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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Jun-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021043 

DOSSIÊ: RELIGIÃO E POLÍTICA: PERSPECTIVAS, TRADIÇÕES E DESAFIOS

Política e religião como expressões do homem-no-mundo: contribuições buberianas

Politics and religion as expressions of man in the world: buberian contributions

*Graduado em Paedagogik Und Mathematik – Rheinisch-Westfälisch Technische Hochschule. Aachen e Doutor em Pedagogia em RWTHA Aachen University. Professor Titular na Universidade Federal de Pernambuco. (UFPE). E-mail: frohr@uol.com.br

**Professor-Adjunto na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde ensina e lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação. Doutor e Mestre em Educação pela UFRPE. Graduado em Pedagogia e Pós-Graduado em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (Fafica). Desde 2019 integra o quadro de professores permanentes do UFRPE, Centro de Educação – CE. E-mail: ezo.silva@hotmail.com

***Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernanbuco. Mestre em Educação pela UFPE. Doutoranda em Educação pela UFPE. Professora de Educação Infantil no Município de Camaragibe. E-mail: ana.gregoria@ymail.com


Resumo

O presente artigo objetiva pensar na política e na religião como expressões do homem-no-mundo e a compreender que tais expressões comportam inúmeras formas de se apresentar, as quais podem ser modificadas a partir das vivências humanas e das relações que o homem estabelece ao longo de sua vida. É dentro dessa atmosfera de compreensão sobre a política e a religião, vistas de uma forma mais ampla e mais relacional, que trazemos o filósofo austríaco, Martin Buber, para nos subsidiar nesse caminho de reflexão sobre outras formas de encarar essas temáticas. Vale ressaltar que não temos a intenção de apresentar Buber como um modelo ou um herói, mas como uma pessoa que, mesmo tendo sido educado dentro de uma perspectiva religiosa ortodoxa (judaísmo); que, mesmo tendo vivido três grandes guerras, não sucumbiu diante das atrocidades e nem se fechou dentro dos rituais e dos dogmas da religião à qual foi inserido desde criança. Pelo contrário, ele enfrentou a realidade partindo de sua autenticidade, se contrapôs aos conteúdos de fé transmitidos pela religião na qual foi criado e não se curvou diante das adversidades impostas por aqueles que pensavam diferente dele. Para Buber a responsabilidade humana está interligada ao mundo concreto que o cerca. E é aqui que a noção de religiosidade do referido filósofo nos lega um importante aprendizado: vivemos imersos em contextos que nos falam e que nos exigem uma resposta; e temos a oportunidade, o tempo todo, de dedicar nossa atenção a esses contextos e a respondê-los da forma mais singular possível, movidos por uma ética da responsabilidade. A partir das reflexões apresentadas, podemos dizer, ainda, que a política e a religião, entendidas como expressão do homem-no-mundo, devem ser vistas como responsabilidades desse homem singular. Não queremos, com isso, dizer que os condicionamentos externos não influenciam o homem na resposta que ele dá ao mundo, mas queremos enfatizar que a dualidade da existência humana (Eu-Tu/Eu-Isso) permite ao homem responder a partir de todo o seu ser ou apenas com fragmentos dele.

Palavras-chave Religião; Política; Ética; Responsabilidade; Martin Buber

Abstract

This article aims to think about politics and religion as expressions of man-in-the-world and to understand that such expressions contain numerous ways of presenting themselves, which can be modified based on human experiences and the relationships that man establishes throughout your life. It is within this atmosphere of understanding about politics and religion, seen in a broader and more relational way, that we bring the Austrian philosopher, Martin Buber, to subsidize us on this path of reflection on other ways of facing these themes. It is worth mentioning that we do not intend to present Buber as a model or a hero, but as a person who, despite having been educated within an orthodox religious perspective (Judaism); that, even though he had lived through three great wars, he did not succumb to the atrocities and did not close himself within the rituals and dogmas of the religion to which he was inserted since he was a child. On the contrary, he faced reality based on its authenticity, opposed the contents of faith transmitted by the religion in which he was raised and did not bow to the adversities imposed by those who thought differently from him. For Buber, human responsibility is linked to the concrete world that surrounds it. And it is here that the notion of religiosity of that philosopher bequeaths us an important learning: we live immersed in contexts that speak to us and that demand an answer; and we have the opportunity, all the time, to dedicate our attention to these contexts and respond to them in the most unique way possible, driven by an ethics of responsibility. From the reflections presented, we can also say that politics and religion, understood as an expression of man-in-the-world, must be seen as the responsibilities of this singular man. With this, we do not want to say that external conditioning does not influence man in the response he gives to the world, but we want to emphasize that the duality of human existence (I-You/I-That) allows man to respond from all your being or just with fragments of it.

Keywords Religion; Politics; Ethic; Responsibility; Martin Buber

Introdução

Vivemos em um tempo em que se propaga a ideia de que tudo pode ser explicado pela lógica do utilitarismo.1 Dentro dessa lógica, a ação humana é reduzida à satisfação dos desejos que são, em sua maior parte, introjetados pela sociedade. Segundo Caillé (2011, p. 1), a nossa sociedade está exposta a um grave problema que não se restringe apenas à privatização generalizada e à subordinação de todas as vertentes de ação a uma ordem mercadológica e financeira preponderante, mas também inclui a sujeição de todas as nossas ações “a uma lógica de avaliação quantificada”.

