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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021015 

ARTIGOS

Bullying a partir de uma narrativa biográfica: família e escola no cerne da questão

Bullying from a biographical narrative: the school practices in the cerne of the question

*Psicóloga. Mestra e Doutora em Educação. Docente no Departamento de Psicologia da Faculdade Estácio – SE. E-mail: mi.aragao@yahoo.com.br


Resumo

A violência percebida – e vivida – por estudantes manifesta-se de múltiplas maneiras, no ambiente escolar, entretanto um dos tipos de violência que provoca grande dano físico e psíquico ao estudante é a agressão conhecida como bullying (valentão ou brigão em tradução livre para a língua portuguesa). Esse pode ser compreendido como práticas de atos violentos, intencionais e repetitivos de uma pessoa contra outra. Como decorrências, a vítima pode sofrer desde sintomas de ansiedade, depressão, baixo desempenho escolar, comportamentos antissociais e stress, até autoflagelação e suicídio. Partindo desse contexto, o presente artigo objetivou discutir, criticamente, o papel da família e da escola como espaços que podem erigir e potencializar o fenômeno bullying, bem como sugerir possibilidades de ação na perspectiva da cultura de paz no ambiente escolar. Como caminho metodológico, foi entrevistado um estudante que, por longos anos, foi vítima de bullying. As entrevistas ocorreram na perspectiva da História Oral, a qual impele um olhar sociocultural ao fenômeno narrado, compreendendo que nenhuma história é apenas individual, mas está inscrita num cenário social e culturalmente construído. O suporte teórico está apoiado nos estudos de Pierre Bourdieu (1996), Cleo Fante (2011), Miriam Abramovay (2010), entre outros autores, que auxiliam a refletir sobre as relações socioculturais na interface com a violência escolar. O texto foi finalizado com uma análise crítica a respeito do papel da escola no combate e na prevenção do bullying, bem como indicando possibilidades de ação para lidar com o problema, tendo como base a comunicação não violenta, a disciplina positiva, dentre outros caminhos que se inserem na perspectiva da cultura de paz.

Palavras-chave Bullying; Escola; Narrativas

Abstract

The violence perceived – and experienced – by students manifests itself in multiple ways in the school environment, however one of the types of violence that causes great physical and psychological damage to students is the aggression known as bullying (bully or bully in free translation into the language) Portuguese). This can be understood as the practice of violent, intentional and repetitive acts by one person against another. As a result, the victim may suffer from symptoms of anxiety, depression, poor school performance, antisocial behavior and stress, to self-harm and suicide. Based on this context, the present article discussed the phenomenon of bullying (in its also homophobic aspect) from the experience of a subject who experienced such violence in the school environment for many years, in order to provide a critical-reflective process on the subject in question. Therefore, the biographical narrative was chosen as the methodological path, which impels a socio-cultural look at the narrated phenomenon, understanding that no story is only individual, but is inscribed in a socially and culturally constructed scenario. Theoretical support is supported by the studies of Pierre Bourdieu (1996), Cleo Fante (2011), Miriam Abramovay (2010) among other authors who help to reflect on the socio-cultural relations at the interface with school violence. The text ended with a critical analysis of the school’s role in combating and preventing bullying, as well as indicating possibilities for action to deal with the problem, based on non-violent communication, positive discipline, among other ways inserted in the perspective of a culture of peace.

Keywords Bullying; School; Narratives

Introdução

No Brasil, a Lei n. 13.185, de 6 de novembro de 2015, determina que escolas adotem medidas de prevenção e combate ao bullying, incluindo a capacitação de docentes e equipes pedagógicas para implementar ações de prevenção e solução do problema; orientação a pais e responsáveis sobre o fenômeno; realização de campanhas educativas em conjunto com os estudantes; e promoção de assistência psicológica, social e jurídica às vítimas e aos agressores. Segundo o texto da lei, a punição a quem pratica bullying deve ser evitada, em prol de alternativas que promovam a cidadania, a capacidade empática e o respeito, nos marcos de uma cultura de paz.

Todavia, a naturalização das situações de bullying (como um ato de brincadeira entre colegas) leva à sua permanência em solo escolar, apartando as necessárias discussões sobre sua incidência, e, concomitante, a importância da escuta às vítimas e autores das agressões como caminho para a compreensão do fenômeno (FANTE, 2011).

Destarte, o presente texto objetiva discutir criticamente o papel da família e da escola como espaços que podem erigir e potencializar o fenômeno bullying, bem como sugerir possibilidades de ação na perspectiva da cultura de paz no ambiente escolar.

Para tanto, escolheu-se como caminho metodológico a narrativa biográfica na perspectiva da História Oral, a qual está atrelada a processos culturais, sociais e históricos, que são problematizados por meio de diálogo com as experiências dos sujeitos; narrativas impregnadas de significações apropriadas ao longo da vida. Dessa maneira, as narrativas produzidas são representações de sujeitos ou grupos, contendo lembranças de um tempo passado, que são ressignificadas no momento da entrevista (ALBERTI, 2005).

