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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 05-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021037 

ARTIGOS

Transtorno opositor desafiador: relações de poder na sociedade governamentalizadora

Challenging oppositor disorder: power relations in governmental society

Vanessa Regina de Oliveira Martins* 
http://orcid.org/0000-0003-3170-293X

Mariana Peres Morais** 
http://orcid.org/0000-0003-2254-9419

Bianca Salles Conceição*** 
http://orcid.org/0000-0003-2997-5576

*Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp). Mestra e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora-Adjunta no Departamento de Psicologia da Unicamp. Professora no curso de Bacharelado em Tradução e Interpretação de Libras/Língua Portuguesa e no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: vanymartins@hotmail.com

**Graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestra em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora de Português/Libras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Doutoranda em Educação Especial pela UFSCar. E-mail: marianaperesm@gmail.com

***Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestra em Educação Especial pela UFSCar. Graduanda no curso de Bacharelado em Tradução e Interpretação de Libras/Língua Portuguesa pela UFSCar). Doutoranda em Educação Especial pela UFSCar. E-mail: bianca.csalles@gmail.com


Resumo

O diagnóstico do Transtorno Opositor Desafiador em crianças e jovens, é abordado pela saúde como um transtorno que apresenta um compilado de características que podem, inclusive, tornar o transtorno facilmente camuflado ou confundido com outros, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou Transtorno de Conduta. Para além das discussões sobre um viés clínico desse transtorno, é necessário desconstruir algumas normativas e olhar para essa diferença por outro ponto de vista, possibilitando, com isso, que emerjam reflexões a partir de uma concepção social-filosófica. Sendo assim, o presente artigo busca problematizar as relações entre o discurso científico médico e o campo da filosofia sobre o transtorno em estudo, no intuito de discuti-las através de aportes propostos por Michael Foucault no campo da governamentalidade, sendo essa uma ação exteriorizadora de manifestação do poder condutor de sujeitos. Como resultado, a problematização teórica apontou que é fundamental analisar e acompanhar o comportamento de crianças com suspeita de terem esse transtorno em diferentes contextos, não considerando somente as orientações apresentadas em manuais de critérios e características médicas. Ainda como resultado, ao relacionar o discurso clínico aos conceitos da filosofia da diferença, pode-se observar que a sociedade julga/considera as crianças com Transtorno Opositor Desafiador, como seres que realizam desvios de regras, por meio de manifestações de contracondutas ou de resistências às regras advindas de uma sociedade normalizadora nas diversas instituições espalhadas pelas malharias sociais, sejam essas, a escolar ou a familiar. Em suma, a sociedade precisa construir maneiras distintas e desconstruídas de subjetivações de crianças e jovens para que se formem futuros sujeitos praticantes da liberdade.

Palavras-chave Transtorno Opositor Desafiador; Governamentalidade; Relações de poder

Abstract

Diagnosing Challenging Oppositional Disorder (COD) on children and young people is approached by health as a disorder that has a compilation of features that can even make the disorder easily camouflaged or confused with others, such as Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) or Disorder. In addition to the discussions of a TOD’s clinical perception, it’s necessary to deconstruct some norms and look at this difference, through another perception in which it allows us to reflect TOD from a philosophical social perspective.This research sought to reflect on characteristics present in the Disorder and problematize them according to the theory proposed by Michael Foucault about governmentality, this being a concept that basically expresses a manifestation of power in which conducts the conduct of the persons. As a result, the research points out that it is essential to analyze and monitor the behavior of children with suspicion of COD in different contexts, not supporting them only in medical characteristics. Relating to the concepts of the difference’s philosophy, can see children’s attitudes, seen by society as a diversion of behaviors, as manifestations of reverse-behaviors or even, resistance stemming from a normalizing society in the various institutions scattered by social knitting: at school, or family, which are the two most cited in this article. In short, society must have a distinctly deconstructed way of subjectivizing children to future subjects who practice freedom.

Keywords Challeging oppositional Disorder; Governmental; Power relationship

Introdução

É considerado consenso pela sociedade atual o fato de que adolescentes, em momentos de conflito, apresentam doses de rebeldia em algumas de suas atitudes, pois sabemos que estão vivenciando uma fase de busca de conhecimento de si e de seu lugar no mundo. Estão em um período de crescimento e, muitas vezes, deparam-se com dificuldades que os fazem reagir de diferentes maneiras e, em algumas delas, são levados a desafiar pessoas e regras. Porém, quando a soma dessas atitudes se torna prática comum no comportamento do adolescente, é preciso uma atenção maior por parte de quem convive com esse indivíduo.

Segundo César (1999), essa nova subjetividade, a adolescência, foi criada com uma relação muito próxima à delinquência juvenil no século XIX. No Brasil, mais especificamente no século XX, a delinquência era vista como fruto de falhas nas instituições formadoras, sendo a família, a principal delas. Outrossim, dentre diversas figuras marginais, estava a família que não tinha recursos financeiros, sendo vista pela sociedade como uma instituição que não sabia criar e educar seus infantes. Nesse sentido, e, de acordo com os intervencionistas, dos quais faziam parte instituições filantrópicas e públicas, essa situação culminava em crianças em situação de vulnerabilidade.

Nesse contexto, as famílias foram sendo culpabilizadas pela produção de problemas ligados à infância e à adolescência. Assim, a ação dos intervencionistas era retirar a criança de suas instituições familiares, disciplinando e modulando seus corpos que, até então, eram vistos como vidas de “vícios, de depravação e vagabundagem” (CÉSAR, 1999, p. 2). Para efetuar o controle desses jovens corpos, a alternativa, na época, era a internação em asilos, reformatórios, internatos, visando ao enfrentamento das patologias sociais. Portanto, os comportamentos apresentados pelos jovens daquela época eram vistos como impróprios e como patológicos, devendo ser extinguidos. Assim, eles eram segregados e controlados, para que houvesse a manutenção da ordem social.

