SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26Espólios filosóficos na Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio: a dimensão éticaReconhecimento, consenso, realização, dignidade e pessoa moral: algumas categorias importantes para o entendimento do agir ético e da vida ética segundo Lima Vaz índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 20-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021034 

ARTIGOS

Embrutecimento ou emancipação: A relação entre professor e aluno em sala de aula a partir de diferentes enquadramentos

Brutalizing or emancipation The relationship between teacher and student in the classroom from different frameworks

Wanderley Cardoso Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0001-6467-5910

Samara Almeida de Oliveira** 
http://orcid.org/0000-0003-3617-4750

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor nos Programas de Pós-Graduação em Educação e Filosofia da Universidade Federal de São João del Rei – MG. E-mail: woliv2@gmail.com

**Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São João del Rei – MG. E-mail: woliv2@gmail.com


Resumo

Neste artigo, nosso objetivo é desenvolver o seguinte questionamento: Na relação entre professor e aluno em sala de aula, é possível, através do reconhecimento mútuo, romper com o princípio da desigualdade das inteligências, que produz o embrutecimento, em prol de uma educação para a emancipação? De início, principalmente, a partir de Judith Butler (EUA, 1956), descrevemos o processo de reconhecimento mútuo e buscamos mostrar que, tanto nas relações entre professor e aluno como em outras possíveis conjunturas, o reconhecimento mútuo ocorre mediante determinadas normas que condicionam os modos de reconhecimento. Em seguida, com Jacques Rancière (Argélia, 1940), focamos o princípio da desigualdade das inteligências que, de acordo com o filósofo franco-argelino, se faz presente como verdade inquestionável ou crença inabalável na relação entre mestre e aprendiz. Situada dentro do enquadramento da desigualdade das inteligências, a relação entre professor e aluno se configura em duplas polarizadas, de modo que temos, de um lado, o professor posto como sábio, sujeito ativo, explicador e capaz de usar sua própria inteligência; e, do outro, o aluno tido como ignorante, espectador passivo, incapaz de aprender por si mesmo e sempre dependente do mestre explicador. Em tais termos, o reconhecimento mútuo entre eles se torna impossível. Por fim, postulamos, ainda, a partir de Rancière, o princípio da igualdade das inteligências e ensaiamos a possibilidade de ruptura com o princípio da desigualdade das inteligências, em prol de uma educação comprometida, não com o embrutecimento e a submissão da inteligência do aprendiz àquele mestre, mas com a emancipação de ambos, compreendidos, daí por diante, como interatores, iguais em inteligência na sala de aula.

Palavras-chave Reconhecimento; Enquadramento; Embrutecimento; Emancipação

Abstract

We aim in this article to dwell on the following questioning: in the relationship between teacher and student in the classroom, is it possible, through mutual reckoning, break with the principle of inequality of intelligence, which leads to brutalizing, rather than that lead to an education towards emancipation? To begin with, mainly based on Judith Butler (US, 1956), the process of mutual reckoning is described, and we endeavor to show that in the relationship between teacher and student as well as in other possible circumstances, mutual reckoning takes place according to some determined rules which limit the modes of reckoning. Then, with Jacques Rancière (Argel, 1940), we focus on the principle of the mentalities that, according to the French-Argelian philosopher, exists as unquestionable truth or unbreakable belief in the relationship between teacher and learner. Seen inside the box of inequality of mentalities, the relationship between teacher and student fits into polarized duos, in which case we have on one hand the teacher as sage and possessor of all knowledge, and on the other hand the student seen as stupid, a passive spectator, incapable of learning on his own and always depending on the teacher who will explain everything to him. In such terms, mutual reckoning becomes impossible. Last but not least, still working with Rancière, we display the principle of equality in mentalities, and dwell on the possibility of a breach in that principle, aiming at an education engaged not engaged with brutalizing and submission of the learner’s intelligence to that teacher, but with the emancipation of both, seen thenceforth as inter-actors in the classroom having the same level of intelligence.

Keywords Reckoning; Fitting; Brutalizing; Emancipation

Introdução

Neste texto, à luz 1) do processo de reconhecimento mútuo, tal como é desenvolvido por J. Butler (2015a, 2015b, 2016), e 2) do princípio da desigualdade das inteligências, explicitado por J. Rancière (2005, 2012), nosso objetivo é desenvolver o seguinte questionamento: Tendo como foco a relação entre professor e aluno na sala de aula, é possível, através do reconhecimento mútuo, romper com o princípio da desigualdade das inteligências, que engendra o embrutecimento, em prol de uma educação para a emancipação? Primeiramente, descrevemos o processo de reconhecimento mútuo. Em seguida, buscamos mostrar que tanto nas relações entre professor e aluno como em outras possíveis conjunturas, o reconhecimento mútuo ocorre mediante determinadas normas que, de certa forma, condicionam os modos de reconhecimento; por outras palavras, cumpre explicitar que o reconhecimento só se torna possível a partir de determinado regime de verdade, que nos é apresentado por Butler pelo que ela define como “quadros normativos” (BUTLER, 2015b).

O próximo passo nos leva a Rancière (2005) e ao princípio da desigualdade das inteligências estabelecido, segundo o filósofo, como verdade inquestionável ou uma crença inabalável na relação entre mestre e aprendiz. Na relação entre professor e aluno, situada dentro do enquadramento da desigualdade das inteligências, esses dois personagens se configuram em díades, tais como: sábios e ignorantes; inteligentes e burros; sujeito e objeto, o que torna o reconhecimento mútuo uma esperança impossível. Posto isso, ensaiamos a possibilidade de ruptura com essa moldura na perspectiva de uma educação comprometida com a emancipação de professores e alunos, compreendidos como inter-atores em sala de aula, iguais em inteligência.