O papel do pesquisador está em ouvir as falas do sujeito no intuito de entendê-las como construções socioculturais e uma das possibilidades de compreender o objeto de estudo. Nesse caso, o fenômeno bullying e seus efeitos na vida de quem o experiencia, transita do texto – a vida íntima do indivíduo – ao contexto mais amplo, uma vez que nenhuma história é apenas individual, mas está inscrita num cenário social e culturalmente construído.

Assim, se prioriza a escuta de um jovem, registrado para este artigo como R., gênero masculino, estudante, 24 anos, o qual experienciou, por longos anos, situações de bullying no cotidiano escolar.

Cabe frisar que o termo experiência é aqui utilizado na perspectiva defendia por Josso (2004). A autora diferencia vivência de experiência, na medida em que a primeira, mesmo fazendo parte do cotidiano do sujeito, nem sempre oportuniza um processo de aprendizagem com vistas à mudança. Já a experiência é compreendida como a possibilidade de transformar uma vivência em fonte de aprendizagem, provocando mudanças no comportamento e nas formas de ver o mundo, indicando a existência de um trabalho reflexivo sobre o que foi vivenciado. Todas as experiências podem ser consideradas vivências, mas nem todas as vivências tornam-se experiências. Assim, a narrativa de R. evidencia sua experiência, tendo em vista ele ter conseguido refletir criticamente sobre seu processo, permitindo-se desconstruir a naturalidade com que a violência é percebida culturalmente.

Logo, nas linhas que seguem, a narrativa de R. dialogará com o complexo fenômeno compreendido como bullying, sendo esse multifacetado e culturalmente erigido, denunciando forte vínculo com a naturalização da violência nos âmbito doméstico e escolar.

O texto está dividido em duas partes: na primeira, consta a narrativa de R. e sua análise, expondo-a de forma contínua, sem desconstruí-la, para que o leitor possa experimentar a intensidade dos sentimentos presentes no texto. A segunda, além de oportunizar um processo crítico-reflexivo sobre o papel da escola, sugere possibilidades de ação com vistas à prevenção e resolução do conflito, utilizando princípios da educação para a paz, tal como propostos na lei, elegendo três bases teórico-metodológicas: comunicação não violenta; disciplina positiva; e disciplina restaurativa.

“Não recomendado à sociedade.”

“[...] A placa de censura no meu rosto diz:

Não recomendado à sociedade.

A tarja de conforto no meu corpo diz:

Não recomendado à sociedade.

Pervertido, mal amado, menino malvado, muito cuidado!

Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado! [...]

[...] Não olhe nos seus olhos

Não creia no seu coração

Não beba do seu copo

Não tenha compaixão

Diga não à aberração

A placa de censura no meu rosto diz:

Não recomendado à sociedade.

A tarja de conforto no meu corpo diz:

Não recomendado à sociedade.”

(Caio Prado)

A epígrafe acima provém de um trecho da música composta por Caio Prado, cujo título inspirou o nome da presente seção: “Não recomendado à sociedade”, canção que questiona os padrões sociais, um pedido de reflexão para as opressões que fazem parte da realidade de muitos que são segregados, censurados e violentados por não serem “recomendados à sociedade”.

Tal como o bullying, a música evidencia uma gama de rótulos construídos àqueles que não caminham de acordo com a ordem vigente. Tarjetas que denunciam como são vistos socialmente: burros, preguiçosos, gordos, chatos, quatro olhos, feios, lentos, entre diversos relatados cotidianamente presentes em revistas e redes sociais digitais.

Nos escritos biográficos de R., sujeito da pesquisa, também há uma série de adjetivos que o fizeram sofrer ao longo de sua vida escolar, como pode ser observado na narrativa a seguir.

