fundamental para os modelos, quiçá o único: o voto. Nas sessões a seguir, busco apresentar possíveis relações entre o arquétipo do mercado (ROSANVALLON, 1999) ou o que chamei, seguindo Élie Halévy (1972), princípio da harmonia natural dos interesses e as teorias do mercado político, em especial o modelo downsiano. Minha hipótese é a de que tais paradoxos espelham justamente a incapacidade da representação da sociedade como mercado - ou do princípio da harmonia natural dos interesses - oferecer- nos uma adequada explicação a respeito da natureza da sociabilidade humana, como os próprios autores liberais do século XVIII reconheciam. Não é fortuito, e Halévy esforça-se em marcar, que se contrapunha ao princípio da harmonia natural, àquele da harmonia artificial dos interesses, como se pode rastrear nas obras de Adam Smith ou dos utilitaristas do XIX. Eis a fronteira que passa a ser ignorada pelos autores da teoria da escolha pública uma vez que não veem contradição entre os princípios da mão invisível e o sufrágio universal:
o princípio da harmonia natural dos interesses governa ambos de modo idêntico [sufrágio e sistema de preços]. O sufrágio universal produz automaticamente decisões consensuais e unânimes, porque seu fim é determinar o preço (ou seja, a taxa) do imposto e este preço, como todos os demais, encontrar necessariamente, por meio do mecanismo do mercado político, seu ponto de equilíbrio. Votar é, em suma, exprimir uma demanda sobre o mercado do imposto. Essa superação do antagonismo entre princípio de maioria e princípio de unanimidade política implica, portanto, limitar o campo político à gestão das atividades necessárias à perseguição do interesse econômico de cada um dos indivíduos (infraestrutura, educação, etc.). A política se reduz à fiscalidade. (ROSANVALLON, 2002, p. 181-182).7
Contudo, não se trata de sugerir que os modelos mercadológicos ou da escolha pública estão supondo que há, ou deveria haver (vale lembrar que se tratam de propostas positivas), uma espécie de reabsorção e identificação do corpo governamental, enquanto representantes do Estado, no plano do tecido social. Em princípio, tal como se apresentam, não haveria em seus textos um projeto normativo de abolição do Estado. Tratar-se-ia, tão somente, duma proposta metodológica de exame do fenômeno eleitoral que, no entanto, como tentarei demonstrar, revela-se limitada justamente por elidir as categorias propriamente políticas de análise dos processos democráticos.
2 Os arquétipos do social e o problema da decisão coletiva
Ao responder à questão Se a vontade geral pode errar no Contrato Social, II, 3, Jean-Jacques Rousseau apresenta-nos uma tese no mínimo controversa para um autor considerado por muitos como o “teórico por excelência da participação política” (PATEMAN, 1992, p. 32), cuja obra representa a pedra de toque dos democratas radicais na modernidade (SHAPIRO, 2003).8 Ali, lemos o seguinte: “Se quando o povo suficientemente informado delibera, os Cidadãos não tivessem nenhuma comunicação entre si, do grande número das pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa”.9
Por óbvio, sugerir que essa passagem possui um caráter controverso pressupõe algumas assimilações prévias, pois não se está a excluir ou proibir a participação dos indivíduos na tomada de decisão coletiva. Antes, como é sabido, o que está em jogo é a crítica rousseauniana às sociedades parciais, às facções e, portanto, é fundamental vedar a comunicação entre os cidadãos antes da tomada de decisão. Como o genebrino nos diz na sequência: “para ter claramente o enunciado da vontade geral, é importante que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo” (CS, II, 3, p. 45-46, Oeuvres CS, III, p. 371, grifos meus). Nesses termos, a controvérsia pressupõe que aproximemos, como o faz o debate contemporâneo, uma concepção forte10 de democracia não só da ideia de participação, mas também da de deliberação; de participação em debates públicos que antecedem o ato de tomada de decisão coletiva. O procedimento democrático constitui-se em duas etapas: o voto ou o momento da decisão e a troca pública de razões que o precede. Eis a segunda razão pela qual o trecho acima soa-nos estranho, pois opera supondo um sentido de deliberação que não se confunde com troca pública ou sopesamento de razões. O recurso ao argumento rousseauniano tem, portanto, uma dupla função em minha estratégia argumentativa: (i) auxiliar-me a projetar os debates contemporâneos sobre os sentidos da agregação e da deliberação num registro teórico distinto e, ao fazê-lo, (ii) introduzir o exame dos princípios de harmonização natural e artificial dos interesses.
