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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 30-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021036 

ARTIGOS

Desigualdade e Educação: mais uma revolução inacabada?

Inequality and Education: another unfinished revolution?

*Doutor em Fundamentação Social e Filosófica da Educação pela Rutgers University – Canadá. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação daUniversidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: streckdr@gmail.com


Resumo

O artigo propõe-se revisitar a relação entre desigualdade e educação, um tema que acompanha a educação nas sociedades modernas. Apesar do acesso a dados sobre a desigualdade na sociedade e na educação, bem como de muitas análises sobre as origens e tendências que provocam verdadeiros apartheids sociais, tem-se a impressão de que a “metáfora do labirinto”, comum na literatura latino-americana, se aplica à educação. O artigo está dividido em duas partes: na primeira, busca situar o tema da desigualdade como um problema da educação e para a educação, com breve referência a obras clássicas e identificação de alguns lugares pedagógicos que podem servir à perpetuação da desigualdade ou de resistência a ela. A segunda parte, tomando por base pensamentos do início da segunda metade do século passado, gira em torno da pergunta: Estaríamos diante de mais uma revolução inacabada na América Latina? São debatidos dois temas: a atualização da noção de conscientização e as nuanças pedagógicas de conceitos como libertação, exclusão social e (de)colonialidade. Na conclusão, acentua a centralidade de Paulo Freire para compreender a relação entre desigualdade e educação e para a criação de inéditos viáveis na educação e através da educação para a promoção de uma sociedade menos desigual e mais justa.

Palavras-chave Desigualdade; Democracia; Conscientização; Libertação; (De)colonialidade

Abstract

The article aims to revisit the relationship between inequality and education, a theme that accompanies education in modern societies. Despite access to data on inequality in society and education, as well as many analyzes of the origins and trends that provoke real social apartheids, one has the impression that the metaphor of the labyrinth, common in Latin American literature, applies to education. The article is divided in two parts. The first seeks to situate the theme of inequality as a problem of education and for education, with a brief reference to classic works and the identification of some pedagogical places that can serve to perpetuate inequality or resist it. The second part, based on thoughts from the beginning of the second half of the last century, revolves around the question of whether we are facing yet another unfinished revolution in Latin America. Two themes are discussed: updating the notion of awareness and the pedagogical nuances of concepts such as liberation, social exclusion and (de) coloniality. In the conclusion, Paulo Freire’s centrality is emphasized to understand the relationship between inequality and education, and to create untested feasibilities in education and through education to promote a less unequal and more just society.

Keywords Inequality; Democracy; Awareness; Liberation; (De)coloniality

Introdução

Uma das revelações mais flagrantes da Covid-19 é a enorme desigualdade social que, no caso do Brasil, assume proporções comparáveis às da própria pandemia. As filas que se formam diante de agências da Caixa Econômica Federal, para receber o auxílio financeiro emergencial, é um indicador tanto das necessidades enfrentadas no cotidiano para pagar as contas quanto do tratamento dispensado à grande parte da população. Nas escolas, quando se passa para as aulas on-line, a desigualdade se reflete na disponibilidade de equipamento e de acesso a redes de internet. Muito já se tem escrito sobre esse tema, e o objetivo deste ensaio não é refletir sobre os efeitos da pandemia na vida da sociedade e, em particular, na educação. Pretende analisar o papel da educação diante das desigualdades sociais tornadas mais salientes na pandemia.

Temos, hoje, um vasto acúmulo de informações sobre políticas de inclusão ou compensatórias: de raça, de gênero, de renda, entre outras. No entanto, parece que estamos condenados a andar em círculos, buscando saídas. O labirinto, tão presente na literatura latino-americana com Gabriel García Márquez, Octávio Paz, Jorge Luiz Borges, entre outros, fornece uma imagem para se compreender essa situação de aparente sem-saída. Temos os dados e temos uma noção de onde queremos chegar ou onde, do ponto de vista ético, temos o compromisso de fixar o olhar enquanto andamos. No entanto, não raro, nos vemos no que parece ser um já conhecido ponto de partida.

O artigo está divido em duas partes: na primeira, há uma tentativa de situar o tema da desigualdade como um problema da educação e para a educação. Embora poucos pais ou educadores estejam dispostos a defender a desigualdade como uma situação desejável, o fato é que ela é naturalizada, e são, então, encontradas razões para justificá-la dos pontos de vista social e moral. Mesmo um breve olhar para a história da educação moderna permite ver que o tema esteve presente no pensamento pedagógico, como será exemplificado nas figuras de John Locke e Jean-Jacques Rousseau.

No Brasil, o tema não pode ser desvinculado da formação e da cultura políticas que apresentam obstáculos aparentemente intransponíveis para uma vivência democrática efetiva. Isso, no entanto, não significa que nada possa ser feito e, no texto, são apontados lugares pedagógicos onde a desigualdade é reproduzida e que também tem o potencial de interromper o círculo vicioso da geração e manutenção das desigualdades.

