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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Maio-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021012 

ARTIGOS

O problema da normatividade na teoria do reconhecimento de Honneth

The problem of normativity in Honneth’s recognition theory

*Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre em Filosofia pela UCS. Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professor na Rede Pública de Ensino do Rio Grande do Sul. E-mail: odcamati@hotmail.com


Resumo

O texto se propõe fazer uma avaliação das possíveis respostas normativas presentes na teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Identifica três grandes respostas nas obras de Honneth que pretende analisar aqui: uma primeira teleológica, uma segunda antropológica e uma terceira ancorada na eticidade formal. Pretende mostrar a insuficiência das duas primeiras respostas porque estão baseadas em elementos contingentes e dependentes de contextos particulares. A terceira resposta apresenta elementos mais completos para o desenvolvimento de uma teoria normativa, ou também de uma teoria da justiça. O ponto decisivo apresentado por Honneth consiste na busca de um equilíbrio entre elementos normativos e elementos imanentes, tendo a reconstrução normativa como método. O que ele busca mostrar é que os critérios apontados por Honneth, a saber, ganho de individuação e de socialização, precisam de uma ancoragem moral que possa ser fornecida pelo critério de igualdade ou do igual respeito pela autonomia individual. Esse desenvolvimento é apresentado pelo próprio Honneth e, dessa forma, busca apenas identificar e problematizar as respostas do filósofo alemão. A busca aqui desenvolvida se direciona no sentido de pensar a teoria de Honneth como crítica sem abrir mão de uma fundamentação moral.

Palavras-chave Normatividade; Reconhecimento; Axel Honneth

Abstract

The text intends to make an evaluation of the possible normative answers in Honneth’s theory of recognition. I identify three major answers in Honneth’s works: a first is teleological, a second is anthropologic ant the third is anchored in formal ethics. I want to show the insufficiency of the first two answers because they are based on contingent elements and strong dependent on particular contexts. The third answer presents more complete elements for the development of a normative theory, or also a theory of justice. Honneth’s decisive point is the search for a balance between normative and immanent elements, with normative reconstruction as method. What I want to show is that Honneth’s criteria, namely gain of individuation and socialization, need a moral grounding that can be provided by the criterion of equality or equal respect for individual autonomy. This development is presented by Honneth himself, so I want only to identify and problematize the responses of German philosopher. The investigation developed here is directed towards thinking Honneth’s theory as critical without failing to value morality.

Keywords Normativity; Recognition; Axel Honneth

Considerações iniciais

Como fundamentar, normativamente, uma teoria do reconhecimento? Essa questão tem sido dirigida às teorias do reconhecimento por parte dos seus críticos e coloca algumas dificuldades. Obviamente, não pretendo dar conta de todos os questionamentos, pois estou me propondo avaliar algumas respostas que identifico nos escritos de Honneth. São elas: a) uma resposta teleológica; b) uma resposta antropológica; e c) uma resposta formal (em termos mais precisos, na eticidade formal). É possível questionar, ainda, se essa divisão é, de fato, adequada. Portanto, até mesmo a classificação aqui proposta, a partir da obra de Honneth, pode ser colocada em dúvida. Acredito que esse questionamento é válido na medida em que não me proponho analisar todos os textos honnethianos, mas aqueles mais consagradas pela literatura filosófica. Ampliando essa análise, seria possível afirmar uma resposta embasada em uma espécie de ontologia social1 que estaria presente na teoria de Honneth, assim como de Charles Taylor. Essa tese não será desenvolvida neste texto, mas aparecerá em alguns pontos isolados, portanto, não objetivo fazer uma análise detalhada de tal temática.