Surgiu, naquele momento, com base em uma filosofia médico-científica, uma série de profissionais que tomariam conta dessa nova patologia, dessa nova subjetividade resistiva às normas sociais estabelecidas. Assim, os movimentos de reforma social transformaram a diferença cultural e socioeconômica em patologia, conforme apresentado por César:

No centro dessas preocupações com a juventude e a infância formou-se uma teoria a respeito da delinquência juvenil que, delineada pelas práticas reguladoras da sociedade, produziu tanto a figura da criança e do jovem estigmatizados, como também o seu contra-modelo idealizado

(1999, p. 3).

Na continuidade do século XX, a verdade construída sobre a adolescência estar relacionada à delinquência e à criminalidade passou a ganhar apoio do discurso científico, com base na psicologia do desenvolvimento. A partir de então, as ações, que eram consideradas inadequadas ou imorais, foram colocadas como um “comportamento transgressor da adolescência no âmbito da natureza” (CÉSAR, 1999, p. 3), ou seja, esses corpos representavam uma díade entre o ser jovem e o ser delinquente.

Com essa breve contextualização, observa-se que os corpos adolescentes foram criando suas subjetividades e, paralelamente a isso, se tomarmos as concepções foucaultianas, podemos verificar a emergência do poder disciplinar (FOUCAULT, 2010). Tal poder age sobre os corpos para torná-los sujeitos dóceis, obrigados a seguirem as normas imbricadas no seio social (FOUCAULT, 2010). Essa emergência foi conquistando, cada vez mais, força no que se tratava de padronização dos corpos adolescentes, dos infantes, tornando-os jovens domesticados. Todavia, ressaltamos, no poder disciplinar, a presença de ações de resistência por parte dos adolescentes. Duas ações em uma mesma moeda: o movimento disciplinador, aplicado na concepção, e a mescla entre o ser criança e o ser adulto. Essas ações projetam, de um lado, o ideal de uma juventude inocente, e, ao mesmo tempo, a ação advinda da luta de corpos juvenis vistos como sujeitos que resistem às normas e às regras impostas a eles por dispositivos de vigilância e controle (CÉSAR, 1999).

No século XXI, com a crescente medicalização proposta pelas indústrias farmacêuticas e pela própria medicina, diversas doenças mentais foram sendo descobertas e diagnosticadas, surgindo, com isso, um grande número de anormais, no entanto, esses diagnósticos eram feitos considerando a norma dos sujeitos imposta pela sociedade majoritária (BERT, 2013).

Nesse contexto, a partir de um olhar de patologização dos sujeitos, as diferenças e singularidades que poderiam ser emergidas a partir de cada modo de ser, viver e estar na sociedade, foram sendo silenciadas pelos medicamentos e tratamentos com o objetivo de chegar em um corpo normal dentro da média. A respeito disso, Bert (2013, p. 22) afirma que o “patológico aparece na distância entre um comportamento dado e o padrão de uma cultura”, complementando que a função da sociedade é excluir tudo aquilo que é comparado à loucura, fazendo com que “o sujeito doente faça a experiência de si mesmo como um estrangeiro a sua própria cultura”.

Assim, por essa lente clínica e normativista, dentre diversos tipos de transtorno e desvios que foram sendo categorizados, criados e medicalizados ao longo do século XXI, criou-se a classificação patologizada do Transtorno Opositor Desafiador (TOD). Com base nisso, é possível constatar que essa condição de padronização dos corpos produz diagnósticos em série, em algumas crianças e jovens que passam a ser diagnosticados com comportamentos negativistas aos olhares social e clínico. Como resultado, temos o prejuízo significativo dos funcionamentos social, acadêmico ou ocupacional nos adolescentes. Tal condição manifesta-se pela resistência de obedecer às ordens, por teimosia com adultos ou com outras crianças da mesma faixa etária, desprezando regras, além de discutir e não concordar com punições e castigos dados pela sua má-conduta (BALLONE, 2015; AGUSTINI; SANTOS, 2018).

Pensando nisso, não há como negar que o comportamento hostil, no modo da criança se comportar em sociedade, a conduz para experiências de dificuldade no relacionamento com seus pares e com adultos, influenciando, negativamente, sua vida social e deteriorando os ambientes familiar e escolar. Esses espaços são os que, primeiramente, detectam as mudanças no comportamento habitual da criança, para, depois, ser levada à área médica para ser examinada e diagnosticada, ou não, com algum transtorno.

Mas quais são os discursos presentes em diagnósticos que configuram o Transtorno Opositor Desafiador? Como esses discursos caracterizam quem é o sujeito por trás do TOD? Esses questionamentos incitam reflexões e deslocamentos de saberes em relação ao que vêm sendo produzido sobre crianças com comportamentos hostis e, por esse motivo, este estudo tem como objetivo problematizar as relações entre o discurso científico médico e o campo da filosofia sobre o (TOD) no intuito de discuti-las através de aportes propostos por Michael Foucault, no campo da governamentalidade, e por outros autores que abordam a filosofia da diferença.

A proposta é utilizar a teoria como “caixa de ferramentas” (FOCAULT, 1975), que “permite refletir sobre a questão central da atualidade interrogando-se, [...] em torno de vários legados importantes: a exploração de novos objetos (loucura, medicina, sexualidade); a contestação de recortes disciplinares clássicos (filosofia e história; filosofia e literatura) [...]” (BERT, 2013, p. 8). É sobre essas questões que trataremos a seguir.