Passei muito tempo sem entender o motivo de ter me afastado da família. Eles sempre questionavam a minha ausência, e quando isso acontecia, eu falava que iria aparecer... que a vida é muito movimentada (e continua, mas isso não era o real motivo). Somente agora, depois de algum tempo que o processo terapêutico foi iniciado, no momento de escrita deste texto, eu pude elaborar melhor tudo isso que vem acontecendo. Eu fui vítima de três violências – física, bullying homofóbico, negligência – isso poderia ser danoso na vida de qualquer indivíduo, mas foi severo demais para uma criança de 11 anos. Hoje, mais de uma década depois, na busca de uma explicação para as crises de ansiedade, tensões e outras perturbações que aparecem, deparo-me com essa história opressora e consigo estabelecer sofridas conexões para tudo que emerge até agora. Ao finalizar esse texto, muitos conseguirão entender o motivo pelo qual venho falando com tanta ênfase sobre a infância, na tentativa de disseminar uma educação menos violenta e porque isso mexe tanto comigo. Eu sempre fui alvo de piadas na escola, era muito comum escutar aqueles absurdos, se essa percepção auditiva da opressão já é uma carga violenta muito significativa, a tensão aumentava quando o bullying ultrapassava o sonoro e chegava a invadir o corpo. Durante a trajetória escolar, tive experiências em escolas municipais, estaduais, filantrópicas e privadas. Todas naturalizavam a violência, mas de formas diferentes, algumas estavam cientes das agressões, mas não faziam nada para dar suporte, cristalizavam, acabava sendo algo rotineiro. Enquanto isso, as outras preferiam fingir que estava tudo sob controle e nada faziam. Entendam violência física como invasão corporal, quando estudantes achavam que o corpo de um menino gay poderia ser tocado, invadido a qualquer hora sem consentimento. Também fazem parte dessa categoria as agressões físicas de um pai opressor que, ao ter ciência da orientação sexual do filho, descarrega todo seu ódio com pancadas na cabeça acompanhadas de um discurso homofóbico para justificar tal feito. A negligência assumiu o palco após a agressão física, quando aos 11 anos, o patriarcado sugere que essa criança precisa sair de casa. Isso mesmo, eu estaria sendo expulso do meu berço familiar. Resisti! (Não tinha para onde ir, nenhum familiar manifestou apoio) e paguei caro por isso também. Tinha que passar pelo bullying e agressões verbais diariamente, sem manifestar qualquer insatisfação. Medo era a palavra de ordem. Era muito vergonhoso ser quem eu era. Queria que os anos se passassem para que as pessoas pudessem esquecer aqueles episódios. Hoje eu não sei se elas lembram ou não, mas tenho tudo gravado, cada detalhe das falas, ausências, opressões e risos. Sim, muitos debochavam, a violência alheia era a pauta dos bares e conversas de calçada. Precisei me organizar para dar conta de tudo, precisei “ser adulto” aos 11 anos. Cheguei ao Ensino Médio, tempos depois, outra escola, 75 km de distância, expectativa de recomeço, virar a página, respirar. Não foi exatamente assim, eu ainda era vítima de bullying – homofóbico ou não – afinal, a violência pode estar relacionada ao período de desenvolvimento e, na adolescência, as cobranças para os meninos eram sobre a aparência corporal, como nunca tive músculos bem desenvolvidos, era mais um motivo para ser alvo dos ataques. Os opressores não eram apenas do sexo masculino, as meninas também faziam deboche. Encerro falando que a violência/opressão ultrapassa as fronteiras dos muros das escolas, lares, gêneros e quaisquer classificações que possam ser elencadas aqui. Afinal, a violência institucional, estou fazendo alusão ao bullying sofrido dentro de uma instituição da qual já fiz parte, acontece de maneira velada e dolorosa, mais um lugar onde o abuso também é naturalizado

(R., 2019).

O texto acima expõe, com propriedade, o sofrimento de R. e o quanto esse afetou sua vida adulta, gerando sintomas já previstos na literatura, como: ansiedade, stress, depressão, baixa autoestima, fragilidade na capacidade de autoaceitação, autoafirmação e autoexpressão. (FANTE, 2011). Todavia, há dois elementos de suma importância na narrativa de R., os quais necessitam ser discutidos: o papel da família e o da escola.

No imaginário social, a família é concebida “como um agente ativo, dotado de vontade capaz de pensamento, de sentimento e de ação [...]; a família é o lugar da confiança (trusting) e da doação (giving) [...] (BOURDIEU, 1996, p. 126). Para Bourdieu (1996, p. 126) “nada parece mais natural do que a família: essa construção arbitrária parece situar-se no polo do natural, do universal”.

Todavia, os discursos responsáveis por representar a família como “um lugar de proteção e segurança, onde os sujeitos são unidos por laços afetivos e amam-se incondicionalmente, camuflam outras nuances, outras formas de perceber o espaço familiar, para além de um corpo unitário e naturalizado” (ARAGÃO, 2017, p. 94). Tal fato exige que esse grupo social seja visto como um campo “com suas relações de força física, econômica e, sobretudo simbólica [...] e suas lutas pela conservação ou transformação dessas relações de força. [...]” (BOURDIEU, 1996, p. 128).

As situações vivenciadas por R. desconstroem as representações cotidianas, ao mesmo tempo que evidenciam a família como um campo de forças, lutas, hierarquizações, demonstrando a existência de profundos conflitos, que reforçavam e agravavam os estereótipos vividos na escola, fazendo com que o sujeito fosse duplamente violentado, na medida em que se deparou com uma família que o negligenciou, omitindo-se dos cuidados essenciais ao seu desenvolvimento físico ou emocional. R., portanto, não encontrou, no ambiente familiar, a rede de apoio da qual precisava para lidar com os embates cotidianos, em especial, com a homofobia.

O termo homofobia é um neologismo formado por dois radicais gregos (homo: igual + phobia: medo). Pode ser compreendida como atos de violência (física, psicológica, verbal e simbólica) direcionados a quem manifesta a homossexualidade, por não agirem de acordo com o que é definido social e culturalmente, isto é, a heteronormatividade.