Voltarei em seguida a essas dificuldades. Antes, quero entender o porquê dos questionamentos normativos às propostas teóricas ancoradas na noção de reconhecimento. Parece-me que, parte da resposta reside nos termos em que o debate entre liberais e comunitaristas se desenvolveu, especialmente nas décadas de 80 e 90, tendo Rawls como o parâmetro de um novo fortalecimento das discussões normativas no interior da filosofia política. Os liberais apresentam elementos universais, enquanto os comunitaristas estariam baseados em contextos normativos, portanto, dependentes de comunidades particulares. As teorias do reconhecimento, normalmente, estão atreladas ao comunitarismo, pois desenvolvem suas teorias tendo em vista a luta de minorias culturais pelo seu devido reconhecimento. Isso, ao menos, coloca um questionamento e pode se constituir como um problema normativo. Se as discussões em torno do reconhecimento estão vinculadas a contextos particulares, como é possível afirmar elementos normativos que sirvam como avaliadores desses mesmos contextos?2

Lembro, nesse ponto de Seyla Benhabib (2002) e de sua crítica a Taylor, pois para a filósofa turca haveria, na obra tayloriana, uma passagem da autenticidade, em nível individual, para o nível coletivo sem nenhum argumento que permitiria fazer tal transposição. Explicando melhor, Taylor coloca a autenticidade como uma âncora para a sua teoria do reconhecimento, pois, individualmente, desenvolvemos uma forma original de ser que precisa do reconhecimento dos outros via negociação.

A autenticidade seria desenvolvida pelo indivíduo na medida em que encontra uma forma de ser que lhe é única e que seja fiel com as suas crenças. Esse não é um processo solipsista na medida em que necessita do intercâmbio com os demais que oferecem respostas, positivas ou negativas, que influenciam a construção identitária. O problema, segundo Benhabib (2002), é apresentar esse mesmo argumento para grupos humanos, considerando-os como portadores de identidade tal qual são os indivíduos.

O argumento tayloriano apresenta apenas a analogia entre indivíduos e coletividades, mas não esclarece como seria a formação de uma identidade peculiar a cada grupo humano. Nesse sentido, não responde como uma identidade coletiva seria construída, que elementos seriam autênticos e como se desenvolveria uma avaliação dessas práticas, primeiramente no interior do próprio grupo e, em seguida, entre os grupos. Essa é uma resposta controversa no pensamento tayloriano, mas para o propósito presente, a saber, levantar possíveis problemas no interior de teorias do reconhecimento, já me parece suficiente. O objetivo aqui não é apresentar a teoria tayloriana em seus pormenores, mas mostrar como é possível levantar questionamentos de ordem normativa àquelas teorias que têm, no reconhecimento, seu ponto central.

Dessa forma, estaríamos diante de um limite que nos impediria de pensar em elementos normativos transcendentes aos contextos particulares? Parece-me que não. Contudo, cada teoria particular oferece algumas possibilidades para dar conta desse questionamento. Para dar um exemplo, Taylor (2000) recorre a elementos hermenêuticos e desenvolve uma espécie de ontologia do ser social para oferecer princípios normativos que não respondam apenas a comunidades específicas. Se isso é suficiente, ou não, não interessa neste momento, porque quero verificar os encaminhamentos propostos por Honneth. O que sobra disso é que a dificuldade não é desmedida, porque se coloca como objeto de discussão nas diversas teorias. Ainda nessa esteira, se as respostas são variadas, significa dizer que estamos diante de uma dificuldade ainda não sanada, o que, portanto, justifica o interesse nesse debate.

Mas e quais são as soluções normativas de Honneth? São elas suficientes para resolver o défice normativo? Vou apresentar e discutir três soluções que identifiquei nos escritos do filósofo. Devo alertar que estou baseado, em termos gerais, em duas obras: Luta por reconhecimento e Redistribution or recognition? A Political-Philosophical Exchange, o que não significa que ignorarei outros elementos apresentados pelo filósofo alemão, especialmente na obra O direito da liberdade. As obras referenciadas como que sintetizam o pensamento de Honneth e suas mudanças no decorrer do tempo. Considero que o texto que escreve juntamente com Nancy Fraser, a saber, Redistribution or recognition, é uma excelente síntese, pois Honneth responde aos seus principais críticos, e suas respostas resgatam o aspecto normativo da sua teoria. Como já indiquei, tratarei de três soluções normativas em Honneth, mas que, no fundo, direcionam-se para à apresentação de uma eticidade formal. Vamos verificar como isso se desenvolve.