O recuo aos argumentos do filósofo de Genebra permite-nos questionar como seria possível que houvesse troca pública de razões se não deve haver comunicação entre os cidadãos? E, mais, se não deve haver troca pública de razões, como e quais seriam as pequenas diferenças que em grande número anulam-se reciprocamente a ponto de promover uma boa deliberação? Como nos lembra Bernard Manin, a semântica do termo deliberação remete-nos a dois sentidos cujas significações são exploradas por diferentes tradições na história da filosofia. A primeira delas tem raízes aristotélicas e faz referência ao processo de formação da vontade e à ponderação feita pelos indivíduos antes do ato de escolha. A segunda, a qual se filiariam Rousseau e a tradição economicista, resume e confunde a deliberação com a própria decisão (MANIN, 2007, 23 ss).11 A boa deliberação, portanto, diz respeito à boa decisão e não ao processo de formação da vontade. Eis a raiz da controvérsia aludida acima, pois a posição rousseauniana flertaria com uma visão agregativa do processo democrático. As grandes diferenças anular-se-iam no momento da agregação, da soma das decisões individuais. Pois, como lemos na passagem imediatamente anterior de CS, II, 3:
Com frequência, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta não visa senão o interesse comum, enquanto a outra ao interesse privado, não sendo senão uma soma de vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades os a-mais e os a-menos que se destroem mutuamente, resta como soma das diferenças a vontade geral (CS, II, 3, p. 45, Oeuvres CS, III, p. 371, levemente alterada, grifos meus)
Portanto, a vontade geral não se confunde com o resultado da discussão pública, posto que não deve haver nenhuma, mas da deliberação pública entendida enquanto a soma das decisões individuais cujo resultado é a decisão coletiva:
Segue-se do que precede que a vontade geral é sempre reta [droite] e tende sempre à utilidade pública, mas não que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão [rectitude]. Todos querem sempre o próprio bem, mas este nem sempre é compreendido. Nunca se corrompe o povo, mas ele com frequência é enganado, e só então parece querer o que é mau (CS, II, 3, p. 45, Oeuvres CS, III, p. 371).12
O desafio passa a ser compreender como opera tal mecanismo de composição e anulação recíproca dos a-mais e dos a-menos expressos nas decisões individuais que são somados, antes que articulados, numa decisão coletiva, uma vez que os debates são vistos como um sinal do surgimento e da preponderância dos interesses particulares sobre o interesse público; que a vontade geral só será efetivamente expressa quando os cidadãos não forem “seduzidos por interesses especiais, que certas pessoas astutas, por meio de influências e de eloquência, articulam para substituir a vontade geral”. (ROUSSEAU, Oeuvres DEP, p. 246)
Há, aqui, pelo menos, duas opções. A primeira delas, sustentada por Bernard Manin, sugere que não há deliberação na obra rousseauniana, pois a política seria uma matéria simples. Nesse caso, os cidadãos já sabem o que querem quando vão às assembleias públicas para tomar uma decisão comum, “[e]les já determinaram sua vontade de tal maneira que qualquer ato de persuasão empreendido pelos outros poderia apenas corromper sua vontade e oprimi-la.” (2007, p. 25). No entanto, isso não significa que, previamente, os cidadãos sopesaram razões no segredo de seus corações; não há deliberação interna justamente porque os cidadãos sabem o que querem e não nos cabe deliberar sobre o que conhecemos. Tal interpretação pretende sustentar-se em passagens como o seguinte trecho:
Quando vários homens reunidos consideram-se como um só corpo, eles têm uma única vontade, relacionada à preservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os meios do Estado são vigorosos e simples, suas máximas são claras e luminosas, não há interesses confusos, contraditórios, o bem comum mostra-se em toda parte com evidência e requer apenas bom senso para ser percebido (CS, IV, 1, p. 115, Oeuvres CS, III, p. 437).
À luz dessa passagem, não caberia deliberação sobre o que é simples e luminoso, pois bastaria que o sujeito percebesse o objeto do seu querer; não há razões para agir de modo distinto. Portanto, seria possível identificar deliberação com tomada de decisão e decisão com auto-evidência. (MANIN, 2007, p. 25)..
Entretanto, o argumento rousseauniano parece ser doutra natureza, posto que, do contrário, estaria eliminada a própria política em prol duma concepção puramente epistêmica de determinação da vontade geral. Antes, devemos perseguir uma chave de leitura capaz de livrar a política duma interpretação intelectualista da vontade geral que a identifica a um ato puro do entendimento e cuja origem, em certo sentido, remonta ao projeto platônico do rei-filósofo (TORRES, 1991). Ademais, não se deve esquecer que Rousseau é um autor moderno. Logo, devemos interpretá-lo de modo a harmonizar os desafios epistêmicos no domínio dos assuntos práticos com a concepção de direitos individuais e do consentimento como fundamento da obrigação política. (PITKIN, 1965).13
Nessa chave, em lugar de considerarmos que “quando todos decidem por todos, a escolha se torna absolutamente simples e não há nada incerto” (MANIN, 2007, p. 26), deve ser examinado se Rousseau não tem no horizonte uma concepção alternativa acerca do processo de decisão e do arranjo social que dele decorre, como se poderia questionar a partir de CS, II, 4:
Os compromissos que nos ligam ao corpo social só não são obrigatórios por serem mútuos e sua natureza é tal que ao cumpri- los não se pode trabalhar para outrem sem trabalhar também para si. Por que a vontade geral é sempre reta e por que todos querem constantemente a felicidade de cada um? Não é por não haver ninguém que não se aproprie da expressão cada um e que não pense em si mesmo ao votar por todos? (CS, II, 4, p. 47-48, Oeuvres CS, III, p. 373)
Não estaria o genebrino a nos dizer que, para além da dimensão epistêmica, a decisão política ou a feitura da lei deve envolver a participação livre dos cidadãos em tais atividades sob pena de sacrificarmos a legitimidade da ordem política? E, mais, que não será senão a “livre manifestação do interesse e da vontade de cada um que garantirá a identificação do bem comum”? (TORRES, 1991, p. 111) Entretanto, em lugar de pensar a participação nos termos clássicos das atividades discursivas na esfera pública, não se estaria a sugerir um novo esquema conceitual cuja estrutura desvencilha os mecanismos decisórios constitutivos da atividade política do jugo do intelectualismo lançando-os no solo movediço duma tradição que pensa a sociabilidade humana como um arranjo entre interesses concorrentes? Noutras palavras, Rousseau estaria sugerindo “um mecanismo de composição dos interesses operando naturalmente, pois a identificação do interesse geral e a formação da vontade geral que o persegue não se faz a partir da iniciativa de articulação intersubjetiva dos indivíduos, mas, ao contrário, a partir do julgamento solitário de cada um sobre o que seja mais vantajoso para si”? Tratar-se-ia duma leitura muito peculiar do princípio da identidade natural e do princípio da identidade artificial dos interesses, tais como Élie Halévy os caracterizou em seu estudo clássico sobre a formação do radicalismo filosófico?14 Permitam-me, portanto, discorrer rapidamente sobre tais princípios antes de retornar à solução rousseauniana e ao tópico que nos interessa acerca das teorias do mercado político.