Nas instituições de ensino, ofensas de cunho homofóbico são relatadas em pesquisas como sendo a segunda causa motivadora das agressões entre os escolares – perdendo apenas para a aparência física – estando fortemente relacionados à evasão escolar e ao suicídio. A vítima da ofensa homofóbica é vista como um sujeito defeituoso, de menor valor social, já que a homossexualidade é concebida, culturalmente, como algo negativo. Cabe destacar que apenas parecer homossexual torna-se um motivo para que as ofensas sejam iniciadas. (SWEARER et al., 2008; ABRAMOVAY et al., 2010; SOUZA et al., 2015; e PEREIRA et al., 2015).

Nesse sentido, para que haja a prevenção ao bullying homofóbico, são fundamentais discussões que abordem a “masculinidade hegemônica e a heteronormatividade no contexto escolar, uma vez que, para além do tipo de relação afetivossexual estabelecida pelos jovens, evidencia-se a influência de esterótipos do ser homem e ser mulher [...]” (SOUZA et al., 2015, p. 295), de forte cunho cultural.

Notoriamente, o sofrimento de R. não foi acolhido por educadores e familiares, sendo um indício de que os adultos podem ter dificuldades em distinguir entre relações violentas e brincadeiras. Nessa perspectiva, Fante (2011) pontua uma distinção clara: configura-se brincadeira na medida em que ambos estão se divertindo; caso a distração de um indivíduo dependa do sofrimento de outro, então, isso se caracteriza como bullying.

Nesse sentido, é patente a falta de preparo dos professores para identificar, diagnosticar e desenvolver estratégias educacionais para enfrentar problemas de violência escolar, em especial o bullying, tão presente nas relações entre escolares.

Tal situação evidencia a necessidade de um processo reflexivo, a fim de possibilitar a construção de melhores recursos para lidar com esse fenômeno; afinal, nem sempre um relato de experiência opressora é capaz de sensibilizar quem escuta ou lê; há que se prover a comunidade escolar de estratégias de ação. Dessa forma, a próxima seção aborda possibilidades para lidar com o bullying a partir de diferentes caminhos, porém, todos pautados pela construção de uma cultura de paz.

“Escola, pra que te quero?”: possibilidades de ação

A indagação presente no título desta seção mostra-se, de fato, como uma provocação. Não é uma pergunta ingênua, tampouco apartada no contexto discutido até então. Questionar o papel da escola é um movimento importante e necessário, devido ao seu valor social como instituição formadora de sujeitos, em parceria com a família e com outros espaços de socialização, conforme explicitado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB):

A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais

(BRASIL, 1996, art. 1º).

Ademais,

Educar exige cuidado; cuidar é educar, envolvendo acolher, ouvir, encorajar, apoiar, no sentido de desenvolver o aprendizado de pensar e agir, cuidar de si, do outro, da escola, da natureza, da água, do Planeta. Educar é, enfim, enfrentar o desafio de lidar com gente, isto é, com criaturas tão imprevisíveis e diferentes quanto semelhantes, ao longo de uma existência inscrita na teia das relações humanas, neste mundo complexo. Educar com cuidado significa aprender a amar sem dependência, desenvolver a sensibilidade humana na relação de cada um consigo, com o outro e com tudo o que existe, com zelo, ante uma situação que requer cautela em busca da formação humana plena

(BRASIL, 2013, p. 18, grifo meu).

Educar é cuidar, acolher, ouvir, desenvolver a sensibilidade, respeitar; sendo papel da família e da escola. Tal assertiva suscita algumas indagações: Será que a ideia de educação presente no trecho acima encontra eco dentro da escola? Estamos atuando de forma a desenvolver nas crianças e jovens um olhar sensível para com os sentimentos e necessidades dos nossos pares? Tanto a narrativa de R., quanto o resultado de pesquisas e relatos no universo virtual sobre experiências com o bullying coloca-nos diante de uma resposta negativa.

Nessa perspectiva, é condição cine qua non o investimento em uma educação voltada à cultura de paz, a fim de sensibilizar e orientar as atitudes individuais e coletivas de toda a comunidade escolar, afinal, “[...] como culturas, tanto a violência como a Paz são construções humanas, portanto resultantes de processos de aprendizagem” (ALMEIDA, 2013, p. 28472), sendo a desnaturalização da violência o ponto central para a construção de uma cultura de paz.

Conforme Viana (2013, p. 74), “a naturalização é um processo de pensamento, mas que age sobre uma realidade concreta, real, existente, invertendo-a, transformando-a, no plano das ideias, de algo constituído social e historicamente em algo natural”. Nesse ínterim, a naturalização da violência não está na sua constatação, mas, sobretudo, na explicação que conferimos à sua existência, isto é, em verbalizar que a violência é natural nas relações humanas, sociais e políticas, ao invés de dizer que essa é um construto sociocultural.

