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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Fev-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021041 

DOSSIÊ: RELIGIÃO E POLÍTICA: PERSPECTIVAS, TRADIÇÕES E DESAFIOS

Em nome do Pai: a (não) laicidade em instituições e escolas públicas

On behalf of the Father: the (non) laicity in public institutions and schools

Denilson Marques dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0003-0359-4695

Denise Marques dos Santos** 
http://orcid.org/0000-0002-3313-5783

Beleni Salete Grando*** 
http://orcid.org/0000-0002-5491-2123

*Graduado em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (Uepa-2009). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Estudos de Religião (Matriz Africana e Indígena) e Filosofia da Religião. Graduado em Matemática pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi-2016). Graduando em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-Polo FAP/Belém do Pará/de 2015-2019). Especialista em MBA em Gestão Educacional e Docência do Ensino Básico e Superior pelo Instituto Carreira (março-2013). E-mail: dede_cecilia@yahoo.com.br

**Professora na Faculdade Pan-Amazônica. E-mail: dede_lana@hotmail.com

***Professora na Universidade Federal de Mato Grosso (2011), na Faculdade de Educação Física e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Foi professora na Universidade do Estado de Mato Grosso (de 1994 a 2011). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: belesgrand2020@outlook.com.br


Resumo

Como a religião é vivenciada nas instituições públicas? Nas escolas existe o respeito às diversas religiões ou os professores legitimam as próprias crenças? Para compreensão de tais questões, participamos das aulas de Ensino Religioso, entrevistamos professoras e servidores da Câmara e da Prefeitura Municipal. Dos resultados podemos apontar: Os símbolos e as práticas religiosas estão presentes nos espaços públicos, onde deveriam primar o princípio da laicidade, o Ensino da Religião, onde, em geral, prevalece a religião do professor; as demais são vistas como crendices; a criança que se posiciona contrária à atitude do professor acaba vítima de discriminação e exclusão.

Palavras-chave Crendices; Ensino de Religião; Espaços públicos; Laicidade

Abstract

How is religion experienced in public institutions? In schools is there respect for the various religions or do teachers legitimize their own beliefs? To understand these issues we participated in religious education classes, we interviewed teachers and servants of the city hall and city hall. From the results we can point out: The symbols and religious practices are present in public spaces, where one should excel in the principle of laicity; in the Teaching of Religion, in general, prevails to the religion of the teacher; the other are seen as beliefs; the child who is opposed to the teacher’s attitude ends up being discriminated against and excluded.

Keywords Beliefs; Teaching of Religion; Public Spaces; Laicity

1 Linhas Introdutórias

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o Estado brasileiro passou a assegurar o direito à liberdade de culto. Esse princípio foi legitimado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, que reafirma o respeito das diversidades cultural religiosa e veda quaisquer formas de proselitismo quanto ao Ensino Religioso no ambiente escolar.

A partir do momento em que o Estado declara o princípio da laicidade e estabelece o direito constitucional à liberdade das práticas religiosas se acirraram os conflitos entre grupos religiosos. Por essa razão, a escola, como espaço disseminador dos conhecimentos construídos socialmente, torna-se o lócus privilegiado para a compreensão e o respeito às diversas formas de expressão de religiosidade.

O fenômeno religioso é estudado por vários campos da ciência humana. No terreno da sociologia, Oliveira (1995) a compreende como fato social universal, uma vez que está presente em todas as sociedades. No campo da filosofia, Chauí (2006) concebe a religião como um elo entre o mundo sagrado e o mundo profano, entre a natureza e a imensidade de divindades que nela habitam. Na geografia religiosa, segundo Rosendahl (2010), as resistências aos cultos religiosos, que se diferenciam de religião oficial, contribuem para o entendimento de que “a religião relaciona-se, diretamente, aos conflitos étnico-religiosos da intolerância religiosa” (ROSENDAHL, 2010, p. 3).

Com este escrito procuramos analisar as interfaces entre Estado, Igreja e Escola no que concerne ao respeito ao princípio da laicidade e ao Ensino Religioso. Para tanto, uma pesquisa foi realizada na Prefeitura, na Câmara Municipal e em duas escolas (uma estadual e outra municipal), instituições localizadas no Município de Belém do Pará.

Para a aplicabilidade da pesquisa optamos por uma abordagem qualitativa. Os instrumentos de coleta de dados foram: a participação direta nas aulas de Ensino Religioso, observação in loco dos órgãos públicos, entrevistas semiestruturadas com as professoras e funcionários, e uso do caderno de campo para registro das percepções e vivências dos momentos de pesquisa.

A pesquisa está organizada da seguinte forma: no primeiro estudo temos: “As relações entre Igreja, Estado e a laicidade versus ensino religioso”, buscando contextualizar o tema, a partir da Reforma e da Contarreforma, movimentos basilares para a compreensão das relações entre Estado e Igreja. Em seguida: “Câmara e Prefeitura Municipal: Espaços públicos (não) laicos” verificamos que essas instituições, na Cidade de Belém do Pará, ferem o princípio da laicidade, por meio de práticas cotidianas e ordenação do espaço. No último momento: “O Ensino Religioso nos espaços escolares: Profissão de fé” apresentaremos o tema e suas interfaces nos espaços escolares por meio do Ensino Religioso, do discurso e das práticas docentes.