3 O arquétipo do mercado nos termos dos princípios de harmonização dos interesses
Em que pese à primeira vista possa parecer uma simplificação grosseira, não seria demasiado sugerir que repousam sobre as figuras do contrato - ou pacto fundante - e do mercado dois esquemas conceituais concorrentes de reflexão sobre as origens e o funcionamento da sociedade. Se, duma parte, o contrato apresenta-nos uma resposta política às interrogações que dominaram o cenário intelectual do século XVII a respeito da instituição do social, por outra, o quadro de inquietações do XVIII será distinto e dará lugar ao tema da regulação do social. Eis o momento em que a figura do mercado emerge com força. Se, numa ponta, está o Leviatã hobbesiano, noutra encontra-se a mão invisível smithiana (ROSANVALLON, 1999, p. 11).15 Entre um extremo e outro estaria Rousseau ao passo que sua obra sintetizaria e operaria a transição dos problemas de duas épocas distintas: (i) o da fundamentação da ordem pública posto pelo contratualismo que o antecedeu e (ii) a antecipação do horizonte smithiano da articulação e harmonização dos interesses. Ou seja, para além de pensar o contrato como o fundamento da ordem pública, faz-se necessário resolver um segundo problema: como preferências particulares são harmonizadas e sintetizadas numa decisão coletiva?
Se a categoria de mercado passou a ser fundamental para a compreensão dos laços e relações sociais na modernidade, estabelece-se um desafio quando essa figura deixa de ser compreendida como uma parte do social, passando a enquadrá-lo e a expressar sua totalidade. Nesse caso, a representação do arquétipo do social dá início a um projeto de recusa global do político; um projeto de definhamento do político ao passo que o domínio do mercado econômico erige-se por contraposição à esfera política (ROSANVALLON, 1999, p. 70).16 Se as figuras políticas, seja o pacto, seja o legislador, seja o Direito pressupõem que a harmonização dos interesses sociais faz-se de modo artificial, sendo a ordem política perseguida intencional e refletidamente, o mercado fundamenta-se num princípio de identificação espontânea dos interesses, cujo ordenamento não faz parte da intenção dos agentes.
Tal como nos séculos XVII e XVIII, quando as ciências do espírito importaram métodos e propriedades das ciências naturais para a compreensão do homem e da sociedade, as abordagens econômicas da política no século XX buscaram no ferramental da economia os insumos para um escrutínio pretensamente mais acurado dos procedimentos democráticos. Em ambos os casos, os processos sociais passaram a ser interpretados à luz de escolhas individuais, ou seja, o indivíduo é tomado como a unidade básica de análise que serve de fundamento para a explicação e para a compreensão dos processos políticos. Não suficiente, os indivíduos são compreendidos como agentes maximizadores de utilidade e, em alguns modelos, motivados pelo egoísmo. Muito embora na teoria social contemporânea as análises sejam revestidas pela formalização lógico-matemática, por exemplo nas definições e nos teoremas da racionalidade, o individualismo operante em tais teorias não é outro senão aquele do atomismo utilitário. Não obstante, os autores do Radicalismo Filosófico perceberam sempre com muita clareza que o princípio da identificação natural dos interesses não serviria para fundamentar o domínio do político. Enquanto o princípio da harmonização natural aplicar- se-ia ao mercado, o princípio empregado para fundamentar as instituições políticas - o domínio do fórum - deveria ser o da harmonização artificial dos interesses.
O ponto de partida para ambos os princípios é o mesmo. Postula-se que: (i) concebemos a sociedade a partir do indivíduo, (ii) cada indivíduo é o melhor juíz de seus interesses, (iii) uma circunstância C não afeta do mesmo modo os indivíduos x e y, portanto, (iv) C pode gerar prazer a x e dor a y. Por conseguinte, “[s]e meu prazer é o objeto natural de meu desejo e minha dor o objeto natural de minha aversão, como é concebível que o senso moral que me inspira a perseguir a utilidade geral e não meu interesse privado pode ser parte constituinte de minha natureza?” (HALÉVY, 1972, p. 13). Daí são derivadas três formulações do princípio de utilidade.
A primeira delas é a fusão dos interesses que, no conjunto de minha análise, deixarei de lado mais facilmente, pois demanda a postulação de agentes dotados de simpatia. É somente através dessa paixão que se articula de modo espontâneo no interior de cada indivíduo a identificação de seu interesse pessoal com o interesse geral; eis a fonte para considerarmos a felicidade de nosso vizinho como afetando-nos diretamente (HALÉVY, 1972, p. 13). O interesse de cada indivíduo funde-se com o dos demais num cálculo interno à sua consciência. Todavia, supor o princípio da simpatia parece ir de encontro ao projeto utilitarista de estabelecer na moral a mesma precisão e rigor das ciências naturais, o esforço metodológico de isolar na alma humana aqueles sentimentos mais facilmente identificáveis e mensuráveis (HALÉVY, 1972, p. 6). Por conseguinte, o princípio do egoísmo tomou o lugar da simpatia nas reflexões dos filósofos morais do século XVIII. Não obstante, tal postulação torna ainda mais dramática a questão inicial: como explicar o estabelecimento duma ordem social e política a partir dessa paixão ou, noutras palavras, como explicar que “a partir da multiplicidade dispersa e egoísta dos indivíduos pod[e] surgir a vida comunitária com tudo o que tem de constante e regrado” (HALÉVY, 1972, p. 15). Ao mesmo tempo, permitir-se-ia à filosofia do espírito reproduzir em seus domínios, de modo mais bem acabado, o atomismo das ciências naturais ao passo que
tão forte era a crença na “natureza”, tão poderoso era o prestígio do modelo newtoneano (ou pseudonewtoneano) duma ordem resultando automaticamente da interação de átomos isolados e independentes que ninguém ousava pôr em dúvida fossem a ordem e a harmonia produzidas, de alguma maneira, pelos átomos humanos agindo segundo sua natureza, qualquer que ela fosse: o instinto o do jogo do prazer (Diderot) ou a perseguição egoística do ganho (Adam Smith). (KOYRÉ apudTORRES, 1979: p. 21).
