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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 01-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021026 

ARTIGOS

Educação para o pensar: uma análise epistemológica do método dialético-socrático aplicado à pragmática filosófica de Lipman

Education for thinking: an epistemological analysis of the Socratic dialectical method applied to Lipman’s philosophical pragmatics

Edson Ferreira da Costa* 
http://orcid.org/0000-0002-6116-9550

*Professor-Adjunto II na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – Imperatriz. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorado Sanduíche/Capes (Universidad de Salamanca – Espanha). Editor da revista Humanidades & Educação. E-mail: edsonferreiradacosta@gmail.com


Resumo

O presente trabalho faz uma análise comparativa entre o pensamento dialético de Sócrates e a proposta pedagógica do filósofo Matthew Lipman, principalmente em suas obras: A Filosofia vai à escola (1990) e O pensar na educação (1995). Para tanto, identificamos que o pensamento dialético como método aparece em Sócrates através da maiêutica, em que, por meio do diálogo, busca-se chegar a um pensamento correto. Esse exercício conceitual acompanha a história da Filosofia e ganha um lugar central nas reflexões epistemológicas sobre o processo de conhecimento que pode, ou não, provir de um sujeito autônomo e engajado no mundo em que vive, como podemos identificar no livro VII de . República (1949) e no diálogo de Críton (1997). Lipman, com sua Filosofia pragmática, é um desses autores influenciados pela dialética socrática que encontra, no debate público, o caminho para pensar numa prática educacional engajada nos desenvolvimentos intelectual e social dos envolvidos no processo de ensino de Filosofia da infância. Destacamos que essa proposta de ensino endossa uma crítica ao modelo de educação conteudista e insere a educação para o pensar nos anos iniciais da Educação Básica como um processo reflexivo contextualizado e dialógico. Nesse sentido, destacamos o método socrático adaptado à Filosofia para crianças como resultado de uma visão pedagógica pautada pelo pensamento dialético que possibilita a formação de um sujeito epistemológico e moral. Pensar a Educação como ferramenta de evolução social ao formar indivíduos seguros de suas posições conceituais e abertos às diferenças, sejam elas epistemológicas, sejam elas ideológicas, parece ser uma das principais contribuições extraídas da abordagem dialético-pragmática da Filosofia para o pensar.

Palavras-chave Epistemologia; Filosofia; Diálogo; Pensamento; Educação

Abstract

The present work seeks to make a comparative analysis between Socrates’ dialectical thinking and the pedagogical proposal of the philosopher Matthew Lipman, mainly in his works Philosophy goes to school (1990) and Thinking in education (1995). Therefore, we identified that dialectical thinking as a method appears in Socrates through maieutics, which through dialogue seeks to arrive at a correct thought. This conceptual exercise follows the history of philosophy and gains a central place in epistemological reflections on the process of knowledge that may or may not come from an autonomous subject engaged in the world in which he lives, as we can identify in book VII of the Republic (1949) and in the dialogue by Críton (1997). Lipman, through his pragmatic philosophy, is one of those authors influenced by Socratic dialectics who finds in public debate the way to think about an educational practice engaged in the intellectual and social development of those involved in the process of teaching childhood philosophy. We emphasize that this teaching proposal endorses a critique of the content education model and inserts education to think about the initial years of Basic Education as a contextualized and dialogical reflective process. In this sense, we highlight the Socratic method as adapted to philosophy for children as the result of a pedagogical vision based on dialectical thinking that enables the formation of an epistemological and moral subject. Thinking about education as a tool for social evolution by forming individuals who are sure of their conceptual positions and open to differences, whether epistemological or ideological, seems to us to be one of the main contributions extracted from the pragmatic dialectical approach of philosophy to thinking.

Keywords Epistemology; Philosophy; Dialogue; Thought; Education

Introdução

Por meio deste trabalho, pretendemos fazer uma análise sobre a construção de um pensamento crítico-reflexivo no âmbito escolar através do ensino de Filosofia, que ganha espaço no currículo da Educação Básica com a proposta de uma Filosofia para crianças. Como representante desse modelo filosófico-pedagógico, Lipman parte de uma postura crítica ao ensino de Filosofia que, voltado a uma educação conteudista, inviabiliza uma formação intelectual centrada na autonomia de pensamento.

Interessados nessa questão, dedicamo-nos ao longo do texto à tentativa de propor um caminho reflexivo a partir de uma perspectiva dialógica entre epistemologia e moralidade, fazendo um resgate do fazer filosófico presente nos diálogos platônicos, nos quais encontramos Sócrates destinado à elaboração de um pensar centrado no sujeito.

Em Sócrates, a Educação para o pensar se dá por meio da estruturação de um raciocínio coerente, refutando, por meio do diálogo, qualquer aspecto contraditório entre o falado e a realidade. O desenvolvimento intelectual é entendido como capacidade de ter claro o conceito sobre as coisas, evitando fundamentações definitivas em conceitos pré-concebidos. A influência socrática aparece claramente na proposta de Lipman quando a busca pelo sentido das coisas implica uma discussão pautada pelo uso da razão, pelo esclarecimento dos conceitos e pela problematização da realidade.