Resposta normativa 1: antecipação teleológica

Uma primeira solução parece ter um caráter teleológico. Afirma Honneth:

O significado que cabe às lutas particulares se mede, portanto, pela contribuição positiva ou negativa que elas puderam assumir na realização de formas não distorcidas de reconhecimento. No entanto, tal critério não pode ser obtido independentemente da antecipação hipotética de um estado comunicativo em que as condições intersubjetivas da integridade pessoal aparecem como preenchidas.

(2003b, p. 268).

É preciso entender o que significa “antecipação hipotética”. É possível afirmar que uma antecipação hipotética é uma espécie de bem previamente colocado? Nesse ponto, seria possível discutir as relações entre o justo e o bem, que, novamente, remontam ao debate entre liberais e comunitaristas. Não vou aprofundar a discussão, pois basta lembrar que a prioridade do bem pode abrir portas para uma abordagem muito particularizada do justo, sem o vislumbre de princípios universais. Isso significa afirmar que a antecipação de Honneth levará a resultados injustos ou à impossibilidade de afirmação de princípios universais?

A resposta é negativa no seguinte sentido: a antecipação hipotética se configura como uma tentativa de superar tanto o comunitarismo quanto o liberalismo. Em outras palavras, o objetivo é estabelecer condições intersubjetivas que permitam o desenvolvimento dos indivíduos. Não há um princípio normativo vazio e, também, não há uma pura antecipação do conteúdo valorado pelos indivíduos. A proposta honnethiana consiste em oferecer algumas condições em que as personalidades individuais possam se desenvolver livremente, o que não implica a ausência de limitadores, pois tudo aquilo que ferir o reconhecimento não poderá ser aceito.

Duas breves conclusões decorrem, segundo minha análise, da primeira resposta normativa: 1. A antecipação hipotética não configura a teoria de Honneth como fortemente teleológica porque pensar em condições para o reconhecimento não implica, necessariamente, a afirmação de um conteúdo definido previamente. 2. Pensar em condições para o reconhecimento ainda não oferece parâmetros para entender o que seja um reconhecimento errôneo, ou, em outros termos, o que nos permitiria avaliar demandas por reconhecimento. Que critérios podem ser usados para avaliar as queixas daqueles que afirmam que tiveram seu reconhecimento ferido?

Nessa linha, julgo inadequado afirmar que a proposta de Honneth tenha um caráter teleológico no sentido de antecipar uma concepção de reconhecimento que não admita mudanças no seu transcurso. Está mais para a oferta de condições para que o reconhecimento se desenvolva. Rainer Forst parece não compartilhar da leitura que venho desenvolvendo acerca de uma fundamentação teleológica no pensamento de Honneth:

Pois se o que importa na sociedade justa – ou na sociedade “boa” como um todo – é realizar esse objetivo, então esse telos da vida boa, precisamente em vista da tese de que ele é anterior e não está disponível à justificação democrática, poderia se transformar em um bem ético sobre o qual os sujeitos têm um direito e que deve ser realizado independentemente das formas de produção justificadas autonomamente

(2018, p. 65).

Seguindo o raciocínio de Forst, seria possível identificar a antecipação de um telos, a autonomia pessoal, na teoria do reconhecimento de Honneth. O indivíduo seria o beneficiário frágil de uma série de construções sociais que, no fundo, visam à sua própria autonomia. Uma tal antecipação coloca em xeque a construção intersubjetiva e comunicativa que os indivíduos podem desenvolver no sentido de exercer a autonomia. Haveria uma antecipação de algo que depende de relações, mas que seria colocado sob a responsabilidade de instituições que teriam que afirmar e garantir, em última instância, que os indivíduos alcancem sua autonomia. Parece mais coerente afirmar que os próprios indivíduos podem construir esse espaço de autonomia, sem a necessidade de estabelecer uma tal antecipação.

Entendo que a crítica de Forst é coerente, mas não capta todo o projeto honnethiano, pois há uma coextensão entre o procedimento e a verificação das condições históricas dos grupos humanos. Não há um puro procedimento, antes, essas condições estão sempre atreladas a contextos vivenciais concretos porque o objetivo é desenvolver uma reconstrução normativa não desvinculada. Por outro lado, a análise das condições para o reconhecimento parece carecer de princípios avaliativos que possam transcender aos contextos avaliados; em outras palavras, que se coloquem como parâmetros de avaliação minimante independentes. Colocando em outros termos, considero que o procedimento não está vazio de conteúdo, mas tem limitações normativas, visto que não ofereceria normas morais que fossem transcendentes aos contextos. A sequência do texto visa a mostrar os limites de uma tal classificação.

