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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Maio-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021009 

ARTIGOS

Interculturalidade: uma experiência de troca de cartas entre alunos do Brasil e do Japão

Interculturalidad: una experiencia de intercambio de cartas entre estudiantes de Brasil y Japón

Giovana Fernanda Bruschi* 
http://orcid.org/0000-0003-4613-9887

Izabel Cristina Durli Menin** 
http://orcid.org/0000-0003-2176-8046

Marcos Villela Pereira*** 
http://orcid.org/0000-0002-3977-5167

*Mestra em Gestão Educacional pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-MBA em Governança e Gestão de Riscos. Especializada em Administração da Produção, Gestão da Qualidade, MBA em Gestão em Marketing. Graduada em Letras. Professora no MBA de Gestão de Pessoas e no MBA em Gerência Empresarial. E-mail: giovana.bruschi@edu.pucrs.br

**Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela UCS. Especialização em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Faculdade Unyleya Educacional – RJ. Mestra em História pela UCS. Atualmente, é Secretária de Educação, Esporte, Lazer e Juventude no Município de Veranópolis. E-mail: izabel.menin@acad.pucrs.br

***Graduado em Filosofia. Doutor em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP. Atuou como Coordenador do PPGEdu e Diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ex-Diretor do Departamento de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Prefeitura Municipal de Santo André – SP. Atualmente, é Professor Titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: marcos.villela@pucrs.br


Resumo

O objetivo deste artigo é promover uma análise da experiência intercultural realizada através de troca de cartas com crianças da cidade de Ninomiya, Província de Kanagawa – Japão, com crianças da Rede Municipal de Ensino do Município de Veranópolis, Rio Grande do Sul – Brasil. As trocas acontecem anualmente por meio do serviço de Correios e Telégrafos do Brasil e do Japão, entre alunos do 3º ao 9º anos dessa rede. As crianças japonesas escrevem para as veranenses e vice-versa. Elas contam fatos de sua rotina, de sua cidade, aspectos peculiares de seu cotidiano, incluindo fotos e características geográficas e culturais próprias de cada espaço local. Essa experiência nos convida a estender o olhar sobre a importância de estarmos tematizando, no processo educacional, aspectos socioculturais de diferentes povos, grupos sociais, costumes e modos de ser e conviver. Desafiamo-nos a refletir como essa prática de troca de cartas, entre crianças de dois países muito distintos tanto social como culturalmente, consegue despertar a consciência sobre questões ligadas à interculturalidade como um campo de debate sobre processos identitários que constituem um ambiente. Além disso, nos possibilita analisar questões ligadas à desenvoltura da escrita e à simbologia utilizada para descrever aspectos relacionados ao cotidiano de cada criança, bem como a subjetividade em cada mensagem no intercâmbio de cartas. A reciprocidade nas trocas, o cuidado com os detalhes presentes em cada relato, a riqueza que compõe a escrita e como o cotidiano se apresenta com semelhanças e diferenças na vida de cada aluno, seja aqui ou no Japão, são componentes essenciais na construção desta análise.

Palavras-chave História local; Interculturalidade; Educação; Cidadania global

Resumen

El objetivo de este trabajo es promover un análisis de la experiencia intercultural realizada a través del intercambio de cartas con niños de la ciudad de Ninomiya, prefectura de Kanagawa – Japón, con niños de escuelas municipais de Veranópolis – Rio Grande do Sul – Brasil. Los intercambios se realizan anualmente a través de la Oficina de Correos y el Servicio de Telégrafos de Brasil y Japón entre estudiantes de 3° a 9° grados de las escuelas primarias de la Red Pública Municipal. Los niños japoneses escriben a los de Veranópolis y viceversa. Cuentan hechos de su rutina, de su ciudad, los aspectos peculiares de su vida diaria, incluidas las fotos y las características geográficas y culturales de cada espacio local. Esta experiencia nos invita a ampliar nuestra perspectiva sobre la importancia de tematizar, en el proceso educativo, los aspectos socioculturales de los diferentes pueblos, grupos sociales, costumbres y formas de ser y vivir. Desafiamos a nosotros a reflejar cómo esta práctica de intercambiar cartas entre niños de dos países muy diferentes, tanto social como culturalmente, puede crear conciencia sobre temas relacionados con la interculturalidad como un campo de debate sobre los procesos de identidad que constituyen el espacio. Además, nos permite analizar cuestiones relacionadas con la facilidad de escritura y la simbología utilizada para describir aspectos relacionados con la vida diaria de cada niño, así como la subjetividad en cada mensaje en el intercambio de cartas. La reciprocidad en los intercambios, el cuidado con los detalles presentes en cada informe, la riqueza que compone la escritura y cómo la vida diaria se presenta con similitudes y diferencias en la vida de cada estudiante, sea aquí o en Japón, son componentes esenciales en la construcción de este análisis.