1 O reconhecimento

O problema do reconhecimento não é novo na Filosofia. Remonta a Hegel e à sua grande obra: A fenomenologia do espírito. Desde então, se constituiu como fonte de investigação de importantes filósofos como: Althusser, Adorno, Honneth, dentre outros, inclusive a filósofa estadunidense, Judith Butler, à qual nos ateremos de modo específico, dada sua forte contribuição, na atualidade, ao tema do reconhecimento, correlacionando-o a debates sobre normatividade, identidade e violência ética.

Iniciamos nossa discussão a partir do texto “Anseio de Reconhecimento”. Nele, Butler (2016) faz uma análise do trabalho de Jessica Benjamin, realçando pontos importantes de sua pesquisa sobre o reconhecimento. Desde o início de seu ensaio, Butler (2016, p. 186) destaca a ideia da autora de que o reconhecimento é algo possível, representando uma “condição sob a qual o ser humano alcança a compreensão psíquica de seu próprio eu”. Para além de sua possibilidade, Butler procura expor a necessidade de reconhecimento para nossa constituição como sujeitos.

Como preconiza Hegel, cita uma das bases teóricas de Butler: “O ser em estado puro, indeterminado equivale ao nada” (1968, p. 77), pois é na relação social que o ser se constitui como sujeito, é nesta relação que ele busca reconhecer o outro, e é a partir dela que também reconhece a si mesmo. Para Butler (2015a, p. 80), portanto, o sujeito “não é uma entidade ou uma substância, mas um conjunto de relações e processos, [...] que constituem sua própria definição”. Jaeggi (2013, p. 124), corroborando essa concepção, argumenta, ainda, que não é “o indivíduo já pronto” quem estabelece relações de reconhecimento; sua própria identidade se constitui em processos de reconhecimento, de modo que ele se encontra inserido em um contexto de permanente construção.

Butler desenvolve a questão do inacabamento do sujeito, partindo da percepção de sua autoelaboração, na qual, diante de normas que mediam o reconhecimento, se vê em situações de demanda por reconhecimento de si. Assim, o sujeito “age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se” (FOUCAULT apudBUTLER, 2015a, p. 30). E é nesse movimento de busca constante por reconhecimento que o si mesmo se constitui. Mas, como alerta Nuernberg (1999, p.16), em consonância com Butler, “cumpre ressaltar, contudo, que o processo de constituição do sujeito não se realiza de maneira harmônica, estável e linear”.

Nesse panorama, Butler propõe o reconhecimento, não como um acontecimento ou um episódio isolado, mas como processo. E um processo que é, em sua essência, recíproco, uma vez que é mediante o movimento de me fazer reconhecível ao outro que também me reconheço. Para Butler (2015a, p. 40) “no momento em que reconheço, sou potencialmente reconhecido”. Assim, um sujeito nunca seria capaz de oferecer reconhecimento como pura oferta. Aquele que oferta também demanda reconhecimento. Desse modo, o reconhecimento de si só é possível mediante a existência desse outro, que me interpela. Butler aprofunda esta compreensão ao afirmar que

a pergunta mais central para o reconhecimento é direta e voltada para o outro: “Quem és tu?” Essa pergunta pressupõe que diante de nós existe um outro que não conhecemos e não podemos apreender totalmente, alguém cuja unicidade e não substituibilidade impõem um limite ao modelo de reconhecimento recíproco oferecido no esquema hegeliano e, em termos mais gerais, à possibilidade de conhecer o outro

(2015a, p. 45).

Afirma-se, assim, o caráter dialógico do reconhecimento, à medida que ele se estabelece a partir de uma relação entre o eu e o outro. Assim como Butler, Flickinger (2011, p. 222) recorre à perspectiva hegeliana, ao afirmar que o “processo de reconhecimento baseia-se no encontro com o outro, caracteriza-se por uma relação social reflexiva, pois só referindo-me ao outro consigo conquistar minha autoconsciência”. Isso é que nos leva à questão da reflexividade.

Ao pensar no reconhecimento como um processo, no qual como sujeitos estamos expostos à interpelação e ao questionamento do outro, percebemos que, através dessa abordagem, o sujeito volta-se para si mesmo; ou seja, é na tentativa de corresponder às interpelações e questionamentos do outro e que agem sobre mim, que esse eu começa a tomar a si mesmo como objeto de reflexão, constituindo-se como um sujeito reflexivo. Configura-se, assim, a dinâmica do reconhecimento: dar e receber reconhecimento, interpelar e ser interpelado.

Em relação ao papel do outro no processo de reconhecimento, outra questão importante a ser destacada diz respeito à dependência. Para Butler, o outro se constitui como uma condição ao processo de reconhecimento de si, pois, ao tomarmos o reconhecimento como algo essencialmente recíproco, compreendemos que é ao me fazer reconhecível ao outro que me reconheço, justificando essa dependência do sujeito. Nesse sentido, segundo Butler, “poderíamos dizer, que, no início, eu sou minha relação contigo, ambiguamente interpelada e interpelante, entregue a um ‘tu’ sem o qual não posso existir e do qual dependo para sobreviver”. (2015a, p. 106, grifo da autora).