Resposta normativa 2: fundamentação antropológica

Com isso, passamos a avaliar uma segunda possibilidade de fundamentação normativa que estaria ancorada em premissas antropológicas. Essa segunda possibilidade passa, muito, pela análise, se Honneth está afirmando uma concepção de natureza humana. Por que colocar tal questionamento? Isso se deve ao fato de o filósofo apresentar três relações necessárias, para que o indivíduo alcance o reconhecimento de sua identidade. Seriam três esferas fixas ou elas permitiriam alterações em seu interior?

Quando pensamos em família, sociedade civil e Estado a partir da obra de Honneth, parece que colocamos esferas nas quais o indivíduo deve, necessariamente, estar vinculado de uma forma específica, pois cada uma delas ofereceria um elemento importante para a formação individual. Isso implicaria afirmar que existem instituições com um grau de flexibilidade muito pequeno, e que indivíduos serão formados integralmente, se passarem por essas etapas de uma maneira determinada.

É esse o entendimento de Honneth? Se ficarmos apenas com o texto Luta por reconhecimento, uma resposta afirmativa não seria estranha. Contudo, em O Direito da liberdade e no texto que também estamos analisando aqui, Redistribution or Recognition?, verificamos um entendimento diferente dessa questão. O que muda no entendimento honnethiano?3 As instituições podem sofrer variações, o que importa é como elas oferecem condições para o desenvolvimento do amor, do tratamento igual e da estima social.

Novamente, estamos diante de generalidades que carregam elementos formais, porque se configuram como condições para o reconhecimento. Assim, essa segunda fundamentação também se aproxima da terceira e o que é mais importante, da eticidade formal. Contudo, neste segundo momento, não é possível afastar, totalmente, a acusação de que Honneth está apresentando elementos de antropologia para sustentar sua teoria. Justifico essa sentença. Quando afirma que as instituições devem oferecer condições para o desenvolvimento de relações de amor, igualdade e estima social, está colocando esses elementos como fundamentais para o desenvolvimento individual, contudo, são características que dependem de uma verificação empírica, além de estarem atreladas a realidades diferentes. Se as condições para o desenvolvimento do amor, da igualdade e da estima dependem, exclusivamente, de verificação empírica, então, não se constituem como avaliadores morais. Na sequência do texto, pretendo mostrar como a teoria de Honneth vai além de uma simples verificação empírica.

Nessa linha, concordo com o argumento de Raymond Geuss, pois haveria, em Honneth, uma sobreposição entre duas formas de reconhecimento: uma vinculada às condições de socialização, e outra como precondição para todo o conhecimento.

Em sua teoria (a de Honneth), o reconhecimento deveria satisfazer duas condições distintas ao mesmo tempo: de um lado, o reconhecimento em questão deve ser uma precondição estrita para toda forma de conhecimento humano; de outro lado, esse reconhecimento deve favorecer o fundamento para uma análise não moralizadora das patologias sociais e, assim, para uma crítica radical das sociedades

(GUESS, 2018, p. 173).

Não tratarei da primeira forma de reconhecimento, porque não é o foco do presente trabalho, mas é de se registrar o fato de Honneth estar ampliando sua análise sem oferecer elementos de justificação. O ponto decisivo que me interessa, aqui, é como certa concepção de reconhecimento pode realizar uma crítica radical da sociedade, a qual possa ser justificada moralmente. A confusão aqui referenciada, entre duas formas de reconhecimento, coloca um empecilho, pois impede uma verificação mais clara dos argumentos honnethianos. Jonathan Lear vai na mesma direção:

Nesse argumento, tudo depende de como estamos mudando entre reconhecimento 1 (a capacidade necessária para o desenvolvimento da linguagem e de competências sociais básicas) e reconhecimento 2 (as capacidades para o reconhecimento que são parte do florescimento humano). O mero fato de que o reconhecimento 1 precisa estar presente desde a infância para que possamos nos desenvolver plenamente não nos dá razão para pensar que o reconhecimento 2 tem de estar presente na vida adulta

(2018, p. 187).