Palabras clave Historia local; Interculturalidad; Educación; Ciudadanía global

Introduzindo a experiência

Escrever cartas sempre fez parte da vida das pessoas. O ato de escrever e de receber cartas sempre foi motivo de muita alegria: esperar o carteiro trazer uma carta, abri-la e ler cada detalhe era algo muito desejado e, nas entrelinhas das cartas, predominavam afetividade, amizade, compartilhamento de ideias e troca de notícias. Porém, nas últimas décadas, a troca de cartas tem reduzido muito, e as crianças e jovens já não podem sentir a emoção de receber ou e escrevê-las, pois, com a entrada da tecnologia, em especial, o uso de celulares e as redes sociais, essa nova geração raramente pode sentir a emoção de compartilhar cartas.

No entanto, as cartas são importantes em inúmeros aspectos. Para Brandão (2005) a troca de cartas possibilita um diálogo mediado pela escrita, permitindo levantar questões, esperar respostas, prolongar a compreensão da noção de um texto, até o mais profundo de si mesma. Da mesma forma, para Lins e Silva (2004) a leitura de uma carta pelo outro possibilita uma troca de interpretações e permite o confronto com a significação de valores. Esse confronto de ideias pode ampliar, modelar e dar novos significados às próprias representações valendo-se do diálogo com o outro.

Diferentemente dessa realidade atual de ausência de cartas, a análise aqui construída tem por base os encantamentos que a escrita de cartas desperta nas crianças como parte de uma metodologia de ensino aplicada aos estudantes dos anos iniciais da Rede Municipal de Ensino de Veranópolis – Rio Grande do Sul – Brasil. A primeira pergunta que esta análise pode suscitar é: Qual é o motivo pelo qual a cidade escolhida para este intercâmbio cultural é Ninomiya, Província de Kanagawa – Japão?

Começamos a discorrer, primeiramente, sobre o que uniu a educação do Município de Veranópolis, interior do Rio Grande do Sul, com uma cidade – Ninomiya – tão longínqua do Japão. Essa cidade gaúcha é reconhecida, internacionalmente, como “Terra da Longevidade”. Em 1981, foi publicada, na Revista Geográfica Universal, a reportagem “Os Celeiros da Longa Vida no Mundo”, que citava: “No estado brasileiro do Rio Grande do Sul existe uma localidade denominada Veranópolis, no meio de montanhas, onde vive apreciável número de velhinhos em sua quase totalidade descendentes de colonos italianos.”

Essa breve citação não escapou aos olhos atentos do geriatra Emílio Moriguchi, então chefe do Departamento de Geriatria do Hospital São Lucas e coordenador do Programa de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) que, em 1994, começou a desenvolver o “Projeto Veranópolis”. O projeto era da Organização Mundial da Saúde e atingia uma população-alvo inicial de 50 idosos, num trabalho de campo e de análises bioquímicas. Os estudos mostraram os resultados: a garantia da longevidade eram os hábitos saudáveis dos habitantes. Atividades físicas, ingestão correta de proteínas e gorduras, integração na comunidade, vida familiar, fé em Deus, gosto pelo trabalho, não fumar e o hábito de tomar, moderadamente, vinho às refeições foram aspectos apontados como fatores de vida longa e projetaram o município internacionalmente. Esse selo gerou o interesse por parte de médicos ligados à pesquisa na área da saúde, que, no decorrer dos anos, foram aprimorando e aprofundando estudos ligados aos hábitos alimentares, à cultura e às tradições, os quais estão associados a alguns excertos extraídos de cartas escritas pelos alunos.