Ainda em relação ao outro, mais um aspecto a ser considerado no processo de reconhecimento é o fato de o encontro com ele promover, inevitavelmente, uma transformação em mim. Em Relatar a si mesmo, referindo-se a Hegel, Butler escreveu:

Se seguirmos a fenomenologia do espirito, sou invariavelmente transformada pelos encontros que vivencio; o reconhecimento se torna o processo pelo qual eu me torno outro diferente do que fui e assim deixo de ser capaz de retornar ao que eu era […]. O reconhecimento é um ato em que o “retorno a si mesmo” torna-se impossível [...]. O encontro com o outro realiza uma transformação do si mesmo da qual não há retorno

(2015a, p. 41).

2 O reconhecimento mútuo na relação professor e aluno

Uma vez explicitado o conceito de reconhecimento como processo essencial no âmbito constitutivo de nossa subjetividade, nossa intenção, agora, é utilizá-lo para pensar na relação entre professor e aluno, em sala de aula. Concebemos esse ambiente como um espaço de interação. E, de acordo com Guerreiro et al. (2015, p. 282), é “na interação que o sujeito aprende a ver-se com os olhos do outro numa ação de complementaridade e de reconhecimento mútuo”. Ao refletirmos esta ideia à luz de nossa investigação, percebemos que o reconhecimento mútuo entre professor e aluno se dá, em princípio, como fruto dessa interação. É também a partir dessa concepção que tomamos como análise a relação que se estabelece entre esses sujeitos, ao partilharem esse mesmo ambiente, que é a sala de aula. Podemos, assim, analisar as possíveis relações entre as concepções explicitadas por Butler (reconhecimento, normatividade, enquadramento) e o ambiente escolar, compreendido, aqui, primeiramente, como um ambiente social.

Nesse cenário, partindo do conceito de reconhecimento referido anteriormente como processo recíproco, podemos nos perguntar: Quais atitudes e posturas em sala de aula possibilitam o reconhecimento mútuo entre professor e aluno? Por outras palavras, a partir de quais normas se configuram as molduras que possibilitam, ou não, esse reconhecimento? Para Butler é somente a partir de determinadas normas que o reconhecimento se dá. A autora diz:

Submeto-me a uma norma de reconhecimento quando te ofereço reconhecimento, ou seja, o “eu” não oferece o reconhecimento por conta própria. Na verdade, parece que o “eu” está sujeito à norma no momento em que faz a oferta, de modo que se torna instrumento da ação daquela norma. Assim, o “eu” parece invariavelmente usado pela norma na medida em que tenta usá-la

(2015a, p. 39).

As normas e os critérios, presentes na cena do reconhecimento, evidenciam, dessa forma, uma questão importante a ser analisada aqui. Partindo dessa perspectiva, podemos pensar que o professor, no ato de reconhecimento, necessita, sumariamente, de um quadro de referência no qual ele se baseará em certos critérios para identificar quais sujeitos são reconhecíveis (ou não) como alunos; por sua vez, os alunos precisam, também, corresponder a tais normas para serem reconhecidos como tais. Desse modo, entendemos, com Butler (2015b, p. 19), que os “termos, as convenções e as normas gerais ‘atuam’ do seu próprio modo, moldando um ser vivo em um sujeito reconhecível”. Em Relatar a si mesmo, Butler desenvolve essa questão, ao se referir ao reconhecimento de um rosto como humano:

Já existe não só um quadro epistemológico dentro do qual o rosto aparece, mas também uma operação de poder, uma vez que somente em virtude de certos tipos de disposições antropológicas e quadros culturais determinado rosto parecerá ser um rosto humano

(2015a, p. 43).

No trecho citado, podemos compreender que, ao usar certos critérios para julgar o que será, ou não, reconhecido, ou quem será, ou não, reconhecido, tornam-se evidentes as relações de poder que se instauram na cena demarcada. Na relação professor/aluno, essa questão pode ser percebida na medida em que ambos os sujeitos, na posição de conceder reconhecimento e munidos de todo um conjunto de normas sociais preestabelecidas, se apropriam de certos critérios que serão usados nesse processo.

Embora conscientes do papel das normas na dinâmica do reconhecimento e como elas mediam, condicionam e articulam o que será reconhecido, é importante termos em mente que, mesmo se apropriando delas, ainda assim, não se pode apreender o outro totalmente, posto que, no contexto da interpelação, o outro é, em rigor, alguém que não conheço e que, no entanto, estarei perpetuamente buscando reconhecer; eis, portanto, uma característica essencial do reconhecimento explicitada por Butler: ele é insatisfazível.

Essa característica se amplia ainda mais à medida que a filósofa pauta nosso encontro com o outro a partir da concepção levinasiana de rosto.

Para Lévinas (1961) o rosto não é um conjunto anatômico (olhos, orelhas, boca, nariz...) que percebo na presença do outro. Ele não é essa aparência e é outra coisa que esse formato sensível com as qualidades que posso nele identificar. O rosto não é um fenômeno como outros e jamais se reduz a um objeto ou a uma coisa que posso manipular ou fazer variar meu ponto de vista sobre ele na pretensão de vê-lo integralmente. O outro se mostra a mim transcendendo qualquer apreensão conceitual ou perceptiva que possa ter dele. Mais que juízos ou sensações, o acolhimento do outro como rosto nos desperta o sentimento de estranheza, espanto, mistério. Na afirmação de Marques, Martino e Chardel (2020, p. 45), “é no encontro com o rosto do outro que se revela sua infinita alteridade”. A radicalidade dessa alteridade presente no rosto, que torna impossível qualquer redução do outro ao mesmo, faz da diferença o coeficiente comum entre nós.