A segunda parte gira em torno da pergunta: Estaríamos diante de um sintoma de mais uma revolução inconclusa na América Latina? A tentativa de resposta é dada em dois tópicos: no primeiro, revisito o conceito freiriano de conscientização, buscando identificar nele chaves para fazer frente à desigualdade dentro do campo da educação. Por que Paulo Freire teria voltado a defender o conceito de conscientização em seu último livro, em 1996? O que significa atualizar a conscientização, como sugerido por ele? O segundo tópico busca identificar ênfases pedagógicas inscritas em algumas nomeações da realidade latino-americana que propõem compreender e superar a desigualdade. Quais são as implicações pedagógicas quando se passa do discurso da libertação à exclusão social e à (de)colonialidade?

Na conclusão, ressalta-se que, mesmo sendo a desigualdade um fenômeno universal, ela se mostra de forma diferenciada em cada parte do mundo. Na América Latina, dadas as proporções da desigualdade, o tema está intimamente associado ao desafio da humanização. Reafirma-se, por isso, não ser por acaso a centralidade de Paulo Freire nas pedagogias implicadas nos diferentes nomes dados à busca de superação da desigualdade. O desafio pedagógico, como lembra Freire, será sempre e também um desafio político.

Desigualdade e educação: que relação é essa?1

Dom Helder Camara, em 1976, quando escreveu sobre a distância que separa os desejos e a realidade, aponta para o que continua sendo um dos grandes problemas da humanidade:

Apesar de todos os pais desejarem o bem máximo dos filhos; apesar da escola pretender ser de vida, pela vida e para a vida, apesar da Igreja pretender apresentar Deus como Pai e levar homens a viverem como irmãos, como explicar que no balanço geral do esforço educativo, encontramos 20% da humanidade com mais de 80% dos recursos da Terra e, consequentemente, mais de 80% da humanidade com menos de 20% dos recursos da Terra?

(CAMARA, 1977, p. 28).

Os dados atuais dão conta de que esse balanço geral não se alterou significativamente. A distância entre o andar de cima e o andar debaixo continua grande, e o prognóstico é que sem medidas políticas efetivas, o quadro tende a se agravar (PIKETTI, 2014). No Brasil, recentes números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o rendimento médio do grupo dos 1% mais ricos do País cresceu 8,4% em 2018, enquanto o dos 5% mais pobres caiu 3,2%”.2 Outros dados de 2019 mostram que quem está no topo recebe 36 vezes mais daqueles que estão na parte de baixo; em termos de renda, o 1% com maior rendimento mensal ganha, em média, 180 vezes o que ganha a pessoa que está na parcela dos 5% com menor renda.3

Esses dados podem ser desdobrados por categorias, nas quais se analisam as disparidades entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre centro e periferia das cidade, etc. São categorias que se configuram como estruturantes da sociedade. Charles Tilly chama essas desigualdades de “categóricas”, ou seja, as pessoas que estão de um lado e de outro da fronteira não recebem o mesmo tratamento. Ele destaca a relevância desse tipo de desigualdade em nossa sociedade: “Embora os mesmos princípios se apliquem a diferenças individuais, em nosso mundo, as diferenças categóricas em bem-estar e sofrimento suplantam a variação individual no interior das categorias” (TILLY, 2006, p. 48)

Essa distinção é relevante em termos de concepções políticas e divide os campos ideológicos. Para alguns as desigualdades se devem a méritos e fracassos em nível individual, enquanto para outros a desigualdade não poderá ser enfrentada, de fato, se não forem levadas em conta as questões estruturais que exigem políticas que interfiram nas estruturas que geram as desigualdades e se configuram como flagrantes fontes de injustiça social. Conhecemos bem como essas disputas se refletem no campo da educação, desde o sistema de bolsas e cotas até a relação entre o financiamento público e o privado.

Uma pequena digressão histórica possibilita perceber que o tema não é novo na bibliografia educacional. Em dois dos personagens mais influentes na educação moderna o tema ocupa um lugar central. John Locke é conhecido pela sua teoria da tabula rasa, a tal folha em branco que, via de regra, é vista como a liberdade de se escrever qualquer coisa sobre ela. De fato, ele diz que nascemos ignorantes em relação a tudo que nos cerca: “We are born ignorant of everything” (LOCKE, 1966, p. 109). As coisas deixam suas impressões em nossa mente, mas “ninguém penetra no seu interior sem trabalho, atenção e criatividade” (labour, attention and industry). Seu ensaio On the conduct of human understanding trata de como conduzir a razão na busca de conhecimento e na emissão de juízos corretos. A preocupação, dadas as ressalvas de contexto, é semelhante à de Paulo Freire quanto ao “pensar certo”,4 expressão que elabora em seguidas passagens da Pedagogia da autonomia (1996).

Mas a tabula rasa tem, também, uma dimensão sociopolítica menos lembrada. A partir do vazio com que viemos ao mundo não podem ser justificadas como naturais as diferenças e as desigualdades. Daí, por exemplo, que, em 1665, ele escreveu uma Carta sobre a tolerância abordando a questão religiosa (LOCKE, 1955). A metáfora da tabula rasa pode ser vista como significando que não se justificam diferenças a partir do nascimento, como nobre ou plebeu, as quais precisam ser vistas como atributos sociais e culturais impregnados no indivíduo. Isso, no entanto, não quer dizer que Locke não defenda e justifique a propriedade privada e, junto com isso, a desigualdade, com o argumento de que se Deus distribuiu mais ou menos democraticamente as capacidades, houve aqueles que foram mais eficientes em se apropriar de porções maiores.