O interesse pelo estilo de vida e pelos hábitos que favorecem uma vida longeva integrou também o âmbito escolar, por ser a escola um espaço onde as boas vivências e as trocas devem ser compartilhadas, possibilitando uma “interação simbólica”. Esse conceito, cunhado por Blumer (2018), refere-se a processos de interação social. Tais interações, como já é do conhecimento geral, ocorrem entre pessoas, seja num processo individual, seja em grupo, mediadas, sobretudo, por relações simbólicas. De acordo com Blumer,

“interação simbólica” refere-se, evidentemente, ao caráter peculiar e distintivo da interação tal como ela ocorre entre seres humanos. A peculiaridade consiste no fato de que seres humanos interpretam ou “definem” as ações uns dos outros, em vez de simplesmente reagir a elas. Sua “resposta” não se dirige diretamente às ações uns dos outros, mas, em vez disso, se baseia no significado que atribuem a tais ações

(2018, p. 285).

Tendo como base essa definição, consideramos que a escola torna-se um espaço de interações, as quais permeiam toda a vida do sujeito, onde há o cruzamento de culturas com tensões, conflitos e aprendizados e onde o sujeito interpreta tais interações. Não existem práticas pedagógicas desvinculadas de questões culturais de nossa sociedade. Segundo Candau (2013, p. 15), a escola tem uma “responsabilidade específica que a distingue de outras instâncias de socialização e lhe confere identidade e relativa autonomia, é a mediação reflexiva daquelas influências plurais que as diferentes culturas exercem de forma permanente sobre as novas gerações”. A observação da realidade de cada cultura e de cada sociedade, que vê cada sujeito como um ser pensante e agente dentro de uma diversidade, é o ponto de partida para encontrar, nessa diversidade, o que torna as pessoas iguais.

Tendo como objetivo principal possibilitar aos alunos das duas localidades a troca de informações quanto ao seu espaço local e a troca de informações quanto à cultura, a hábitos de cada local, iniciou-se o projeto de troca de cartas entre os alunos das escolas de Ensino Fundamental da Província de Kanagawa – Japão com as de Veranópolis – RS com a ajuda de uma interlocutora que fala as duas línguas. A troca acontece anualmente, por meio do serviço de Correios e Telégrafos do Brasil e do Japão, entre alunos do 3º ao 9º anos das escolas de Ensino Fundamental da Rede Pública Municipal. As crianças japonesas escrevem para as veranenses e vice-versa. Elas contam fatos de sua rotina, de sua cidade, aspectos peculiares de seu cotidiano, incluindo fotos e características geográficas e culturais próprias de cada espaço local. A troca de cartas continua acontecendo anualmente, desde 2016 até os dias atuais.

A tradução das cartas, em ambas as línguas, teve como mediadora a idealizadora do projeto, nascida em Kanagawa, no Japão, mas com residência fixa no Rio Grande do Sul – Brasil. A centralização das cartas acontece na Secretaria Municipal de Educação de Veranópolis, endereço de referência tanto para o envio quanto para o recebimento. Ao serem enviadas às suas respectivas escolas, a direção entrega para as professoras de cada turma, que, por sua vez, compartilham com os alunos. A leitura das cartas é realizada de forma individual, pelos alunos e, posteriormente, socializada com todos os demais.

A leitura das cartas é um momento muito significativo, pois as experiências e os acontecimentos nelas narrados são socializados, para que cada aluno tome conhecimento dos aspectos que os amigos japoneses consideram importantes para serem compartilhados com os colegas brasileiros. As surpresas despertadas em relação aos jogos, às paisagens, às situações do cotidiano são evidenciadas nas expressões dos alunos, e também na pressa em responder para esse “amigo das cartas” e poder, mesmo que por narrativa própria, contar um pouco do que acontece em seu espaço social e cultural.

A despeito desse aspecto, Blumer (2018, p. 283) sustenta que “a interação humana é mediada pelo uso de símbolos, pela interpretação ou atribuição de significado às ações uns dos outros. Essa mediação equivale a inserir um processo de interpretação entre estímulo e resposta, no caso do comportamento humano”. Em consequência disso, observamos que os estudantes usaram a linguagem, seja por meio da escrita, seja por meio de desenhos, para interagir e reagir dando seus significados com base no seu momento de vida, isto é, a infância.