Conforme constatam Martino e Marques (2019, p. 33), o rosto “é o ponto de inflexão de uma igualdade na diferença [...]. O rosto iguala na diferença”. Em sua fenomenalidade desnuda de qualquer moldura social, o rosto desvela o outro e a mim mesmo como vulneráveis, tornando-nos iguais também em nossa vulnerabilidade. Radicalmente diferente de mim, contudo, vulnerável como eu, jamais o conhecerei ou serei conhecido cabalmente por ele. Na tessitura de seu ser com o meu e vice-versa, jamais conheceremos, em toda clarividência, a nós mesmos. Mais que epistemológico, o reconhecimento funda-se, assim, na ética do acolhimento, do respeito e da resposta a esse estranho presente diante de mim, a quem não devo ferir ou matar, pois entregue a ele e ele a mim, somos inteiramente responsáveis um pelo outro.

3 Enquadramento e normatividade como (pré-)condições ao reconhecimento

Como analisado na seção anterior, o processo de reconhecimento ocorre mediante determinadas normas que, por vezes, configuram os critérios a partir dos quais os sujeitos oferecem reconhecimento e se reconhecem mutualmente em um ambiente, como no caso deste artigo, na sala de aula. Butler afirma que

o reconhecimento de si acontece, de modo que o que posso “ser”, de maneira bem literal, é limitado de antemão por um regime de verdade que decide quais formas de ser serão reconhecíveis e não reconhecíveis, [...] o regime de verdade fornece um quadro para a cena de reconhecimento, delineando normas disponíveis para o ato de reconhecimento (2015a, p. 35).

Dessa maneira, tendo a sala de aula como foco, podemos dizer que o reconhecimento mútuo entre professor e aluno se dá a partir de certas normas de reconhecimento. Essas normas compõem um quadro ou produzem um enquadramento que condiciona a cena de reconhecimento, delimitando quais sujeitos serão reconhecíveis e como o serão. Como afirma Butler, “podemos pensar no enquadramento como algo ativo, que tanto descarta como mostra, e que faz as duas coisas ao mesmo tempo, em silêncio, sem nenhum sinal visível de operação” (2015b, p. 112). Essas condições são reveladas por Butler a partir do que a autora define como “quadros normativos”.

Por analogia, podemos pensar em tais quadros como fôrmas. Enquadrar alguém ou se enquadrar é ser posto ou colocar-se numa fôrma. Ao tomarmos como cenário a sala de aula, torna-se pertinente perguntar: A que fôrmas são submetidos os sujeitos em questão, neste texto, professores e alunos? Numa visão tradicional da Educação, que ainda está presente em muitas salas de aulas, o aluno é enquadrado como o não ativo, o receptor, o passivo, aquele que está em um permanente estado de não saber, evidenciando-se, assim, suas funções de aprender, provar e repetir. Ao professor é atribuído o papel de explicador, ativo, o dono da verdade e autoridade máxima em sala de aula, aquele cuja função principal é passar ou explicar aos alunos os conhecimentos que necessitam aprender.

Ainda em relação aos quadros normativos, é preciso dizer que a norma é utilizada para construir uma legibilidade através da qual se configura o enquadramento e a moldura de uma realidade, de modo que essa legibilidade é também responsável por modular o enquadramento. O papel das normas é fundamental na formulação de enquadramentos. E como eles atuam em vista de determinados interesses sociais, apesar de serem incorporados aos discursos dos sujeitos, se constituem e se estruturam socialmente.

Ao refletir sobre tais questões, compreendemos qu,e se alguém é julgado, incriminado ou enquadrado por determinada situação, seja qual for, cria-se um enquadramento a partir do qual esse sujeito será reconhecido, fazendo com que, mesmo uma acusação falsa possa parecer verdadeira. Quanto a isso, Butler (2015b, p. 44) nos convida a pensar nas consequências positivas e negativas dos enquadramentos normativos, uma vez que, segundo a filósofa, “não podemos reconhecer uma vida fora dos enquadramentos nos quais ela é apresentada”.

Amaral, em consonância com Butler, afirma que

Se, por um lado, as normas se referem aos propósitos, preceitos e pressuposições que nos guiam, mediante os quais nos orientamos e que orientam nossas ações, por outro lado, também se refere ao processo de normalização, a maneira como certas ideias e ideais dominam a vida social e fornecem os critérios para se definir sujeitos

(2013, (p. 238).

E não só para se definir, mas também para delimitar quais desses sujeitos serão dignos de serem reconhecidos. Ao partirmos da compreensão de que o enquadramento delimita quem é e quem será reconhecível, podemos afirmar que esse enquadramento acaba por ser socialmente excludente, pois aqueles que não se enquadram na moldura que prevalece no ambiente que habitam, não serão reconhecidos.

Mediado pelos quadros normativos, o reconhecimento não se dá na perspectiva de uma ou mais características ou qualidades presentes ou ausentes em alguém, para que seja reconhecido ou não. O que está em questão é a adequação ou não do modo de ser do sujeito à fôrma na qual ele deve se encaixar para ser reconhecido.

Em tal caso, quanto mais alguém ou determinado coletivo social nega seu modo de ser para caber no enquadramento vigente no ambiente em que ele vive e assim ser reconhecido, tanto mais será vítima de violência ética neste lugar, não importa qual seja: a família, a igreja, a fábrica, a escola, dentre outros.

Mas cumpre ressaltar que os quadros normativos, compreendidos como dispositivos de subjetivações,1 de controle e avaliação moral dos modos de vida, nem sempre desencadeiam processos de violência ética. No plano do senso comum e das identidades impostas na ordem social, quanto mais e melhor o sujeito se encaixar na moldura daquilo que a sociedade avalia como digno de respeito e prestígio, tanto mais ele será reconhecido, respeitado e estimado por ela, sem que nada precise ser mudado nos quadros normativos nela vigentes. A mulher recatada e do lar, o bom pai de família, o santo padre, o funcionário do mês, o aluno nota 10, o melhor professor da escola...