Nesse contexto, para que seja possível o processo de desnaturalização, faz-se necessário seguir um caminho tanto teórico quanto prático. A via teórica viabiliza colocar o problema em evidência, permitindo o “avanço da consciência e da necessidade de superação dessa realidade existente” (VIANA, 2013, p. 75), possibilitando sua compreensão; está em perceber a violência presente nas relações humanas e questioná-la.

Conforme Paviani,

A origem do termo violência, do latim, violentia, expressa o ato de violar outrem ou de se violar. Além disso, o termo parece indicar algo fora do estado natural, algo ligado à força, ao ímpeto, ao comportamento deliberado que produz danos físicos tais como: ferimentos, tortura, morte ou danos psíquicos, que produz humilhações, ameaças, ofensas

(2016, p. 8).

Há violência onde existe desequilíbrio de poder, real ou simbólico, com predomínio da dominação de um sobre outro, donde esse sofre em decorrência do ato intencional daquele, com vistas a provocar dor física e/ou psíquica. O bullying, portanto, é um exemplo de violência, bem como os castigos físicos e humilhantes comumente praticados por pais e docentes, e fortemente naturalizados como caminho educativo (ARAGÃO, 2017).

Desnaturalizar essas e outras formas de violência presentes no contexto das relações humanas, implica a construção de novas práticas que levem à superação concreta do fenômeno, pensando em possibilidades de ação para que possa ocorrer uma efetiva transformação cultural (VIANA, 2013).

A educação pautada pela cultura de paz abrange tanto o caminho da desnaturalização teórica quanto prática, tendo em vista que

a cultura de paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura que respeita todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a liberdade de opinião e que se empenha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes [...]. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis

(UNESCO, 2010, p. 96).

Seria a educação para a paz uma utopia? A violência parece algo tão natural no cotidiano que a defesa de uma cultura fundamentada no respeito, na justiça social, na empatia, na solidariedade, dentre outros, parece inalcançável. É possível torná-la concreta?

Existem diversos caminhos capazes de transformar tais conceitos abstratos em ações, culminando em efetivas mudanças no comportamento dos envolvidos, como os fundamentos teórico-práticos da Comunicação Não Violenta (ROSEMBERG, 2006), da Disciplina Restaurativa (MULLET; AMSTUTZ, 2012) e da Disciplina Positiva (NELSEN, 2015) as quais, apesar de terem bases epistemológicas distintas, defendem princípios básicos similares.

Os pontos centrais da tríade supracitada levam-nos a construir ações pautadas por uma proposta educativa, que vise a promover o auto e o heteroconhecimento, valorizando o respeito e a empatia para consigo e com os outros.

Assim, a Comunicação Não Violenta elaborada por Marshall Rosemberg (2006) é útil por oferecer uma proposta que visa a alterar a forma de comunicação usualmente empregada, possibilitando lidar com situações conflituosas de maneira eficaz, enaltecendo a empatia, isto é, o reconhecimento de emoções e sentimentos, como produtora de um encontro harmônico entre sujeitos. Para tanto, há a necessidade de refutar o estilo de comunicação que enalteça a emissão de juízos de valor sobre o outro, tais como: “você é burro”, “já falei mil vezes e você não aprende”, “menino enjoado”, “deixa de ser chato”, entre outras verbalizações ofensivas, que contribuem para ruídos na comunicação.

Dessa forma, Rosenberg (2006) apresenta quatro componentes fundamentais para possibilitar uma comunicação compassiva: o primeiro ele denominou de observação, donde o emissor deve pontuar o que efetivamente está sendo observado na situação, sem julgar ou criticar a pessoa partícipe dessa. Em seguida, busca-se identificar quais foram os sentimentos vivenciados a partir dessa observação, traduzido na pergunta: “como esta situação me fez sentir?” Posteriormente inicia-se o reconhecimento das necessidades que estão conectadas ao sentimento observado, e que não estão sendo atendidas, tais como: a necessidade de ser aceito, compreendido, de viver em ambientes organizados, de se expressar com liberdade, etc.

Após o sujeito ter conseguido pontuar a situação observada, manifestar seus sentimentos ante o ocorrido, e suas necessidades não atendidas, prossegue-se à formulação de um pedido, claro e objetivo, com vistas a mudar a relação ou a situação observada.

Transpondo para uma situação escolar, o/a docente necessita abster-se de atribuir características ofensivas aos estudantes, bem como estimulá-los a fazer o mesmo com seus pares. Ademais, é importante que haja atividades onde alunos e professores aprendam a reconhecer, expressar e respeitar sentimentos e necessidades.