Escrita, interculturalidade e cidadania global: as muitas relações

Iniciamos fazendo uma breve contextualização da necessidade do renascimento da palavra escrita. A insuficiência de comunicação oral para muitas necessidades do cotidiano acabou levando o ser humano a criar, racionalmente, sinais que representassem ideias quando associadas, evoluindo, dessa forma, do sistema de representação ideográfico ao fonetismo,1 culminando no que temos, atualmente, como sistema alfabético de escrita. O sistema de escrita, desde sua invenção, tem sido fundamental para o estabelecimento da comunicação entre os seres humanos. Para Furter (1987) a abertura do nosso horizonte geográfico e a rapidez da circulação das notícias nos levam a sentir melhor as inter-relações entre as diferentes partes do mundo.

Ainda nesse aspecto, sabe-se que a identidade cultural é um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados, que estabelecem a comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade, e, ao mesmo tempo, essa identidade sofre transformações ao longo da vida e das trocas que os seres humanos estabelecem. Ao falar do impacto da globalização, na construção das identidades nacionais, é necessário abordar as transformações e a aceleração no processo produtivo de bens e de informação. Essa diminuição da distância faz com que acontecimentos produzidos em um determinado lugar (cidade, país, continente) tenham um impacto instantâneo sobre pessoas e lugares localizados a enormes distâncias. Dessa forma, Hall declara:

O que é importante para nosso argumento quanto ao impacto da globalização sobre a identidade é que o tempo e o espaço são também coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Todo o meio de representação – escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte ou dos sistemas de telecomunicação – deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais

(2004, p. 70).

Por tudo isso, é válido considerar o conceito de interculturalidade elaborado por Fleuri (2005) que indica um conjunto de propostas de convivência democrática entre diferentes culturas, buscando a integração entre elas sem anular sua diversidade; ao contrário, fomenta o potencial criativo e vital resultante das relações entre diferentes agentes e seus respectivos contextos. Essa definição articula-se ao tema, pois traduz, de forma coesa, o objetivo da troca de cartas promovida pelas instituições de ensino envolvidas e, principalmente, por objetivar que esses estudantes sejam agentes de ações de responsabilidade entre diferentes culturas tanto para eles, como também, junto com aqueles com os quais convivem. Também Furter declara:

Não só podemos tomar consciência da diversidade das civilizações, mas também organizar a sua coexistência pluralista, admitindo a necessidade de diversas soluções políticas e culturais de problemas semelhantes. Assim, o diálogo é, ao mesmo tempo, enriquecido e cada vez mais necessário, dado o caráter pluridimensional e único do nosso planeta

(1987, p. 17).

O processo de troca de cartas entre estudantes de diferentes culturas também se alinha com os preceitos da Educação para Cidadania Global (ECG) que significa uma forma de promover a conscientização, desde a infância, de respeito à diversidade, à cultura e, dessa forma, a promoção de cidadãos globais. O documento da Unesco) enfatiza que a

ECG é um marco paradigmático que sintetiza o modo como a educação pode desenvolver conhecimentos, habilidades, valores e atitudes de que os alunos precisam para assegurar um mundo mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável

(2015, p. 9).

Essa afirmação vai ao encontro de um novo momento pelo qual a sociedade está passando, ou seja, as instituições de ensino precisam se engajar nessa realidade em constante movimento, pois os estudantes têm, na palma da mão, o mundo todo, repleto de novas inserções tecnológicas, étnicas, culturais e comportamentais, e o respeito é um dos pontos fundamentais. Diante dessa realidade, Gómez (2015) ressalta que as transformações substanciais ocorreram em três áreas fundamentais da vida social: no âmbito da produção/consumo (economia); no âmbito do poder (político); e no âmbito da experiência cotidiana (sociedade e cultura). O autor explica que estamos diante de uma mudança de época e não, apenas, em um momento de transformações.

Ainda segundo a Unesco (2015), em um mundo globalizado, a educação vem enfatizando a importância de equipar indivíduos, desde cedo e por toda a vida, com conhecimentos, habilidades, atitudes e comportamentos de que necessitam para ser cidadãos informados, engajados e com empatia. Com essa interconectividade cada vez maior, por meio de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), as oportunidades para respostas de colaboração, cooperação, aprendizagem compartilhadas e coletivas têm aumentado.

Segundo Cruz et al. (2012), a cultura é sempre relacionada às heranças sociais de um indivíduo ou de determinado grupo de pessoas por meio das quais adquire ou desenvolve crenças e práticas comportamentais influenciado pelo contexto onde está inserido. Os autores destacam, ainda, que o estudo da influência da cultura na aprendizagem tem se expandido devido à intensidade com que pessoas de diferentes regiões do Globo facilmente interagem no mundo globalizado atual, nos âmbitos político, econômico, educacional, desconstruindo, assim, todos os limites de espaço.