O método socrático, conhecido como maiêutica, foi fundamentalmente importante para fazer sérias reflexões no campo educacional com o trabalho de teóricos voltados ao ensino de Filosofia como podemos perceber através de Dilthey e Lipman. Em boa parte da literatura dos dois filósofos, aparece uma tentativa de tornar o conhecimento filosófico mais acessível e pragmático, identificando, no diálogo, o caminho metodológico que qualifica o raciocínio e a visão de mundo de quem escolhe por ele estruturar sua perspectiva epistemológica.

Resgatar uma visão sociointeracionista da escola torna-se necessário para melhor compreendermos que o espaço formal do ensino, tão aludido atualmente, ao mesmo tempo que assume um protagonismo na formação de indivíduos autônomos e críticos, pode ser um espaço de reprodução de modelos sociais extremamente acríticos. A partir do pensamento de Lipman, buscamos compreender tal cenário educacional que cultiva modelos pedagógicos que estimulam uma educação para a reprodução de ideias e, como prognóstico, apontamos nosso referencial teórico como fonte de estratégias metodológicas para um trabalho escolar favorável à autonomia de pensamento.

1 A gênese filosófica do método dialético

O filosofar se infiltrou na vida grega como atividade epistêmica que parte da técnica do saber-fazer algo, como a artesania, até chegar em Aristóteles como a técnica de elaboração do conceito filosófico, a epistémê compreendida como a “[...] téchnê ou o ofício correspondente a certo modo (ou modos) de acessar a sabedoria e, naturalmente, de produzir ciências, ou melhor, de dar corpo a uma sabedoria especializada” (SPINELLI, 2006, p. 187).

Retomando a história da Filosofia antiga, já no período pré-socrático, identificamos uma guinada epistemológica com a passagem de uma compreensão de mundo a partir do semelhante ao diferente. Empédocles já afirmava que se conhece a terra com a terra, assim como a água com a água.1 Contrariamente, Heráclito se opõe a esse grau de semelhança que, ao ver no movimento a possibilidade do conhecimento e da origem de todas as coisas, considera que um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio, pois ambos estão em constante mudança, e o mundo é essa mudança perene que não pode ser definida por uma esfera única.

Essa visão dialética aparece, posteriormente, na História da Filosofia de Sócrates e Platão por meio da construção de um conhecimento dialógico da realidade. Para distinguir a forma como adquirimos conhecimento, Platão (1949) faz uso metafórico da Alegoria da Caverna. Segundo ele, existem dois graus de conhecimento: o que está no campo do sensível e o que está no inteligível. Ele compara isso a pessoas que vivem presas em uma caverna cuja experiência da realidade são apenas imagens refletidas por uma fogueira localizada atrás delas. Contudo, acima da caverna, há um mundo de coisas que são cópias de um mundo real. Somente chega a um conhecimento verdadeiro quem sai da condição de prisioneiro e consegue contemplar esse mundo ideático,2 que ficou conhecido como “mundo das ideias verdadeiras”.

Nessa perspectiva, o conhecimento é originado de duas formas: o proveniente da sensibilidade, que está no campo da opinião; e o conhecimento inteligível, que está no campo das ideias, que são eternas e imutáveis. Conhecer significa, então, fazer uso dos sentidos e da inteligência. Contudo, o que é conhecido sensorialmente não é base para um conhecimento seguro, pois, por estarem fixados nas opiniões, os sentidos são obstáculos para o conhecimento da verdadeira realidade, que é objetiva. Para conhecê-la, é preciso superar tudo que é sensitivo por meio do estudo da Matemática e da Dialética,3 fazendo uso da razão até atingir o conhecimento pleno. Platão (1949, p. 332) explica que “[...] há objetos que não convidam o espírito à reflexão, como se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos, ao passo que outros obrigam de toda maneira a refletir”.

A Matemática estimula a abstração mediante números e formas, porém é a Dialética que favorece a indagação na busca de atingir a verdadeira realidade, podendo chegar, segundo Platão (1949), aos limites do inteligível. Na pólis, o filósofo é o cidadão apto a atingir esse conhecimento confiável, pois se dedica ao saber reflexivo e busca atingir a ideia de bem, fim e princípio da sabedoria, sem estar movido por interesses particulares. O objetivo de atingir a excelência do conhecimento tem um fim prático: organizar a cidade por meio de um princípio inteligível. Mesmo que nem todos tenham conseguido atingir o ideal platônico, a possibilidade de existir uma cidade ordenada por princípios universais é uma condição na prática do filosofar, porque o conhecimento verdadeiro leva as pessoas a saírem da experiência sensível para um grau maior de racionalidade capaz de fazer um movimento de retorno na tratativa de conduzir outros ao mesmo processo cognitivo.

Platão (1997) nos leva a entender que Sócrates, comprometido com a educação da juventude ateniense, despertou do sono das ilusões de suas certezas jovens que enveredavam, cada vez mais, para a superficialidade retórica.4 Com a finalidade de convencimento, assumiu uma postura pedagógica de interlocutor da verdade que deveria submergir de um método dialógico. Em tese, ele não se apresentava como portador de uma verdade absoluta, mas interessado no seu interlocutor, escolheu o caminho da problematização das certezas de todos os envolvidos em seus discursos.

O diálogo de Sócrates com seus companheiros era orientado por sua única certeza: a que de nada sabia. No que se referia às questões fundamentais da existência humana, todos pareciam conformados com a ignorância. Daí Sócrates concluir que todos os males sociais são provenientes da falta de conhecimento de valores como verdade e justiça, uma vez que somente quem as conhece é capaz de vivê-las. Para ele o conhecimento está atrelado à moral, pois agir significa conhecer e vice-versa.