Podemos muito bem nos adequar a tais personagens e sermos felizes dentro das molduras a partir das quais nos mostramos e somos socialmente vistos. Não há nenhuma violência nisto. A violência surge quando não há esta adequação, quando nossos modos de ser não cabem mais nestas molduras que, embora caducas, insistem em prevalecer. Resistir a elas, mais que uma possibilidade, torna-se uma necessidade ou uma exigência a partir da qual processos de emancipação podem surgir abrindo caminhos para outros modos de ser em relação àqueles que socialmente se encontram moldados para nós.

4 Desigualdade das inteligências: uma teoria do embrutecimento

Tendo sido evidenciadas, no tópico anterior, as concepções de reconhecimento e enquadramento normativo em Butler, nossa intenção, agora, é relacioná-las ao princípio da desigualdade das inteligências, identificado por Jacques Rancière (2005) em O mestre ignorante. Nessa obra, podemos pensar na Educação a partir de duas perspectivas distintas: a emancipadora e a embrutecedora. A primeira pressupõe o princípio de que somos todos iguais em inteligência; a segunda parte da desigualdade das inteligências como uma crença inquestionável. Em uma temos o mestre explicador, na outra, o mestre ignorante.

Neste tópico, tratamos do mestre explicador e da Educação embrutecedora, regida pelo princípio da desigualdade das inteligências.

Para Rancière, tal princípio é fruto da crença de que o mestre é alguém que possui uma inteligência superior à de seus alunos. A partir desse princípio, instalado como principal traço na configuração do regime de verdade que impera em sala de aula, desencadeia-se, nesse ambiente, uma partilha do espaço no qual são prescritos lugares e fazeres distintos e hierarquizados entre professor e alunos. De um lado, o de baixo: os ignorantes, alunos que nada sabem, calados, que ouvem, copiam, aprendem e obedecem; de outro, o de cima: o professor que, supostamente, sabe tudo, fala, ensina e manda.

Estabelecida essa ordem, no seu livro O desentendimento, que Rancière (1996) define como policial, ou seja, na ordem supostamente natural da dominação que repousa na distribuição hierárquica dos lugares e das funções de cada um, a grande missão do professor se torna a de “transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los, gradativamente, a sua própria ciência” (2005, p. 19). Contudo, o abismo entre o ignorante e aquilo que o professor sabe jamais é definitivamente preenchido, pois, assim que se termina uma etapa, abre-se outra com mais coisas que o ignorante tem que aprender.

Ao se considerar inferior, o aluno não acredita em sua capacidade de aprender sem a explicação do mestre, tido como intelectualmente superior. Crente de sua inferioridade, o aluno vê em seu mestre alguém do qual ele depende para aprender algo. E é essencialmente essa crença que gera o embrutecimento. Nas palavras de Rancière (2005, p. 64): “O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência.” O embrutecimento se dá pelo próprio ato dos sujeitos que, ao pretenderem reduzir uma incapacidade (aquela de aprender sozinho), acabam por confirmá-la. O autor desenvolve essa ideia ao citar como exemplo a justificativa de que em busca da igualdade deve-se instruir o povo. No entanto, Rancière (2005) argumenta que instruir alguém é o mesmo que afirmar que ele não poderia aprender por si só, que sua inteligência é inferior. Ora, para o filósofo, toda vez que uma inteligência é subordinada a outra, o que temos é uma relação de embrutecimento.

Ao articularmos o princípio desvelado por Rancière ao conceito de reconhecimento explicitado por Butler, podemos pensar na desigualdade das inteligências como um quadro de referência (como dito na sessão anterior), no qual o professor se baseará para reconhecer seus alunos como inferiores em inteligência e incapazes de aprender sozinhos. Daí a necessidade de explicações como a base da instrução e a comprovação da superioridade de uma inteligência sobre outra. Partindo da convicção da necessidade de explicação na relação mestre/aprendiz, chegamos ao “mito da pedagogia”, à “parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos” (RANCIÈRE, 2005, p. 24).

De acordo com o autor de O mestre ignorante, se explicamos algo a alguém é porque acreditamos na necessidade de fazê-lo compreender. Esse “fazer compreender”, por sua vez, interrompe o movimento da razão, impedindo qualquer possibilidade do aprendiz de assimilar, comparar e construir seu próprio aprendizado, criando, assim, uma relação de dependência entre eles. Mas vale ressaltar que, para Rancière (2005, p. 23) se trata, aqui, da dependência do professor em relação ao aluno. Essa dependência se evidencia pela manifestação do interesse do mestre em sempre se sentir necessário ao aluno. “É o explicador – esclarece o autor – que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal”. Assim, ao reproduzir essa crença na desigualdade das inteligências, a crença de que os alunos têm uma inteligência inferior, o mestre explicador se confirma como personagem central, o “ator principal” (RANCIÈRE, 2012) em sala de aula.

A crença na desigualdade entre as inteligências, desse modo, se estabelece como norma inquestionável a partir da qual se enquadra o papel do professor como o superior, o sábio, o capaz e o inteligente, restando aos alunos as atribuições de seres inferiores, ignorantes, incapazes e bobos. Como consequência desse enquadramento, a relação entre esses sujeitos – professores e alunos – acaba se configurando como violenta, hierárquica e, principalmente, embrutecedora. Diante desse contexto, cabe-nos interrogar: Será possível romper com essas molduras e as identidades que elas formatam em sala de aula? Estamos, como professores e alunos, presos às identidades hierarquizadas do sábio e do ignorante ou será possível nos desidentificarmos com elas e instaurarmos processos emancipatórios de novas subjetivações? Tais questões nos conduzem ao próximo tópico, no qual tratamos do mestre ignorante e da Educação emancipadora, regida pelo princípio da igualdade das inteligências.