Caracterização do Transtorno Opositor Desafiador

Acerca da organização das psicopatologias, Lima afirma que o Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), sistema diagnóstico mais utilizado na área médica, e os processos impostos pela “Classificação Internacional de Doenças” (CID 10), “ofuscaram a existência de possibilidades distintas de nomear e organizar as psicopatologias, incluindo aquelas da faixa etária infantil e juvenil” (2018, p. 173). Mesmo com as múltiplas variações e singularidades que o TOD pode ocasionar nos corpos de crianças e jovens, o DSM-5 define essa condição como um padrão de humor raivoso/irritável, de comportamento questionador/desafiante ou índole vingativa, em que a criança demonstra as seguintes características:

(1) frequentemente perde a paciência, (2) frequentemente é sensível ou facilmente incomodado, (3) com frequência é raivoso e ressentido, comportamento questionador e desafiante, (4) frequentemente questiona figuras de autoridade (adultos), (5) frequentemente desafia acintosamente ou se recusa a obedecer a regras ou pedidos de figuras de autoridade, (6) frequentemente incomoda deliberadamente outras pessoas, (7) frequentemente culpa os outros por seus erros, índole vingativa, e (8) foi malvado ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos 6 meses

(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2015, s/p).

No manual, o diagnóstico é apresentado como um modelo de comportamento manifestado durante um período específico de seis meses, habitualmente por crianças, na idade pré-escolar. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais especificamente na CID 10, o TOD é definido como um transtorno “caracterizado essencialmente por um comportamento provocador, desobediente ou perturbador e não acompanhado de comportamentos delituosos ou de condutas agressivas ou dissociais graves” (OMS, 2012, s/p).

Outro aspecto importante é apontado por Pinheiro et al. (2004, p. 274), que certifica o fato de existirem estudos atestando que, na maioria dos casos de TOD, pode prevalecer comorbidades como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), estando presentes os dois transtornos, em cerca de 50% dos casos, porém há situações que não evoluem dessa forma. Além disso, foi comprovada uma clara relação entre o TOD e os sofrimentos e o mau funcionamento familiar, e também o fato de terem pais divorciados e mães com baixo nível socioeconômico eram mais comuns em pacientes com TOD e TDAH, juntos. Nesse contexto social de enfrentamento, no qual as crianças passam por esses diversos acontecimentos que lhes causam caos, e certo desconforto, podemos ver as atitudes desses infantes como possíveis respostas de resistências ou contra-condutas1 ao poder disciplinar imposto para esses corpos e vidas.

No que diz respeito ao tratamento do TOD, o DSM-5 apresenta duas propostas terapêuticas, podendo ser aplicadas de forma concomitante ou não: a intervenção comportamental, associada à Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e o tratamento farmacológico, com medicação de antipsicóticos. Entretanto, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) esclarece que ainda “não está claro se existem marcadores específicos para o transtorno de oposição desafiante” (APA, 2013, p. 465). Sendo assim, o TOD ainda não possui marcador biológico que ateste sua existência, o que “indica parecer muito mais convenções que servem aos interesses vigentes de algumas classes” (ROSA et al., 2015, p. 233), instituições e normalizações.

No entanto, a esfera psiquiátrica segue na propagação de que o TOD está fortemente correlacionado ao desenvolvimento de Transtorno de Conduta (TC), que é caracterizado por transgressões mais severas como: roubo, agressão, e crueldade com animais e com pessoas. Contudo, a APA afirma que “crianças e adolescentes com TOD estão sob o risco aumentado para uma série de problemas de adaptação na idade adulta, incluindo comportamento antissocial, problemas com controle de impulsos, abuso de substâncias, ansiedade e depressão” (APA, 2013, p. 464). Contudo, de acordo com Perez (2016, p. 1), essa “ideia de psiquiatrização surge para problematizar os modos de governo de crianças e suas famílias por meio de estratégias classificatórias e interventivas acionadas pelo saber-poder psiquiátrico” , ou seja, pelas relações de poder existentes na sociedade entre as instituições clínicas e os sujeitos anormais – com deficiências, transtornos psiquiátricos, e autismo –dentre outros corpos que resistem à norma majoritária imposta, fazendo parte de um grupo neurodiverso na sociedade.

Com isso, pode-se afirmar que existe uma neurodiversidade na sociedade, e Ortega (2009) remete ao desability studies para refletir sobre possibilidades outras de existência que não se enquadram no discurso clínico-médico, mas sobre as subjetividades ativas que dessas singularidades são emergidas, a partir de um modelo social de deficiência. Para o autor, “as compreensões cognitivistas, neurológicas e genéticas do transtorno dominam o campo psiquiátrico” (ORTEGA, 2009, p. 3), não deixando espaço para que outras possibilidades neurológicas existam.

Assim como declarou César (1999), Ortega (2009) também anunciou a culpabilização dos pais em relação a esses desvios da curva normalizadora com olhar negativo para essa diferença, apresentada na criança e no jovem. Porém, esse deslocamento do viés psiquiátrico/psicológico para o viés neurológico supõe as neurodiversidades e conduz a uma condição cerebral de identidades plurais de existência social. Esse olhar possibilitou a “ascensão de grupos de apoio aos pacientes e a subsequente diminuição da autoridade dos médicos, possibilitado, [...] crescimento de movimentos políticos de deficientes, movimentos de autodefesa e auto-advocacia” (ORTEGA, 2009, p. 4).