Nessa direção, parece-nos que a compreensão sobre o ser humano na atualidade passa a ser condicionada à lógica utilitarista. Dentro dessa perspectiva, Santos (1999, p. 8) afirma que “o mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do “salve-se quem puder”, do “vale-tudo”, justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos [...]”. Apesar desse diagnóstico alarmante acerca da vida pragmático-utilitária, discordamos da ideia de que ela seja, de fato, triunfante e de que a ação humana se paute apenas por interesses materialistas e egocêntricos. Pensamos que essa é uma ideia potente a partir da modernidade,2 mas que não podemos considerá-la fundamentalmente a razão do existir humano.

Nesse sentido, podemos dizer ainda que, mesmo com todo esse modelo societal- utilitário, o qual vem afastando o homem de seus valores mais humanos, somos seres que podemos e fazemos diferente do que nos é forjadamente colocado como natural. A título de exemplificação do que estamos falando, basta analisarmos o número cada vez mais significativo de pessoas que doam parte do seu tempo para se dedicarem a outras pessoas, inclusive para educá-las.3 Tais ações nos permitem desconfiar da lógica do “salve-se quem puder” e nos fazem ver que o agir humano não pode ser reduzido ao modus operandi utilitário.

Entendendo que as ações humanas não podem e nem devem ser explicadas exclusivamente pelo viés utilitário, este artigo se propõe pensar na política e na religião como expressões do homem-no-mundo e a compreender que tais expressões comportam inúmeras formas de se apresentar, as quais podem ser modificadas a partir das vivências do homem-no-mundo e a partir das relações que esse homem estabelece ao longo de sua vida. É dentro dessa atmosfera de compreensão sobre a política e a religião, vistas de uma forma mais ampla e mais relacional, que trazemos o filósofo austríaco Martin Buber para nos subsidiar nesse caminho de reflexão sobre outras formas de encarar essas temáticas – formas que não se reduzam à lógica utilitarista. A partir de alguns elementos da vida e da obra de Buber queremos apresentar outras lógicas que também regem essas temáticas e que estão relacionadas a uma ética da responsabilidade e do comprometimento. Nesse sentido, é importante destacar a importância que cada ser humano tem diante do mundo.

Dessa forma, dividimos o artigo em cinco partes: a primeira busca fazer uma relação entre os elementos do pensamento buberiano e alguns dados biográficos com o intuito de refletir sobre o homem e sua concretude. A segunda apresenta um episódio da vida de Buber no qual ele abandona um movimento político-religioso por compreender que esse não contemplaria o renascimento espiritual de cada judeu. Ainda sobre esse ponto, podemos dizer que foi essa experiência que ajudou Buber a compreender os perigos de se conceber a noção de que os fins justificam os meios. A terceira aborda o que Buber chama de “a verdadeira norma”, momento em que se torna nítida a distinção entre a assunção dos próprios princípios e a obediência cega às normas. A quarta elucida outro evento importante da vida de Buber o qual fez com que ele mudasse, radicalmente, sua concepção sobre religiosidade. Por fim, a quinta apresenta nossas considerações finais.

Primeiros desvelamentos sobre Martin Buber: a íntima relação entre o homem e sua concretude

Mordecai Martin Buber, nascido em 8 de fevereiro de 1878, na cidade de Viena, na Áustria, foi educado dentro de uma renomada família judaica, viveu as atrocidades de três grandes guerras (a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Palestina) e se afirmava avesso a qualquer tipo de rótulo.

Como ele mesmo dizia,

não tenho nenhuma doutrina. Apenas aponto para algo. Aponto para a realidade, aponto para alguma coisa na realidade que não tinha sido vista, ou o tinha sido muito pouco. Tomo quem me ouve pela mão e o encaminho à janela. Abro a janela e aponto para o que está lá fora. Não tenho nenhuma doutrina, mas mantenho uma conversação

(BUBER apudBARTHOLO JÚNIOR, 2001, p. 13).

Essa afirmação de Buber ilustra bem a sua objeção ao engessamento dos conceitos e dos conteúdos tratados pelos homens, uma vez que a cristalização desses geralmente tende a sufocar a vida que habita neles. Por esse motivo, o filósofo austríaco sempre se viu como alguém que apontava realidades existentes e que estabelecia com os homens ao seu redor uma conversação sobre a vida. A esse autor importava a abertura do homem ao mundo e a possibilidade de que esse estabelecesse relações dialógicas.

Buber não é um filósofo especulativo nem idealista; ele é um filósofo da concretude, o que significa, segundo essa compreensão, que o espaço de concretização da vida humana reside nas vicissitudes do cotidiano. É dentro dessa perspectiva que, em sua obra Eu e Tu, ele falará sobre os pares de palavras-princípio, Eu-Tu e Eu-Isso, as quais serão responsáveis pelo estabelecimento de dois diferentes tipos de relação pelo homem. O primeiro par de palavras, ao ser proferido, possibilita o encontro e o diálogo autêntico; já o segundo par de palavras coisifica o ente que se apresenta. Assim, Buber (1979, p. 3, grifo nosso) afirma que “o mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras princípio que ele pode proferir”.