Tendo como pano de fundo a influência fisicalista, presente nas ciências do espírito pelo menos desde a influência dos estudos galilaicos sobre Hobbes, não será difícil notar como impõe-se a seguinte questão: como compreender, explicar e interpretar a continuidade da espécie humana uma vez assumidos os postulados teóricos do egoísmo e da maximização do prazer individual? Uma possível resposta leva-nos reconhecer “que os diversos egoísmos se harmonizam por si, produzindo de modo automático o bem da espécie” (HALÉVY, 1972, p. 17, grifos meus). Resta ver quais são exatamente os instrumentos através dos quais se promove tal harmonização.
Como marcará a economia política trata-se dos mecanismos de regulação de mercado: barganhas e negociações enquanto interações que constituem a base do sistema de preços e cuja consequência é a promoção de pontos ótimos de satisfação dos indivíduos. Nesse caso, as negociações visam tão somente promover o prazer ou os interesses individuais e o interesse geral não é senão um efeito compósito das barganhas individualizadas. Logo, a hipótese do egoísmo universal é empregada com o fim de explicar os mecanismos de troca e, por seu turno, o processo de troca dá origem a divisão social do trabalho.17 Portanto, o mecanismo de identificação espontânea dos interesses opera através da troca concebida como o fenômeno econômico. Nesse caso, o indivíduo não só “esforça-se continuamente para empregar do modo mais vantajoso seus recursos visando o lucro, mas o faz visando sua própria vantagem e não a da sociedade” (HALÉVY, 1972, p. 90). Essa é a tese sumariada no adágio mandevilleano segundo o qual os vícios privados promovem a virtude pública ou na clássica figura da mão-invisível smithiana que estaria a operar por trás dos interesses particulares dirigindo-os ao interesse geral: “o amor ao lucro, o amor à luxúria dirigidos por uma mão invisível, necessariamente, une os diversos interesses individuais na realização do interesse geral duma sociedade ou da civilização como um todo”. E, o mais relevante para futuramente retornarmos ao registro rousseauniano: sem a sabedoria dum legislador interferindo nesse processo (HALÉVY, 1972, p. 90-91).
Em que pese a reconstrução cuidadosa das teses basilares do Radicalismo Filosófico demande um esforço mais atento, para os fins do argumento aqui exposto é suficiente notar como o arranjo duma sociedade automática prescinde de figuras políticas que na modernidade se fazem por representação. Se a interação entre os particulares harmoniza-se sem a necessidade dum ente externo cuja função de mediação e autoridade se faz ao encarnar a pessoa comum de todos, então tal sociedade prescinde dum centro de poder. Eis o porquê da representação do arquétipo do social, enquanto mercado, revelar uma compreensão da decisão coletiva enquanto um agregado de decisões individuais e dispersas.
Nesse registro, o conceito de mercado terá um sentido essencialmente sociológico e político opondo-se à ideia dum pacto político fundante, para além de ser um conceito técnico que define um modo de regulação da atividade econômica por um sistema de preços organizado livremente. Eis o germe dum projeto utópico do liberalismo econômico que traduz um anseio mais profundo de promover uma sociedade civil imediata - ou transparente - a si mesma, ou seja, autorregulada. Essa perspectiva apolítica, em sentido forte, faz da sociedade de mercado o arquétipo duma nova representação do social: é o mercado (econômico) e não o pacto fundamente (político) o verdadeiro regulador da sociedade e não somente da economia (ROSANVALLON, 1999, p. ii ss). Eis o ponto de retorno ao horizonte rousseauniano, pois, ao fazer a transição entre os problemas da fundação e regulação do social, o genebrino empregará o maquinário conceitual do contrato para pensar a regulação dos interesses a partir dum registro político, e não econômico, de harmonização dos interesses.
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À luz dessa reconstrução parcial é possível enfrentar, no registro dos escritos do filósofo genebrino, a questão da decisão coletiva e da respectiva compreensão do arquétipo do social que lhe corresponde. Em primeiro lugar, o papel do legislador, mesmo na figura do pedagogo e considerando a definição do amor-próprio,18 revela uma clara incompatibilidade entre a obra rousseauneana e o princípio da fusão dos interesses. Em segundo, após descartar a posição de Bernard Manin, aventei, seguindo Torres (1991, 112), que haveria em Rousseau uma peculiar combinação dos princípios de harmonia natural e artificial, pois “a identificação do interesse geral e a formação da vontade geral que o persegue não se faz a partir da iniciativa de articulação intersubjetiva dos indivíduos, mas, ao contrário, a partir do julgamento solitário de cada um sobre o que seja mais vantajoso para si.” Entretanto, essa também não parece ser a melhor compreensão da letra do filósofo, pois não apenas o interesse particular ofusca o reconhecimento da vontade geral (Oeuvres MG: pp. 309-10),19 mas também a vontade particular age sempre contra aquela (CS, III, 10, p. 98, Oeuvres CS, III, p. 421). Como se pode notar, essa assimetria repousa sobre o desencontro entre entendimento e vontade tal como expresso em CS, II, 6, em que o desafio é determinar como será possível fazer o indivíduo querer o que o cidadão percebe como um bem e a multidão enxergar o bem que deseja enquanto Povo. Ademais, tal formulação aponta para o real problema de fundo que está a pressionar toda a obra rousseauniana, a saber: qual a natureza do corpo moral e coletivo fundado pelo pacto? Grosso modo, é possível sugerir que Rousseau opera com dois sujeitos coletivos distintos: o povo real (a multidão) e o povo ideal (o Povo). Entre um e outro existe um abismo a ser franqueado pela figura do legislador (SALINAS FORTES, 1976, p. 98).