De acordo com Nussbaum (2015), um modo de avaliar qualquer sistema educacional é perguntar quão bem ele prepara os jovens para viver numa forma de organização social e política. Sem o apoio de cidadãos adequadamente educados, nenhuma democracia consegue permanecer estável. A autora sustenta que escolas, faculdades e universidades do mundo têm uma tarefa importante e urgente: desenvolver nos estudantes a capacidade de se perceberem membros de uma nação heterogênea, de um mundo ainda mais heterogêneo, e de se inteirarem um pouco da história e da natureza dos diversos grupos que nela habitam. Isso vai ao encontro de Blumer (2018) quando se refere sobre as interações sociais e discorre que a sociedade humana deve ser vista como consistindo de pessoas atuantes, e a vida da sociedade deve ser vista como consistindo de suas ações. As unidades atuantes podem ser indivíduos separados, coletividades, cujos membros estão agindo juntos numa busca comum, ou organizações agindo em prol de uma comunidade.

Ainda nessa linha de pensamento, cabe analisar o documento da Unesco (2015) que destaca um entendimento comum de que cidadania global não implica uma situação legal. Refere-se, mais, a um sentimento de pertencer a uma comunidade mais ampla e à humanidade comum, bem como de promover um “olhar global”, que vincule o local ao global e o nacional ao internacional. Também é um modo de entender, agir e de se relacionar com os outros e com o meio ambiente no espaço e no tempo, com base em valores universais, por meio do respeito à diversidade e ao pluralismo. Nesse contexto, a vida de cada indivíduo tem implicações em decisões cotidianas que conectam o global com o local e vice-versa.

A tradição das cartas para promover o diálogo intercultural

A troca de cartas acontece anualmente, por meio do serviço de Correios e Telégrafos do Brasil e do Japão, entre alunos do 3º ao 9º anos das escolas de Ensino Fundamental da Rede Pública Municipal de Veranópolis. No total, 62 cartas foram trocadas entre os estudantes desde o início do projeto iniciado em 2016. Participaram dele as seis escolas de Ensino Fundamental brasileiras e uma escola japonesa. Em 2018, foram trocadas 30 cartas. Quinze cartas eram de alunos japoneses de Ninomiya, sendo 12 meninos e 3 meninas, e 15 cartas de alunos da cidade de Veranópolis, sendo 8 meninos e 7 meninas. Todas elas foram analisadas nesta pesquisa, porém, apenas algumas foram mostradas nas figuras, em virtude do número de páginas. Sob essa perspectiva, o desafio foi refletir sobre como essa prática de troca de cartas entre crianças de dois países tão distintos, tanto social como culturalmente, consegue despertar a consciência sobre questões ligadas à interculturalidade como um campo de debate sobre os processos identitários que constituem o espaço local.

A investigação partiu dos dados analisados dessas cartas, observando os detalhes relacionados ao cotidiano, aos hábitos culturais e às vivências por eles narradas. As narrativas foram individualmente analisadas na busca de evidências que demonstrassem as diferenças culturais, as semelhanças e as características mais proeminentes dos estudantes.

A partir das leituras e para a compilação dos dados, foi utilizada a Análise de Conteúdo (AC) de Bardin. Segundo ele (2011), o conceito AC designa um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.

Contribuindo com o pensamento de Bardin sobre a importância da AC, de igual destaque, Gaskell afirma que a pesquisa qualitativa

fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivação, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos

(2002, p. 65).

No contexto em questão, as cartas servem de suporte, para que os alunos envolvidos consigam expressar, através de narrativas, suas particularidades sociais, culturais e pessoais.

A troca de cartas: um mundo a descobrir

Ao analisar as cartas, ficaram evidentes alguns pontos: o primeiro deles é a abordagem do cotidiano, ou seja, eles retratam, nas suas cartas, aspectos como: pratos prediletos, animais de estimação, famílias e, no caso dos meninos, o gosto por futebol. Outro aspecto interessante é a descrição da rotina nos colégios, característica muito peculiar para a faixa etária desses estudantes e, sobretudo, mostra, para ambas as nacionalidades, o comportamento e as atividades específicas do lugar.