Todavia, esses movimentos de contra-conduta aos dispositivos diagnósticos e tecnologias de medicalização e ampliação das doenças psicológicas e psiquiátricas, ainda têm um longo percurso a ser alcançado. O discurso médico (poder-saber) ainda propaga o propósito (verdade) de que é preciso agir na medicalização (dispositivo de segurança) das crianças neurodiversas, especificamente com TOD, que se trata neste artigo, a fim de intervir (governamentalizar), com medidas preventivas (mecanismo de controle), nos possíveis comportamentos violentos ou perigosos (reação/escape/resistência). Desse modo, surgiu a necessidade de evitar (disciplinar) que essas crianças desenvolvam futuras patologias ou evoluam para futuros seres criminosos. A partir dessas vertentes, desenvolvemos uma associação filosófica que será apresentada a seguir.

O transtorno da a-normalidade

Não é necessário ser um profundo conhecedor de diagnóstico de doenças mentais para perceber que a sociedade moderna tem construído limites oscilantes no que diz respeito a determinar o que é normal e o que é patológico. Tais termos remetem ao pensamento do sociólogo francês, Michel Foucault, que considera, em sua obra: Os Anormais (2010), que a área da saúde mental evoluiu para um campo de saber médico-patológico por ser submetida a um processo de medicalização de condutas, classificando os indivíduos, que não se enquadram na curva do padrão estabelecido socialmente, como sendo anormais.

É valido ressaltar que o conceito de saber, tratado pelo autor, refere-se a elementos fabricados em práticas discursivas para a constituição de um conhecimento, que pode ser concebido nas esferas científica, médica, histórica, política, econômica e de outras ciências, conforme explica:

O saber não é a soma do que se acredita ser verdadeiro, é o conjunto das condutas, das singularidades. É o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar de objetos de que se ocupa em seu discurso. Há saberes que são independentes da ciência, mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma

(FOUCAULT, 2008, p. 205).

Seguindo por esse viés, depreende-se que o saber psiquiátrico tem engendrado caminhos que levam a rotular uma grande quantidade de sujeitos, que eram considerados normais, para, a partir daí, serem classificados como pessoas que sofrem de um determinado transtorno mental. Entendendo a norma, na perspectiva apresentada por Foucault (1977, p. 212), como “meios de correção que não são exatamente meios de punição, mas meios de transformação do indivíduo, toda uma tecnologia do comportamento do ser humano”. Ademais, Bert (2013) reitera que cada civilização ou cultura tem suas normas estabelecidas, e essas normas fazem surgir o que é normal para uns, para outros é visto como anormal e pode ser entendido como patológico (com ausência de saúde ou a presença do pathos, da doença). Por isso, não é de se surpreender que, nos últimos anos, houve a emergência de novas patologias, tais como o próprio TOD, o TDAH, a dislexia, o transtorno de ansiedade generalizada, dentre outras. A esse respeito, Jerusalinky e Fendrik sustentam que

a ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais

(2011, p. 6).

O fato é que, nos últimos séculos, a medicina sofreu uma grande mudança ideológica, tendo um lugar privilegiado tanto na política como no aparelho do Estado, participando, principalmente, de um discurso que construiu novos campos normativos, contribuindo com a invenção do dever de se ter uma boa saúde. Com isso, de acordo com Bert (2013, p. 66), “a produção médica também é vista como um processo ininterrupto e restritivo, que engendra uma ordem social e regulamenta nossas rotinas mais cotidianas.”

Nessa lógica, e seguindo as teorias da filosofia da diferença, é tendencioso querer considerar como patológico tudo aquilo que foge de determinada métrica construída socialmente e validada pela ciência estatística, com a consolidação da norma e da média padrão. Porém, de acordo com o autor, para realização de exame e diagnóstico corretos, outras variáveis devem ser levadas em consideração, para além das avaliações clínicas e nosológicas, a saber, os fatores sociais, culturais e estruturais.

Nesse sentido, referindo-se aos saberes construídos pela sociedade ocidental, pode-se, aqui, fazer alusão ao conceito foucaultiano de governamentalidade, segundo o qual um indivíduo, através de um discurso de verdade, conduz a conduta do outro e de si mesmo:

[...] em todo o Ocidente conduziu-se incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes

(FOUCAULT, 2012, p. 171).

Assim, é possível compreender que, dentro desse saber da medicina que governamentaliza, ou seja, constrói saberes que se transformam em ações de normalização de condutas e de corpos, existe uma série de ações que objetiva induzir a conduta do outro, governando os corpos por meio de discursos de verdade fundamentados em padrões determinados pelo próprio dispositivo médico. Esses padrões tendem a estabelecer decisões sobre a vida da criança, sobre a normalidade e a patologia e, assim, conduzir maneiras de como enxergar o infante, de encaixá-lo nos critérios de diagnósticos de transtornos e o apresentar como uma ameaça, por se tratar de alguém que tem chances de cometer atos violentos e criminosos quando alcançar a vida adulta.

Nessa perspectiva, como estratégia para prever graves problemas futuros, é preciso diagnosticar esse sujeito enquadrando-o e o rotulando segundo parâmetros criteriosos de normalidade, dentro de um campo nosológico, que classifica e atribui nomes e números aos comportamentos tidos como anormais. Em contrapartida, Bert (2013) afirma que as doenças psicológicas, criadas na atualidade, não podem ser separadas de seu contexto cultural, reiterando que não são formas enrijecidas nem atemporais para perceberem somente sintomas clínicos do possível transtorno.

Caponi reitera que

[...] ainda que não exista nenhuma certeza, que crianças diagnosticadas com TDAH ou TOD que não forem tratadas na infância desenvolverão futuramente diagnósticos irreversíveis de esquizofrenia, psicoses ou o temido transtorno de personalidade antissocial, diretamente associado ao delito e à delinquência

(2018, p. 298).

Primeiramente, vale ressaltar que essa suposta trajetória patológica destinada a crianças com TOD, são baseadas em estatísticas pouco consistentes que abrem espaços para dúvidas sobre a afirmação de estudos de risco, pois “não há marcadores biológicos ou neurobiológicos que atestem a delinquência na vida adulta caso não seja aceito o tratamento terapêutico preconizado” (CAPONI, 2018, p. 310).