Aqui, já notamos que todas as relações que o homem estabelece passam pelo Eu-Tu ou pelo Eu-Isso proferidos pelo mesmo. Ao olharmos para nós e para o mundo ao nosso redor, já podemos saber qual desses pares de palavras-princípio é o que mais pronunciamos. Buber (1979) não é contra a palavra-princípio Eu-Isso, até mesmo porque é através dela que o homem organiza seu mundo. Contudo, o filósofo é enfático ao dizer que quem apenas vive no mundo do Isso não pode ser considerado homem. Assim, podemos dizer que a relação Eu-Tu é propulsora da nossa humanidade.

A relação estabelecida através das palavras-princípios Eu-Tu é uma relação que não é premeditada e nem pode ser interpretada: ela deve ser apenas vivida, realizada no agora. Com tudo e todos aqueles que se colocam em nosso caminho, podemos estabelecer uma relação Eu-Tu. Esse tipo de acontecimento é capaz de nos permitir encontrar conosco mesmo, é capaz de nos atualizar, ou seja, de nos colocar em contato com nossas verdades. Buber ainda nos diz que, ao participarmos de uma relação Eu-Tu estamos nos relacionando com o Tu Eterno, ou, em outras palavras, com Deus. Estamos realizando Deus no mundo. O que acontece naquele instante do encontro, da relação, Buber (2004, p. 124) chama de “revelação” e diz que “às vezes parece um sopro, às vezes parece uma luta, pouco importa: acontece”. Mas como isso acontece? Isso é um mistério. A “verdade é que recebemos algo que não possuíamos antes, e o recebemos de tal modo que sabemos que isso nos foi dado” (BUBER, 2004, p. 121).

Essa ênfase feita por Buber sobre a condição relacional do ser humano – ele existe-no-mundo (em relação) – desvela uma primeira face de uma ética da responsabilidade, uma vez que o homem que se depara com os demais homens e demais coisas existentes pode buscar estabelecer relações mais autênticas, as quais favorecem aos envolvidos o encontro com suas próprias verdades. Assim, ao buscar acolher autenticamente aquilo ou aquele que chega, o homem assume sua responsabilidade pela porção do mundo que se faz presente naquele momento.

Dentro desse horizonte de compreensão do pensamento e da vida de Martin Buber, destacamos que ele teve algumas experiências marcantes relativas à religiosidade durante a sua infância e adolescência, as quais voltariam a ressoar, mais tarde, em sua maturidade. Já no começo de sua vida adulta, ele participou de um movimento político, o sionismo,4 que visava a fortalecer uma identidade judaica. Buber, no entanto, se distanciou desse movimento quando percebeu que a forma de atuação desse não seria capaz de promover uma transformação particular em cada homem judeu. Dessa forma, Buber, que sempre nutriu certas ressalvas ao judaísmo ortodoxo – em virtude da obrigatoriedade de seguir, às cegas, certas leis –, distancia-se do movimento sionista e, mais ainda, do judaísmo ortodoxo e se aproxima de outra vertente menos rígida do judaísmo, o hassidismo.5 Para ele essa corrente compreendia cada homem como um ser singular e o impelia à busca do seu caminho próprio. Para esse filósofo, “nenhuma renovação do judaísmo é possível sem conter elementos do hassidismo” (BUBER apudSCHOLEM, 1994, p. 11). Para entendermos tal afirmação, precisamos detalhar um pouco mais a concepção de Buber sobre o judaísmo e o seu caminho de aproximação ao hassidismo.

Como já dissemos anteriormente, Buber sempre manteve certas restrições em relação ao judaísmo em virtude das normas que essa religião prega e da obediência a essas normas que ela exige. Essa ideia denotava, para Buber, algo demasiadamente rígido e propulsor de uma vida sem energia criadora. Dessa forma, enquanto grande parte das pessoas de sua época se colocava como seguidores desse tipo de judaísmo, Buber se afastava do que considerava ser um judaísmo institucionalizado. De acordo com Scholem,6

Para a maioria de seus contemporâneos, o judaísmo era um fenômeno historicamente circunscrito, no qual impulsos e aspirações capazes de formulação atualizaram-se, uma continuidade histórica na qual a vida de um povo se forjou graças a certas ideias decisivas: o monoteísmo, a lei e a exortação profética à justiça, a teologia centrada nos conceitos de criação, revelação e redenção. Quando jovem, [Buber] rompeu com as instituições desta tradição a que jamais retornaria

(1994, p. 134).

A ironia é que, mesmo não fazendo parte do hall de judeus ortodoxos, Buber foi a pessoa que, por algum tempo, exerceu uma forte influência entre os jovens judeus e foi um dos principais responsáveis por levar a discussão sobre o judaísmo para todo o mundo. Nesse sentido, Scholem afirma que

o paradoxo de sua aparição e fama no grande mundo, apoiado por uma oeuvre7 significativa, consistia no fato de que o mundo considerava justamente esse indivíduo como o grande representante do judaísmo em nosso tempo: este homem que chegava a negar possuir algum ensinamento que pudesse ser transmitido8 [...] com total radicalismo, se afastava das instituições judaicas quanto ao culto, e que ninguém vira em uma sinagoga durante os quase trinta anos que viveu em Israel.

(1994, p. 133).