Esperamos contribuir para uma maior compreensão sobre a necessidade de o Ensino Religioso ser oferecido com base no respeito às diversas religiões, bem como no direito de liberdade dos grupos minoritários de expressarem sua religiosidade, seja na escola, seja em qualquer outro espaço social.

2 As relações entre Igreja, Estado e laicidade versus Ensino Religioso

O caminho em busca do sentido da vida tem nos caracterizado como seres humanos (DURKHEIM, 2008). Esse caminhar, no entanto, é realizado de modo diferente pelos agrupamentos culturais. Essa necessidade tanto individual como coletiva, relaciona-se ao desejo mais antigo do homem religioso, que é o de estar na presença do sagrado (ELIADE, 2010, p. 35).

Por volta do século XVI (16), foi desencadeado o conflito religioso conhecido como Reforma Protestante, que deu início à transição entre o Mundo Medieval e a Idade Moderna, momento em que Martinho Lutero se inquietou com as práticas adotadas pela Igreja Católica Apostólica Romana, tais como a venda de indulgências, a corrupção no alto clero e o acúmulo de riquezas da Santa Sé. Para o clérigo, a Igreja estaria mais interessada em questões materiais, na aquisição de bens e poder político do que na fé e conversão dos fiéis.

Martinho Lutero publicou, no dia 31 de outubro de 1517, na porta da catedral de Wittenberg, suas 95 teses (SOUSA, 2016), que desencadearam o início da Reforma Protestante. Ao torná-las públicas, expôs as práticas antirreligiosas do alto clero, o que culminou com a Bula Papal de Leão X (VIANNA, 2004, p. 27). Diante das duras críticas, a Igreja precisou se reinventar.

Com o avanço do luteranismo, os clérigos católicos perceberam a perda ascendente de fiéis. Nesse compasso, a hegemonia católica já não era como antes. Assim, de acordo com Sousa,

a tomada de ações mais incisivas contra a fragmentação do poder religioso só se desenvolveu com o aparecimento das religiões protestantes. Uma das primeiras medidas tomadas pela Igreja foi restabelecer o Tribunal do Santo Ofício, que atuou na Idade Média contra os movimentos heréticos

(2016, s/p).

As decisões de reformulação das bases católicas foram possíveis após a reviravolta que o luteranismo protagonizou. As contradições entre o protestantismo e a Igreja Católica fizeram emergir o Concílio de Trento (1545-1563) evocado pelo Papa Paulo III, com a finalidade de reafirmar os dogmas, a fé católica e condenar a nova religião considerada de cunho herege por contestar as ações do clero.

Uma das principais medidas para conter as investidas protestantes foi a revitalização da “instituição criada pela sociedade ibérica moderna para buscar e punir crimes contra a fé” (SILVA, 2012, p. 3), o Tribunal do Santo Ofício (1542). A Igreja atribuiu a Lutero e aos seus seguidores a condição de hereges. Lutero teve sua excomunhão promulgada em janeiro de 1521.

Durante o período em que o Tribunal do Santo Ofício se estabeleceu, “a grande marca dessa instituição foi sua ligação com o poder do Estado, ao qual se encontrava subordinada, visto que o inquisidor era nomeado pelo monarca e confirmada pelo Papa” (CAMPOS; BRITTO, 2013, p. 97). Os impasses e acordos entre Estado e Igreja, no século XVI, aportam no Brasil durante o período colonial.

Uma das principais ações da Companhia de Jesus, sob a regência do Padre Manoel de Nóbrega, era dilatar a fé e o império, catequizar os povos não cristãos e submetê-los aos interesses da Coroa. Os agentes das missões, destinadas à implantação dos aldeamentos indígenas, acreditavam que os habitantes do novo mundo não tinham cultura, sociedade, religião, e nem governo. Silva (2014) afirma que “a cultura da ausência, concebida pelos colonizadores só serviu para justificar o amansamento e aldeamento dos povos indígenas”.

Para aceitação dos costumes e condutas cristãs, os jesuítas precisavam articular as estratégias para aculturação dos povos indígenas. Por isso, ensinar as primeiras letras, por meio do catecismo, foi o principal método utilizado para que os índios pudessem aceitar os preceitos que regiam o catolicismo dos colonizadores.

Para estabelecer no Brasil uma extensão dos interesses da Coroa, Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal, ministro do reino português, instaurou a “Reforma Pombalina”, que pretendia transformar a Nação portuguesa numa metrópole capitalista, seguindo os ideários da filosofia iluminista, que ganhavam corpo e espaço nos países europeus (MACIEL; SHIGUINOV NETO, 2006). Nessa reforma, um dos objetivos propostos seria a libertação dos índios escravizados.