Entretanto, diversos estudos na literatura (DEAKIN; NUNES, 2008; RANGÉ, 2011; TEIXEIRA, 2014; CABALLO; SIMON, 2015) contemplam a ideia de que a sociedade pode vir a sofrer cruéis consequências, se não tratar de maneira preventiva (através de intervenção medicamentosa, terapêutica e tratamento psicossocial) os transtornos disruptivos. Tais estudos acrescentam que se não houver tratamento, essa pode ser uma porta aberta para a criança ou para o adolescente se envolver com drogas, álcool, além de aumentar a chance de os casos evoluírem para um quadro de transtorno de conduta e depois para um diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial.

Essa esteira de pensamento utiliza os discursos ético, médico e jurídico como meio de intervir nos comportamentos da criança e do jovem e, assim, legitimar a psiquiatrização da infância e adolescência. Por outro lado, Foucault (1977) apresentou reflexões sobre a relação do médico com seus pacientes e de como esse processo deixava os doentes angustiados com as relações de poder que iam se construindo, a partir dos saberes psiquiátricos criados por meio dessa instituição. Trata-se, aqui, de discurso na perspectiva foucaultiana em que

há um jogo complexo em que o discurso pode ser ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder [...], veicula e produz poder, reforça-o, mas também o mina. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas também afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras

(FOUCAULT, 1993, p. 96).

Portanto, o discurso ativa poderes e os coloca em circulação, utilizando um material generosamente concreto: corpo, físico e social. Manifesta-se como uma força que está presente nas pequenas relações sociais cotidianas de várias áreas e instituições, tais como: família, escola, empresa, comércio, hospital, convento, etc. Essa força causa o efeito de produção de ideias e de saberes, domestica os corpos, disciplinando-os de modo positivo ou negativo e passa a influenciar, em diferentes microníveis, todas as estruturas da sociedade, independentemente da classe.

Essa produção de saberes vai além de uma dimensão psicológica de sujeitamento. Assim, o saber transmite o discurso de modo a consentir que todos que fazem parte da malharia de poder, participem como corpos políticos. Nesse sentido, Bert (2013) afirma que os produtos de uma ciência e as decorrências que produzem, como, por exemplo, a medicina, têm efeitos de poder sobre o corpo social e sobre o sujeito, porque imprime e produz um campo de força que incide nos corpos sociais. Foucault complementa sobre essas relações de poder entre o corpo social e o sujeito:

É que essa relação é um modo de ação sobre as ações, ou seja, as relações de poder encontram-se profundamente arraigadas no nexo social, e não constituem, por cima da sociedade, uma estrutura suplementar com cujo desaparecimento se possa sonhar. De qualquer forma, viver em sociedade é viver de modo tal que seja possível que uns atuem sobre as ações dos outros. Uma sociedade sem relações de poder é uma abstração

(1995, p. 175).

É necessário entender que o poder de que trata o autor não é vindo de uma instância hierárquica superior, como uma instituição formal ou o Estado. Não é um poder centralizado, mas descentralizado, em que cada sujeito o fabrica, pratica em suas ações e o dissemina num patamar nivelado horizontalmente. Assim, transcorre como uma rede que se constrói articulada a outra rede, em todas as direções e sentidos, até formar uma malha de relações que comunica informações e governa a ação ou a conduta dos outros.

Acerca do processo de medicalização e das relações de poder que os discursos e práticas da área médica produzem na sociedade, Bert (2013, p. 53) afirma que isso é um exemplo do método arqueológico de Foucault, em que primeiro se tem um saber específico e uma organização institucional, no caso clínica, “que se estruturam conjuntamente [...] e trazem como consequência a produção de todo um campo de efeitos entre jogos de verdade e relações de poder”. Sendo assim, somos submetidos à produção de verdades camufladas em discursos, entre eles, discursos médicos, que, por uma questão histórica, cultural e hierárquica, são assumidos como discurso verdadeiro.

Esse mecanismo produz saberes que se solidificam como dispositivos que constroem verdades por meio de prescrições normativas que, por conseguinte, causam “efeitos de verdade acordados por uma ciência – como a psiquiatria, a medicina ou o direito – que tem efeitos de estipular o que é normal” (BERT, 2013, p. 50). Da mesma forma, definem quais são as funções que o organismo deve ter e quais são os níveis de inteligência aos quais o ser humano deve obedecer para se enquadrar em “caixinhas” fáceis de serem manipuladas, dependendo do controle das doses prescritas de psicofármacos.

Essa perspectiva, vinculada à sociedade capitalística, produz subjetividades dóceis e lucra com a produção farmacológica, passando a ser fundamental ao sujeito, tornando-o reação da relação: pathos e sociedade.

Atualmente, é comum observar que ao menor sinal de infelicidade dos filhos, seja por desgaste no relacionamento familiar ou por consequência de comportamentos de oposição, associados ao curso do desenvolvimento normal da criança, recorre-se às ritalinas e aos antidepressivos como tecnologias substitutas da educação que deveria ser dada pelos pais e cuidadores, para, assim, reestabelecer o padrão normal da infância. Considerando esse cenário, Bert (2013, p. 58) afirma que “por trás das práticas de tratamento [...], existem intenções morais, redentoras, até mesmo purificadoras”, de vidas e corpos anormais.

Essa busca pela segurança de estar formatando o comportamento das crianças de acordo com os moldes do que é esperado pelo social, promove intervenções farmacêuticas, muitas vezes inadequadas e provavelmente desnecessárias. E, com a prática de automedicação intensificada ultimamente, no Brasil, as indústrias farmacêuticas aproveitam a oportunidade para a venda de remédios que garantem o controle das emoções e, assim, possibilita a intervenção dos saberes farmacológico e psiquiátric em situações identificadas como fora do padrão esperado para uma sociedade saudável.