Talvez o que muitos não entendam, nessa relação entre Buber e o judaísmo, é que o que balizava suas ações era uma noção muito forte de coerência em relação ao caminho próprio que cada ser humano tem a seguir. Desse modo, nenhuma lei imposta pelas instituições judaicas contemplaria o modo específico/particular que cada judeu deveria encontrar de realizar Deus no mundo. Essa posição crítica de Buber nos indica que a vida que flui através da busca religiosa do homem individual não pode ser normatizada de modo a se universalizar essa dimensão humana, sob pena do esvaziamento da vida original que brota dessa busca.

Essa postura de Buber diante do mundo não foi entendida por muitos jovens judeus, uma vez que eles não compreenderam o fato de que Buber não acompanhou os demais judeus no começo do processo de regresso à terra natal (Israel), mesmo ele tendo abordado esse regresso em seus discursos enquanto integrava o movimento sionista e mesmo após sua saída desse. O que aconteceu é que, para Buber, aquele não era o momento para ele sair da Alemanha e, mesmo com a pressão de muitas pessoas, ele não foi respeitando sua consciência própria e fazendo o que achava correto então. Endossando o que acabamos de colocar, Scholem diz que

Buber, cujas conversas, discursos e sermões se centravam na palavra realização, recusou aceitar a última – ou assim parecia aos desapontados. Da perspectiva de Buber as coisas pareciam diferentes: ele havia tomado uma decisão pessoal diferente, escolhido um meio diferente de realização

(1994, p. 131, grifo nosso).

Ainda conforme Scholem (1994, p. 132), “Buber buscou a transformação criativa do judaísmo; buscou aqueles momentos na sua história e em seu passado, em que o elemento criativo rompe com as formas [...]” e foi desse modo que chegou ao hassidismo. Como diria Von Zuben9 (apudBUBER, 2004, p. 26), “no judaísmo da diáspora10 sempre houve comunidades cujos membros se chamavam ‘hassid’11 (piedoso, devoto)”; tais comunidades possuíam uma característica singular entre elas, que era a relação direta com Deus através de suas formas de agir no mundo. Para Von Zuben (apudBUBER, 2004, p. 26), o hassidismo corresponde a uma nova manifestação do judaísmo, uma “[...] vida nova, na qual o antigo e o tradicional são aceitos e se mostram transfigurados na simples e cotidiana existência de cada um, para lhe proporcionar uma nova luz”.

Através dos estudos de Von Zuben (apudBUBER, 2004) e de Friedman (1993), sabemos que Buber teve contato com o hassidismo em dois momentos diferentes de sua vida. O primeiro, em sua infância, foi quando fez uma visita, juntamente com seu pai, a uma comunidade hassídica de Sadagora na Galícia, cidade situada na Polônia. Esse primeiro contato foi vivido com toda inteireza e receptividade de uma criança. Já o segundo momento ocorreu quando Buber já está a participar do movimento sionista, no início de sua vida adulta, e se depara, de repente, com o livro Testamento de Israel Baal-Schen-Tov. A leitura de tal livro lhe permitiu vislumbrar “o judaísmo como religiosidade, como hassidismo. As imagens de minha infância, a lembrança do tzadik12 e de sua comunidade me iluminaram e me levantaram, e reconheci a ideia do homem perfeito. Ao mesmo tempo, descobri a vocação de proclamar isso ao mundo” (BUBER apudVON ZUBEN, 2004, p. 26). Essa última afirmação merece uma compreensão mais detalhada, uma vez que apresenta uma importante noção buberiana sobre a religiosidade. Após a leitura do livro Testamento de Israel Baal-Schen-Tov, Buber percebeu o judaísmo como religiosidade e não como religião. Isso quer dizer que ele começou a ver fagulhas de vida no judaísmo, posto que, para ele a religiosidade corresponde a algo que impele o ser humano à busca de sua relação com Deus; a religião, numa perspectiva diferente, centra-se em dogmas e em direcionamentos a serem seguidos pelo homem que quiser encontrar Deus. Assim, religiosidade é movimento, é libertação do espírito; religião, por outro lado, é rigidez, aprisionamento. Nas palavras do próprio Buber apud Scholem,

religiosidade é o sentimento do homem, sempre renovado, sempre se exprimindo e se formando de novo, surpreso e em veneração, que existe acima da existência condicionada, no entanto, irrompendo no seu interior algo incondicional; é a pretensão de instituir uma comunhão viva com o último, a vontade de realizar isto por sua ação e instalá-la no mundo humano. Religião é a soma dos costumes e doutrinas nos quais a religiosidade de dada época de um povo se expressou e se moldou... A religião é verdadeira tanto quanto é frutífera; mas isto perdura enquanto a religiosidade, quando assume o jugo dos mandamentos e artigos de fé, é capaz – frequentemente sem conhecimento – de impregnar e transformá-los muito intimamente com um novo significado florescente, de modo que apareçam a cada geração como se tivessem sido revelados a ela pessoalmente naquele mesmo dia para cumprir seus próprios desejos, estranhos aos pais. Se, contudo, os ritos e os dogmas da religião se tornaram tão rígidos de modo que a religiosidade seja incapaz de movê-los, não mais querendo submeter-se a eles, então, a religião torna-se infrutífera e, assim, não verdadeira. Assim, a religiosidade é o criativo e a religião, o princípio organizador; a religiosidade começa de novo com cada jovem profundamente tocado pelo mistério; a religião quer forçá-lo para dentro de sua estrutura, estabilizá-lo agora e sempre. Religiosidade significa atividade – colocar-se em uma relação elementar com o absoluto – religião significa passividade – tomar para si os mandamentos tradicionais. A religiosidade só tem seu objetivo; a religião tem fins; devido à religião, os pais amaldiçoam os filhos que não aceitarem a inspiração de seu Deus. Religião significa preservação; religiosidade significa renovação

(1994, p. 143-144, grifo nosso).