Outra referência da educação moderna para quem a desigualdade é tema central é Rousseau que, no ano de 1754, escreveu o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Ele inicia o ensaio dizendo que reconhece dois tipos de desigualdade: a que ele chama de natural ou física, que tem a ver com idade, saúde e outras qualidades do corpo e do espírito; outra que ele denomina de moral ou política, porque depende de uma convenção mais ou menos consentida entre os homens. “Esta consiste nos privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles” (ROUSSEAU, 1983, p. 236).

Rousseau reconhece como única virtude ou sentimento natural a piedade que, com o apoio da razão, impede que os humanos se tornem monstros. A segunda parte do Discurso é dedicada à vida em sociedade, onde, de fato, se geram as desigualdades que, por sua vez, são responsáveis por crimes, guerras, misérias e sofrimentos. “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (ROUSSEAU, 1983, p. 259). No final, ele resume seu argumento: “Conclui-se dessa exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e ao progresso do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis” (1983, p. 282).

Rousseau, de certa forma, antecipa a crítica de Karl Marx à sociedade capitalista, embora para ele a saída não esteja na abolição da propriedade privada, assim como também não vê a possibilidade de uma volta ao estado de natureza. Para ele a sociedade civil – já não mais no estado puro e paradisíaco da natureza – deve negociar sua convivência no contrato social, e a educação do Emílio e da Sofia está direcionada à construção desse contrato. O individualismo desse homem do contrato, a visão patriarcal, o preconceito racial e a dicotomia história-natureza já foram amplamente denunciados (STRECK, 2003) e, hoje, em sociedades abissais (SANTOS, 2007) como a brasileira, se questiona a própria possibilidade de contrato.

Teríamos passado de uma sociedade escravocrata pré-contratual a uma sociedade pós-contratual sem nunca ter passado por um contrato que pressupõe indivíduos com, pelo menos, certo nível de igualdade?5 Olhando ainda para Locke e Rousseau, os quais fornecem elementos fundantes às democracias liberais, teríamos passado ao neoliberalismo sem nunca ter sido liberais, num sentido ao menos aproximado do termo?

É esse o argumento que Baquero, Ranincheski e Castro (2018) propõem quando fazem uma análise da formação política do Brasil. Nela destacam a falta de confiança dos brasileiros nas instituições democráticas como um sintoma do que denominam de “democracia inercial”, na qual se revezam – e de certa forma convivem – momentos e experiências de democracia liberal e autoritarismo. A falta de confiança nas instituições, fundamental para uma cultura democrática, é um obstáculo ao respeito a certas regras comuns, sem o que não pode haver democracia. Ao mesmo tempo, alertam que se deve atribuir um peso exclusivo a regras, procedimentos e instituições sem olhar para o modo como determinada cultura política foi formada, podendo representar um obstáculo para consolidar uma democracia efetiva. Na formação histórica, destacam a economia baseada na escravidão com a naturalização das desigualdades, o abortamento de ideias progressistas e o défice de pensamento liberal que se revela na ausência de uma sociedade civil democraticamente organizada e na excessiva dependência do Estado.6

Essa mesma democracia inercial, ao mesmo tempo, gera e é resultado daquilo que Paulo Freire criticava em seus primeiros escritos e que, de certa forma, dá o rumo para toda a sua obra: a falta de experiência democrática.7 “Elites distanciadas do povo. Superpostas à sua realidade. Povo “imerso” no processo, inexistente enquanto é capaz de decidir e a quem corresponde a tarefa de quase não ter tarefa. De estar sempre sob. De seguir” (FREIRE, 1980, p. 47). A preocupação pedagógica de Freire era captar os “novos anseios”, “a visão nova dos velhos temas” que levariam a uma sociedade aberta. Esse projeto, como sabemos, foi interrompido, mas a ideia pedagógica continuou vigente, e a captação e promoção dessas novas visões passou a fazer parte do ideário da educação popular na América Latina e em outros lugares do mundo.

Se a preocupação com a desigualdade e sua relação com a educação persistem ou se agudizam, hoje – superadas as preocupações de Locke e Rousseau quanto à eventual origem na natureza humana – se parte do pressuposto de que sua causa está na configuração histórica das sociedades. Posto isso, para a educação se colocam duas questões: a primeira delas é: Se e/ou até que ponto a educação tem o poder de interferir nas desigualdades que se refletem na própria educação e são por elas reproduzidas? Em outras palavras: Tem a educação força para interromper o círculo vicioso? Se tem, Quais são os seus limites? A segunda, decorrente da resposta mais ou menos positiva à primeira, é: De que instrumentos ela dispõe para se tornar relevante na promoção da igualdade?

A resposta a essas perguntas passa por algumas questões que procuro resumir a seguir em três pontos: primeiro, a ideia de educação como reprodutora das desigualdades, tanto em nível estrutural quanto em nível de mentalidade, não pode ser menosprezada.8 A diferença entre escolas, entre acesso a bens culturais e equipamentos digitais persiste e, salvo exceções, continua sendo determinante para a alocação de um lugar na sociedade. Recorro, aqui, a um clássico do tema Inequality: a reassessment of the effect of family and schooling in America (JENKS, 1972) que resume o resultado de anos de pesquisa entre 1960 e 1970.