Sócrates acreditava que existe um saber divino dentro de cada pessoa; um saber que indica o que é o bem, e que direciona a conduta humana. Portanto, para acabar com o mal, o homem deve despertar a sabedoria através do questionamento, possibilitando o reconhecimento da ignorância para se entregar à descoberta do conhecimento verdadeiro. Para Piettre (1985), extrair das almas essa sabedoria divina era a missão de Sócrates atribuída pelos deuses. Assim como sua mãe trazia à luz as mulheres de sua região, ele assumiu como missão trazer à luz as almas através do seu método chamado de maiêutica, que etimologicamente significa “parir ideias”.

Em busca das contradições e imprecisões nos saberes dos seus interlocutores, Sócrates assume a indagação como sendo a principal ferramenta na construção do conhecimento verdadeiro, simulando o desconhecimento sobre um assunto em questão. Após insistentes perguntas, ele revelava as contradições e as imprecisões existentes nos argumentos do seu interlocutor, deixando-o confuso e embaraçado, chegando a duvidar de suas próprias afirmações. Com isso,

[a] refutação representa, pois, a etapa preliminar necessária para encaminhar o espírito à descoberta da verdade; somente o espírito purificado e libertado do erro pode realizar uma investigação verdadeira, desenvolvendo corretamente a sua capacidade intrínseca

(MONDOLFO, 1972, p. 59).

Nesse sentido, para Sócrates o mestre não é quem fornece as respostas aos seus ouvintes, mas aquele que lhes possibilita buscar, por eles mesmos, a verdade que existe dentro de si. Daí a magna sentença: “Conhece-te a ti mesmo”, que significa conhecer os limites do conhecimento, mas, ao mesmo tempo, a sabedoria própria de cada um. Essa visão epistemológica, segundo Piettre (1985), presente nos diálogos socráticos, é bem própria do saber filosófico que nasce da busca de sabedoria5 através do diálogo entre mestre e discípulos ou mesmo entre jovens discípulos.

A mesma compreensão se estende a Platão com seu método dialético. A seriedade diante da verdade das coisas viabiliza a construção de um conhecimento por meio de raciocínios precisos, a fim de suprimir qualquer equívoco ou ambiguidade. A questão do conhecimento está ligada, diretamente, à busca de construir uma sociedade segundo princípios racionais favoráveis ao desenvolvimento da pólis, como podemos ver no livro A República, ao apresentar o saber filosófico como essencial à organização de uma sociedade justa.

2 A estrutura filosófica da Educação para o pensar dialético

A proposta filosófica de Lipman (1990) surge de sua experiência prática no campo educacional, quando, ao se deparar com seus alunos universitários, teve a sensação de que as escolas primárias e secundárias deveriam preparar seus estudantes para um pensar mais autônomo e crítico. Seu pragmatismo filosófico encontra fundamentação no pensamento socrático, ao considerar a Filosofia uma disciplina capaz de estimular o ato de filosofar, muito mais do que se preocupar em propagar conteúdos próprios de um tipo de conhecimento, porque

aplicar filosofia e fazer filosofia não são a mesma coisa. O paradigma do fazer filosofia é figura altiva e solitária de Sócrates. Para ele não se tratava de uma aquisição nem de uma profissão, mas de um modo de vida. O que Sócrates nos exemplifica não é uma filosofia conhecida nem aplicada, mas praticada. Ele nos desafia a reconhecer que como obra, como forma de vida, a filosofia é algo a que qualquer um de nós pode se dedicar

(LIPMAN, 1990, p. 105).

Seguramente, a proposta filosófica de Lipman parte desse veio socrático ao construir o seu programa filosófico a partir de uma dimensão prática da Filosofia, dando destaque, principalmente, ao ensino de Filosofia desde a infância. Segundo Daniel (2000, p. 10), “a Filosofia para crianças visa levar os jovens a pensar de forma mais ponderada e justa e a inculcar-lhes os hábitos de refletir quando se encontrem numa situação problemática e conflituosa”, refletindo desde cedo sobre um pensar prático e autônomo ante os problemas peculiares a cada idade.

De acordo com Sardi (2008), a Filosofia dirigida a crianças busca desenvolver habilidades diversas de diálogo e investigação: escutar, dar razões de seus argumentos, interpretar, analisar, relacionar e construir conceitos. Mas é bem verdade que, através de um problema filosófico, é possível ampliar a visão de mundo de quem o pensa e não simplesmente fazer o exercício de acúmulo de um saber específico. É nesse sentido que Lipman (1995) justifica a necessidade de repensar o modelo educacional voltado à memorização e ao acúmulo de conhecimentos por identificá-lo como uma prática capaz de inibir a criatividade e a espontaneidade do indivíduo. Isso é um fenômeno comum na vida escolar, ao longo dos anos de estudo, ou seja,

[é] um fato frequentemente observado e comentado em relação às crianças pequenas, quando estas iniciam sua educação formal no jardim da infância, que elas são ativas, curiosas, imaginativas e inquisitivas. Durante um certo tempo, elas preservam estas características maravilhosas. Mas, gradualmente, então, ocorre um declínio destes fatores e tornam-se passivas. Para muitas crianças, o aspecto social da educação – estar com os companheiros – é seu único atrativo. O aspecto educacional é uma provocação pavorosa

(LIPMAN, 1995, p. 23).