Dessa maneira, podemos dizer, ainda, que Buber, a partir do hassidismo, consegue ver um judaísmo que não está condicionado a uma forma única e acabada, mas que é capaz de colorir de significação a sempre renovada vida e sua forma de se relacionar com Deus. Assim, o hassidismo, ou o judaísmo visto através dessa lente, pode ser encarado como um processo formativo que implica a transformação de algo amorfo e estático em algo dinâmico, frutífero e repleto de centelhas de vida. De acordo com Buber,

o hassidismo mostrou ao indivíduo, partindo de cada tentação, até mesmo de cada pecado, o caminho para Deus, “que vive com eles no meio de suas impurezas”. Sem diminuir a força obrigacional da Torá,13o movimento não só fez luzir em todos os mandamentos legados um sentido imediatamente gerador de felicidade, mas chegou a eliminar efetivamente o muro que dividia o sagrado e o profano, ensinando a executar toda ação profana como santificada. Sem resvalar para o panteísmo, que aniquila ou debilita o valor dos valores – a reciprocidade da relação entre o humano e o divino, a realidade do Eu e do Tu que não cessa mesmo à beira da eternidade – o hassidismo tornou manifesta, em todos os seres e todas as coisas, as irradiações divinas, as ardentes centelhas divinas, e ensinou como se aproximar delas, como lidar com elas e, mais, como “elevá-las”, redimi-las e reatá-las à sua raiz primeva (1967, p. 21, grifo nosso).

Na assertiva acima, podemos notar como Buber compreende o hassidismo e o que esse tipo de religiosidade reverbera no caminho do homem: a santificação das ações cotidianas, ordinárias, profanas através da relação frutífera entre cada homem singular e Deus. Segundo a concepção hassídica, o mundo terreno e o mundo divino devem ser concebidos de forma unificada, uma vez que Deus, nessa concepção, quer se fazer presente no mundo terreno através da ação cotidiana de sua criação, o homem (BUBER, 2011).

A partir dessas breves considerações acerca de Martin Buber e de alguns dos seus pensamentos, podemos vislumbrar que sua existência foi pautada pela busca pela coerência entre o que pensava, falava e fazia e que tal atitude não lhe permitia viver uma religião dogma e nem ter atitudes políticas panfletárias, restritivas e benéficas apenas para um grupo seleto. Assim, o sentido de sua existência estava intimamente ligado ao que fazia em seu cotidiano, e isso se refletia diretamente no que ele escrevia em suas obras. Dentro dessa perspectiva, apresentaremos, a seguir, alguns momentos da vida de Buber em que as esferas religiosa e política são abordadas a partir de horizontes éticos.

O sionismo, Herzl e o Eu demoníaco: o risco de um mundo movido por causas e não por pessoas

Em sua juventude, Buber passou um tempo afastado das suas raízes judaicas, mas começou a recuperá-las a partir do seu contato cada vez mais intenso com o Sionismo. O sionismo foi, de uma forma geral, uma reação ao antissemitismo14 francês15 e russo.16 No fim do século XIX, “Se considerava de mau gosto identificar alguém como judeu e a maioria deles desconhecia o significado desta identidade” (FRIEDMAN, 1993, p. 36). Dentro desse contexto, em 1887, na Suíça, foi realizado o primeiro congresso sionista. Esse congresso, segundo Friedman (1993, p. 36), “era a primeira agrupação, que, longe de negar a existência da “questão judia”, a considerava um problema dos judeus e de todo o mundo europeu”. O movimento tinha em Theodor Herzl seu maior expoente político.

Buber participou ativamente do movimento sionista escrevendo, palestrando e participando de reuniões, conseguindo, assim, pela primeira vez, canalizar suas energias para um trabalho frutífero e constante (FRIEDMAN, 1993). Contudo, mesmo tendo abraçado o sionismo, isso não significou, para Buber, uma adesão total ao judaísmo. Vale ressaltar que Buber discordava de alguns pontos de vista do líder e fundador do sionismo, Herzl, uma vez que, para Martin, o renascimento judeu deveria acontecer primeiramente na alma das pessoas, e isso nenhum partidarismo político iria conseguir; já para Herzl, tudo se resumia a estratégias políticas.

Desde o terceiro congresso Sionista (1899), Buber deixou claro, em seu discurso, sua discordância de pensamento em relação às ideias de Herzl. No quinto congresso (1901), ele encabeçou a frente da “Fração Democrática”, a qual dá uma maior ênfase ao sionismo cultural em detrimento ao sionismo político de Herzl. Porém, foi somente em 1903 que Buber se afastou definitivamente de Herzl, ano em que ocorreu o sexto congresso sionista, no qual Herzl fez um discurso pessoal e difamador sobre um dos colaboradores da Fração Democrática, Trietsch. De acordo com Friedman (1993, p. 47), após o discurso inflamado de Herzl, “Buber se sentia profundamente perturbado. Em verdade, se colocava em oposição a Herzl desde o congresso anterior, mas, até então, as diferenças eram de opinião. Jamais havia posto em questão o homem em si”.