Como se faz notar, é na representação desse cotidiano que se traduz o que acontece em nossa vida, diariamente e, nessas coisas, representamos os fatos que se passam e seguem a ordem da rotina. Assim, pode-se dizer que o cotidiano é o dia a dia que passa, sem que as coisas pareçam passar (PAIS et al., 2003, p. 28-29). Ainda, segundo o autor,

o cotidiano é antes uma possibilidade metodológica de decifração do social. Daí o apelo a deambulamos pela imensidão do isso aí. Os riscos (ou ganhos) de nos perdermos podem ser compensados (ou potenciados) convocando um olhar seletivo e sensibilizado, desde logo do ponto de vista teórico. Com uma dupla preocupação: a ver a sociedade a nível dos indivíduos e, ao mesmo tempo, a de ver como o social se traduz na vida deles. É com esse guia de orientação metodológica que podemos cartografar o social, com o objetivo de melhor o interpretar

(PAIS et al., 2017, p. 307).

Portanto, no cotidiano, o que acontece é a rotina que se configura por ritmos sociais estruturados pela repetição, pela norma e pela regularidade e que garante ao indivíduo um sentimento de segurança. Nesse sentido, chamou a atenção, numa das cartas, a escrita de um dos estudantes ao dizer que há quatro turnos: almoço e intervalo do almoço, bem como ele cita: “limpamos a nossa escola”. Esse comportamento é algo que traz uma reflexão aos estudantes brasileiros, tendo em vista que, no Brasil, os estudantes não fazem limpeza na sua sala de aula. Na carta, percebe-se o comportamento que os japoneses têm de limpar os lugares que frequentam, uma vez que já foi possível vê-los recolhendo resíduos em eventos esportivos.

Fonte: Acervo dos autores.

Figura 1 Carta de um aluno do Japão 

Além desses, destacam-se os desenhos. A iniciativa de elaborar as cartas articulando desenhos às narrativas provém, além da troca de informações, a possibilidade de reconhecer, por meio de figuras, características peculiares dessas culturas. Citam-se, como exemplos, a carta do aluno de Veranópolis que desenhou o Restaurante Giratório, local turístico e símbolo da cidade, bem como os desenhos dos japoneses os quais demostram as formas e caraterísticas que são vistas pelos próprios alunos, em desenhos animados e gibis japoneses. Isso vai ao encontro do que escreveram Pais et al. (2017) quando sustentam que as imagens valem por si sós como realidade sociológica. Elas representam, sempre, realidades excedidas que se exacerbam no modo como e por quem são representadas. Ainda a despeito disso, os autores afirmam que

a vida cotidiana é um terreno onde se vive a experiência antropológica do olhar, de uma vadiagem do olhar que, só com sensibilidade teórica, consegue captar o que se oculta no que é visível. Por isso mesmo as imagens não devem ser consideradas um espelho do real, como supostamente se pensa acontecer com a fotografia, tantas vezes ingenuamente olhada como uma técnica de congelamento do real, assim se legitimando o seu uso equívoco como fotocópia do social

(PAIS et al., 2017, p. 308).

Um ponto de fundamental importância também são as formas de grafia, que geram curiosidade aos estudantes, pois são totalmente diferentes umas das outras. Certamente, a forma de escrever dessas crianças provoca curiosidade nesses estudantes e, até mesmo no futuro, pode ser um estímulo para o estudo e a aquisição de nova língua.

Fonte: Acervo dos autores.

Figura 2 Carta de um aluno do Japão 

Essas categorias apresentadas encontram-se nas narrativas construídas em cartas dos alunos. Podemos reconhecê-las nos excertos a seguir:

“Olá Sayoco Nakayina. Em minha cidade não é muito comum a culinária japonesa, mas temos um restaurante japonês, mas não tive a oportunidade de provar Sushi. Também gosto de estudar e minhas matérias favoritas são Ciências e Matemática. Meu esporte favorito é vôlei e futebol, e também gosto de jogar jogos on-line como CLASH ROYALE e CLASH OP CLANS. Qual seus esportes e jogos favoritos? Eu também gosto de gatos eu tenho uma gatinha chamada Mima”

(D. Z., 6º ano).