Os autores começam dizendo que a maioria dos norte-americanos acreditava na igualdade, mas tinha dificuldade de definir de que efetivamente se trata, geralmente apegando-se ao adágio dos “pais fundadores” de que “todos os homens são criados iguais”. Além disso, ao mesmo tempo que aceitavam as desigualdades no cotidiano, como naturais, eles também acreditavam na “igualdade de oportunidades”. Os autores, então, se referem às políticas compensatórias dos anos 60, como o Head Start, que visava a equalizar oportunidades. Na mesma época, segundo eles, paradoxalmente, poucas políticas públicas estiveram voltadas para reduzir as disparidades de renda, de status e de poder de maneira mais direta. Denunciam, então, a falácia das políticas compensatórias por se basearem em premissas duvidosas: para eliminar a pobreza, basta ajudar as crianças nela nascidas a sair dessa situação; as crianças pobres não têm as habilidades cognitivas para competir e precisam ser preparadas para isso; e a melhor maneira de solucionar o problema da desigualdade é com reformas educacionais.

As falácias consistem na aposta de que essas medidas seriam suficientes para eliminar as desigualdades. Isso não significa que elas sejam irrelevantes. Por exemplo, dados do IBGE mostram que, no ano de 2019, pela primeira vez, os estudantes negros eram maioria dentro das universidades públicasntsup9 Da mesma forma, o debate sobre a democratização põe na mesa o tema do conhecimento na atual sociedade, em que o mesmo se torna um “bem” necessário para o acesso aos melhores empregos. O que está em jogo nessa questão são os limites para a promoção de mudanças estruturais geradoras de desigualdades e o desafio de compreender onde e de que forma a educação se situa no atual sistema-mundo.

Um segundo ponto consiste em perceber que, assim como há diferentes manifestações de desigualdade, há diferentes expressões de educação. Ou, como diz Brandão (1981), há “educações”. E há, também, diferentes lugares onde se realiza a educação, e cada um deles com tarefas e desafios próprios. Dentre os lugares, a escola é aquele que, nas sociedades modernas, tem a incumbência de universalizar o acesso a determinados conhecimentos e, a partir da criação dos Estados nacionais, socializar dentro de determinada cultura nacional. Por ser um espaço público, é onde os grandes temas da sociedade – como a desigualdade – precisam ser analisados. Mas é também o lugar mais suscetível às interferências ideológicas, desde as formas de financiamento até o controle dos conteúdos ensinados.

Outro lugar importante são os movimentos sociais populares, nos quais se experimenta a reinvenção de práticas pedagógicas democratizantes em ações de resistência ou transformação social. No Chile, temos, hoje, um grande número de assembleias populares autoconvocadas em que a educação cria novas formas de elaboração de saberes para organização da comunidade e para intervenção na sociedade. Movimentos sociais consolidados como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras (MST) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) desenvolveram suas próprias pedagogias emancipatórias que, por sua vez, encontram eco em políticas educacionais.

Não se pode esquecer o lugar na família como a primeira agência socializadora que impregna, nas crianças, valores e preconceitos que, ao passarem de geração em geração, conformam a cultura de grupos sociais. Por exemplo, é difícil imaginar que a maioria dos participantes de manifestações recentes no Brasil contra a democracia e pela volta da ditadura não tenha encontrado, em alguma escola pela qual passou professoras que tivessem tratado do valor da democracia, ou que os responsáveis pelas queimadas e desmatamento na Amazônia não tenham encontrado alguma lição sobre o meio ambiente. Nesses casos, qual é o papel formativo desempenhado pelas famílias?

O último espaço que desejo referir são os meios de comunicação e, cada vez mais, as mídias digitais. O atual debate sobre as fake news traz à toma o poder dessas novas mídias para influenciar decisões, por exemplo, intervindo no resultado de eleições através de um processo de manipulação intencional de dados. A educação democrática, a meu ver, passa não tanto pelo cerceamento desses meios, mas pela capacitação para sua leitura crítica. O argumento é que a criação de uma sociedade mais igual passa pela capacitação para “leitura do mundo” que se apresenta, cada vez mais, complexo, mesmo para pessoas que se presumem com um bom nível de informação e formação.

Ainda, como terceiro ponto, a igualdade é uma construção pedagógica cotidiana. A dificuldade de definir o que seja igualdade tem se tornado mais acentuada com a justa reivindicação do reconhecimento das diferenças. Deve-se tratar diferentes de forma igual? Até onde e quando o tratamento diferenciado reforça desigualdades travestidas de diferenças? Há mais de duas décadas, Pierucci (1999) alertava que o clamor pela diferença alimentado pela nova esquerda carregava a ambiguidade de sua herança conservadora que exaltava a diferença para justificar a desigualdade. Diante desse quadro, parece que o desafio pedagógico é, respeitando as diferenças, apontar para além delas. Somos mulheres e homens, hétero ou homossexuais, brancos ou negros, velhos ou jovens, ricos ou pobres, mas, para além dessas diferenças, somos humanos e habitamos o mesmo Planeta.