A questão que fica dos professores acima citados é a seguinte: Qual é a forma de reconhecimento que Honneth está tomando em consideração nos seus textos e que tem caráter decisivo? Chamo a atenção para o fato de que uma das formas de reconhecimento trata do florescimento humano, o que, consequentemente, remonta a uma espécie de antropologia filosófica de fundo, pois Honneth estaria assumindo que a integridade identitária seria condição necessária e suficiente para que o indivíduo alcance sua realização. Dessa forma, fica latente a necessidade de basear sua teoria em uma determinada concepção de ser humano. Parece que um limite pode ser apresentado aqui: ou se aceita a concepção antropológica e se parte para a avaliação moral, ou se rejeita a antropologia e, consequentemente, todo o restante da teoria. Esse é um risco assumido pelas concepções morais que baseiam sua argumentação em elementos antropológicos.

Outro ponto decisivo para uma teoria moral com elementos antropológicos, como a de Honneth, é a necessidade de oferecer uma conceituação do que seria uma vida saudável, ou, em outros termos, o que seria o pleno desenvolvimento humano.

Porém, uma vez mais, procedemos de forma distinta. Honneth sustenta que é impossível articular adequadamente os ideais liberais sem uma teoria de vida boa. Portanto, embasa a sua teoria da justiça em uma concepção da prosperidade humana. A concepção que apresenta é, ademais, psicológica, ao manter a prioridade que concebe à psicologia moral. Por conseguinte, para Honneth, o ingrediente básico do progresso humano é uma “identidade intacta”

(FRASER, 2003a, p. 168, tradução nossa).

A teoria assume um ônus perfeccionista que dificulta a busca por critérios que sejam transcendentes aos diferentes grupos humanos, pois, como seria possível estabelecer uma concepção de florescimento humano com validade universal? Parece mais adequado pensar em critérios que funcionem como condições, para que o desenvolvimento de cada indivíduo ocorra à sua própria maneira. Isso poderia ser respondido na medida em que Honneth oferece uma teoria com características formais, mas, ainda, poderia ser insuficiente; assim, seria mais vantajoso enfraquecer o argumento antropológico ou perfeccionista, buscando pensar em condições para o florescimento humano.

O que proponho é o enfraquecimento de uma noção rígida de constituição antropológica, pois isso geraria um ganho de fundamentação moral na medida que possibilita uma aceitação mais abrangente. Além disso, retirar a força antropológica também pode responder às críticas endereçadas a Honneth de que sua teoria apresenta um demasiado acento em elementos de ordem psicológica. Seguindo nessa linha, quando a teoria afirma que o reconhecimento está atrelado a respostas psicológicas e uma compreensão de identidade intacta, acaba se comprometendo, decisivamente, com uma verificação empírica que, novamente, retira a força normativa da teoria.

Judith Butler caminha nessa mesma direção:

Portanto, na minha perspectiva, modos de envolvimento carregam significados morais diferentes; eles não são delimitados por alguma estrutura, relação ou vínculo predeterminados, muito menos se estes forem normativos, e essa razão de por que estamos sob a responsabilidade de negociar entre tais envolvimentos da melhor maneira que pudermos

(2018, p. 143).

Nesse sentido, afirmar uma forma de reconhecimento como condição prévia da própria constituição humana seria afirmar que, inatamente, caminhamos na direção do engajamento com os demais. A própria psicologia social afirma que esse processo não se desenvolve sem dificuldades, portanto, parece necessária uma negociação entre os indivíduos na sua constituição social, a fim de garantir o reconhecimento. Nessa linha, a estratégia de Honneth de pensar o reconhecimento no processo de socialização, e não como pré-condição, parece mais bem-fundamentada, mas é suficiente?

Seguindo nessa linha, a saber, pensar o reconhecimento no processo de socialização, não ignoro que o objetivo central do filósofo alemão é aliar elementos formais com conteúdos históricos. Em alguma medida, esse objetivo é alcançado, mas parece que à custa de enfraquecer os elementos normativos. Permanece uma questão: Amor, igualdade e estima social são suficientes para garantir o reconhecimento de todos os indivíduos? É possível que no interior desses elementos se desenvolvam injustiças? Como contrapô-las?