O ato de medicalização dos corpos emprega uma força de vigilância sob o controle da população. A esse respeito, Lemos et al. afirmam que

os problemas de ordem social, parecem estar se transformando em problema de ordem médica-normalizadora e de ordem neoliberal consumidora. Não visam apenas à prevenção, à solução de doenças ou à manutenção da saúde. Visam ao controle governamental sobre a população com função de regular e disciplinar os indivíduos a seus interesses políticos e econômicos

(2020, p. 243).

Esse processo se vincula, ainda, à busca de um sujeito passivo, menos atuante e menos crítico. Por vezes, as ações de rebeldia da criança e do adolescente, diagnosticadas com TOD, podem ser uma resposta ou a contra-ação resistiva (ato de resistência e busca pela liberdade) a um poder sobre seu corpo (normalização) e do qual ele quer se livrar ou ao qual não quer se submeter.

Segundo Bert (2013), ao longo dos últimos séculos, a medicina vem sofrendo grandes transformações em suas práticas discursivas e verdades construídas, pois encontrou, no aparelho de Estado, um lugar de prestígio para que pudesse produzir relações de poder governamentalizadoras e normativas, com as quais conduzem a conduta do outro. Nesse sentido, pode-se observar e refletir como esse avanço da medicalização interferiu na criação de novas verdades que se converteram em normas, provocando controle social e corporal sob novos dispositivos disciplinares. Tais dispositivos funcionam como se o esperado fosse substituir as camisas-de-força por um reduto medicamentoso, na pretensão de engenhar a loucura na infância.

Analogicamente, as questões associadas ao TOD e aos tratamentos que as famílias buscam para amenizar determinados comportamentos, pode-se recorrer aos apontamentos de Bert (2013, p. 160), fazendo uma associação com o sociólogo Jacques Donzelot quando afirma que “esse novo controle da família tem origem nos conselhos em favor da poupança, mas também no caso das famílias consideradas moralmente deficientes [...] que se incumbem na infância do perigo”. Tal atuação da família pode ser afirmada por Foucault (2004, p. 126) quando reitera que “todos os métodos que sujeitaram o corpo humano a uma ‘relação de docilidade-utilidade’ que tornou ‘tanto mais obediente quanto mais útil e vice-versa produziram [...] uma estrutura psíquica e mental muito particular”. Seguindo esse pensamento de Michel Foucault (2004), a respeito do controle da família por uma relação de docilidade, pode-se reiterar o fato de que a família que obedecer, que cumprir as orientações técnicas visando a uma “higiene social (de normalização) e o manual de boas condutas (de moralização), terá uma vida saudável, higiênica e longeva. Terá, ainda, uma família estabilizada, estruturada, uma família ‘Doriana’” (LEMOS et al., 2020, p. 242).

Outrossim, em seu estudo que trata de constatações sobre a função que a medicalização da criança vem cumprindo para as instituições de assistência à infância na atualidade, Kamers (2013) apresenta que houve um deslocamento dos olhares assistencial, psicológico e educativo sobre a criança para o campo da intervenção médico-psiquiátrica, na medida em que a medicina vem se constituindo como o dispositivo regulador do normal e do patológico sobre a criança, participando, ativamente, do controle das condições de vida desses corpos infantes. A pesquisadora relata, ainda que, segundo sua experiência como psicanalista, na maioria dos casos,

as crianças são encaminhadas pela escola ao psicólogo, que, por sua vez, encaminha a criança ao neuropediatra, que prescreve a medicação – geralmente RITALINA, CONCERTA ou RISPERIDONA. Em outras ocasiões, a escola nem chega a encaminhar ao psicólogo, mas diretamente ao neuropediatra ou psiquiatra infantil, que identifica na criança um quadro de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), ou de transtorno opositivo, prescrevendo o tratamento farmacológico

(KAMERS, 2013, p. 154).

Nesse momento, a Ritalina é a droga de escolha para adolescentes patologizados como sujeitos desafiadores, acometidos pelo TOD (por ser relativamente barata, acessível e, principalmente, por ser percebida como segura, uma vez que deve ser prescrita por médicos). Em contrapartida, o estudo das autoras Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares (2011), apresentado em O lado escuro da dislexia e do TDAH, problematiza diagnósticos de transtorno de aprendizagem ante a indústria farmacêutica. As autoras criticam os efeitos colaterais das drogas usadas para o tratamento desses transtornos e articulam discussões referentes à despatologização, através de um posicionamento ético, quanto à não medicalização da vida.

Ainda sobre a medicalização, as autoras Moysés e Collares (2011) relatam, em suas experiências profissionais, que a tendência para quem apresenta comportamento delinquente e também sinais de TDAH, é a indicação de tratamento com Ritalina, que pode afetar áreas cerebrais responsáveis por mecanismos corporais, de memória, de aprendizagem e de julgamentos; assim como apresentado no excerto:

Muitas crianças e adolescentes suspendem por conta própria, às escondidas, a ingestão dos remédios por sentirem que lhes causam mal, destacando sempre a taquicardia, a sensação de estarem eletrificados, de estarem amarrados, contidos em si mesmos, sem poder expressar seus desejos, emoções, angústias, medos. Sentem-se zumbis. [...] A Ritalina em altas doses é tão aditiva quanto a cocaína. [...] Até quando crianças e jovens continuarão sendo quimicamente contidos e servindo de combustível para as fornalhas de vendedores de doenças?

(MOYSÉS; COLLARES, 2011, p. 185).