Nesse ponto, a reforma do Marquês de Pombal foi favorável aos interesses da Coroa. Quanto mais os ideários de liberdade ganhavam mais campo, causavam demasiado incômodo aos jesuítas. Uma vez que essa nova organização política do Estado Português, nitidamente, não mais submetia as populações indígenas ao domínio da Igreja, os jesuítas perceberam as intenções de Marquês de Pombal, deslocaram as missões para as cidades litorâneas (SILVA, 2012, p. 5).

As missões religiosas perduraram por mais de dois séculos, até que a Reforma proposta por Pombal orientou a perseguição dos jesuítas pelas tropas portuguesas. O que resultou na expulsão em massa dos padres de todas as colônias e a captura dos grupos indígenas aldeados; o que, por outro lado, não significou a ruptura definitiva entre o Estado e a Igreja nas terras de além-mar.

Marquês de Pombal, após a expulsão dos jesuítas, não pretendia reformar apenas o sistema e os métodos educacionais, mas colocá-los a serviço dos interesses políticos do Estado (MACIEL; SHIGUINOV NETO, 2006). Em 1824, passa a vigorar a primeira Constituição brasileira. De acordo com Fernandes, “a Igreja Católica Apostólica Romana é oficializada como Religião do Império, concomitantemente o Ensino Religioso continua sob o protecionismo do Estado” (FERNANDES, 2011, p. 17).

O Presidente da República, Manoel Deodoro da Fonseca, estabelece, em 1890, a extinção das relações entre Estado e Igreja a partir do Decreto n. A-119 (de autoria de Ruy Barbosa), proibindo a intervenção dos entes federados nas discussões religiosas, vigorando, a partir de então, a liberdade de culto às diversas religiões (BRASIL, 1890), e o ensino leigo em todos os estabelecimentos de ensino público.

No seu primeiro mandato, Getúlio Vargas decreta que o Ensino Religioso será facultativo, estabelecendo a não obrigatoriedade dos alunos de participar das aulas de religião. A nova Constituição Federal (1934), no art. 154, estabelecia que “o ensino religioso seria ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituiria matéria obrigatória dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais.”

Em 1946, a nova Constituição brasileira, no art. 168, acorda que “o Ensino Religioso deve se desdobrar em disciplinas de horários oficiais, sendo facultativo e ministrado em consonância com a religião do aluno, sendo afirmada por ele ou por um responsável legal” (BRASIL, 1946).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n. 4.024, de 1961, no art. 97, estabelece que a disciplina de Ensino Religioso deve ser ministrada sem ônus para os cofres públicos, e a Igreja ficaria responsável por registrar e qualificar os professores destinados ao ensino da referida disciplina (BRASIL, 1961). O Ensino Religioso de cunho facultativo, constituído em disciplina, a ser ministrada no ensino do primeiro grau (Ensino Fundamental) ao Ensino Médio, nas escolas oficiais, foi legalizado com a Constituição Federal 1967 (BRASIL, 1967).

Em pleno processo de redemocratização do Brasil, a nova Constituição retira a disciplina Ensino Religioso do Ensino Médio, restringindo-a ao Ensino Fundamental (anos iniciais e finais) e determina, no art. 210, § 1º que “o Ensino Religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (BRASIL, 1988). Em 1996 a LDB é reformulada, e o Ensino Religioso ganha um adendo que previa seu oferecimento sem ônus para os cofres públicos.

Atualmente, o que vigora no âmbito federativo é o chamado “Acordo Brasil Santa Sé”, que estabelece outras diretrizes para o Ensino Religioso,

De matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo

(BRASIL, 2010).

Esse acordo define que o Estado respeite a pluralidade confessional do País, estabelecendo o Ensino Religioso nas escolas como parte da formação integral da pessoa. No acordo Brasil Santa Sé, é notória a sobreposição do catolicismo em detrimento de outras manifestações religiosas apesar da ressalva afirmada, que alude assegurar o respeito às religiões sem absolutas formas de imposição e preconceito.

A trajetória, no âmbito legal, traçada até aqui nos revela as relações, os acordos e as estratégias de controle do Ensino Religioso entre o Estado e a Igreja. Em suma, a separação entre essas instituições, sonho acalentado desde o período colonial, ainda está longe de ser alcançada. De acordo com os interesses políticos e a força de organização dos grupos religiosos, o Ensino Religioso tem passado por novas mudanças sem deixar, no entanto, de ter seu espaço garantido na educação formal.

3 Câmara e Prefeitura Municipal: espaços públicos (não) laicos

Passados mais de dois séculos da Reforma Pombalina, as relações entre Estado e Igreja nunca foram rompidas definitivamente. Ainda hoje, apesar de todo um arcabouço legal de defesa da laicidade do Estado brasileiro, a religião católica continua presente nos espaços públicos e nas práticas cotidianas neles vivenciadas.