No limite, a origem de tais problemas remonta, justamente, ao pacto e à instituição do corpo moral e coletivo, pois, em CS, I, 6 é introduzida uma ambiguidade que “assombra o Contrato Social duma ponta à outra e confina sua argumentação a uma aporia que Rousseau não chega a resolver: a separação irredutível entre o povo como um corpo político e o povo real” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2011, p 65). Ao tratar do pacto, Rousseau nos diz que “o ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantas forem as vozes da assembleia”, um “eu comum”, um Nós, e “passa a ter o nome de República ou corpo político” (CS, I, 6, p. 34, Oeuvres CS, III. p. 360). A essa pessoa pública o filósofo chamará Estado quando passivo e Soberano quando ativo, mas não será designado como povo. Tal termo será reservado para fazer referência ao conjunto dos associados em sua coletividade que “s e chamam em particular [individualmente] Cidadãos, quando participam da autoridade soberana, e Súditos quando estão submetidos às leis do Estado” (CS, I, 6, pp. 34-5, Oeuvres CS, III. pp. 360-1). Como Catherine Colliot-Thélène chama-nos a atenção, são-nos apresentados dois corpos coletivos: o Soberano e o povo. Não obstante, Jean-Jacques Rousseau nunca os faz coincidir, nem mesmo nas passagens nas quais apresenta o pacto como o “ato através do qual um povo é um povo” (CS, I, 5, p. 32, Oeuvres CS, III. p. 358), ou quando identifica a vontade do povo com a vontade soberana (CS, I, 6, p. 34, Oeuvres CS, III. p. 360). Em todas essas ocasiões, o povo em questão é corpo político, não a multidão (COLLIOT-THÉLÈNE, 2011, p. 66), cabendo ao governo intermediar as relações do Soberano com o Estado, recebendo do primeiro as ordens que ele dá ao povo (CS, III, 1, p. 72, Oeuvres CS, III. p. 360).
A partir dessa diferença de planos é possível intuir a natureza do desencontro entre o entendimento e a vontade que está a operar n’O Contrato. Duma parte, pressupõe-se que a vontade particular dos indivíduos deseja, a todo momento, sobrepujar o bem comum, revelando-se uma ameaça constante ao corpo político e, doutra, que os homens “são incapazes de saber, espontaneamente, em que consiste de maneira concreta o bem comum, cuja busca permanente é o fim da associação política” (SALINAS FORTES, 1976, p. 96). Se as passagens d’O Contrato não deixam claras as fontes desse descompasso, o seu devido esclarecimento pode ser encontrado no Manuscrito de Genebra: o “Estado não tendo senão uma existência ideal e convencional, seus membros não tem nenhuma sensibilidade natural e comum pela qual, imediatamente advertidos, recebem uma impressão agradável do que lhe é útil e uma impressão dolorosa logo que é ofendido” (MG, Oeuvres III, p. 141). Ou seja, faz-se necessária a devida qualificação da tese que a vontade quer sempre o bem do corpo que o deseja (MG, Oeuvres III, p. 295), pois, sendo obras da Natureza, homens e animais foram por ela dotados de instrumentos cuja função é a garantia de sua própria conservação. Em contrapartida, enquanto um todo artificial, o Estado não dispõe de tal instinto de conservação capaz de guiá-lo (SALINAS FORTES, 1976, p. 96).20 Sendo um ente de razão cuja realidade termina instanciada nos indivíduos, o desafio permanente será o de (trans)formá-los em cidadãos. Noutras palavras: “a dificuldade de tornar efetiva a conexão intencional da vontade geral ao interesse público provém, portanto, do caráter não empírico do corpo moral e coletivo ao qual a alienação total de cada associado concederia a vida, a vontade, o eu” (TORRES, 1991, p. 110).21
Eis a distância ineliminável que se interpõe entre a multidão cega e o Povo ideal a ser franqueada pelo legislador (SALINAS FORTES, 1976, p. 98). A tarefa de ensinar ou conduzir os indivíduos a identificarem seuS interesses particulares à utilidade pública caberá a essa figura cuja inteligência superior permitiria compreender todas as paixões dos homens e não sentir nenhuma, a essa figura que trabalharia num século e se regozijaria de sua glória noutro. Para a tradição democrática, tal cisão impõe uma série de desafios: o epistêmico, o da autonomia dos cidadãos e o da natureza da representação. No primeiro, trata-se de determinar como o legislador pode iluminar os processos decisórios na direção de escolhas mais corretas. No segundo, não está em jogo aprimorar a qualidade das decisões, mas garantir a autonomia das escolhas por parte dos cidadãos.22 Por fim, a separação entre povo real e ideal obriga a tradição democrática a pensar a natureza representativa do processo político em suas mais diferentes dimensões para determinar qual a natureza da conciliação possível entre o Povo, enquanto corpo político, e o povo real, a multidão.
É através da função central atribuída ao legislador que se revela a complexa natureza do processo político em Rousseau. Há um processo de decisão coletiva que não espelha uma compreensão do arquétipo do social semelhante à representação do mercado. Muito antes pelo contrário. O papel do legislador, em suas diferentes figuras, de franquear a passagem da multidão ao Povo, de fazer, sob as luzes públicas, coincidir a vontade e o entendimento do indivíduo e do cidadão explicita não só a adoção do princípio da harmonia natural dos interesses, mas, em especial, deixa claro que tal princípio na modernidade democrática recusa qualquer noção duma sociedade civil transparente ou automática. Em que pese seja necessário qualificar a natureza desta tese, a democracia moderna não pode ser senão representativa. Avanço, agora, às críticas das teorias do mercado político.