“Este ano estamos nos preparando para as miniolimpíadas municipais, que vão acontecer no dia oito de novembro com as modalidades: revezamento, salto em distância, lançamento de pelota. Eu gosto mais ou menos de futebol, e você? No momento não estou participando de nenhuma atividade extra-classe. Espero muito um dia poder conhecer você!”

(V. M. M., 5º ano).

“Meu nome é M. N., tenho 12 anos, moro na cidade de Veranópolis, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Eu gosto de animais, música, teatro, ciência, de desenhar, cantar, de moda, ou seja, de tudo o que envolve cultura e arte. E você gosta de cantar? Que tipo de músicas? Qual sua música preferida? Eu tenho duas: “A Thousand Years”, da Cristina Perri e “Tempo Perdido”, do Legião Urbana. Você conhece alguma música brasileira? Gostaria de conhecê-lo melhor. Beijos.”

(M., 7º ano A).

“Olá, eu sou A. Meu esporte preferido é futebol e gosto do Neymar e do William da Seleção Brasileira. Gosto muito de jogar Blood Strike e outros jogos de computador. Na cidade em que moro, há diversos pontos turísticos, alguns são: a Praça XV de Novembro, a Cascata dos Três Monges, a Caverna Indígena. Mas o mais bonito deles é o Belvedere, um monte bem alto onde enxergamos todo o vale e o Rio das Antas. Gostaria de saber sobre alguns pontos turísticos de sua cidade. Um abraço do seu amigo”

(A., 7º ano A).

“Olá Hanna! Recebi sua carta e fiquei muito feliz. O chimarrão é uma bebida bem típica da minha região. Os ingredientes são uma erva chamada mate e água quente, que são colocados numa cuia e tomamos o líquido através da bomba. Eu assisti às olimpíadas e gostei muito, pena que o Brasil não ganhou muitas medalhas. Qual é a bebida típica da sua região? Gostaria de saber. Obrigado pela carta, abraços, da sua amiga do Brasil”

(I. M. P., 7ª ano A).

Fonte: Acervo dos autores.

Figura 3 Carta de um aluno do Japão 

Ao analisar essas cartas, pode-se considerar que os alunos construíram suas narrativas com base em suas vivências e, até mesmo, tendo como pano de fundo cenários imaginários do espaço local em que o interlocutor habita, e a curiosidade em saber como se processa o cotidiano nesse outro espaço local, que hábitos fazem parte das vivências dessa outra pessoa que está trocando informações através da escrita.

Fonte: Acervo dos autores.

Figura 4 Desenho feito em uma carta de um aluno do Brasil 

Fonte: Acervo dos autores.

Figura 5 Desenho feito em uma carta de um aluno do Brasil 

Considerações finais

A partir da leitura das cartas, observa-se que as crianças contam fatos de sua rotina, de sua cidade, aspectos peculiares de seu cotidiano, incluindo figuras e características geográfico-culturais próprias de cada espaço. Há uma relação entre local e global, que é gerada pela influência cultural que ambos exercem mutuamente. Essa articulação entre crianças de ambas as nacionalidades gera novas identificações globais e locais.

Nessa troca, há uma estética particular na escrita de cartas que envolve o aluno nos aspectos relacionados à estruturação do pensamento para a escrita e, também, na elaboração da holografia como forma de ilustração e transposição do pensamento.

Desse modo, tais instituições de ensino estão se apoiando na busca das competências que a ECG (2015, p. 16) fomenta, ou seja, uma atitude apoiada num entendimento de múltiplos níveis de identidade e, também, o potencial para a construção de uma identidade coletiva que transcenda às diferenças individuais, culturais, religiosas, éticas ou outras (como o sentimento de pertencer a uma humanidade comum e o respeito pela diversidade).

Os agentes sociais se constituem em relação com o espaço social que ocupam, e o espaço social, a partir das distinções sociais que o fundam. Assim, o espaço social é marcado por símbolos de diferenciação que marcam as diferenças e as hierarquias presentes na sociedade. Nesse sentido, a dinâmica, envolvendo troca de cartas contribui para que os atores envolvidos consigam estabelecer conexões acerca dos distintos espaços em que habitam e, além disso, consigam relacionar as divergências e convergências de âmbitos sociais e culturais que os cercam.

1Neste sistema, as palavras passaram a ser decompostas em unidades sonoras.

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Recebido: 16 de Agosto de 2019; Aceito: 20 de Outubro de 2020

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