O desafio é identificar como as diferenças acabaram se tornando desigualdades de gênero, de raça e de classe, e assumindo a responsabilidade comum de combater as desigualdades. Isso é também um desafio pedagógico como procuro explicitar a seguir.

Mais uma revolução inacabada?

O fato de trazer literatura das primeiras décadas da segunda metade do século passado foi intencional. Acredito que ainda temos, ali, importantes chaves para a orientação pedagógica atual; uma orientação que vá além dos discursos inovadores que se colocam como revolucionários e que, em boa medida, foram postos à prova pela educação neste tempo de pandemia. Quando grande parte das atividades educativas é transposta para plataformas digitais, a desigualdade se manifesta na exclusão de boa parte de crianças e jovens, impedidos de participar, de uma forma minimamente aproveitável, das atividades, mostrando que as novas tecnologias, de fato, não mudaram o panorama da desigualdade.

A ideia das revoluções inconclusas no título desta seção vem de Orlando Fals Borda que, no ano de 1968, referindo-se à morte do comandante Che Guevara um ano antes, lança as seguintes perguntas dentro do clima de perplexidade que perpassava pelos movimentos subversivos10 na América Latina: “¿Será que el esfuerzo revolucionario en ciernes puede terminar en otro punto muerto, como el que se experimenta en el presente? ¿O podrá esperarse que el renovado impulso hacia la transformación social, dé al fin una respuesta clara a la larga y atormentada búsqueda de la razón de ser en América Latina? (FALS BORDA, 2009a, p. 396).

O que aprendemos sobre educação e igualdade nas décadas a que me referi e nas quais se constituiu o que hoje conhecemos por educação popular? Nesta seção, busco colocar dois aspectos que, do ponto de vista da educação, reforçam a importância da agenda de transformação da segunda metade do século passado, mas, ao mesmo tempo, revelam que ela não é estática e acompanha o movimento da sociedade. Os dois tópicos dizem respeito à conscientização e aos diferentes “nomes” dados aos movimentos de mudança e à vigência de utopia igualitária e solidária.

Sobre conscientização

Em Pedagogia da autonomia, depois de muito tempo, Paulo Freire volta ao conceito de conscientização. No contexto da retomada do conceito, ele está se referindo às condições materiais, econômicas, políticas, sociais, culturais e ideológicas que, embora não se eternizando, são uma barreira quase insuperável diante das mudanças que para ele estão vinculadas à justiça social e ao respeito à dignidade de cada pessoa. Ele escreveu:

Nos anos 60, preocupado com esses obstáculos apelei para a conscientização não como panaceia, mas como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, das razões de ser. Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização

(FREIRE, 1996, p. 60).

A seguir, ele explicita aspectos por onde entende passar essa atualização. Ele inicia reafirmando a constituição simultânea da consciência e do (seu) mundo. Daí que a curiosidade epistemológica, a vontade de conhecer, não é estranha, mas natural ao ser humano. Caso ela tenha se perdido ou desviado, é porque algo deu errado no processo de socialização e educação. Se buscamos conhecer mais e melhor, é porque somos sabedores de nossa inconclusão e, uma vez cientes dessa condição, estamos condenados à busca do ser mais, que, por sua vez, é também uma construção cultural e histórica, uma vez que não existe modelo pronto e definitivo para o que o ser humano pode ser.

Atualizar esse princípio da conscientização significa reafirmar a história como possibilidade, e não, como destino predeterminado. Significa, também, refutar os dogmatismos e fundamentalismos de ordem política, religiosa ou ideológica. Nesse sentido, destaco alguns aspectos por onde identificar sua atualização.

O primeiro deles é a reafirmação da radicalidade em contraposição ao sectarismo. A primeira se assenta na liberdade de opção que, por sua vez, exige permanente vigilância ética. “A radicalização, que implica enraizamento que o homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e comunicativa” (FREIRE, 1980, p. 50). Trata-se de um processo no qual há tanto um aprofundamento da compreensão das opções e das ações quanto um alargamento dos horizontes para a sua compreensão.

A sectarização, pelo contrário, “tem uma matriz preponderantemente emocional e acrítica. É arrogante, antidialogal e, por isso, anticomunicativa. [...] O sectário nada cria porque não ama” (1980, p. 51). Na linha de interpretação antes referida, não há, no sectário, o movimento de aprofundar as razões de suas escolhas porque ele já detém a verdade. Com isso também não há necessidade de olhar à volta e ao lado para ver outras perspectivas de análise e possibilidades de leitura da situação.

Outro aspecto a destacar na atualização é que para Paulo Freire a conscientização não pode ser resumida a uma compreensão idealista ou mentalista, no sentido de que bastaria “entender” a realidade para transformá-la. A transformação se dá através da práxis, na qual a reflexão não está dissociada da ação. Ele procura expressar essa relação entre ação e reflexão de diferentes formas em sua obra, tais como: a leitura de mundo precede a leitura da palavra, a palavra autêntica é palavração, pronunciar o mundo significa transformar o mundo. E esse é sempre um processo que envolve a pessoa como um todo: corpo e mente; cognição, emoção e ação.