Resposta normativa 3: a eticidade formal

Dessa forma, chegamos à análise da eticidade formal e de sua dependência da noção de igualdade. O conceito eticidade formal, retirado da obra Luta por reconhecimento, pode ser traduzido como o estabelecimento de condições de autorrealização para os indivíduos. Proponho-me a verificar o que, exatamente, isso significa e por que acredito que não é possível dissociá-la da afirmação do critério de igualdade. Honneth afirma: “A moralidade social pode também ser entendida como uma articulação normativa de princípios que governam o modo pelo qual os sujeitos se reconhecem em uma dada sociedade.” (HONNETH, 2003a, p. 181, tradução nossa).

Em linhas gerais, o objetivo é encontrar elementos que sirvam como avaliadores das práticas de reconhecimento existentes entre indivíduos, mas que não estejam unicamente vinculados aos contextos em questão, quer dizer, que se apresentem como contextuais e formais ao mesmo tempo. Poderíamos falar, também, da relação entre grupos, mas essa é outra história com a qual Honneth não se defronta claramente.4 É por isso que as expectativas de reconhecimento não se derivam somente de uma teoria antropológica, mas se vinculam a instituições legitimamente constituídas. Afirma: “Eu estou também preocupado em mostrar que a dependência distintivamente humana do reconhecimento intersubjetivo é sempre moldada pela maneira particular pela qual a concessão mútua de reconhecimento é institucionalizada dentro da sociedade” (HONNETH, 2003a, p. 138, tradução nossa).

Nesse sentido, a moralidade diz respeito à forma como os indivíduos se reconhecem no ordenamento social, tendo as instituições legítimas como pano de fundo. Mas é isso suficiente para garantir fundamentos sólidos para a teoria do reconhecimento? A resposta me parece negativa no sentido de que as instituições são dependentes de elementos fortemente contingentes. O desenvolvimento de um critério normativo poderia dar conta dessa problemática.

Vou apresentar alguns argumentos de que Honneth faz uso, a fim de fortalecer sua tese acerca da eticidade formal. O primeiro argumento já aparece em Luta por reconhecimento, depois é retomado e desenvolvido nos textos seguintes e trata das três esferas de reconhecimento. Podemos falar em amor, tratamento igualitário e estima social sem, necessariamente, atrelarmos essas esferas a instituições fixas e não modificáveis, o que responde a uma das críticas endereçadas à Honneth, a saber, que estaria desenvolvendo uma teoria fixa das esferas de reconhecimento. O que importa é que as instituições garantam o desenvolvimento dos indivíduos em termos de amor, igualdade e estima.

O ponto que me interessa, neste momento, é que essas três esferas já apresentam alguns limitadores para demandas por reconhecimento. Significa que uma demanda, na ordem de uma relação de amizade, não pode ser confundida com uma demanda de ordem igualitária. Para facilitar o entendimento, apresento um exemplo: não é possível atribuir o mesmo peso a uma “traição” entre amigos do que para o desrespeito de gênero. Assim, a violência contra a mulher é, ou deveria ser, punida de forma muito mais incisiva do que um desrespeito cometido entre amigos. Atrelado a isso, ficamos na dependência de averiguar o grau de desrespeito que ocorreu entre os amigos. Quando tratamos de violência de gênero, essa verificação não se faz necessária porque, por si só, temos um desrespeito à igualdade e, portanto, ausência de reconhecimento. Nessa linha, parece-me que cada uma das diferentes esferas de reconhecimento apresenta critérios distintos de avaliação de práticas de desrespeito, e isso já se constitui como um elemento avaliativo.

Um segundo ponto fundamental afirma que as demandas por reconhecimento precisam ser apresentadas e compreendidas como semânticas coletivas.

Mas é claro que esses onipresentes conflitos só se tornam “lutas” em um sentido político mais exigente quando um número suficientemente grande daqueles afetados se reúne para convencer o público mais amplo do significado exemplar das suas causas, questionando, assim, a ordem estabelecida como um todo

(HONNETH, 2003a, p. 155, tradução nossa).