4 Esqueleto das teorias do mercado político: o fantasma da sociedade automática e suas limitações explicativas e preditivas
No segundo capítulo de Uma teoria econômica da democracia, ao comentar a função dos governos em sociedades democráticas, Anthony Downs remete-nos à seguinte passagem de Capitalismo, socialismo e democracia
a razão para a existência da atividade econômica é, naturalmente, a necessidade que o povo tem de alimentar-se, vestir-se, etc. O fornecimento dos meios para satisfazer essas necessidades constitui o fim social ou o significado da produção. Não obstante, todos concordaríamos que essa afirmação seria um ponto de partida irrealista para uma teoria de atividade econômica numa sociedade comercial e que faríamos melhor começando com uma afirmação sobre o princípio de lucro. Da mesma maneira, o significado social ou função da atividade parlamentar é evidentemente votar a legislação e, em parte, medidas administrativas. M as, para compreender de que maneira a política democrática serve a esse fim social, devemos partir da luta competitiva pelo poder e cargos e compreender que a sua função social é preenchida apenas incidentalmente, por assim dizer, da mesma maneira que a produção é incidental à obtenção do lucro (SCHUMPETER, 1961, p. 343-344, grifos meus).
Em que pese a relação da obra de Schumpeter com os posteriores desenvolvimentos da teoria da escolha pública seja objeto de longa disputa entre os comentadores (MITCHELL, 1984), essa passagem lança o insight fundamental das teorias da democracia como mercado político ou mercado de votos: se eleitores são consumidores de cesta de bens, políticos são empresários de voto cujo objetivo é a eleição, então as decisões políticas, bem como a legislação são um resultado meramente incidental da competição por cargos. (DOWNS, 1999, p. 50-51 e 302).23
A controvérsia acerca de se J. Schumpeter é, ou não, um dos pioneiros ou mesmo integra o conjunto de análises identificadas à teoria da escolha pública deve-se, sumariamente, a dois pontos: o papel atribuído às lideranças e a irracionalidade dos consumidores. Ambas as noções desaparecem das análises subsequentes. Isso se deve ao fato de que em sua teoria econômica, Schumpeter não atribui papel central à figura do consumidor, mas à do empresário.24 Uma vez mantida a simetria, o mercado, seja o econômico, seja o político, deve seu dinamismo ao caráter empreendedor das lideranças e não aos consumidores. Enquanto aquelas constituem o polo ativo do processo de produção, cabe a essas a figura de polo passivo em virtude de seu caráter apático e manipulável. Lembremo-nos que no final do capítulo XXII, Schumpeter (2010) destaca o papel dos líderes ou chefes políticos (empresários) na condução dos partidos (firmas) que têm como função central regular a competição política e guiar a massa de eleitores, cujo comportamento não reproduz senão “o estouro da boiada”, em clara remissão às noções tomadas de empréstimo da psicologia das multidões (LE BON, 2016). Aqueles interessados em distanciar J. Schumpeter da tradição da escolha pública reconhecem o pioneirismo expresso na formulação do conceito de mercado político, cujo elemento central é interpretar a produção legislativa enquanto co-produto da competição por postos no aparelho governamental, porém denunciam o lugar ocupado pela persuasão política no modelo, explicitado no conceito de vontade manufaturada. Em contrapartida, ao definirem o eleitor tal como o consumidor racional, as teorias da escolha pública suprimem o espaço destinado à manipulação política e, por conseguinte, destacam o caráter mais genuíno das preferências políticas reveladas no processo de agregação (PRZEWORSKI, 1995, p. 37 ss).
Não faz parte de meus objetivos no presente texto reconstruir as diferenças entre as diversas abordagens econômicas da política.25 Basta reconhecer a dívida downsiana com o argumento de CSD e indicar como ele desenvolverá tal intuição à sua própria maneira, construindo um modelo de mercado de votos bastante distinto, cujo centro desloca-se da figura do político profissional para a do eleitor-consumidor e dos processos de manipulação ou manufatura da vontade para os cálculos da racionalidade estratégica. Em linhas gerais, o argumento sustenta que o mercado de votos deve ser interpretado como uma variável endógena à divisão social do trabalho, definição não claramente adotada por Schumpeter. Não obstante, tal mercado é um mercado sui generis, pois, como nos diz ironicamente Schumpeter: enquanto os homens de negócios transacionam petróleo, os políticos profissionais negociam votos. Dum lado, os partidos prometem no período eleitoral e quando no governo executam “aqueles atos de gastos que ganham a maior quantidade de votos por meio daqueles atos de financiamento que perdem a menor quantidade de votos” (DOWNS, 1999, p. 71). Doutro, o eleitor busca maximizar “os benefícios que ele obtém da atividade fiscal, isto é, o excedente dos benefícios que ele obtém dos gastos governamentais em relação aos gastos em que ele incorre em função da tributação” (MUSGRAVE, 1980, p. 92). Noutras palavras, a moeda de troca desse mercado particular são votos e bens públicos, logo, não há um mercado de votos como há um mercado de trigo ou ações. A ideia que é central ao modelo é a de que os eleitores recompensam os políticos que os agradam com seus votos (DOWNS, 1999, p. 208). Não se trata, portanto, de sugerir a existência dum mercado de votos onde há, literalmente, compra e venda com recursos pecuniários. Para além duma ressalva retórica, essa distinção é determinante, pois a natureza desses bens atravessa e determina as características do mercado político.
Nesse horizonte, o sistema de revezamento entre as elites funciona de modo relativamente simples, pois os políticos profissionais perseguem votos e os eleitores destinam seus votos para os candidatos que maximizarem sua renda de utilidade advinda da atividade governamental (bens e serviços públicos de toda ordem, p. ex., segurança, educação, sistema judiciário). Eis o mecanismo através do qual se busca evitar a autonomização das elites políticas, ou os partidos, em face do corpo de eleitores e satisfazer as preferências dos indivíduos, em que pese os políticos profissionais nunca estejam efetivamente interessados em seu bem-estar, mas exclusivamente em seus votos.26
Uma teoria econômica da Democracia busca, por conseguinte, apresentar uma série de hipóteses testáveis que auxiliem a determinar qual será o comportamento político racional para governos e cidadãos ante a determinados cenários (DOWNS, 1999, p. 42). Como pano de fundo, em linhas gerais, a democracia é caracterizada ora como um mecanismo de garantia de competição pacífica entre elites pelo controle do aparelho do Estado, ora como um instrumento de agregação de preferências pré-políticas “expressas isoladamente através do voto concebido como um ato privado por um ‘cidadão-consumidor’ soberano, cuja atividade política crucial é o voto individual e secreto, aqui entendido não como uma ação pública, mas antes como um ato privado” (ELSTER, 2007, p. 224-225).