Para compreender como as relações entre Estado e Religião se configuram nas instituições públicas, as quais deveriam primar pelo princípio laico, resolvemos analisar os espaços da Prefeitura Municipal e da Câmara Municipal. Os símbolos religiosos encontrados foram desde lembretes de pensamentos da semana com versículos bíblicos, convites para atividades religiosas, mandalas com a oração do Pai-Nosso, cópias impressas de hinos católicos e evangélicos, calendários com a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do Espírito Santo até adesivos com a frase: “O Senhor é meu pastor, e nada me faltará” nos gabinetes de parlamentares.

Ao analisarmos esses adereços, percebemos a predominância de simbologias que aludem às religiões mais populares de Belém do Pará, sendo a religião católica detentora do maior número de adeptos, e as religiões evangélicas ficam em segundo lugar na capital paraense. Tais manifestações entram em discordância com a legislação vigente, no que tange à presença de símbolos religiosos em órgãos públicos, em detrimento das religiões minoritárias, bem como das pessoas que não confessaram defender nenhum credo religioso.

As concepções de Bourdieu (1975) caracterizam essa subversão como uma “violência simbólica”. Tal violência não se manifesta em coação física, mas de forma velada, por meio de trocas simbólicas, discursos e práticas. Assim, as religiões minoritárias, ou não confessionais, são violadas em detrimento das representações simbólico-majoritárias.

Na pesquisa realizada na Prefeitura Municipal de Belém – PA, o que mais chama a atenção de todos que circulam naquele espaço é a existência, no hall de entrada, de um púlpito com um exemplar da Bíblia Sagrada, que permanece sempre aberta. Esse equipamento foi adotado em substituição ao “banco da desinformação”. Segundo o relato de um servidor, tal banco ficava no lado externo do gabinete 1 e era utilizado como lugar de encontros, antes do horário de entrada e saída dos funcionários, onde os assuntos da vida cotidiana eram socializados (RC, 2019).1

O espaço que antes era ocupado pelo banco, agora foi transformado em um local reservado a “culto religioso”. Porém, se, por um lado, a inserção desse elemento religioso passou a inibir atitudes antiprofissionais, por outro, ele fere o princípio da CF/88, que defende a laicidade nos espaços institucionais do governo. As atitudes comportamentais de funcionários deveriam ser resolvidas por meio de diálogos ou com advertências cabíveis e não com o emprego de elementos religiosos como forma de impor condutas ou dissolver os encontros ociosos entre funcionários, em pleno exercício de sua função, no caso, cita-se a política.

Com a construção do púlpito e a presença da Bíblia no saguão da Prefeitura, essa tornou-se um local “quase sagrado” (ROSENDAHL, 2012, p. 15), que impõe ao homem religioso (ou não) um certo postar-se com respeito. Com um colaborador da pesquisa recolhemos a seguinte informação: “Não há possibilidade de cultuar todas as religiões, pois se torna algo inviável” (RC, 2019). Entretanto, mesmo que fosse possível expor os símbolos que contemplam todas as religiões existentes na comunidade, ainda assim, feriria o conceito laico, pois também há o trânsito de pessoas que não congregam, de nenhuma igreja, como os agnósticos e ateus.

O posicionamento mais democrático seria a não exposição de nenhuma simbologia e de nenhuma religião. Por fim, o nosso colaborador decreta: “Isto tudo aqui é normal”. Caracterizada pela lógica do uso de elementos sagrados para coibir ou impor comportamentos até dentro da Câmara Municipal. Assim se firma a máxima: “A religião é um mal necessário”.

Para além da representação dos símbolos, ainda pudemos constatar, nesses espaços outro elemento que contribui com o não laicismo. Durante a pesquisa, registramos a realização de culto no espaço da Câmara Municipal. Uma das colaboradoras expressou seu sentimento em relação a este momento:

É um orgulho para mim falar sobre isso e nós temos toda segunda-feira [...] das 7h30 às 8h, um momento que nós falamos, um momento de busca, ao Senhor, agradecimento, ao Senhor, [...] pelo final de semana que passou e pela semana de trabalho que inicia. Não tem placa de igreja. Aqui participa conosco pastores e padres, [...] e a gente tem essa meia hora de leitura da Bíblia e louvores

(RC, 2019).

Corroborando o momento, também registramos o posicionamento de dois colaboradores, que reafirmaram a realização do culto e que alegaram que o espaço é aberto para quem quiser participar. Questionamos se as pessoas adeptas de outras religiões também poderiam fazer uso do espaço para manifestar suas crenças. Em resposta à nossa pergunta, o segundo colaborador afirmou: “Se vierem aqui para falar de Deus, sim, se não, não!” (RC, 2019).

O que pudemos sintetizar nessas falas é que há uma exclusividade em conceder espaço para a realização de cultos católicos e evangélicos, o que não ocorre com outras religiões, a exemplo das de matizes afro-brasileiras. Na última fala, o colaborador explicita a valoração a um único Deus, o cristão; o Deus dele, e ainda expõe demasiada intolerância às demais religiosidades.