Desse modo, Buber toma a decisão de ir, juntamente com outro colaborador da Fração Democrática, até Herzl depois do seu discurso, na tentativa de lhe falar da falta de fundamentos sobre o que acabava de afirmar e da necessidade de se criar uma comissão investigadora para apurar a legitimidade de suas palavras. No entanto, estando ao lado de Herzl, Buber percebeu que não havia como conversar com ele porque quem estava ali não era uma pessoa, mas, sim, a causa defendida por ela; isso significou, para Buber, que o homem a quem ele buscava não estava presente; quem se apresentava diante dele era uma causa que se valeria dos meios necessários para atingir seus fins.

Em seu livro Fragmentos autobiográficos, Buber (1991) descreve sua memória desse episódio e nos revela o momento em que Herzl deixa transparecer a incoerência de suas atitudes e a fragilidade ética pela qual era guiado:

[...] Herzl parou frente a nós e nos dirigiu a palavra. O tom no qual ele falava não era de modo algum aquele que nós gostaríamos de esperar – era um tom sofrido, mas também de gracejo, embora não houvesse sorriso nos seus lábios. “Totalmente diferente eu o teria apresentado!”, gritou ele – “[...] Porém, aí uma menina colocou-se em frente à tribuna, imediatamente à minha frente – sua noiva, como eu fiquei sabendo – ela estava então parada ali e fulminou-me com aqueles seus olhos – eu lhes digo: uma pessoa maravilhosa! Então eu não pude”

(BUBER, 1991, p. 31).

Esse foi um momento que marcou Buber e que o acompanhou pelo resto de sua vida. Segundo Friedman (1993, p. 48), nesse episódio, Buber “reconheceu que para a maioria dos homens de ação não tem sentido polemizar sobre os métodos e princípios quando o que importa é quem tem a responsabilidade de levá-los à prática”. Essa perspectiva é totalmente contrária à noção ética que caracterizava o pensamento e a ação de Buber, tendo em vista que esses homens de ação priorizavam as figuras que concretizavam as causas almejadas em detrimento dos princípios que deveriam nortear a busca pela concretização das mesmas.

Ao trazermos o ingresso e a estadia de Buber no movimento sionista, enfatizamos que o mesmo não aderiu por completo ao judaísmo e nem seguiu às cegas o líder desse movimento. Desse modo, entendemos que Buber demonstrou andar conforme o que acreditava ser o certo à medida que enfrentou e assumiu as consequências de tais ações. Gostaríamos de chamar a atenção para as reflexões de Buber sobre Herzl, uma vez que acreditamos que elas estão intimamente ligadas ao que Buber chamará, em seu livro Eu e Tu, de Eu demoníaco.

Para entendermos melhor essa noção do Eu demoníaco, é necessário lembrar que, para Buber o homem tanto pode entrar numa relação Eu-Tu, como numa relação Eu-Isso. O Eu do primeiro caso pode ser considerado pessoa e surge à medida que entra em relação com outras pessoas (BUBER, 2004); já o Eu do segundo caso pode ser considerado egótico e se origina a partir da tomada de consciência “de si como sujeito (de experiência e de utilização)” que se distingue dos demais egóticos (BUBER, 2004, p. 92).

Em conformidade com Buber (2004, p. 94): “Homem algum é puramente pessoa, e nenhum é puramente egótico; nenhum inteiramente atual e nenhum é totalmente carente de atualidade. Cada um vive no seio de um duplo Eu”. No entanto, existe um outro Eu que não pode ser considerado nem pessoa e nem egótico. É um Eu que, segundo Buber (2004, p. 86), “usa a si mesmo como um Isso”. É um Eu que não é capaz de entrar em relação, seja Eu-Tu ou Eu-Isso, posto que seu Eu é inexistente. A esse Eu, Buber dá o nome de demoníaco, porque ele se deixa levar por motivos que não são mais próprios seus e, sim, das causas que representa. Para Buber (2004, p. 96) esse Eu “[...] não vê os entes que estão em sua volta, senão como máquinas capazes de diversas realizações, que devem ser avaliadas e utilizadas para o bem de sua causa”.

Dentro desse contexto, acreditamos que a vivência com Herzl fez Buber notar a existência do Eu demoníaco. Infelizmente, naquele instante em que se deparou com Herzl, após o seu discurso caluniador, Buber percebeu que não conseguiria dialogar com ele, uma vez que já não habitava ali um homem, mas, sim, uma causa. Notadamente no universo político, é muito comum nos depararmos com Eu’s demoníacos. Eu’s que não são capazes de se atualizar nem atualizar o mundo que está ao seu redor. Ao observar essa vivência de Buber e as reflexões trazidas por ela, pensamos que a existência do Eu demoníaco na esfera política impossibilita qualquer germinação de vida, de humanidade, e isso, consequentemente, traz efeitos nocivos para a vida pessoal e coletiva. Da forma como Buber concebia o homem em sua dimensão relacional (ser-no-mundo), compreendemos que o exemplo prático do posicionamento político de Herzl se opunha à necessária abertura do homem ao mundo e ao estabelecimento de qualquer relação.