Provavelmente, por razão de prognóstico apresentado no formato de uma verdade estabelecida cientificamente, é que se defende uma linha de intervenção terapêutica homogênea para tratar a criança, utilizando uma droga segura. Enquadra-se o tratamento assim como se enquadram os critérios de diagnóstico estabelecidos por padrões que fogem da norma. Assim, ao utilizar esses critérios como parâmetro baseado no modo de operar práticas de normalização, procura-se fazer com que o indivíduo seja moldado dentro de uma curva, pois, agindo assim, o anormal se opõe ao normal, porém ambos estão abarcados na norma.

É também isso que faz da psiquiatria uma operadora para o governo dos outros, pois ninguém escapa dela, ou se é normal ou se é anormal. É nesse momento que a medicina se torna detentora das relações de poder, pois, segundo Bert (2013, p. 73), “o médico detém o monopólio da fala verdadeira ao identificar o teor das sensações mórbidas do paciente, mas, sobretudo, ao proferir enunciados prescritivos, ele ordena que o doente aja de determinada maneira”.

Assim, considerando os conceitos de Foucault (2012), é possível sustentar que o saber médico viabiliza uma formação disciplinar e está incorporado a uma historicidade e a um campo de regularidades que são móveis, bem como esse saber permite ao profissional configurá-lo na função regente e controladora – aplicada aos corpos dos sujeitos.

Atualmente, com as técnicas que a medicina dispõe, a possibilidade de modificar a estrutura geral das células não afeta apenas o indivíduo ou sua descendência, mas a espécie humana como um todo; é o conjunto do fenômeno da vida que se encontra doravante situado no campo da ação da intervenção médica

(FOUCAULT, 1993, p. 48).

Em outras palavras, pode-se considerar que os critérios que avaliam o comportamento dos indivíduos diagnosticados com transtorno, no caso deste estudo, o TOD, podem ser vistos como uma tecnologia disciplinar do corpo e do controle social, revelada como ferramenta de normalização através de práticas médicas, focadas nas relações de saber-poder, a partir de ações disciplinares do indivíduo, injetando, neles, técnicas para enquadrá-lo no padrão aceitável pela sociedade. Resumindo, a vida e o saber que se tem sobre ela é resultante de uma construção social dentro de um campo de possibilidades e de verdades.

Essa normalização advém de uma norma, mas de que norma falamos exatamente?Canguilhem (1978, p. 54) afirma que não existe uma única norma ou A norma, ela é efeito de uma mensuração social, ou seja, ela “apenas desempenha seu papel que é desvalorizar a existência”, ou um tipo de existência, “para permitir a correção dessa mesma existência”, fazendo-a outra. Para o autor, caso a norma exista, não é quantitativa apenas, ela também é qualitativa porque adjetiva o sujeito a partir de sua mensuração (para mais ou para menos, próximo à curvatura normal). É necessário estar atento ao contexto, às experiências vividas e à subjetividade produzida por discursos de verdade para, então, saber de qual norma está-se falando.

Se considerarmos que os discursos sobre a caracterização de um indivíduo em determinado quadro patológico transitam entre a judicialização e a medicalização, explica-se a tentativa de controle social que vem acontecendo, atualmente, através de intervenções no período da infância. Porém, a “depender das circunstâncias”, a nossa sociedade dirá se está se referindo a uma criança/adolescente com atitude de um suposto criminoso, bandido, se essa criança (diante da sua ação) merece a cadeia ou a morte, ou se está se referindo a uma criança/adolescente com TOD, TC, ou outra doença que mereça acompanhamento psicológico e tratamento (ROSA et al., 2015).

A partir da criminalização da infância ou da psiquiatrização dela, emergem as subjetividades criminosa ou patológica, pois, se

o adestramento falhar, se a fábrica de corpos falhar, se o processo higienista e o da prevenção falhar, se a gestão do risco e perigo falhar; recorre-se à indústria farmacêutica, à medicalização, à psiquiatrização, à patologização, à psicologização. Se ainda assim falhar, recorre-se à criminalização, à judicialização, à utilização de instituições punitivas e penais

(LEMOS et al., 2020, p. 243).

Por meio dessa concepção e, também, para compreender os modos como os saberes médico-jurídico se articulam em torno da ideia de periculosidade da infância, Caponi aborda, em seu estudo, uma discussão referente à seguinte questão:

A pergunta inevitável será: quem pode definir se um indivíduo é ou não perigoso antes de cometido o ato? Dito de outro modo: quem deve decidir se um indivíduo, seja um adulto ou uma criança, poderá desencadear situações de violência no futuro? A resposta será: a psiquiatria

(2018, p. 301).

Justamente por isso, é importante atentar para o fato de que o saber médico e o saber jurídico podem favorecer a prática de clivagem da infância, tornando-a foco de controle, passando a diagnosticar a criança como vítima e/ou delinquente (MAFRON, 2020). Dessa forma, a judicialização consegue rotular um sujeito de doente ou de transgressor e o encaminhar para um hospital psiquiátrico ou para uma prisão.

Nesse sentido, na obra Vigiar e punir, Foucault (1975-1977) argumenta que prisões e hospitais psiquiátricos foram estruturados para excluir parte da sociedade considerada inadequada; no entanto, essas instituições não dedicavam atenção à saúde nem tampouco a medidas sociocorretivas, visando à readequação do sujeito à sociedade. Segundo o autor, também nessas instituições, a atuação da medicina governamentalizava os sujeitos através da figura do médico, assumindo o papel de uma autoridade que

é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente [...] tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”; aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado

(FOUCAULT, 1979, p. 122).