Eis o que aparece como grande problema interno à teoria. Pois, os modelos agregativos ou mercadológicos circunscrevem suas análises e estreitam suas definições de democracia a um processo de arranjo de interesses conflitantes através da agregação de ordenações individuais de preferências expressas pelo voto, no entanto, não parece ser possível explicar, nos seus próprios termos, porque eleitores racionais comparecem às cabines de votação no dia das eleições. Juntamente com o teorema da (im)possibilidade, o paradoxo do eleitor apresenta um dos maiores desafios às teorias mercadológicas, pois considerados os custos do voto e a natureza dos bens públicos, é mais interessante para o eleitor não votar (minimizar custos) e usufruir das políticas públicas ofertadas pelo governo (maximizar benefícios) do que sufragar, considerando que a democracia, nesse cálculo custo-benefício, não pode ser dotada dum valor intrínseco, sob pena de desconfiguração do modelo que a definiu em termos instrumentais.
Este é o momento de colocar em relevo a natureza dos bens transacionados para a configuração do paradoxo. Como vimos, numa eleição são negociados bens públicos, bens que se caracterizam, como lemos, p. ex., na definição de Olson (1999, p. 21 ss) ao tratar do problema da ação coletiva, por (i) consumo não-rival e (ii) não-excludibilidade. No primeiro caso, o consumo do bem por parte de qualquer cidadão não pode acarretar quaisquer limitações, seja qualitativa seja quantitativa, ou custos adicionais tanto para os que já usufruíram do bem quanto para os que vierem a usufr uir. No segundo, uma ve z ofertado a um certo universo de consumidores, nenhum dos indivíduos desse conjunto pode ser privado do consumo do bem em questão. Portanto, os indivíduos, tendo participado, ou não, do concerto voluntário da ação coletiva com a parte que lhes caberia nos custos e encargos necessários para a produção e provimento do bem público, não podem ser excluídos ou sobretaxados em seu consumo (TAVARES, 1993, p. 395). Isso se aplica tanto com relação à oferta de certos serviços públicos frente à contribuição tributária individual, quanto, especialmente, à participação dos eleitores no processo eleitoral. Logo, é preferível para um eleitor racional abster-se do processo eleitoral, pois há um custo (de informação e participação) cujo benefício não lhe pode ser negado: a oferta de bens públicos. Nesse caso, o carona tem um duplo ganho: usufrui da utilidade introduzida pelo sinergismo da ação coletiva e da utilidade privada, a qual pode dedicar-se ao não ter assumido o custo da produção do bem público. No sentido inverso, se o bem público não for provido, o cooperante tem uma dupla perda: perde o bem cujo provimento foi frustrado e perde o que teria ganho caso tivesse investido num empreendimento privado. (TAVARES, 1993, p. 395).
Por seu turno, o paradoxo do não-eleitor, embora seja uma versão do problema da ação coletiva, trata-se de uma versão mais pontual, pois pensemos no seguinte. Uma eleição é uma competição cujas plataformas representam projetos distintos. Nesse caso, a vitória do projeto adversário implica a não-oferta dum conjunto de bens ofertados pelo candidato de minha preferência. Eis onde opera uma das variáveis que surgem, invariavelmente, nos escritos liberais do século XVIII para apontar a inviabilidade da democracia em Estados Nacionais: a participação individual torna-se irrisória e, por conseguinte, seria irrelevante. No caso do voto em democracias contemporâneas, o peso da participação individual é igual a 1/ (total do eleitorado). Nesse horizonte, p. ex., nas eleições para Presidente da República, em 2014, o voto de cada brasileiro teria valido 0,00000000705%, ou seja, se um indivíduo deixasse de votar sua ausência supostamente não afetaria o resultado.27
Downs (1999) não negligenciou tal problema e reconheceu que a questão da participação sob o ângulo da escolha racional poderia promover o colapso da democracia. Ainda assim, ele parecia cético com relação à efetivação de tais consequências no mundo real, pois o resultado seria tão improvável quanto desastroso, o que levaria os eleitores a suportar os custos da participação para evitar o desmoronamento do sistema democrático (DOWNS, 1999, p. 280). Noutras palavras, como também dirá Raymond Boudon, isso significa que os eleitores votariam para proteger a democracia. Todavia, esse é justamente o coração do problema porque, se os eleitores votam para proteger a democracia, mesmo considerando a elegante sugestão downsiana de considerarmos essa hipótese a partir de uma espécie de taxa de seguro futuro, ela passa a ter um valor em si a ser defendido que está para além da racionalidade instrumental empregada pelos agentes em interação estratégica. Do contrário, se os indivíduos simplesmente votam estrategicamente, o problema é reposto noutro plano e retorna o efeito do carona, pois um agente racional espera que seus pares ajam para evitar o colapso da democracia, mas, ele próprio pretende usufruir desse benefício (a democracia) sem arcar com os custos da ação coletiva.
Nesses termos, o paradoxo do não-eleitor deve ser interpretado como uma das diferentes facetas dos dilemas sociais postos pelas situações nas quais a racionalidade individual conduz à irracionalidade coletiva ou, noutros termos, quando se revelam as assimetrias e os problemas da passagem dos microfundamentos da racionalidade individual para o macrofenômeno dos processos sociais e políticos. O traço comum que une o dilema do prisioneiro em jogos não-sucessivos (RAPOPORT, 1980; NEUMANN; MORGENSTERN, 1953), o teorema da (im)possibilidade de Arrow (1963), o efeito carona no financiamento de bens coletivos (OLSON, 1999) é justamente esse descompasso entre a natureza da racionalidade coletiva e individual.