A verdadeira norma exige nossa inteireza, não a nossa obediência

Buber conta uma história sobre uma de suas vivências na escola. Vamos tentar retratá-la de forma sucinta, mas já sabendo que não conseguiremos trazer todas as sutilezas que perpassam essa narrativa. Certa vez, dois colegas de sala do então jovem Buber começaram a fazer mímicas e, depois de algum tempo, elas tomaram uma conotação sexual. Todos os estudantes da sala viam com assombro tal situação, a qual se arrastou por cerca de uma semana. Após esse tempo, o diretor da escola chamou Buber e perguntou ao jovem o que ele sabia sobre o que seus colegas de classe estavam fazendo. Buber então respondeu não saber de nada. O diretor tentou persuadi-lo dizendo que ele era um bom menino e que deveria ajudá-lo. Em sua biografia, Buber relata que encarou calado o diretor e que essa foi sua última memória daquele momento, haja vista que foi acometido por um forte choro seguido de um desmaio. Buber (1991, p. 18) conclui essa passagem dizendo que essa experiência abriu portas para outras tantas que o “ensinaram a compreender a relação problemática entre o princípio e a realidade e, assim, me revelaram a essência da verdadeira norma, que pede não a nossa obediência mas a nós mesmos”.

Nesse momento de sua vida, ainda enquanto era jovem, e nas suas reflexões em sua maturidade, Buber toma para si a assunção da sua responsabilidade diante do momento e não se deixa ser regido por uma norma que não passe pelo crivo dos seus valores, que não seja condizente com aquilo que, dentro de si, acha certo. Naqueles instantes tão grotescamente normatizados, ele escolheu o caminho que mais representava seus valores, e isso foi em oposição às normas rígidas da escola. Fazer isso, para Buber, não deve ter sido fácil porque, naquela época, as escolas e as punições escolares eram extremamente severas. Ao escolher se calar e não delatar os colegas, o jovem Buber teve que lidar com a pressão entre fazer o que achava correto ou fazer o que diziam as normas e as “autoridades”. O impacto desse momento foi tão grande na existência do jovem que fez com que ele desmaiasse.

O posicionamento do jovem Buber, de não se submeter às regras que não condiziam com seus valores interiores, já mostra a forma responsável com a qual ele encarava as situações a ele dirigidas, posto que ele sabia que, se delatasse os colegas, eles sofreriam duras represálias. Em suas obras, Buber afirma que cada uma das imprevisíveis situações de nosso cotidiano corresponde às palavras de Deus dirigidas a nós. Diante disso ele nos diz de sua atitude:

Eu formulo minha resposta ao realizar, entre as ações possíveis, aquela que parece ao meu entendimento devotado ser a ação certa. Com a minha escolha, decisão e ação [...]. Eu respondo à palavra, ainda que insuficientemente, mas com legitimidade; eu respondo pela minha hora

(BUBER, 2014, p. 114, grifo nosso).

Podemos dizer que, mesmo o jovem Buber, não tendo compreensão consciente17 das palavras que lhe foram dirigidas à época, ele respondeu ao momento da forma que achou mais correta. Essa é mais uma vivência que nos ajuda a compreender que a ação do homem no mundo, seja ela política, religiosa, etc., pode e deve ser lastreada pela responsabilidade e pelo comprometimento do indivíduo singular; o que, no caso do jovem Buber, foi evidenciado pela forma autêntica com a qual ele respondeu ao diretor (mesmo sabendo que isso implicava um conflito direto com a instituição e com sua figura de autoridade). Esse exemplo é importante porque nos ajuda a desvelar essas outras lógicas que regem as temáticas da religião e da política – e por que não dizer da vida.

A conversão religiosa: do êxtase religioso à concretude de cada hora vivida

No principiar de sua vida adulta, Buber ainda seguia alguns rituais místicos, os quais, naquela época, ele acreditava que poderiam conectá-lo à esfera religiosa. Em suas palavras, “A ‘experiência religiosa’ era a experiência de uma alteridade que não intervinha no contexto da vida” (BUBER, 1991, p. 42), ou seja, o religioso era restrito a certos momentos extraordinários que não faziam parte da vida cotidiana.

Certa vez, após vivenciar horas de êxtase místico, Buber recebeu, em sua casa, um jovem chamado Méhé. Esse jovem, assim como tantos outros, foi à casa de Buber conversar com o mesmo e, assim como outros jovens, também foi recebido com a mesma cordialidade e educação característicos de Buber. Vale ressaltar que, na época dessa visita, a Primeira Guerra Mundial estava começando, e a Alemanha estava recrutando jovens alemães (entre eles, os judeus) para lutar em suas frentes. Isso fez com que os jovens judeus enfrentassem uma questão importante em sua vida: aderir ou não aos valores do então nacionalismo alemão. Foi dentro desse contexto que Buber recebeu Méhé e não foi capaz de perceber as sutilezas que o jovem trazia.