Sendo assim, tratar o TOD utilizando instituições como aparelhos produtores de tecnologia repressiva, através de mecanismos disciplinares restritos a confinamentos e/ou com a ação da medicalização da infância, não exclui a necessidade de investir em tratamento psicossocial e psicoterapêutico, não apenas para promover a diminuição dos “sintomas característicos” dos transtornos, mas para um bom relacionamento familiar, educacional e social da criança.

Além disso, entender esse funcionamento resultante da governamentalização dos corpos pela ação nosológica, é um caminho importante para rever as ações e insubordinações das crianças e jovens, nas condutas transgressoras como feixes de resistência à ação da normalização de seus corpos. Tendo em vista que as disfunções familiares e escolares estão presentes em crianças com ou sem TOD, a terapia TCC e outras intervenções psicológicas podem ser indicadas, a fim de tentar auxiliar o sujeito na mudança de comportamentos aversivos da criança, por meio de alteração na forma como os pais lidam e concebem as situações de conflito (PINHEIRO et al., 2004).

Considerações finais

Este estudo se propôs realizar uma reflexão filosófica, problematizando alguns dos discursos presentes nos critérios científicos e clínicos que caracterizam o Transtorno Opositor Desafiador, articulando e revendo-os à luz dos conceitos de Michel Foucault e de outros autores que compartilham das perspectivas filosóficas foucaultianas para tomá-las como ferramenta de análise e de sustentação de pensamentos reflexivos nas práticas sociais e educacionais.

A discussão, neste estudo, não pretendeu apontar a medicina como vilã que induz as pessoas a se enxergarem sempre como doentes, tampouco, empreender críticas e/ou apontar falhas nos processos de avaliação diagnóstica. Contudo, objetivamos analisar a maneira como os discursos enraizados tornaram-se regimes de verdade, os quais nos conduzem à necessidade de problematizar, discutir e remodelar as relações de poder presentes em todo espaço social. De maneira imperativa, a esfera da saúde reverbera, intensa e decisivamente, na vida dos indivíduos, entretanto, pensar que alguém esteja livre de se envolver em relações de poder é praticamente uma utopia, tendo em vista que estamos, constantemente, arquitetados em malharias de vários tipos de saber/poder.

Evidentemente a medicina trouxe avanços às sociedades, por exemplo, a erradicação de epidemias, pelos estudos e pesquisas desenvolvidos, trouxe tratamentos, curas, medicamentos e melhora da qualidade da saúde da sociedade. Todavia, a necessidade de estabelecer uma norma é um fator, dentre outros, da instituição da ciência médica, que pode promover exclusões, normalizações e normatizações que, por vezes, sufocam os corpos e oprimem formas de vida singulares.

As nossas reflexões permitiram apontar colocações que evidenciam o indivíduo não como um dado estatístico, mas como um ser único. Por isso, cabe a nós desconstruirmos padrões ditos normais e desvios impostos tanto pelo viés médico como por quaisquer outras instituições normalizadoras de poder, como o Estado, a escola, a Igreja, entre outros espaços institucionais. Claramente, as reflexões referem que estamos presos em relações de poder imbricadas no seio social, e que, a partir da resistência, podemos reavaliar nossa vida revendo as normas que nos forjaram, independentemente de cor, etnia, transtorno, deficiência ou de outra especificidade. Essa ação nos leva às contra-condutas e à refacção de nós mesmos. Somos múltiplos, singulares e plurais em nossas subjetivações.

Portanto, é preciso compreender que, muitas vezes, os sintomas de transtornos disruptivos que as crianças apresentam (hiperatividade, agressividade, tristeza), ficarão escondidos, suavizados pelo efeito das medicações, punindo-as por terem se desviado da norma. Quanto a isso, os infantes não têm como revidar, não têm voz para protestar pela sua própria integridade emocional, sobre o que realmente estão sentido, tampouco entendem o que está acontecendo.

Não obstante, é necessária a efetivação de um diagnóstico minucioso para promover medidas indicadas para cada situação. Recorrer logo (ou apenas) à medicalização, como vem acontecendo em nosso meio, é algo que precisa ser discutido pelos órgãos reguladores da saúde no Brasil, pelas instituições de ensino e pela sociedade em geral. É necessário buscar ferramentas que possam intervir através de uma estrutura multidisciplinar que contemple redes sociais de apoio, terapias comportamentais, e/ou terapias assistidas por animais, dentre outros métodos. Somada a isso, pode ser indicada a implementação de cuidados essenciais já provenientes da Política Nacional de Saúde Mental, como: atenção e relação de acolhida humanizada no tratamento de sujeitos diagnosticados com TOD.

Portanto, é fundamental acompanhar o comportamento das crianças e adolescentes em vários contextos, e não, apenas, nos diagnosticados por um manual nosológico que impõe critérios e características comuns. Ademais, esse manual pode ser facilmente considerado como um simples dicionário com possibilidade de alteração a partir de acordos estabelecidos pela comunidade interessada não apenas em rótulo e em diagnóstico, mas, também, em quais condições sociais, culturais, familiares e educacionais, esses infantes estão se desenvolvendo. Além de observar que, em seus contextos, essas crianças podem ser propulsoras de comportamentos e resistências muitas vezes tomadas como hostis.

1O uso da contra-conduta com hífen se refere à perspectiva de que há uma prática do sujeito, ou seja, um movimento de ação dele que produz práticas de contrastes às normalizações impostas ao seu funcionamento social. Esse conceito é trabalhado na perspectiva foucaultiana quando o autor aponta as formas de poder manifestas na sociedade ocidental, a produção de governo sobre vidas e marca que algumas ações de resistência produzem formas de governo de si contrárias às normas vigentes, sendo uma ação de enfrentamento.

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Recebido: 25 de Agosto de 2020; Aceito: 17 de Dezembro de 2020

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