O comentário de Lipman (1995) se aplica à forma como a Educação é pensada para as crianças, quase sempre sem considerar as fases próprias da infância, tornando o espaço escolar sem atrativo; uma forma de educação que é regida pelo medo constante do erro e da desaprovação e pela culpa suscitada nas crianças por não terem feito o suficiente.

Faz-se necessária uma reestruturação da Educação, avalia Daniel (2000), pois ela ainda se prende, na prática, a convicções tradicionais de instrução, as quais são orientadas, antes, para uma intelectualização das disciplinas do que para o desenvolvimento mais amplo da criança. No entanto, o objetivo do processo educativo é o de ajudar a formar melhores julgamentos, a fim de que possamos modificar nossa vida de maneira criteriosa, e isso acontece quando a Educação executa uma ação pedagógica voltada à autonomia do aluno.

A dimensão pragmática emerge no pensamento de Lipman (1995) com a questão ética e a moral objetivada em seu programa. Ele não discute apenas um desenvolvimento cognitivo, mas principalmente o preparo da criança diante dos diversos momentos da vida. Sendo assim, “[...] a educação se torna moral quando habilita a criança – transcender as regras pontuais, a tomar consciência dos diferentes dilemas morais e a buscar, em sua consciência individual, os fundamentos de seus atos” (DANIEL, 2000, p. 189).

Para Lipman (1990) a moral é composta de conteúdo normativo e arbitrário, mediante o conjunto de valores específicos de uma comunidade. Também é processo, pois os códigos morais variam segundo os povos que são guiados por eles, por regulamentarem suas atividades que vão se aprimorando e acontecendo ao longo do tempo, descartando qualquer ideia de inatismo.6 Por isso, compartilha, também, a ideia desenvolvida por Dewey de que a motivação intrínseca é o principal critério da experiência significativa. Para ambos, “a atividade se torna significativa quando o aluno a realiza por interesse pelo assunto que está sendo estudado, e não movido pelo interesse escolar” (DANIEL, 2000, p. 58).

Por meio de uma prática reflexiva, é que a criança tomará consciência da capacidade que lhe é peculiar de estruturar seu próprio pensamento, evitando, dessa forma, a concepção de um saber manipulado, proveniente de um ser que não seja ela mesma. Daniel (2000) concorda com Lipman quando afirma que os programas educacionais atuais dão pouca importância à compreensão dos conceitos gerais, dos valores das normas e dos critérios. Assim, a forma mais adequada, dentro da perspectiva de uma Filosofia desde a infância, passa pela própria Filosofia ao possibilitar uma educação para o pensar crítico, criativo e autônomo.

O objetivo, no entanto, do currículo de Filosofia para crianças é proporcionar uma formação fundamental à criança, valorizando, ao mesmo tempo, sua experiência cotidiana, estimulando-a, assim, a praticar a investigação do significado. Desse modo, a Filosofia não será um estudo sistemático de conceitos, mas uma prática reflexiva da vivência da própria criança, porque

o significado que cada um atribui a cada coisa é um fenômeno essencialmente subjetivo: cada indivíduo capta uma mesma mensagem com sua personalidade própria e sua experiência pessoal, cada indivíduo encontra um significado particular para essa mensagem: existem tantos significados quanto pessoas

(DANIEL, 2000, p. 45).

Cabe destacar que tal leitura parte de uma compreensão de desenvolvimento da pessoa humana ligada à relação direta com o mundo no qual o indivíduo estabelece relações significativas. É preciso que a criança, em sua formação afetiva e cognitiva, perceba e sinta que faz parte do mundo e que existe uma relação direta entre a sua ação e a qualidade da existência, a sua e a dos outros. E essa relação deve ser pensada, e o seu significado, descoberto pela criança.

Essa perspectiva vai ao encontro de duas características peculiares à criança que são a curiosidade e a perplexidade. Daniel (2000) reforça esse pensamento ao destacar a compreensão de Lipman de que as crianças são, naturalmente, curiosas e estão sempre em busca de razões para experimentar suas vivências e superar seus limites.

Outra característica que influi na qualidade das experiências das crianças é a intensidade com que vivem cada momento e cada situação, deslumbrando-se com facilidade diante do mundo. Daí o significado assumir uma dimensão holística, pois sua construção não se limita ao aspecto cognitivo, assumindo, também, uma dimensão afetiva. Em tese, a busca de significado é incontestavelmente entendida por esse viés como a busca de razões válidas e de justificativas plausíveis a partir de uma percepção de mundo.

2.1 Metodologia de um pensar dialético

No programa de Lipman, o professor assume um papel fundamental e diferenciado em relação à educação conteudista. O determinante da prática docente está no que já foi apresentado através da maiêutica socrática. O conhecimento assume uma dimensão construtiva através de uma metodologia de diálogo que tem como mediadora a figura do profissional docente. As discussões não podem ser aleatórias, provocadas e conduzidas pelas próprias crianças, devendo ter uma mediação profissional que estimule a discussão por meio de questionamentos.