Para que uma demanda de reconhecimento se torne uma semântica coletiva é preciso que seja articulada como uma demanda requerida por um considerável grupo de pessoas que se sente desrespeitado em alguma das esferas de reconhecimento. Implica que, num primeiro momento, a demanda seja avaliada e validada pelo próprio grupo como um elemento fundamental para seus membros individualmente e, também, para o próprio grupo. Num segundo momento, essa demanda apresentada coletivamente será avaliada por toda a sociedade porque colocará questionamentos para a ordem vigente. Dois caminhos se apresentam: a) a acolhida das demandas; ou b) a rejeição das mesmas. Rejeitar uma demanda de reconhecimento exige a oferta de argumentos convincentes, do contrário, a luta seguirá.

Apesar de todos esses pontos, ainda não me parece que a normatividade esteja assentada em bases sólidas. Ainda falta um elemento que não esteja atrelado somente aos contextos particulares e às suas respectivas instituições. Para dar conta disso, Honneth se propõe desenvolver uma concepção de justiça. Para garantir que, de fato, ocorra esse processo, o filósofo pensa numa noção de justiça que visa a: estabelecer condições para a formação da identidade pessoal nas três esferas. Mas, então, que garantias seriam oferecidas?

A justiça ou bem-estar de uma sociedade é proporcional à sua capacidade de garantir condições para o mútuo reconhecimento sob a qual a formação da identidade individual, portanto, da realização do self, pode proceder de forma adequada

(HONNETH, 2003a, p. 174, tradução nossa).

Em outras palavras, a justiça se efetiva sempre que uma sociedade oferece as condições necessárias para o desenvolvimento e a realização da identidade individual de seus membros, lembrando que se trata de um processo dependente de relações intersubjetivas que se desenvolvem no interior de instituições sociais. Então, parece que ainda é preciso questionar como poderemos avaliar se a justiça foi efetivada ou não. Forst resume esse argumento da seguinte maneira:

Nas questões de justiça, temos de recorrer a uma gramática normativa de justificação específica, que está profundamente ancorada em nossos juízos normativos: ela funciona como um filtro que diferencia as pretensões justificáveis e as não justificáveis, que, por um lado, abre e, por outro, novamente limita, as possibilidades de surgirem reivindicações por justiça

(2018, p. 184).

Com esse objetivo em mente, Honneth oferece dois critérios como avaliadores: primeiramente, é preciso verificar em que grau está o progresso de individuação, ou seja, em que medida a sociedade proporciona avanços na constituição identitária de seus membros. O critério é verificável na medida em que se pode analisar o quanto de progresso cada um dos indivíduos consegue percorrer em instituições das quais é membro. O segundo critério trata do progresso de inclusão social, pois problemas são identificados quando a organização social estiver excluindo alguém da possibilidade de ganho de individuação.

De um lado, vemos, aqui, um processo de individuação, isto é, o aumento de oportunidades de articular de maneira legítima as partes da própria personalidade; de outro lado, vemos um processo de inclusão social, isto é, a expansão da inclusão de sujeitos no círculo de membros plenos da sociedade

(HONNETH, 2003a, p. 184-185, tradução nossa).

Segundo esses critérios, uma sociedade é justa quando oferece condições para que todos os seus membros possam desenvolver sua identidade individual. Haveria o que Honneth chama de “excesso de validade das normas e princípios” o que, consequentemente, garante que os indivíduos possam ganhar em termos identitários e que os grupos possam incluir, mais adequadamente, seus próprios membros. O excesso de validade tem como medida os dois critérios apresentados acima: ganho no processo de individuação e aumento de inclusão social. Temos um critério formal que se vincula às três esferas de reconhecimento que oferecem um conteúdo. Entretanto, todas as demandas de reconhecimento dirigidas ao progresso de individuação, que forem apresentadas através de uma semântica coletiva, devem ser acolhidas? A avaliação se dará sempre de acordo com o contexto em questão?

Não, porque existe um elemento que não está totalmente atrelado aos contextos particulares, afirma Honneth:

E parecem acima de tudo serem os processos de legalização – ampliando o princípio de tratamento jurídico igualitário – que têm o potencial inerente de intervir corretivamente em outras esferas de reconhecimento, assegurando a proteção das condições mínimas de identidade

(HONNETH, 2003a, p. 188, tradução nossa).