A conscientização também não é uma ação vanguardista de especialistas ou iluminados que se sentem vocacionados ou autorizados a tornar o povo consciente, uma crítica frequente induzida pela tradução do termo como awareness raising, literalmente: elevar a consciência (BERGER, 1976). A insistência no diálogo como princípio metodológico não deixa espaço para esse tipo de interpretação. A partir desse princípio, o círculo (de cultura) dará lugar à sala de aula convencional, educadores-educandos e educandos-educadores experimentam novos papéis pedagógicos, e a educação bancária dá lugar à educação libertadora/problematizadora.

Cabe, ainda, destacar, na atualização da conscientização, o desenvolvimento de uma atitude filosófica e científica. Em uma publicação do Conselho Mundial de Igrejas, Ivan Illich e Paulo Freire são apresentados como peregrinos do óbvio. Referindo-se às compreensões mitificadas e mitificadoras da conscientização, Paulo Freire diz que passou os últimos quatro anos tentando penetrar nos sentidos do conceito, sendo por isso uma espécie de peregrino do óbvio. “In this pilgrimage I am learning how important it is to take the obvious as an object for critical reflection and, going into it more deeply, it is not, at times, as obvious as it seems” (WCC, 1975, p. 17).

Atualizar a conscientização passa hoje por se deixar desafiar por perguntas óbvias, como: O que é qualidade em educação? O que significa ser um professor competente? Como a minha escola se posiciona em relação às desigualdades dentro dela e na cidade ou região?

A atitude científica assume papel de relevo diante dos questionamentos hoje postos à ciência, em especial às ciências humanas e sociais. Discursos sobre a pós-verdade e sobre a horizontalidade entre todos os saberes talvez tenham contribuído para minar a própria ciência e sua contribuição para a sociedade. Diante disso, cabe reforçar a ideia de ciência como uma atitude a ser desenvolvida através da educação, conforme já encontramos em John Dewey. Para ele o método científico está associado ao desenvolvimento social e à democracia, não bastando ensinar ciência como fatos consagrados e demonstrados. “The pupils learn a ‘science’ instead of learning the scientific way of treating the familiar material of ordinary experience” (DEWEY, 1966, p. 220). É o método que permite o distanciamento da experiência para uma nova compreensão dentro de uma situação mais ampla e complexa. Nesse sentido, é também o método que contribui para o direcionamento das ações e relações humanas.

Da libertação à decolonialidade

As desigualdades manifestam-se concretamente na vida das pessoas. A morte do negro norte-americano George Floyd, no dia 25 de maio de 2020, asfixiado por um policial branco sob o olhar complacente de colegas, foi um fato emblemático do tratamento desigual de cidadãos, baseado na cor da pele e na classe social. Poderiam ser também os feminicídios, o tratamento discriminatório de migrantes que buscam asilo em lugares mais seguros, as crianças que têm na merenda escolar a sua única refeição, entre tantos outros. O fato é que a desigualdade é sentida na pele, no estômago e na alma.

Se a desigualdade é tão evidente na vida das pessoas e da sociedade, por que é tão difícil intervir nos processos sociais onde se manifesta ou que as causam? A busca por explicações e por respostas se parece com a lenda indiana dos sábios cegos apalpando um elefante e identificando apenas partes que ora se parecem com uma parede, ora com uma corda, uma lança ou uma árvore. A moral da história é que esses sábios, que percebem apenas o que tocam, se comportavam como se a parte fosse o todo. E, assim, permaneciam tolos diante da verdade.

Neste espaço, pretendo discorrer brevemente sobre alguns dos nomes com os quais se procurou explicar e enfrentar a desigualdade a partir da segunda metade do século passado, em especial na América Latina. A pergunta que pretendo colocar não é se alguma delas é melhor do que a outra, mas o que cada uma acrescenta para compor um quadro melhor do que se trata quando falamos de desigualdade, respectivamente, das estratégias de superação que cada uma delas compreende ou sugere.

Como ponto de partida, deve ser mencionada a teoria da dependência, que se segue às teorias sobre desenvolvimento/modernização e subdesenvolvimento. Era muito difundida no início dos anos 60 a tese do take off de Walt Whitman Rostow de que, com os devidos insumos e métodos, haveria um momento de decolagem rumo ao progresso e à modernidade. Dentre os principais postulados da teoria da dependência, que coloca em xeque a ideia de estágios de desenvolvimento, está a premissa de que desenvolvimento e subdesenvolvimento estão estreitamente conectados com a expansão dos países industrializados e corresponde a uma divisão internacional do trabalho; além da subordinação externa, a dependência também se manifesta de diferentes formas, na estrutura interna da sociedade (social, cultural e política) (SANTOS, 2015).

Francisco Weffort, no Prefácio ao livro Educação como prática de liberdade, de Paulo Freire (1980), capta o sentido da educação nesse contexto, como movimento e como uma das formas de mobilização popular. Para Paulo Freire tratava-se de uma inserção crítica no processo de mudança, o que, por sua vez, distinguiria uma simples modernização de um verdadeiro desenvolvimento. Talvez fosse mais adequado dizer que a educação era compreendida como a dimensão político-pedagógica na busca de transformação através do “Movimento de Cultura Popular”, da União Nacional dos Estudantes, de sindicados no campo e na cidade e de setores progressistas da Igreja, entre outras forças sociais.