Nesse sentido, Lipman e Sharp (apudDANIEL, 2000, p. 75) destacam que “[...] sem dúvida, o mais condenável no professor é o esforço que faz para impedir o desenvolvimento de pensamentos das crianças antes que essas possam verificar aonde estes as poderiam levar”. Portanto, o professor deve estimular, por meio do diálogo, as discussões e as questões postas pelos infantes no intuito de favorecer o desenvolvimento de um pensamento que não seja apenas reprodução do que está posto nos livros e na sua fala, mas fruto de reflexão e de questionamentos que são próprios da idade da criança.

Falar e ouvir, isso implica reciprocidade, na aprendizagem, de dar e receber, na tolerância e no respeito mútuo. O professor, nessa visão, deixa de ser um transmissor de informações e assume o papel de comunicador, guia e modelo. Por isso, deve estar consciente de que sua prática de ensinar participa da (re)construção de personalidades.

Isso é possível quando o professor reflete, em sua prática, uma postura questionadora e curiosa, despertando na criança uma identificação importante para o desenvolvimento de sua personalidade. A empatia, no entanto, ocorre por meio do diálogo que desperta, na criança, o sentimento de respeito e autonomia.

Uma Filosofia pragmática, dentro desse contexto de aprendizagem, deve levar em consideração a importância da mediação que reflete uma postura coerente com o que se espera na dinâmica dialógica. Com isso, a Educação para o pensar inclui, em seu programa, o estímulo a perguntas, a análise de valores, a participação democrática e a abertura à crítica, visto que,

se aprendermos a dialogar com as crianças, encorajando-as a falar, pensar e questionar, ouvindo-as seriamente, podemos juntos caminhar para descobrir um mundo melhor. Um mundo mais aberto ao significativo, no qual as pessoas de todas as idades serão capazes de construir realidades novas em lugar de repassar aquelas herdadas, repetindo-as sem compreendê-las, como fazem as máquinas

(LIPMAN, 1990, p. 58).

O início do questionamento filosófico, nas comunidades de investigação, sofre influência do pensamento de Aristóteles, porque o trabalho desse filósofo caracteriza o início de uma reflexão com a capacidade de se maravilhar. As crianças devem se sentir envolvidas nas discussões, são elas as investigadoras de tudo o que é discutido entre elas mesmas. Além de ter uma preocupação de caráter lógico-formal, no sentido de formular um pensar coerente, há, também, uma preocupação com a coerência prática do que é dialogado, não desvinculando o que é discutido do seu caráter social. Assim como em Aristóteles, o discurso filosófico deve ter uma dimensão prática que se refira aos princípios éticos, os quais Lipman vai chamar de “boa razão”. Nesse sentido, a busca da verdade conceitual passa por uma busca da verdade moral (DANIEL, 2000).

Mesmo que o professor assuma um lugar fundamental nesse processo, a centralidade está na comunidade de investigação, sendo todos os participantes “coinvestigadores” ao longo das discussões. Para Daniel (2000, p. 125) “a comunidade de investigação é uma técnica de grupo que propicia o desenvolvimento individual na medida em que faz com que a criança tome consciência de suas potencialidades”. Reforça, com isso, a relevância dos alunos como participantes ativos de uma comunidade de investigação que possibilita a tomada de consciência sobre a importância de todos os envolvidos.

O valor que rege as relações dos participantes deve ser o respeito, pois ele facilita a troca de experiências. Por isso, as comunidades de investigação assumem um caráter moral-político, pois as discussões são orientadas por meio de regras claras e de valores como: liberdade para se expressar, cooperação e justiça. O respeito vai gerar, na criança, a liberação de sua imaginação, a ponto de se sentir envolvida nas discussões que estão relacionadas à sua vida e às suas experiências de mundo, de modo a não condicionar sua permanência em sala ao toque de um sinal externo.

É coerente com o que temos apresentado até aqui que o diálogo travado na comunidade de investigação não pode ser constituído por falas aleatórias, mas orientado por alguns critérios objetivos, que visem a desenvolver habilidades específicas como podemos ver no Quadro 1.

Quadro 1 Organização de um diálogo filosófico 

Congruência Lógica Coerência
Sem contradição Fala e raciocínio corretos Ideias homogêneas
Habilidade: examinação Habilidade: julgamento e objetividade Habilidade: compreensão

Fonte: Lipman apud Daniel (2000, p. 38).

Os critérios apresentados estão baseados em dois tipos de lógica: a lógica formal, que está ligada diretamente ao raciocínio correto; e a lógica das boas razões, que está relacionada a uma vivência, à vida prática. Destarte, os argumentos devem estar fundamentados no saber ou em uma convicção real. Esse tipo de lógica situa-se entre a lógica formal e a intuição que pressupõe características, tais como: imparcialidade; objetividade – evitar ideias preconcebidas; respeito aos outros, abertura de espírito – processo pessoal de aperfeiçoamento da investigação.

O desenvolvimento do diálogo, em uma comunidade de investigação filosófica, acontece por meio da troca de ideias e do exercício de escuta, que, juntas, possibilitam a estruturação do pensamento e a reelaboração e construção de conceitos. A dimensão pragmática do diálogo, nessa proposta de aprendizagem, se encontra na busca do sentido das coisas, que está diretamente relacionado a uma visão de mundo.