O conceito laico é um só, porém, há concepções variadas sobre ele no que versa a respeito da presença de elementos religiosos nos espaços públicos. Para a Juíza Federal 001, da 3ª Vara Cível Federal do Estado do Pará “sem qualquer ofensa à liberdade de crença, garantia constitucional, eis que para os agnósticos ou aos que professam crença diferenciada, aquele símbolo nada representa assemelhando-se a um quadro ou escultura, adereços decorativos”.2

Os símbolos de uma dada religião podem não ter significado fora do círculo social de seus adeptos. No entanto, de forma explícita ou implícita, as manifestações de cultos em locais públicos exercem coação às pessoas com posicionamentos contrários e fere o princípio da CF/88, que estabelece:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou com seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público

(BRASIL, art. 19, 1988).

No momento do culto, o espaço torna-se exclusivo dos adeptos daquela religião. Além da entrada do hall da Prefeitura localizamos um segundo púlpito, também como suporte a uma bíblia, na Câmara Municipal de Vereadores, ao lado da plenária. Nesse segundo local, às segundas-feiras, por volta das 16h, é realizado a leitura de um salmo ou versículo, como ritual de iniciação dos serviços semanais.

Quando é realizada a leitura do livro sagrado, os que congregam tal religião comportam-se como o esperado: se levantam em silêncio, a cabeça baixa em sinal de reverência, e o não uso de chapéus ou bonés. Para outras tantas pessoas, que não acompanham tal ritual, paira, no ar, certo constrangimento, cabendo a elas retirar-se do local ou o “silêncio dos vencidos”.

4 O Ensino Religioso nos espaços escolares: profissão de fé

Atualmente, existem temas que demandam certa cautela, como: gêneros, religião, diversidade cultural, preservação ambiental e sexualidade, por que estão relacionados a subjetividades, crenças individuais e posicionamentos políticos e conflituosos (ROSENDAHL, 2010, p. 37). Assim, nesse item, nossa análise se debruça sobre o Ensino Religioso, ministrado nas escolas públicas, por meio das áreas de conhecimento ou das disciplinas escolares, no Ensino Fundamental.

A história da relação entre religião e Estado se confunde com a própria história do Brasil. No Período Colonial, os portugueses, por meio das missões jesuítas, impuseram a religião católica aos povos indígenas. Passados mais de 500 anos, somente em 1988, com a promulgação da “Constituição Cidadã”, o Estado se manifesta a favor da liberdade de consciência e de crença, assegurando, de forma inviolável, o livre-exercício de cultos religiosos e a garantia, na forma da lei, da proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Para a efetivação desse preceito, não basta promulgar leis ou decretos, agregados à questão legal; se faz necessária a conscientização social, para que haja a compreensão e o respeito ao que é diferente, às crenças das diversas manifestações religiosas. No entanto, o Estado ainda age a favor de uma pseudorreligião hegemônica, ao promover a difusão de determinado dogma por meio da escola, seu mais eficaz aparelho ideológico (ALTHUSSER, 1970).

A escola é um espaço eminentemente contraditório. A legislação a define como espaço da laicidade, mas os currículos formais e as práticas docentes caminham na contramão daquele preceito. A necessidade de pensar sobre nas religiões como área do conhecimento escolar, surge com a promulgação da LDB/1996, que, no art. 33, preconiza o Ensino Religioso,

de matrícula facultativa, parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo

(BRASIL, 1996).

Nesse sentido, caberia à escola contextualizar os diversos princípios religiosos presentes na comunidade escolar, a fim de desenvolver o respeito pelo outro e romper as barreiras da intolerância de toda e qualquer espécie. Para tanto, a escola deve se pautar pelo diálogo com as entidades constituídas por diferentes denominações religiosas, para a definição dos currículos do Ensino Religioso, que contemplem a maior diversidade possível de manifestações religiosas, sem que os professores caiam no pecado de professar sua própria religião, como única, verdadeira e universal.

Cônscios da importância da escola como espaço de laicidade, buscamos compreender como o Ensino Religioso tem sido ministrado nas escolas da Rede Pública Estadual e Municipal de Belém do Pará. Para tanto, elegemos para a nossa pesquisa de campo a EEEFM (Escola Estadual de Ensino Fundamental) “Tenoné” e a Escola Municipal de Ensino Fundamental) EMEF “Inês Maroja.”3

A coleta de dados por meio da observação das aulas e entrevistas com as professoras ocorreu em abril de 2019. Contamos com a utilização da abordagem qualitativa, com ênfase na pesquisa exploratória, a qual se pauta pela compreensão da profundidade de determinado grupo ou fenômeno social, bem como pelos aspectos presentes na realidade dos sujeitos, e o porquê de acontecimentos, que não podem ser quantificados nem tabulados. Quanto ao registro das observações e entrevistas, utilizamos o caderno de campo: “Ele é a caixa-preta do pesquisador” (SILVA, 2017, p. 17), onde o pesquisador guarda suas percepções daquilo que viu, ouviu e sentiu.