Soares et al. (2017) propôs uma atividade que coaduna com os princípios da comunicação não violenta, a qual teve como objetivo estimular em crianças a reflexão sobre o respeito às diferenças:

Na facilitação da atividade, foi solicitado que cada criança escolhesse entre as diversas cores um giz de cera. A partir das escolhas de cada criança iniciaram-se as seguintes reflexões: – Como seria o planeta se tudo fosse de uma só cor? – Como seria a natureza se tudo fosse amarelo? Ou azul? Verde? [...] Ao término das reflexões para as crianças, foi feita a segunda e última etapa, na qual foram apresentadas imagens que representavam práticas de bullying na escola. Optou-se por relacionar a diversidade das cores com a prática do bullying na escola, considerando que esse tipo de violência transforma as diferenças em desigualdade. A partir dessas vivências, o projeto atuou com diversas atividades, destacando-se, nesse relato, a dinâmica das cores, para apresentar a comunicação não violenta como promotora da cultura de paz na escola. Sendo assim, a dinâmica das cores engajou as crianças na perspectiva de reconhecimento e respeito às diferenças, traçando um paralelo que a subjetividade de cada criança, ou seja, sua forma de experimentar o mundo, não poderá ser gerenciadora da prática de bullying

(SOARES et al., 2017, p. 2).

Observa-se, por meio do relato de experiência supracitado, que, na instituição escolar, a técnica da Comunicação Não Violenta colabora com uma comunicação empática, clara, livre de julgamentos e rótulos, pois se parte do princípio de que o respeito deve ser a base de toda a relação humana.

Caminhando pari passu com o reconhecimento do respeito na resolução de conflitos de forma a identificar sentimentos e necessidades, uma técnica também sugerida é a Disciplina Restaurativa. Disciplina, na perspectiva de Mullet e Amstutz (2012), “é ensinar à criança regras que orientarão seu viver e que a ajudarão a se integrar à sociedade e ao seu contexto cultural” (p. 27), sendo um processo em longo prazo. O foco dessa técnica não é punir, mas construir consequências apropriadas que estimulem a responsabilidade, a empatia com a vítima e a reparação do feito. Para tal, o uso de violência é refutado, pois, mesmo que surta o efeito de frear o comportamento inadequado, não educa para o comportamento respeitoso, pois ela é, por si só, uma prática desrespeitosa como asseveram os autores. A disciplina restaurativa “se soma aos modelos disciplinares já em uso e que procuram prevenir ou refrear o mau comportamento e ensinar reações mais positivas, que apoiem a vida ao invés de perturbá-la” (MULLET; AMSTUTZ, 2012, p. 28).

Na abordagem restaurativa, há o reconhecimento das necessidades e propósitos presentes na raiz do mau comportamento, e também das necessidades dos que foram prejudicados por ele. A abordagem restaurativa trabalha com todos os interessados a fim de encontrar um jeito de endireitar as coisas novamente e criar um plano para mudanças futuras. Assim, o foco recai sobre o restabelecimento que virá através de um encontro cooperativo

(MULLET; AMSTUTZ, 2012, p. 41).

De forma concreta, uma das possibilidades encontra-se na construção de círculos restaurativos, que contribuem sobremaneira para a resolução de conflitos de forma respeitosa, promovendo mudanças significativas nas relações humanas. Esse é operacionalizado da seguinte maneira: convida-se tanto a vítima quanto o autor para um encontro. Nesse momento, haverá uma discussão sobre a questão em pauta, com ênfase na expressão de sentimentos e necessidades, tal qual a Comunicação Não Violenta (anteriormente explicitada). A solução para a contenda é construída em conjunto com os envolvidos, tornando-os responsáveis pela reparação do erro. O círculo finda com os participantes dispostos a colocar em prática os acordos realizados (MULLET; AMSTUTZ, 2012).

Os círculos podem ser utilizados quando surgem tensões entre quaisquer sujeitos ou grupos – estudantes, professores, gestores e/ou demais funcionários. Também pode ser utilizado apenas para exercitar a fala e a escuta, estreitando vínculos, como, por exemplo, nos círculos elaborados antes de iniciar o dia de aula, quando o/a docente pode dialogar sobre como cada estudante se sente, esclarecer expectativas sobre a forma como será ministrada a aula e ouvir sugestões para aprimorar o relacionamento entre os pares (MULLET; AMSTUTZ, 2012).

Outra perspectiva teórico-prática que também corrobora a educação para a paz – tendo estreita relação com a Comunicação Não Violenta e a Disciplina Restaurativa – é conhecida como “Disciplina Positiva”. Essa se fundamenta no respeito mútuo e na cooperação entre os sujeitos, apoiando-se na empatia, na paciência, no acolhimento, no respeito à individualidade de cada criança e jovem, na atribuição de limites claros, no autoconhecimento e nos exemplos positivos, rejeitando as violências física, psicológica e verbal (NELSEN, 2015).