A troca dialógica é, pois, o princípio pelo qual o significado de uma coisa se revela, o princípio pelo qual as relações se estabelecem, o princípio pelo qual as aprendizagens se integram. Além disso, quando o fundamento do diálogo filosófico corresponde à experiência cotidiana, as pessoas envolvidas no processo descrito aprendem a compreender seu próprio pensamento, depois a comunicá-lo de forma clara; elas aprendem igualmente a se abrir às opiniões dos outros e a criticá-las de forma construtiva, elas aprendem, enfim, a pôr em prática nos acontecimentos e gestos cotidianos os comportamentos adquiridos nas trocas em grupo

(DANIEL, 2000, p. 131).

A dimensão dialógica, nessa compreensão, assume uma característica política no sentido de que a discussão acontece a partir do universo vivencial dos participantes, ou seja, de suas vivências e as dos demais diante do mundo em que vivem. O conhecimento passa por um processo de socialização e é construído na interação dialógico-argumentativa. Conforme compreende Lipman,

a comunidade de investigação, em certo sentido, é uma aprendizagem conjunta e, portanto, um exemplo do valor da experiência partilhada. Mas, em outro sentido, representa a exaltação da eficiência do processo de aprendizagem, visto que os alunos que acreditaram que toda a aprendizagem significava aprender sozinho descobriram que podem também utilizar a experiência das outras pessoas e beneficiar-se dela

(1990, p. 346).

Quando o diálogo passa a fazer parte do cotidiano da sala de aula, os alunos assumem uma identificação maior com a aprendizagem, pois percebem que é algo construído, e não, imposto. A grande crítica de Lipman ao modelo educacional vigente é que os professores não ensinam os alunos a pensar a partir de suas disciplinas, ou melhor, não as têm como ferramentas para despertar no aluno um pensar reflexivo e autônomo. É um pouco o que Gallo (2006) pensa ao afirmar que o ensino de Filosofia deve levar ao processo de filosofar.

Lipman (1990) recorda que as crianças, ao ingressarem na escola, acabam perdendo o espanto diante das coisas; a curiosidade adormece diante das respostas prontas encontradas nos livros e nos professores. Elas aprendem que sua tarefa é aprendê-las sob pena de não se sair bem nos trabalhos. Poucas vezes, cria-se, em sala de aula, um espaço para saber o que realmente as crianças pensam. Contudo, mais sério, ainda, é constatar que pouco interessa a muitos professores saber o que pensam as crianças, pois, diante de uma sociedade que cobra muita informação, a Educação acaba se restringindo ao acúmulo de conhecimentos, esquecendo-se do sujeito em questão.

2.2 O currículo de um pensar dialético

O programa apresentado por Lipman vem ao encontro de uma carência escolar que é a reflexão sobre o que é trabalhado pelo professor. Nesse sentido, a proposta do programa visa a mediar o diálogo por meio de leituras que estimulem o pensar dos alunos através de novelas que trazem em seus textos o cotidiano dos “pequenos” por meio, especialmente, dos personagens que gostam de pensar e se divertem no ato de refletir. O encanto e a curiosidade são habilidades estimuladas e valorizadas nas comunidades de investigação com os heróis que estão, diretamente, relacionados ao universo da criança. Por isso, as novelas filosóficas são divididas por faixa etária, escritas em primeira pessoa e na forma de narrativa.

As novelas são filosóficas porque põem em relevo conceitos universais, criam situações problemáticas, intrigantes e ambíguas e estimulam as crianças a se questionarem e a refletirem. Para Daniel (2000) a originalidade pedagógica de Lipman e de sua equipe se situa, justamente, na adaptação de textos filosóficos com o objetivo de estimular as crianças a descobrirem, entre elas, personagens pessoais e a refletir sobre elas mesmas com entusiasmo.

A proposta das novelas não é ensinar um conteúdo específico, como ocorre nas disciplinas escolares, mas, com uma metodologia dialógica, desenvolver, nas crianças, a habilidade de um pensar autônomo, crítico e razoável. Com isso, o manual do professor deve ser trocado por estratégias de discussão e questionamentos que favoreçam a participação efetiva dos alunos, encorajando-os a empregar as ferramentas e os métodos de investigação para que possam, competentemente, avaliar evidências, detectar incoerências e incompatibilidades, chegar a conclusões válidas, construir hipóteses e empregar critérios até que percebam as possibilidades de objetividade com relação a valores e fatos.

O professor deverá nortear o andamento das discussões considerando três palavras que são centrais no andamento de uma comunidade de investigação: perguntar, discutir e pensar (DANIEL, 2000). Para tanto é necessário seguir determinados procedimentos metodológicos que irão nortear os passos da discussão. São eles:

  1. leitura de um capítulo de uma novela;

  2. levantamento de questões relativas a essa leitura;

  3. discussão dos problemas levantados: grupo e em voz alta; e

  4. anotação de dúvidas, perguntas e dilemas que surgirem durante a leitura.

Esse tipo de procedimento, ao invés de fortalecer uma postura impositiva dos conteúdos, visa a estimular a autonomia do pensamento da criança ao posicioná-la no centro do processo de aprendizagem, de modo que ela passe a ser um sujeito atuante que se percebe responsável pelo que é discutido e construído na interação com os colegas.

Segundo Lipman (1990), se a Educação se ocupa com o destino do pensamento humano, ela deve ensinar às crianças como pensar, e não o que pensar. Assim sendo, a criança aprende a distinguir seu pensamento de outros, aprende a pensar bem e a questionar. Daniel (2002) classifica isso como sendo um pensar reflexivo que resulta de um exame cuidadoso, demorado, preciso, de uma determinada crença ou de uma forma hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz das conclusões às quais as crianças chegam – o que não é uma tendência natural.