Portanto, haveria um critério que não está vinculado aos contextos particulares e que serve, em última análise, para a avaliação dos processos de reconhecimento que se desenvolvem nas três esferas. O que resta dessa argumentação é que Honneth tenta, como que, superar a dicotomia entre liberais-comunitaristas ao apresentar uma eticidade formal que não estaria esvaziada de conteúdo. O propósito está, em parte, alcançado, pois apresenta uma noção de justiça que tem como objetivo garantir o processo de individuação nas três esferas de reconhecimento, e que tem, como base de sustentação, instituições sociais.

Contudo, no fim das contas, o critério último é formal e universal, a saber, o tratamento legal igualitário. Logo, tem dificuldades para estabelecer uma teoria com bases normativas sem recorrer à universalidade do princípio da igualdade, ainda que essa esteja vinculada ao ordenamento jurídico. Parece-me que o que resta é a necessidade de um princípio formal. Forst caminha na mesma direção:

No que diz respeito à justificação dessas relações ou reivindicações, é evidente que o critério essencial, se não o único, é o da igualdade – ou da reciprocidade, em meus termos. Isto é explícito na esfera do reconhecimento jurídico, mas também é válido para as reivindicações por reconhecimento cultural, que, segundo Honneth, devem ser forçados a passar pelo “olho da agulha do princípio da igualdade”

(FORST, 2018, p. 192).

Considerações finais

Sendo assim, teríamos um critério último de avaliação com força moral, porque não seria dependente de cada contexto em particular. O que deve ocorrer é que, nos contextos particulares, se desenvolvam as condições para a afirmação da igualdade. Honneth assume esse ponto ao afirmar: “[A] reivindicação por igual respeito pela autonomia individual a todos os sujeitos goza de absoluta prioridade” (2007, p. 155-156, tradução nossa). Temos, portanto, um aspecto formal não esvaziado de conteúdo, mas que tem seu fundamento no princípio da igualdade.

A partir das três possibilidades de fundamentação moral, é possível concluir que a eticidade formal é a que oferece um encaminhamento razoável, pois a antecipação hipotética coloca um peso teleológico no sentido de que a teoria precisaria estabelecer uma finalidade antes mesmo do seu próprio desenvolvimento. Segundo, a fundamentação antropológica onera a teoria obrigando-a a definir o que seria uma identidade intacta. Por sua vez, a eticidade formal apresenta um procedimento acompanhado de determinados conteúdos, o que não torna a teoria presa a questões empíricas, por um lado, e a questões puramente formais, de outro. Contudo, para que se desenvolva esse processo, é necessário, segundo meu entendimento, um princípio moral que não esteja diretamente vinculado aos contextos particulares. Esse princípio, ancorado na vontade democrática, é a igualdade.

1Uma teoria que tem fundamentos em uma ontologia social precisa apresentar em que medida o indivíduo e a sociedade estão vinculados, e quais são os elementos que permitiriam estabelecer esse vínculo.

2Esse questionamento se justifica na medida em que a normatividade em filosofia política, especialmente depois de Rawls, almeja trascender contextos particulares. Existem tentativas de construir normatividade sem propriamente transcender aos contextos, mas que não serão analisadas neste texto. Para aprofundar essa discussão, ver: Walzer (2003).

3É possível questionar se existe, mesmo, uma mudança nos textos de Honneth, mas, no meu entendimento, podemos verificar que o filósofo alemão, ao responder às críticas de que sua teoria apresentaria um caráter psicológico, desenvolve uma argumentação mostrando como o reconhecimento é o principal tema político, tendo as instituições como ponto basilar. Portanto, passaria de uma análise supostamente psicológica para uma análise política e social. Ver: Sobottka (2015).

4Para quem deseja analisar essa temática vale a pena conferir a obra de Taylor, pois enfatiza esse elemento ao discutir o multiculturalismo. Ver: Taylor (1998).

Referências

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Recebido: 03 de Março de 2021; Aceito: 20 de Abril de 2021

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