No que diz respeito à realização das entrevistas, os dias, horários e locais foram previamente definidos conforme a disponibilidade das professoras; sendo duas da Rede Estadual, e três da Rede Municipal de Ensino. Após a gravação das entrevistas, passamos pelas etapas da transcrição, textualização e a transcriação, de acordo com as orientações metodológicas propostas por Meihy e Holanda (2010).

Para algumas professoras o tema religião, a priori, foi de difícil abordagem, tendo em vista sua subjetividade. Assim, a nossa proposta de pesquisa causou certa inquietação nas professoras-colaboradoras. Aos poucos, a euforia e a preocupação se esvaneceram e deram lugar à colaboração e à promoção do conhecimento.

Quanto às entrevistas e à participação nas aulas de Ensino Religioso, recebemos vários “nãos”. As professoras que se negaram a dar entrevista e a observação da aula, alegaram não possuir domínio do assunto. Contudo, constatamos que tamanha resistência se deu, exatamente, por parte daquelas que, em pleno século XXI, iniciam as aulas com a oração do Pai-Nosso. Prática que não é restrita ao espaço da sala de aula, mas que também se estende nos momentos de atividades cívicas e comemorativas, no pátio escolar.

A CF/88 assegura a liberdade de manifestação de credo e imprime ao Estado não instituir ou privilegiar uma religião oficial nos espaços públicos. No que tange à educação, estabelece, ainda, que o Ensino Religioso deve ser não confessional, não aludindo a religiões ou religiosidades distintas, mas, sim, valorizar e respeitar todas as crenças religiosas.

Nesse sentido, o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper) orienta sobre as temáticas a serem abordadas na área ou disciplina de Ensino Religioso. Tais temáticas são divididas em três eixos: Ser Humano; Conhecimentos Religiosos; e Práticas Religiosas e Não Religiosas, que se modificam a cada etapa de ensino da Educação Básica. No entanto, por meio de nossa pesquisa, percebemos que alguns professores valoram esses conceitos, e outros caminham na contramão do ensino laico.

Uma das colaboradoras, a Professora Marília afirma que, nas aulas de Ensino Religioso, privilegia, por exemplo, a exposição de temas voltados às diferenças, tais como: ética, respeito, convivência, tolerância, solidariedade, amizade, amor, paz, perdão, trabalho, honestidade, felicidade, sinceridade, dignidade, fraternidade, harmonia e não violência e bullying (RC, 2019).

Há professores que preferem seguir esses vieses, a abordagem somente daqueles conceitos se adentrar às diferenças de preceitos religiosos. Sendo assim, para a Professora Amanda, o foco é “trabalhar princípios, comportamentos, como a gente deve agir, quais são as regras que a sociedade tem para uma boa convivência. Então, para mim, Ensino Religioso é isso, não foco em religião, mesmo!” (RC, 2019).

Durante o acompanhamento das aulas de Ensino Religioso, vivenciamos o momento em que os alunos externaram suas opiniões, na roda de conversa, sobre o filme “Up: Altas aventuras”:

“Quando a gente é mal, a gente vai pro infern”. “Quando a gente é boa a gente vai pro céu”. “Minha avó disse que não pode brigar, pois quem é do mal vai pra casa do diabo, e quem é do bem vai pra casa de Jesus.” “Não pode adorar o anjinho do mau, senão vamos morar com ele, lá embaixo!” “Tem que agradecer a Deus, pela nossa saúde, e quem não agradecer a Deus vai lá pra baixo.”

(RC, 2019).

As crianças acabam reproduzindo, em sala de aula, aquilo que ouvem ou veem em casa e na igreja dos pais ou em outros espaços religiosos ou não.

Como as professoras e professores irão mediar tais situações? Instigar os alunos a se manifestarem é algo salutar para a formação integral. Segundo a Professora Socorro, “nós priorizamos muito a fala do aluno, nesta aula, nesta disciplina” (RC, 2019). O diálogo possibilita que os alunos sejam notados em suas subjetividades. Uma aluna, por exemplo, quando a professora discutia sobre os valores que norteiam o Ensino Religioso, como o preconceito, ela disse: “Preconceito é quando uma criança não quer pegar na mãozinha da outra só por que ela é moreninha e acha que é diferente” (RC, 2019).

Para algumas colaboradoras conhecer a religião de seus alunos é um fator significativo para que as discussões fluam, e o que também permite contextualizar as religiões, concomitantemente ao respeito e à tolerância às diferentes crenças, como relata a Professora Rosa,

Agora, neste ano, a gente trabalhou a questão de eles compreenderem a própria religião, e o respeito à religião dos outros [...]. No próximo bimestre, a gente vai tentar trabalhar outras religiões, para eles conhecerem outras religiões, que não a deles. Como na nossa turma a gente tem, principalmente, evangélicos e católicos, não tivemos muito problema nessa questão não, foi bem tranquilo

(RC, 2019).