A troca de ideias passa a fazer parte do cotidiano educacional da criança que encara a escola como um espaço de construção de si mesma, porque, em sua proposta pedagógica, Lipman vê a possibilidade de mudança de comportamento a partir do conhecimento. Quando a criança assume uma postura crítico-reflexiva dos fatos e de tudo que a cerca, isso deve favorecer uma postura que pode levá-la a assumir novas e variadas posturas e formas de pensar. É nesse sentido que, segundo Daniel (2000), a Filosofia para crianças assume uma orientação pragmática, na medida em que o programa lipmaniano destaca os aspectos psicológicos e sociológicos da Educação e visa ao desenvolvimento global da criança e à melhoria de sua qualidade de vida.

Esse modelo tem uma característica fundamentalmente social, pois reforça as dimensões epistemológica e moral do conhecimento a partir de um modelo de aprendizagem coletivo. Para Lipman (1990, p. 36-37) o objetivo do programa “[...] é articular as diferenças causadas por atritos na comunidade, desenvolver argumentos para sustentar as reivindicações procedentes, para, então, através da deliberação, obter uma compreensão de um quadro mais amplo que permitirá um julgamento mais objetivo”.

Nessa proposta, a sala de aula deve ser o espaço em que as crianças aprendem a sistematizar o pensamento acerca da vida. A discussão filosófica, a partir do pensamento de Lipman, é um instrumento pelo qual os professores podem se apropriar da construção do pensar de ordem superior, reflexivo, em que o sujeito tem a possibilidade de um pensar coerentemente organizado e persistentemente investigativo, o que pode ser compreendido como o “bem pensar”.

Uma Educação voltada a uma forma de bem pensar corresponde a uma aprendizagem criativa, capaz de possibilitar ao aluno uma postura resolutiva de suas próprias questões pessoais e epistemológicas. O pensar bem está relacionado ao senso crítico e à sistematização de critérios objetivos que impactam a vida prática dos sujeitos. Em uma perspectiva pragmática, significa criar relação entre o símbolo e o significado, entre a ideia e a ação, entre o ato e as consequências, entre o sentido e o intelecto.

O saber separado da ação refletida é um saber morto, um peso esmagador para o espírito. Visto que imita o conhecimento e, com isso, secreta o veneno da vaidade, ele constitui um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento posterior da inteligência. [...] Pensar é o método do ensino inteligente

(DEWEY apudDANIEL, 2000, p. 98).

A escola, segundo Lipman (1990), acredita que a habilidade de pensar está diretamente ligada à transmissão automática ocorrida nas diversas disciplinas. Porém, seguindo o raciocínio do autor, não há uma disciplina específica que ajude os infantes a pensarem bem. A solução está em encontrar estratégias de ensinar as matérias de forma mais adequada e, na concepção de Lipman, educar para a autonomia do pensar é o que há de mais importante para as os infantes.

A questão é: Como isso pode ser feito? Responde Lipman (1990): através da Filosofia. Ela estimula os jovens a se tornarem mais lógicos, mais críticos e mais reflexivos. Portanto, o que a Filosofia oferece não é uma nova disciplina, para a qual não é um elemento que falta nas disciplinas existentes, mas uma forma de pensar o conhecimento.

Filosofia não significa, então, dentro da proposta de Lipman (1990), buscar a verdade última das coisas, visto que essa é relativa às normas provisoriamente aceitas e a critérios estabelecidos temporariamente por um grupo, uma sociedade ou uma cultura subjetiva e pessoal, mas buscar o sentido de tudo o que possibilita o desenvolvimento humano.

Seguindo a proposta de Lipman (1990), os diálogos, nas comunidades de investigação, devem ter algumas características peculiares e seguir, metodologicamente, alguns critérios. Por se tratar de um pensamento desejado e bem-delimitado pelo autor, as discussões proporcionadas pelos professores devem seguir parâmetros que orientem a forma de pensar dos alunos, a fim de atingir o objetivo de um pensamento resolutivo. Com isso, podemos observar algumas etapas dessa forma de pensar:

  1. percepção de uma dificuldade;

  2. dúvida;

  3. formulação ou definição de um problema;

  4. elaboração de uma teoria hipotética;

  5. descoberta de contraexemplos;

  6. revisão de hipóteses; e

  7. aplicação a uma situação concreta da vida.

Esse tipo de procedimento metodológico objetiva proporcionar à criança algumas posturas que irão revelar o seu envolvimento com a própria dinâmica do processo de aprendizagem dialógica: revisão dos critérios, pensamento holístico, perspectiva plural e pluralismo ideológico. Essas são características desejadas na postura epistemológica dentro de uma comunidade de investigação que tem como procedimento questionamentos contínuos, pensamentos diversos, respeito ao diferente e autocrítica.

3 Conclusão

Lipman (1990) entende que a maioria dos “pequenos” se pergunta sobre o significado intrínseco dos fenômenos, e isso para eles parece ser uma condição da criança. Porém, a capacidade de formar um pensamento crítico, segundo Daniel (2000), não parece ser algo natural, pois se refere a um processo que se desenvolve, se educa e se intensifica pela prática. Daí a necessidade de estimular, pela Educação, a descoberta do significado das coisas.