Em termos formais, o paradoxo do voto pode ser representado do seguinte modo: em modelos econômicos, os eleitores optam por votar em A e não em B em razão da utilidade esperada dos candidatos em disputa. Assim, o eleitor calcula seu voto por
onde R corresponde ao benefício obtido com a vitória do postulante escolhido, P à probabilidade que o voto do indivíduo seja decisivo, B é o benefício obtido com a vitória do candidato e C os custos de votação.
Nesse caso, B está pela equação [
Assim, sempre que R > 0, o custo da votação é positivo e, por conseguinte, o eleitor vota. Quando R < 0, se abstém.
Dentre as soluções para o paradoxo do eleitor há, pelo menos, duas que nos interessam mais particularmente. A primeira pode ser rastreada em Gordon Tullock, Toward a Mathematics of Politics (TAZDÄIT; NESSAH, 2013, p. 52). Segundo essa pretensa solução, Tullock decompõe B (o benefício obtido pela vitória do candidato) em dois termos e, ao fazê-lo, introduz uma variável de altruísmo ausente na formulação de Downs:
Nesse caso, Bd diz respeito ao benefício auferido diretamente pelo indivíduo e Bc à satisfação resultante do modo como seu voto beneficia outrem. Seria possível empreender um longo debate sobre como essa outra variável poderia ser interpretada. Por exemplo, em contextos de grandes desigualdades, eleitores de classe média votam em plataformas cuja proposta central é promover a redistribuição de renda estariam sendo movidos por altruísmo ou justiça? Ou por autopreservação?29 Independentemente dessa questão, o que interessa é demonstrar como o voto pode conduzir o indivíduo a sacrificar seu interesse para uma maior satisfação dos demais. Não desejamos enfrentar a delicada e sempre presente discussão acerca da natureza do auto-interesse, é-nos suficiente destacar como Tullock busca alargar o sentido de voto racional ao mesmo tempo em que reconhece que o paradoxo não desaparece com essa solução (TAZDÄIT; NESSAH, 2013, p. 53). Entretanto, encaminha-nos para uma segunda reformulação cujo fraseado interessa-nos, em especial, pois apela a uma nova variável de dever cívico com vistas a evitar o paradoxo da não-participação.
O prolongamento dos esforços de Tullock pode ser rastreado nas formulações de Ordeshook e Riker (1986) que agregam a variável D ao cálculo de utilidade esperada:
Todas as demais variáveis permanecem constantes e D deve ser interpretado como o valor do dever cívico ou um sentido de dever, cujo estatuto parece-nos deveras exótico aos postulados de Downs e para um modelo de teoria da escolha pública. Segundo essa reconfiguração, o cálculo empreendido pelo eleitor racional para determinar sua participação seria
Nesses termos, as formas de solucionar o paradoxo do voto passam a incluir, da perspectiva da escolha racional, variáveis extrarracionais, configurando o que Elster chama de “esquizofrenia teórica”:
Se de fato para explicar por que as pessoas votam parece inevitável o apelo a conceitos normativos do tipo “dever cívico” e para explicar como as pessoas votam parecem ser suficientes os apelos à noção de auto-interesse, isto tem uma lógica explicativa esquizofrênica, pois sugere que o eleitor, ao entrar na cabine eleitoral “esquece” todas as motivações sociais que o levaram até lá e milagrosamente se transforma num calculista que mede apenas custos e benefícios materiais diferencias (ELSTER apud FIGUEIREDO, 2008, p. 122).
Do ponto de vista do desenvolvimento da obra elsteriana, haverá uma aproximação dos traços da escolha política vinculados à cultura política e da natureza peculiar das normas sociais, cuja discussão conduzirá, na esteira dos desenvolvimentos de sua obra nas décadas de 80-90, justamente, ao exame do projeto rival: o das teorias da democracia deliberativa.
5 Apontamento final
Em que pese examinado de modo muito parcial, o paradoxo da não- participação ilumina um equívoco de fundo das teorias mercadológicas da política: a suposição de que o fórum operaria isomorficamente ao mercado, ignorando que mercado é o domínio da harmonização natural dos interesses e que a política institui-se como uma esfera na qual os interesses são articulados artificialmente. Esse me parece ser o equívoco de fundo que os paradoxos iluminam e por essa razão as teorias agregativas são incapazes de explicar, segundo seus próprios termos, porque os indivíduos votam em lugar de se absterem.
Há uma dimensão criativa da representação política que escapa aos modelos agregativos justamente porque, ao serem pressionados por um arquétipo do social cuja constituição pressupõe uma sociedade automática, não há espaço para pensar a representação. Nesse caso, restaria demonstrar como há uma confluência entre a dimensão criativa da representação e da deliberação. Embora Joshua Cohen não formule a questão nesses termos, essa me parece ser a razão pela qual ele afirma que as teorias deliberativas oferecem-nos uma versão mais poderosa (seja do ponto de vista da explicação, seja da justificação normativa) das decisões democráticas, justamente porque as decisões coletivas políticas tornam manifesta a comunidade política, o que no mundo moderno só se faz por representação. Não obstante, não se trata duma comunidade que compartilha um ethos substantivo, mas que se identifica nas razões apresentadas aos concidadãos durante os procedimentos de justificação das decisões individuais (COHEN, 2007, p. 125). Uma vez que as teorias mercadológicas desconsideram a dimensão da oferta pública de razões, não há espaço no processo decisório para que as comunidades se construam a partir das projeções que os diversos setores e grupos sociais possuem do empreendimento coletivo, empreendimento que deve, portanto, constituir-se artificialmente por representação a partir das projeções postas em teste nos procedimentos deliberativos e, no limite, no voto expresso nas eleições. Ou seja, estariam ausentes duma teoria agregativa da democracia os mecanismos conceituais propriamente políticos que permitem compreender como uma decisão coletiva sintetiza uma multidão no sujeito político da democracia: o Povo.