Compreender a própria religião para, concomitantemente descobrir que o outro também possui uma religião, por vezes diferente, é um passo fundamental para desenvolver nas crianças os princípios básicos de respeito ao outro. Sendo assim, de acordo com a Professora Dália,

para que se tenha respeito pela opinião do outro, pela crença do outro e pra que não haja intolerância, porque nosso mundo é muito intolerante, e a gente cita o que acontece no mundo afora... A última redação do Enem acho que tratou de Intolerância Religiosa

(RC, 2019).

A redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2016 apresentou o tema: “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”. Diante disso, vemos que é notória a necessidade de discussões, no âmbito escolar, para a compreensão de assuntos tão complexos como a religião. Por outro lado, a escola se vê “refém” da família quando se dispõe a tratar de tais assuntos. Como afirma a Professora Margarida,

mas, assim, quem está em sala de aula vê que o negócio é diferente. Eles não aceitam você trabalhar qualquer coisa... E hoje a família domina a escola, não é isso? A família domina a escola! Se a família não gostar, esquece! Você não vai poder trabalhar, a verdade é essa

(RC, 2019).

O que podemos analisar, a partir dessa fala, é que a escola se permite ser controlada pela família. As diretrizes nacionais caracterizam o Ensino Religioso como facultativo ao aluno (art. 33, LDB/1996). No ato da matrícula, os responsáveis têm o direto de optar, ou não, pelas aulas de Ensino Religioso. Quando se manifestam favoráveis, eles desejam que a escola ensine somente as crenças pertinentes à religião que comungam e se opõem às outras religiões. A exemplo da narrativa da Professora Violeta,

há tempo atrás, eu peguei uma atividade que era de um blog adventista, mas era muito interessante! E, aí, na hora, nem imaginei, e teve uma mãe que não gostou, porque ela era conhecedora. Não sei como é que ela soube que a atividade era de lá, e ela veio me questionar: – Professora, a senhora é adventista? Porque a senhora passou tal atividade? Então, assim, você está vendo, como é que é pequeno o pensamento dos pais?

(RC, 2019).

O Professor, cônscio da importância da formação integral das crianças, deveria se posicionar ativamente ao se defrontar com tais situações de resistência. A escola, ou o Professor, que aceita as regras impostas pela família, contribui para que essa inferência se torne cada vez mais comum, naturalizada e romantizada. Não que a família não possa contribuir para um desenvolvimento educacional considerável, mas, antes, a escola deve mediar tais contribuições de forma flexível e dialógica.

O ensino público no Brasil é regido por leis e diretrizes, assim, se a escola possui aportes sobre tais normativas, ela tem amparo legal para contrapor o “achismo” da família, que, na concepção dos professores, também não tem cumprido com seu papel social.

Conforme nos relata a Professora Inês,

[com] o passar dos anos, nossa clientela vem mudando muito, e a gente recebe crianças que, os princípios básicos, lá que a família ensina, eles não ensinam. E a gente é que tem que fazer esse papel na escola, até porque, se a gente não fazer, a gente não vai conseguir dar aula, você não vai conseguir [...] conduzir as disciplinas, outros conteúdos. Se a gente não trabalhar isso, [...] é uma luta que a gente vem desde o primeiro dia e vai até o último dia

(RC, 2019).

É consensual a transferência, à escola, a tarefa de educar os filhos (no sentido de boas maneiras) que antes era responsabilidade da família. Assim, o professor se vê obrigado a destinar parte do tempo escolar a educar os alunos, pois, sem disciplina, ele não consegue ministrar uma aula, e, por conseguinte, não há aprendizagem.

Há uma parcela de professores que possui uma compreensão significativa sobre as questões conflituosas que pairam sobre o Ensino Religioso, mas que consegue ministrar aulas dinâmicas, por meio da abordagem dos preceitos e das definições religiosas sem que haja a tentativa de intervenção da família ou do dogmatismo reducionista.

Para uma das colaboradoras, investigar e descobrir a quais religiões seus alunos pertencem, ou não, é importante para se trabalhar, de forma legal, aquilo que as diretrizes estabelecem ao Ensino Religioso. Para todos os anos iniciais do Ensino Fundamental essa área de estudo deve contemplar os três eixos citados anteriormente. De acordo com a Professora Rosa, “uma coisa que acho que eu não citei até agora, quando a gente inicia o ano, que é a matéria “Diversidade Religiosa”.

“Então, a gente traz o que é religião no mundo, com as principais religiões e diz, dentro disso, as denominações religiosas” (RC, 2019).

A exibição de filmes, a leitura de obras de literatura, a exposição de artes plásticas, a realização de dinâmicas de interação e socialização, a leitura coletiva e a roda de conversa sobre as religiões possibilitam que cada aluno externe suas concepções e permite ao professor mediar essa discussão, sistematizando-a com respeito à diversidade de crença.

Nos momentos em que participamos das aulas de Ensino Religioso, uma das colaboradoras não fez apologia à crença dela. Depois, no momento da entrevista, ela relatou e a Professora Rosa defendeu: “Na LDB vai falar que tem que oferecer um Ensino Religioso de matéria facultativa para o aluno, sem proselitismo, não vou impor nenhuma religião aqui na sala de aula (RC, 2019), mas presenciamos práticas inversas. Percebemos que outra professora utilizou a “pedagogia do medo”, para fazer valer sua autoridade.