5 Igualdade das inteligências: uma teoria da emancipação

A concepção de igualdade das inteligências, proposta por Rancière (2005), em O mestre ignorante, surge a partir da história de Joseph Jacotot, pedagogo e revolucionário francês em 1789 que, com a restauração da monarquia naquele país, exilou-se nos Países Baixos em 1818, onde acabou por ocupar o cargo de professor de literatura francesa na Universidade de Louvain – Bélgica, na qual ele se viu em uma complicada situação: a maioria de seus alunos não falava francês e ele tampouco compreendia o flamengo, idioma dos alunos. Diante dessa situação, Jacotot sugeriu aos alunos – através de um intérprete – a leitura do livro intitulado Telêmaco2 de François de Salignac de La Nothe, em edição bilíngue de 1699.

Terminada a leitura, Jacotot pediu aos alunos para escreverem, em francês, o que compreenderam do texto. Esperando desastrosos resultados, Jacotot jamais imaginaria que, através dessa iniciativa, descobriria o que se tornaria o fundamento de sua pedagogia. Tamanha foi sua surpresa quando constatou que seus alunos, após traduzirem o livro, escreveram ótimas redações em francês e, o mais impressionante: sem uma única explicação de sua parte. Com essa experiência, Jacotot concluiu que somos todos, igualmente, inteligentes. Portanto, qualquer um pode aprender qualquer coisa sozinho, sem a necessidade de um mestre explicador.

Ao refletir sobre a experiência de Jacotot, para que isso aconteça, Rancière (2005, p. 34) afirma que basta “que se emancipe o aluno, isto é, que se force o aluno a usar sua própria inteligência”, que o faça reconhecer sua própria capacidade, que sua inteligência não é inferior à do mestre e que ele pode aprender o que quiser. Este é para Rancière um dos principais desafios: “Elevar aqueles que se julgam inferiores em inteligência, fazê-los sair do charco em que se encontram abandonados: não o da ignorância, mas o do desprezo de si, do desprezo em si da criatura razoável” (2005, p. 142).

Em entrevista concedida a Knudsen (2010), Butler define o reconhecimento como “uma relação intersubjetiva”, na qual, “para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade” (p. 168). Em seguida, ela completa dizendo que “o reconhecimento também pode ser o lugar onde os campos de inteligibilidade são transformados” (p. 168). A partir dessa afirmação, podemos entender que os enquadramentos normativos não atuam de forma estável ou permanente. Compreendidos como dispositivos, eles oscilam, apresentam linhas de fuga, de ruptura, de disjunção pelas quais algo de novo pode surgir. Como aponta Deleuze (2003, p. 322), o importante é “distinguir, em todo dispositivo, o que somos [...], e aquilo que estamos nos tornando” ou que somos em devir. Essa armadura, que fixa os modos de existência em identidades estáticas, apresenta fissuras, trincas, linhas de fuga que abrem caminhos para produção de subjetividades que ainda estão para nascer.

Mas se os quadros normativos e as condições de reconhecimento que eles instauram podem sofrer resistências e serem transformados, precisamos pontuar, que Butler, em nenhum momento, afirma a viabilidade de uma total exclusão dos quadros normativos; mas a possibilidade de resistimos a eles, de transformá-los, de mudá-los ou de sair deles para outros aos quais nos adequamos melhor. O rompimento com determinada moldura se dá mediante a condição de sermos enquadrados por outra, de modo que só existimos dentro de quadros normativos. Como Butler (2015b, p. 22) afirma, “não há vida nem morte sem relação com um determinado enquadramento”.

Essa impossibilidade de existência fora dos enquadramentos normativos pode ser compreendida pelo fato de ser, a partir deles, que o si mesmo se torna um sujeito reconhecível. Mas, novamente, é importante frisar que, para a filósofa, o enquadramento nunca mantém nada integralmente em seu lugar, ele rompe consigo mesmo perpetuamente através do tempo e do espaço, o que nos possibilita questioná-lo e questionar as molduras socialmente estabelecidas por eles.3

Nessa lógica, segundo Butler (2015b), “o que acontece quando um enquadramento rompe consigo mesmo é que uma realidade aceita sem discussão é colocada em xeque” (p. 28). Ora, em sendo assim, de volta a Rancière, o dogma inquestionável da desigualdade das inteligências pode ser posto em questão. A ordem policial decorrente dele, que se desdobra em enquadramentos rígidos de identidades fixas do professor como sábio, inteligente, ator principal, e dos alunos como ignorantes, bobos, inferiores e espectadores passivos, não é eterna e imutável, tampouco as identidades que ela produz são prisões das quais não conseguimos escapar.