A década de 70 foi marcada pela emergência do conceito de libertação. A publicação concomitante de Teologia da libertação, de Gustavo Gutierrez (1971) e Pedagogia do oprimido de Paulo Freire (1970) representa uma tentativa de nomear uma alternativa para a dependência, agora compreendida como opressão. Ou seja, dá-se uma maior visibilidade aos sujeitos em ambas as pontas do processo e se busca compreender os mecanismos sociais, culturais e psicológicos pelos quais essas relações de desigualdade são mantidas. Também a mudança qualitativa à qual Paulo Freire já se referia, em Educação como prática da liberdade, é agora identificada como libertação num reconhecimento mais explícito das relações de poder que se colocam como obstáculo à humanização. Do ponto de vista teológico, a salvação, quando traduzida como libertação, passa pela concretização – mesmo que parcial – do esperado reino de paz e justiça já na Terra.

O movimento de libertação construído em meio aos movimentos que se constituíram muitas vezes contra as ditaduras na América Latina, repercutiu em todos os continentes e em muitas áreas do conhecimento, vindo a constituir uma filosofia da libertação, uma sociologia da libertação, um teatro do oprimido, entre outros. Na educação, a pedagogia do oprimido fomenta práticas pedagógicas com setores marginalizados da população, consolidando a educação popular. Influenciada pelas leituras de Gramsci, a libertação, em muitas instâncias, se manifesta em luta pelo poder com a formação de partidos políticos progressistas.

Aos poucos, o conceito de libertação foi perdendo o seu potencial heurístico e cedeu lugar ao conceito de exclusão social. Embora surgido na França, já na década de 70, ele penetra no Brasil, na década de 90, como contraponto à implantação de políticas neoliberais impulsionadas pelo Consenso de Washington (STRECK, 2009).

Aos antigos “condenados da Terra” referidos por Franz Fanon, juntam-se novos grupos de pessoas sobrantes como produtores e também desinteressantes como consumidores. O livro Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação, organizado por Pablo Gentili (1995), reúne reflexões em torno da crescente privatização, do conservadorismo (a nova direita) e da polarização da educação. O que a discussão traz de novo é uma visibilidade maior do rosto de quem está à margem do sistema, mostrando que a desigualdade se manifesta de muitas formas. Ao mesmo tempo, perde força uma convergência em termos de mudança, uma vez que o par antônimo de exclusão, a inclusão, não serve de parâmetro para mudanças que pudessem afetar a dinâmica estrutural que exclui e que, por sua natureza, não poderá abrigar todos sem uma profunda transformação.

Concomitantemente às discussões sobre exclusão social, constrói-se, também, uma linha investigativa que recebe o nome de “estudos pós-coloniais” que busca descontruir “genealogias eurocêntricas” (MATA, 2014) que se perpetuam mesmo depois da constituição dos novos estados nacionais. Na América Latina, desenvolve-se o conceito de colonialidade para significar que o movimento de conquista, iniciado com a colonização no início da modernidade, teve continuidade em termos de estruturas da sociedade e de mentalidade. Des-colonizar refere-se, assim, a um processo multifacetado que se dá em muitas frentes: as relações patriarcais em termos de gênero, os preconceitos raciais, as relações de poder em todos os níveis de estruturação da sociedade, as hierarquias de saber, a relação com a natureza, as formas de realizar pesquisa acadêmica, etc. (MORAÑA; DUSSEL; JÁUREGUI, 2008). O neologismo de(s)colonialidade refere-se à vigilância epistêmica que acompanha a práxis de construir formas de humanização que passam pelo reconhecimento mútuo.

Em meio a essas várias denominações, convém não esquecer a emancipação, o conceito clássico da teoria crítica, associado com a obra de Theodor Adorno: Educação e emancipação. Seria, acaso, que mesmo não mencionando Adorno, Paulo Freire nomearia seu último livro de Pedagogia da autonomia, sendo a busca da autonomia a questão pedagógica- chave para que não se repetisse a barbárie de Auschwitz, quando os carcereiros se proclamavam como bons cidadãos cumpridores de ordens superiores? Como o conceito de Adorno é remetido também a Kant, convém lembrar que o termo alemão para o que geralmente se traduz como maioridade ou emancipação é Mündigkeit, que pode ser traduzido literalmente, como a capacidade de falar, uma vez que Mund significa boca. Em Sobre a pedagogia, Kant recomenda, por isso, que “urge que (as crianças) aprendam a pensar” (KANT, 1996, p. 28). Trago essa menção para me referir à relação com a centralidade do “dizer a sua palavra” ou “pronunciar o mundo” em Paulo Freire. Também Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 330) nos faz lembrar que entre os dois princípios da modernidade – regulação e emancipação – o primeiro acabou canibalizando o segundo, sendo necessário dar visibilidade e promover suas emergências nos movimentos de transformação que carregam o gérmen da utopia.

Essa busca semântica, no enfrentamento da desigualdade, tem também implicações pedagógicas, trazendo ênfases no que hoje talvez se possa definir como justiça socioambiental. A libertação colocou em xeque as estruturas de poder e nos ensinou a ver a educação como práxis de liberdade; a metáfora da exclusão ajudou-nos a ver as possibilidades e os limites de práticas e de políticas inclusivas; a (de)colonialidade desvenda o âmago das formas de dominação; e a emancipação une diferentes povos, grupos e pessoas pelo direito de buscarem o seu próprio caminho, respeitando o direito que todos têm a essa mesma busca.