Os caminhos sugeridos pela Disciplina Positiva no combate e prevenção ao bullying envolvem considerar a elaboração de reuniões de classe, as quais objetivem solucionar problemas por meio de diálogos respeitosos, também pautados pela expressão de sentimentos e necessidades, no qual todos se sintam seguros para se expressar. Esse caminho traduz-se em um instrumento de grande valia, pois oportuniza espaços de fala e escuta para os estudantes, colocando-os como agentes de mudanças no contexto escolar. “Muitos problemas de disciplina acabam sendo eliminados porque os alunos se sentem encorajados quando são ouvidos e levados a sério e quando seus pensamentos e ideias são validados” (NELSEN, 2015, p. 152).

Nesse contexto, os estudantes desenvolvem habilidades de fala e escuta, ampliação do pensamento e vivenciam consequências lógicas de seus atos, conceito que difere da concepção de punição, tendo em vista que nessa, as consequências são selecionadas sem qualquer conexão com o ato praticado; por exemplo: deixar o estudante que não faz o dever de casa ficar de castigo, sem intervalo. De acordo com Nelsen (2015), as reuniões de classe são mais eficazes quando os alunos não temem ser punidos ao expor seus pontos de vista.

Cabe destacar que um dos focos da Disciplina Positiva está em ensinar às crianças e jovens o comportamento adequado, convidando-as a refletir sobre a situação, apoiados no respeito e na disposição para achar soluções. Todavia, Nelsen (2015) salienta não ser eficaz se deter nas soluções até que todos tenham se acalmado o suficiente, em especial o educador.

A citação abaixo, presente no livro: Castigos escolares: conversando com professores (ARAGÃO, 2017), relatada pela entrevistada Marina, expõe um exemplo do uso da disciplina positiva em classe, a partir da construção do “cantinho da calma”, uma releitura da técnica do “tempo positivo” (comumente utilizada nessa abordagem), em conjunto com a técnica da reunião de classe e da expressão dos sentimentos.

Todo mundo tem dificuldades em sua vida, momentos ruins e bons e durante todo o dia temos que lidar com diversos sentimentos: alegria, tristeza, nervosismo, timidez, ansiedade. E lidar com esses sentimentos às vezes é difícil para nós adultos então imagine para as crianças que não sabem e não compreendem o que sentem quando acontecem conflitos [...]. Diante disso pensei em começar desde o início do ano com um projeto que pudesse ajudá-los a identificar os sentimentos e como lidar com eles. Então fui procurar ajuda para que esse projeto não fosse apenas um projeto, mas que fizesse a diferença para as crianças dentro da escola e em suas vidas. Passei para as crianças sobre o projeto e qual era sua finalidade e, para minha grande surpresa, elas ficaram muito entusiasmadas. Montamos então juntos o “cantinho da calma”. Disponibilizei vários materiais para montar o cantinho (cartolina, papel crepom, papel dobradura, tesoura, cola, revista, etc., deixei eles à vontade para a montagem, pois, pensei que como eles iriam usá-lo teria que ser algo feito por eles e do seu jeito). Coloquei tudo no chão da sala, e as crianças começaram a montar três importantes peças do cantinho. A caixa grande que contém dois ursinhos que elas podem abraçar para acalmar o coração e uma flor feita pelas crianças que no momento que estão agitadas poderem voltar à sua respiração normal e pensar com mais calma, um coração onde várias delas o usam para bater expressando um pouco sua raiva. (Sempre falo para eles que devemos pedir desculpas para as pessoas, mas a dor do machucado ou da palavra falada com raiva não passa, então eles usam este coração para descontar a raiva que estão sentindo e assim não machucam o colega). Um dado dos sentimentos para que possam olhar as carinhas e perceber qual delas eles estão no momento. (Eles jogam esse dado e ficam imitando a carinha que cai, triste, feliz, assustado, bravo... se tornando uma brincadeira, fazendo com que comessem a rir e se acalmam). O mais usado que é a caixa dos sentimentos, onde possui canetinhas e folhas. (Eles desenham o que estão sentindo, e o que é mais emocionante é a quantidade de sentimentos que cada uma traz em um simples desenho). E o “Emocionômetro” (é uma carinha para cada criança, tem a carinha feliz e do outro lado a carinha triste) no início de cada dia antes de qualquer coisa quando entramos na sala de aula e sentamos, eu peço para cada um como está se sentindo. A criança que está triste levanta e muda a carinha contando o que está trazendo este sentimento nela. No início eram relatos que podemos perceber que era somente para levantar e mudar a carinha e agora, já na metade do ano, eles trazem relatos de algo que eles têm a necessidade de dividir para que a professora e os colegas consigam ajudá-los a resolver. Depois de contar, a turma fala com o colega ou simplesmente dá um abraço. (Essa carinha ajuda também a entendermos que o colega não está legal então temos que ajudá-lo a melhorar, ou também para entendermos que ele está tendo atitudes que não são dele, não porque quer, mas porque está triste). Durante o dia conforme o sentimento que o deixou triste vai passando, eles mudam para o rosto feliz e dizem por que melhoraram... Sempre é porque brincaram e esqueceram ou o colega e a professora brincaram com ele e assim passou. Eles me fizeram ter um também, assim quando a turma está um pouco agitada eu mudo para triste fazendo com que as crianças percebam que precisam diminuir um pouco o ritmo. Eu não preciso nem aumentar o tom de voz, as crianças automaticamente se acalmam. Sinto uma imensa satisfação em saber que, com esta pequena iniciativa, fiz com que as crianças pudessem começar a construir a noção dos sentimentos e que conseguissem expressá-los e dividi-los de diversas formas. Diminuiu muito os conflitos dentro da sala de aula. E as crianças entre elas conversam e se ajudam, conseguem umas acalmar as outras. Alguns pais também começaram a usar o cantinho da calma em casa a pedido das crianças e disseram que ajudou bastante na sua relação com seu filho