Mesmo que estejamos de acordo com Lipman em muitas das suas propostas, é importante destacar que o seu programa se baseia mais na intuição e na experiência pessoal do que em teses e dissertações e estudos profundos, partindo muito mais de observações pessoais acerca da criança, além de não ter critérios claros para avaliar o resultado de sua proposta pedagógica. Com isso, concordamos com Daniel (2000) quando ele reconhece que a avaliação do programa acaba tendo um caráter intuitivo, que fica a critério de cada professor.

Outra lacuna que podemos observar está na centralidade da escola, aparecendo como o principal espaço de motivação para o desempenho das possibilidades individuais das crianças, suprimindo o relevante papel da família como intermediadora do processo de ensino e aprendizagem e inserção social. Isso não significa que desconsideramos a função formativa da escola, principalmente na formação social da criança; contudo, compreender a escola como espaço de construção, é entendê-la como espaço favorável à constituição e ao desenvolvimento do indivíduo, que, intermediado por diversas propostas pedagógicas, aprenderá a interagir com o mudo mediado por parâmetros construídos em sua aprendizagem.

Concordamos com Libâneo (2001, p. 281) ao afirmar que “as crianças e os jovens vão à escola para aprender cultura e, para isso, é necessário pensar-estimular a capacidade de raciocínio e julgamento, fortalecendo a capacidade reflexiva”. Quando há um enquadramento em padrões preestabelecidos que inviabilizam a possibilidade de uma autorreflexão, o que se tem é uma padronização do indivíduo condicionado a parâmetros institucionais, como se fosse feito em uma fôrma, para ser reprodutor de ideias. Adversamente, formar significa prezar por uma educação centrada na autonomia, em que o sujeito participa do processo de (auto)construção de suas competências. Cada um é visto em sua singularidade e processualmente é estimulado a desenvolver as suas habilidades e a pensar reflexivamente.

É nesse sentido que a escola deve desempenhar o papel de preparar as crianças para saber lidar com o futuro e, ao mesmo tempo, com as questões que são peculiares a seu tempo. Portanto, toda prática educacional revela uma maneira de pensar e, simultaneamente, um desejo de conduzir a uma determinada ação que surge da observação da realidade e tende a voltar para ela. Assim, para Libâneo

a explicitação de uma pedagogia do pensar é condição para que a escola cumpra sua missão de mediadora na construção e reconstrução da cultura e na garantia da qualidade do ensino, que se expressa na qualidade cognitiva e operativa das experiências de aprendizagem, tanto de alunos como de professores e professoras

(2001, p. 281).

Com isso, a função da escola é intermediar a relação do sujeito com sua realidade, despertando, nele, competência de engajamento e transformação. Entretanto, para que isso aconteça, é preciso que ele conheça seu meio e esteja integrado a ele, e isso não quer dizer que, ao se integrar, seja vitimado de um determinismo social, pelo contrário, serão o seu envolvimento e o conhecimento de sua realidade que o estimularão a uma mudança favorável ao seu desenvolvimento integral.

Uma proposta metodológica, como a que se apresenta neste trabalho, busca formar sujeitos pensantes, que saibam pensar com a metodologia da investigação da ciência ensinada e apreender o caminho tomado pelo pensamento científico como forma de internalização de conceitos. É nesse sentido que consideramos adequada e conclusiva a compreensão de Libânio (2001, p. 281) de que “uma pedagogia do pensar é condição para que a escola cumpra sua missão de mediadora na construção e reconstrução da cultura e na garantia da qualidade do ensino, que se expressa na qualidade cognitiva e operativa das experiências de aprendizagem”.

Pautar-se por uma educação para o pensar nada mais é do que resgatar a habilidade do indivíduo de criar situações novas, caso contrário, a Educação será apenas mais um meio usado na sociedade para manipular as pessoas a serviço do sistema, castrando a criativadade tão presente nas crianças e formando pessoas adaptáveis às realidades e não tranformadoras.

1Fragmento 105.

2Corresponde ao conhecimento proveniente da experiência racional. Para Platão (1949) a verdade das coisas não pode ser vista pelos olhos dos sentidos, mas pela razão, pois o que os sentidos veem são cópias de uma realidade que se encontra em forma de ideias.

3Por meio da destruição das hipóteses, a dialética é um método que procede a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados (PLATÃO, 1949).

4Contemporâneos de Sócrates, como Protágoras, Pródico e Hípias, ficaram conhecidos pela arte da retórica, ou seja, da argumentação. Chamados de sofistas, esses filósofos ensinavam a arte de argumentar, de usar palavras e raciocínios paradoxais para fins práticos (HAMLYN, 1990).

5Segundo Abbagnano (2007), o conceito de sabedoria refere-se tradicionalmente à conduta racional nas atividades humanas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da melhor maneira possível. O primado atribuído à sabedoria demonstra a interpretação fundamental que se tem de Filosofia: contemplação pura e guia do homem no mundo.

6Doutrina segundo a qual, no homem, existem conhecimentos ou princípios práticos inatos, ou seja, não adquiridos com a experiência ou pela experiência e anteriores a ela (ABBAGNANO, 2007, p. 629).

Referências

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Recebido: 12 de Junho de 2020; Aceito: 26 de Outubro de 2020

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