Contraposta à ordem policial, que define identidades, lugares e ocupações fixas, Rancière (1998) apresenta a ordem política, na qual os processos de subjetivação estão sempre inacabados, em devir. Aquela é fechada e homogeneizante, esta é aberta e diferenciadora. Na comparação de Lelo com Marques, a primeira “deseja nomes exatos, que marquem para as pessoas o lugar que ocupam e o trabalho que devem desempenhar.” A segunda, “diz de nomes ‘impróprios’ que apontam que sujeitos podem ser mais que o script definido [...]” (2014, p. 359, grifo dos autores). Mas como passar da ordem policial à ordem política? A passagem se dá a partir do que Rancière (1998) nomeia como “desidentificação”, um modo de resistência à homogeneização policial, ao qual podemos vincular uma teoria da emancipação (MOREAU, 2017). É desidentificar, não rejeitar, ou se opor a uma identidade imposta pelo regime policial em prol ou em defesa de outra. Na identificação, estamos enclausurados numa identidade, a desidentificação se vincula à emancipação justamente à medida que nos faz estranhar, tomar distância e rejeitar tal identidade que nos prende. À luz dos argumentos de Fjeld e Tassin (2015), trazendo-os para o caso que nos ocupa, a luta pela emancipação articula dialeticamente a desidentificação, como negação de uma identidade imposta por outro, a uma subjetivação, na qual, em vez de negados no modo de ser que nos é atribuído, somos afirmados.

Em termos dialéticos, teríamos os seguintes movimentos: 1) A desidentificação como negação da negação: “Não somos intelectualmente inferiores e incapazes de aprender sem a tutela de um mestre explicador”; e 2) A subjetivação afirmativa: “Sim, somos iguais em inteligência e igualmente capazes de aprender sem a tutela de um mestre explicador.”

Ao voltarmos aos quadros normativos de Butler, em posse do conceito de desidentificação de Rancière, podemos afirmar que, através dele, passamos do quadro normativo embrutecedor, regido pela desigualdade das inteligências àquele emancipador regido pela igualdade das inteligências.4 Da menoridade daquele que precisa de tutela no uso de sua inteligência, passamos à maioridade de quem se emancipa dessa tutela e faz por si mesmo uso de sua inteligência. Nesse novo quadro, mediante o reconhecimento das inteligências como iguais, a divisão entre inferiores e superiores, sábios e ignorantes perde o princípio da desigualdade que a sustentava. Como assevera o autor de O espectador emancipado,

o animal humano aprende todas as coisas como aprendeu a língua materna, como aprendeu a aventurar-se na floresta das coisas e dos signos que o cercam, a fim de assumir um lugar entre os seres humanos: observando e comparando uma coisa com outra [...]. Desse ignorante que soletra os signos ao intelectual que constrói hipóteses, o que está em ação é sempre a mesma inteligência

(RANCIÈRE, 2012, p. 14).

Para Rancière (2005, p. 37) “quem ensina sem emancipar, embrutece”. A prática educativa que não tem em vista uma educação para a emancipação terá um só resultado: o embrutecimento dos sujeitos. Essa não é uma tarefa fácil, a educação para a emancipação requer, primeiramente, o reconhecimento mútuo entre mestres e aprendizes do poder da inteligência humana, o reconhecimento de que “todas as ciências, todas as artes, a anatomia e a dinâmica, etc. são frutos da mesma inteligência” (p. 48) e todas são igualmente capazes. Essa direção, alinhada às reflexões sobre o reconhecimento mútuo, possibilita-nos pensar na relação professor-aluno a partir de uma nova perspectiva, visando à sala de aula como um espaço de troca de saberes e experiências, onde o professor reconhece a inteligência do aluno como igual à sua e vice-versa. A sala de aula, a partir daí, não seria mais o cenário no qual apenas um ator principal atuaria, isto é, o professor. A sala de aula se tornariam um cenário para inter-atores, compartilhando, em pé de igualdade, a aventura do aprender.

Considerações finais

Para terminar, mais que considerações finais, precisamos voltar sobre o que escrevemos até aqui e tecer algumas ponderações, que não são finais e nem conclusivas.

Mesmo que a igualdade de inteligências vigore como princípio de reconfiguração das relações desiguais e hierárquicas entre professor e aluno em sala de aula e, nesse sentido, ela possa colaborar para a reparação do dano causado aos alunos presos na moldura de ignorantes e inferiores, precisamos nos perguntar, com Butler, se isso basta para que não haja mais opressores e oprimidos nesse ambiente.

Por mais que reconheçamos as inteligências como iguais, não há como desconsiderar a presença simultânea de vários outros traços (de gênero, raça, classe, orientação sexual, religião...) que se entrelaçam, se sobrepõem, fortalecendo uns aos outros na composição das figuras que os quadros normativos pintam.

“Ela/Ele é inteligente, mas é...” Nessas reticências, entra toda variedade de combinações que pode haver entre os traços para discriminar, agredir e oprimir alguém. Além da igualdade de inteligências, há um longo caminho a ser percorrido para aceitarmos uns aos outros em nossas diferenças e vulnerabilidades (tanto em sala de aula como em qualquer outro lugar), sem que as utilizemos como armas para ferir e até mesmo matar o outro.

Com Butler, leitora de Lévinas, precisamos acrescentar, em nossas salas de aula, além do reconhecimento (proposto por Rancière) das igualdades das inteligências, também, ou melhor, essencialmente, o reconhecimento do outro como rosto e tudo o que isso implica em nossa relação de acolhimento, responsabilidade, respeito, escuta e resposta a essa alteridade radical e infinita que ele é.

1Dispositivo é um termo que, de acordo com Agamben (2009), a partir de meados dos anos de 1970, Foucault passou a utilizar de modo generalizado e frequente; contudo, sem jamais defini-lo com exatidão. Ao propor sua própria definição, para o filósofo italiano, dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (p. 40). Os quadros normativos de Butler cabem nesta definição e se tornam mais pertinentes a ela quando Agamben define como sujeito “o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (p. 41).