Como conclusão

Ao terminar este ensaio, tenho a impressão de que o mais importante talvez não tenha sido dito. Sinto-me, um pouco, como na metáfora dos sábios cegos apalpando as partes do elefante sem conseguir identificar o conjunto, que cada uma das partes contribui para compor. A desigualdade afeta todas as áreas da vida e diz respeito, também, a todas as áreas do conhecimento, seja para compreendê-la dentro da dinâmica social, como na economia e sociologia, seja para produzir instrumentos que permitam sua mitigação ou superação, como nas engenharias. A educação, nesse sentido, tem um compromisso e um desafio especiais porque, tanto no que se refere à vida quanto ao conhecimento, nada escapa à educação.

Constatar que a desigualdade ocupa um lugar proeminente em teorias sociais e educacionais na América Latina tem a ver com o fato de que, mesmo sendo ela universal, nesta parte do mundo, ela assume dimensões que impedem a grandes parcelas da população não apenas o acesso a bens, mas à sua realização como seres humanos. É a desumanização denunciada por Paulo Freire no início da Pedagogia do oprimido, o desafio central, clamando por superação: “O problema de sua desumanização, apesar de sempre dever haver sido, de um ponto de vista axiológico, o seu problema central assume, hoje, caráter de preocupação ineludível” (FREIRE, 1981, p. 29).

Importante é lembrar que Paulo Freire não está se referindo apenas àqueles que são marginalizados, excluídos ou oprimidos, embora esse seja o lugar de onde ele faz a leitura de mundo. Para ele desumanização diz respeito também àqueles que marginalizam, oprimem e excluem. Ao roubar a possibilidade de ser mais do que o outro também eles se desumanizam e, paradoxalmente, dependerão da força originada da fraqueza dos marginalizados, excluídos, ou colonizados para sua humanização.

Não é por acaso que Paulo Freire foi um personagem central nessa reflexão, uma vez que nele a dimensão de denúncia e anúncio se dialetizam. Ao perguntarmos se estaríamos diante de mais uma revolução inconclusa, as evidências pela busca de nomeação da realidade confirmam que a desigualdade continua a desafiar a prática e a teoria. Ao mesmo tempo, percebemos, ao longo da argumentação que, do ponto de vista pedagógico, foram construídas alternativas que podem servir de suporte à criação de “inéditos viáveis” nos vários contextos nos quais se realiza a educação.

Fals Borda (2009a, p. 418) conclui o seu texto sobre as revoluções inconclusas chamando a atenção para a qualidade das mudanças que queremos e para a direção na qual desejamos que as mudanças avancem. Recomenda que continuemos preparando, com ciência, com paciência e com todos os nossos recursos, estratégias e ações que permitam construir uma sociedade nova e melhor. Cabe à educação encontrar e ocupar o seu lugar na concepção e construção dessa sociedade nova e melhor.

1Tema colocado pelos organizadores do seminário de abertura das atividades acadêmicas do Programa de Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS), no dia 18 de agosto de 2020. O presente artigo tem sua origem no painel moderado por Sandro de Castro Pitano (UCS), com a participação de Sérgio Haddad (UCS) e Ednéia Gonçalves (Ação Educativa) e Danilo Streck (Unisinos).

4O pensar certo requer, ao mesmo tempo, disciplina e abertura para o outro e para outras ideias: “Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo, e uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas” (FREIRE, 1996, p. 30).

5Sobre a crise do contrato social moderno ver: Reinventar a democracia (SOUSA, 2002). No caso da sociedade brasileira, o contrato social com as características apontadas por Boaventura de Sousa Santos (2002), excluiu ou integrou, de forma subalterna, os negros trazidos como escravos, os povos indígenas e outros segmentos da sociedade. Atualmente, a própria ideia de contrato social se dissolve com a supressão de direitos sociais.

6Na análise de Alain Touraine, os limites do liberalismo se colocam também como obstáculos para a democracia. No entanto, os dois não são sinônimos: “Se não há democracia que não seja liberal, existem, pelo contrário, regimes liberais que não são democráticos” (TOURAINE, 1994, p. 68). Sobre a crise da democracia e a busca de alternativas, ver: Democracia liberal: triunfo e crise (SADER, 2003).

7A citação de Dom Helder Camara, no início do texto, foi motivada pela leitura do livro Fundamentos para uma educação libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire (CONDINI, 2014), que coloca em diálogo esses dois personagens da história educacional da segunda metade do século passado.

8Obras clássicas das teorias conhecidas como reprodutivistas são: A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 1975) e Aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1985).

10Fals Borda atribui uma conotação positiva ao conceito de subversão, negando seu sentido antissocial e amoral. Segundo ele, os subversivos representam o desejo de mudança, alimentados por utopias de uma outra sociedade, à semelhança dos fundadores das repúblicas (FALS BORDA, 2009b).

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Recebido: 29 de Janeiro de 2021; Aceito: 18 de Fevereiro de 2021

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