(ApudARAGÃO, 2017, p. 136).

Os três caminhos propostos neste texto, os quais também são recomendados para o universo doméstico, visam a contribuir para a construção de um novo habitus cultural (BOURDIEU, 1996). No decorrer da vida, o sujeito aprende, nos diversos espaços de socialização, a lidar com situações conflituosas de maneira violenta. A violência – constructo cultural – é internalizada pelos atores sociais como algo natural, como o único caminho possível para a resolução de conflitos. O sujeito, portanto, apropria-se de atos e palavras violentas e as utiliza em seu trânsito cotidiano de maneira automática, inconsciente, a partir de um habitus aprendido e internalizado como verdade (BOURDIEU, 1996).

O habitus configura-se, em suma, no resultado de crenças, valores, modos de ser e agir, aprendidos e internalizados ao longo da vida, norteadores de escolhas e ações. Todavia, cabe salientar que ele não é estático, na medida em que pode ser mudado a partir de novas experiências vivenciadas pelos atores sociais (BOURDIEU, 1996).

Dessa forma, o habitus se revela nas ações cotidianas, nos pequenos atos de violência que existem nos espaços escolar e familiar, bem como na naturalização de tais ações. Está na verbalização do estudante que humilha o outro, na voz do professor que cala, nos risos dos espectadores, na omissão ou no reforço familiar.

Encontra-se, na escola, que se abstém de prevenir o problema, nos adultos que não enxergam a diferença entre violência e brincadeira, porque, em sua época, eram atitudes normais entre jovens. Está, também, no desabafo dos estudantes ao manifestar seu sofrimento, nos momentos em que se sentem aceitos ou rejeitados, em suas alegrias, tristezas e revoltas. O habitus revela-se tanto no falar quanto no calar, tanto no agir quanto no esquivar-se.

Logo, se a violência e suas estratégias são aprendidas, essas podem ser questionadas e desconstruídas, abrindo espaço para priorizar outras formas de relacionamento humano, uma dinâmica cultural que valorize o respeito entre as pessoas.

Considerações finais

Um sujeito, ao narrar sua vida, o faz a partir das memórias mais significativas, daquelas que o impactaram, sejam positiva ou negativamente. Narrar um contexto de vida implica, portanto, fazer emergir sentimentos e emoções que recolocam o sujeito na experiência vivida, ressignificando-a no tempo presente.

R., ao relatar a violência sofrida, entrou em contato com suas dores, mágoas e decepções, mas também com a capacidade de resiliência que construiu ao longo da vida, a qual lhe permitiu que fosse possível contar um trecho de sua história, a fim de ajudar outros sujeitos a desnaturalizarem a violência que insiste em permanecer na escola e na família.

O bullying, palavra nova para o senso comum, sempre existiu nas relações escolares, sendo sua gênese de difícil precisão. Brincadeira, zoação, traquinagem são alguns dos eufemismos atribuídos a um tipo de violência que provoca danos físicos e psíquicos na vítima, podendo levá-la ao suicídio. Brincar implica respeito e consentimento, conceitos contrários ao que ocorre nessa situação.

Todavia, não basta investir na polaridade vítima X agressor, acolhendo o primeiro, na medida em que se pune o segundo. Tal ação não questiona o processo que levou à violência, ao contrário, reforça-o, pois não permite espaços de fala e compreensão nem para o primeiro e tampouco para o segundo.

Urge a construção de caminhos que visem a uma mudança cultural, apoiando-se em pressupostos teórico-metodológicos que auxiliam com novas bases para a edificação de algo tão estranho aos sujeitos: a cultura de paz. Defende-se a paz, brada-se por um mundo pacífico, mas insistimos em perpetuar a violência nas relações mais íntimas.

Paz não significa ausência de guerra, mas uma convivência capaz de priorizar o respeito na resolução de conflitos, pois esses nunca cessarão. Valorizar sentimentos e necessidades, bem como abster-se de atribuir rótulos aos sujeitos são caminhos profícuos na construção de uma cultura de paz; afinal, não haverá, efetivamente, uma cultura de paz no mundo sem o investimento numa educação para a paz.

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Recebido: 07 de Abril de 2020; Aceito: 10 de Outubro de 2020

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