No dizer da Professora Marília,

já que todo mundo tem isso, de cultura que é temente a Deus, que tem um Deus que vai cobrar, apesar de ser um Deus vingativo e não é, mas a gente tem muito. Às vezes, de que Deus vai cobrar vingança e tal. Então, você acaba meio que utilizando isso em sala de aula: Olha, você não pode fazer isso, porque, quem está feliz? Quem está feliz é o outro, não é Deus

(RC, 2019).

Além do currículo oficial do Ensino Religioso, a religião se manifesta por meio da concepção de mundo do professor, expressa num discurso polarizado, universalista e naturalizado. Nesse sentido, uma legislação que preconiza o respeito às diferenças religiosas não é capaz de, por si só, provocar a transformação da prática docente. Para Rocha e Sampaio (2016, p. 9) “mesmo extirpando oficialmente religiões de uma determinada sociedade, ela continuará no foro íntimo das pessoas, e suas condutas sempre terão influência por fatores religiosos”.

A religião institucionalizada, por meio do Poder Público ou dos currículos escolares, sempre exerceu influências diretas, impôs condutas, paradigmas, comportamentos ao longo da história. No entanto, não cabe à escola e ao professor valorizar apenas a forma homogênea de pensar e vivenciar a religiosidade, a qual, em muitas práticas, se volta à predominância da reverência ao seu Deus.

Considerações finais

Desde o final do século XIX, por meio da influência de Ruy Barbosa e da assinatura do Decreto n. A-119/1890, que se preconizava a não ingerência do Estado nas questões de culto religioso. Entre avanços, retrocessos e permanências, chegamos ao cenário da LDB (1996), que garante o Ensino Religioso, de cunho não confessional, obrigatório à escola, mas facultativo para os alunos. O que, na grande maioria, não é repassado aos pais ou familiares no ato da matrícula.

A prática docente não avança em toque de mágica, é salutar a garantia, na forma da lei, dos direitos civis e humanos, e o direito de as pessoas manifestarem sua religiosidade, sem correr o risco de serem acometidas por preconceitoss, discriminação, intolerância religiosa ou de exclusão social.

Por mais que o discurso docente seja totalmente democrático, as práticas escolares não caminham no mesmo sentido. Nas abordagens sobre “temas polêmicos”, como: abuso sexual infantil, consumo de drogas, homofobia, violência doméstica, gênero, religião e sexualidade, os professores acabam revelando, e, em outras situações, até defendendo, suas crenças e valores, ante a diversidade de crenças e valores dos seus alunos.

Em uma das aulas de Ensino Religioso, presenciamos, ao debater sobre o tema uso de drogas, uma professora que fez evocação às suas próprias crenças religiosas: “Lembram-se de que Deus é sábio? Deus fez nosso corpo tão perfeito, os órgãos. Deus fez uma máquina perfeita. Quem vai na igreja e lê a Bíblia sabe que é ruim as drogas” (RC, 2019).

Diante do exposto, consideramos que o princípio da laicidade tanto na escola como em outros espaços públicos não é unânime. Há poucos professores que conseguem direcionar o Ensino Religioso para o lado não confessional. No entanto, as práticas docentes e os símbolos religiosos ainda são empregados como estratégias disciplinares de corpos tanto na escola como nas demais instituições públicas de Belém do Pará.

A escola, sozinha, não transformará a sociedade, mas estamos cônscios de que o chão da sala de aula é o espaço propício para o enfrentamento das desigualdades sociais e da valorização da diversidade cultural e religiosa do povo brasileiro. Se os professores não se posicionarem de forma crítica e consciente ante as questões pontuadas neste escrito, que outra classe de profissionais o fará?

1A apresentação das contribuições dos colaboradores da pesquisa: Professores da Rede Estadual e Municipal de Ensino e Servidores Públicos da Prefeitura e Câmara Municipal de Belém do Pará, em forma de relato, entrevistas e as observações de sala de aula e dos espaços públicos citados serão indicados com o termo, entre parênteses, registro de campo, seguido do ano da realização da pesquisa de campo, 2019.

2Trecho da entrevista concedida pela Juíza Federal da 3ª Vara Cível do Estado do Pará, sobre a presença de elementos religiosos nos espaços públicos. Disponível em: http://www.estjur.com.br/2019-nov-14/laicidade-e-os-simbolos-religiosos. Acesso em: 14 nov. 2019.

3Para apresentação dos resultados da pesquisa de campo optamos pelo uso de codinomes (pseudônimos) tanto para as escolas quanto para as colaboradoras, como forma de garantir o anonimato, a fim de que as professoras não sofram quaisquer formas de discriminação pela manifestação de suas ideias ou crenças.

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Recebido: 15 de Outubro de 2020; Aceito: 10 de Dezembro de 2020

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