2A obra de autoria de François de Salignac de La Nothe, também chamado “Fénelon”, retrata as aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses, herói grego.-

3É nítida a proximidade dos quadros normativos de Butler com os dispositivos de Foucault, tanto no sentido proposto por Agamben (2009) quanto no de Deleuze (2003), que os concebe como emaranhados de linhas heterogêneas e multivetoriais, que se misturam, dando umas nas outras ou suscitando outras, por meio de variações dinâmicas e constantes. Se, como assevera Deleuze (2003, p. 322), “pertencemos a [...] dispositivos,” estamos sempre emaranhados em suas linhas, e isso não significa que estejamos estáticos, pois, na sequência da citação anterior, o autor complementa, “e neles agimos”. Sempre de acordo com a interpretação deleuziana de Foucault, as diferentes linhas ou traços dos dispositivos se agrupam em segmentos de sedimentação e de atualização ou de criatividade. As linhas de sedimentação nos envolvem e nos fixam em determinados modos de existir (professor, aluno, médico, paciente, presidiário, carcereiro, patrão, operário...), por sua vez, as linhas de atualização nos abrem ao devir e às possibilidades de outros modos de existência.

4Em Butler, apontamos a proximidade do quadro normativo com o conceito de dispositivo em Foucault. Julgamos ser válida também a proximidade da identificação rancieriana com tal conceito. Mas não somos da mesma opinião quando se trata da desidentificação. Em La méthode de la scène, Rancière (2018, p. 30) afirma que “se pensamos a subjetivação a partir da noção de dispositivo, o que é produzido é, a princípio, um sujeito assujeitado [...]. ‘Dispositivo’ é um conceito que entendo através de Foucault [...], onde ele é algo como o aparelho que impõe a maneira pela qual vamos nos posicionar, pela qual seremos identificados e devemos olhar e ser vistos.” Parece-nos que esta definição é apropriada à identificação, mas não à desidentificação e à subjetivação decorrente dela. Na obra em questão, Rancière contrapõe ao dispositivo a noção de cena, que não temos, nos limites deste artigo, como tratar deste tema aqui.

Referências

AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In?: ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 25-51. [ Links ]

AMARAL, J. G. Lutas por reconhecimento, desrespeito e universidade. a atuação dos coletivos universitários de diversidade sexual para o enfrentamento à homofobia institucional. Teoria & Sociedade, v. 2, n. 21, p. 229-262, 2013. [ Links ]

BUTLER. J. Anseio de reconhecimento. Equatorial, v. 3, n. 5, p. 185-207, 2016. [ Links ]

BUTLER. J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015a. [ Links ]

BUTLER. J. Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015b. [ Links ]

DELEUZE, G. Qu´est-ce qu´un dispositif ? In: ______. Deux régimes de fous: textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. p. 316-325. [ Links ]

FJELD, A.; TASSIN, E. Subjectivation et désidentification politiques: dialogue a partir d’Arendt et de Rancière. Ciência Política, v. 10, n. 19, p. 193-223, jan./jun. 2015. [ Links ]

FLICKINGER, H. G. A teoria do reconhecimento na práxis pedagógicas: a exemplo de conflitos entre diretrizes ético-morais. Espaço Pedagógico, v. 18, n. 2, p. 220-233, 2011. [ Links ]

GUERREIRO, A. et al. Comunicação na sala de aula: a perspectiva do ensino exploratório da matemática. Zetetiké, v. 23, n. 2, p. 279-295, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/50936. Acesso em: 29 out. 2019. [ Links ]

HEGEL, G. W. F. Ciencia de la lógica. Buenos Aires: Hachette, 1968. [ Links ]

HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992. [ Links ]

JAEGGI, R. Reconhecimento e subjugação: da relação entre teorias positivas e negativas da intersubjetividade. Sociologias, Porto Alegre, v. 33, p. 120-140, 2013. [ Links ]

LELO, T.; MARQUES, A. C. S. Democracia e pós-democracia no pensamento político de Jacques Rancière a partir das noções de igualdade, ética e dissenso. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 349-374, set./dez. 2014. [ Links ]

LÉVINAS, E. Totalité et infini: essai sur l´exteriorité. La Haye: Nijholf, 1961. [ Links ]

MARQUES, A. C. S.; MARTINO, L. M. S.; CHARDEL, P. A. Les temporalités communicatives dans la rencontre ethique avec autrui: accueil, écoute et réponse chez Lévinas. Contracampo, Niterói, v. 38, n. 3, p. 41-53, dez. 2019/mar. 2020. [ Links ]

MARTINO, L. M. S.; MARQUES, A. C. S. A comunicação como ética da alteridade: pensando no conceito com Lévinas. Intercom, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 21-40, set./dez. 2019. [ Links ]

MOREAU, D. Différence et désidentification: une théorie de l’émancipation éducative. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 63, p. 1.475-1.495, set./dez. 2017. [ Links ]

NUERNBERG, A. H. Investigando a significação dos lugares sociais de professora e alunos no contexto de sala de aula. 1999. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UFSC, Florianópolis, 1999. [ Links ]

KNUDSEN, P. P. P. S. Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler. Paris, jun. de 2008. Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 1, p. 161-170, jan./abr. 2010. Disponível em: http://ref.scielo.org/833vzw. Acesso em: 21 set. 2019. [ Links ]

RANCIÈRE, J. La méthode de la scène. France: Editions Lignes, 2018. [ Links ]

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. [ Links ]

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. [ Links ]

RANCIÈRE, J. Aux bords du politique. Paris: Gallimard, 1998. [ Links ]

RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996. [ Links ]

SÁ, L. A. C. Narrativa de uma arte-educadora: entrelaçamentos de vida, desafios e inventividades docentes. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFSJ, São João Del-Rei, 2019. [ Links ]

Recebido: 14 de Setembro de 2020; Aceito: 08 de Novembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.