Tempos depois, Buber soube que aquele jovem tinha morrido na guerra e foi então que percebeu que aquela visita não era uma visita comum e que subjazia à conversa uma importante tomada de decisão. Foi partindo desse evento que Buber se questionou: “O que esperamos quando estamos desesperados e, mesmo assim, nos dirigimos a uma pessoa? Talvez uma presença através da qual nos é dito que o sentido todavia existe” (BUBER, 1991, p. 43). Esse momento foi decisivo na vida de Buber, uma vez que ele deixou de entender o religioso como algo externo ao mundo (os êxtases religiosos) e passou a compreendê-lo como presença humana no momento presente, como possibilidade de proferir o par de palavras princípio Eu-Tu, como responsabilidade de um Eu para com um Tu. Assim, a partir do que aconteceu com Méhé, Buber fez sua conversão e afirmou:

Desde então eu abandonei aquele “religioso” que não é nada mais que exceção, retirada, saída, êxtase; ou ele me abandonou. Eu não possuo nada além do cotidiano, do qual eu nunca sou retirado. O mistério não se abre mais, ele se subtraiu ou fixou domicílio aqui, onde tudo acontece como aconteceu. Eu não conheço mais nenhuma plenitude além daquela de cada hora mortal, de exigência e responsabilidade. Longe de estar à altura dela, eu sei, porém, que sou solicitado pela exigência e posso responder à responsabilidade, e sei quem fala e quem exige resposta. Muito mais eu não sei. Se isto é religião, então ela é simplesmente tudo, o simples todo vivido na sua possibilidade do diálogo

(BUBER, 1991, p. 45).

É entendendo cada momento como uma possibilidade de resposta autêntica, como uma possibilidade de concretização divina de nossa existência que Buber diz ser a religião o todo em sua possibilidade de diálogo – e aqui a ênfase do filósofo austríaco é para a responsabilidade dele diante do mundo concreto que o cerca. Assim, a relação Eu-Tu é expressão de um encontro entre dois indivíduos que estão atentos às interpelações daquele outro ser que está diante dele.

A noção de religiosidade que depreendemos a partir desse evento nos leva à essência dialógica que acompanha a vida: o tempo todo estamos imersos em contextos que nos falam e que nos exigem uma resposta; o tempo todo podemos dedicar nossa atenção a esses contextos (sejam eles situações, seres ou coisas) e a respondê-los da forma mais singular possível. Por isso é que a noção de “presença” é tão cara à filosofia buberiana, porque partindo da sua “não-presença” diante de Méhé, Buber pôde compreender, de forma funesta, que a presença é a absoluta disponibilidade ante um outro ser.

Esse episódio da vida de Buber condensa, em nosso entendimento, a lógica ética da responsabilidade e do comprometimento inerente a todos os indivíduos, em todos os momentos de sua vida. A afirmação pode soar forte, mas a filosofia buberiana nos aponta que nossa existência não pode ser concebidas fora de um contexto relacional (todas as nossas ações têm alguma repercussão na vida dos outros; o apontamento de Buber é que devemos nos responsabilizar por essas repercussões).Influenciado pelo hassidismo, mas principalmente, pelos aprendizados que teve ao longo de sua vida, Buber quer nos dizer que o tempo todo somos interpelados pelo mundo e que, por isso, somos responsáveis pelas respostas que damos ou que não damos. Não há como fugir dessa responsabilidade. Assim, somos seres-no-mundo inexoravelmente conectados a uma concretude cotidiana (e a todas as consequências que derivam dessa relação); cada qual com seu caminho particular.

Considerações finais

Na introdução do presente artigo contextualizamos uma ideia que se vê difundida em nossa sociedade, a qual afirma que o comportamento humano pode ser explicado essencialmente pela busca da satisfação dos interesses próprios ou da maioria – argumento de ordem utilitária. Nossa intenção, a partir dessa constatação, foi a de ressaltar uma outra dimensão da ação humana, sendo essa baseada em elementos mais sutis de nossa existência. Assim, apoiamo-nos na vida e na obra do filósofo Martin Buber para desvelarmos outras faces de compreensão da vida (mais especificamente da política e da religião) que estão vinculadas a uma compreensão ética.

Dentro desse contexto, apresentamos um pouco do pensamento e da biografia de Buber, não como um modelo ou um herói, mas como uma pessoa que, mesmo tendo sido educado dentro de uma perspectiva religiosa ortodoxa (judaísmo); que, mesmo tendo vivido três grandes guerras, não sucumbiu diante das atrocidades e nem se fechou dentro dos rituais e dos dogmas da religião à qual foi inserido desde criança. Pelo contrário, ele enfrentou a realidade partindo de sua autenticidade, se contrapôs aos conteúdos de fé transmitidos pela religião na qual foi criado e não se curvou diante das adversidades impostas por aqueles que pensavam diferente dele (incluindo nesse grupo as diversas “autoridades” religiosas e sociais que tinham visões de mundo diferentes).

A partir de todos os horizontes vislumbrados neste artigo, achamos importante revisitar algumas das principais contribuições que pudemos ter acesso para refletirmos sobre as temáticas da política e da religião. A primeira delas é sobre o ser humano e sobre sua condição de ser relacional. Conforme Buber, o homem é um ser que existe-no-mundo, sempre em relação com outro ser, coisa ou situação – noção que nos faz compreender, inicialmente, que o homem pode estabelecer dois tipos de relação com o mundo (o Eu-Tu e o Eu-Isso). Dentro da relação em que se encontra com o mundo, o homem pode responder a partir do Eu-Isso e, assim, pode sucumbir a uma ação movida pela lógica utilitária. Contudo, quando ele responde a partir do Eu-Tu, ele nunca poderá estar movido por essa lógica, uma vez que ali está presente todo o ser do homem sem reservas, predicados ou premeditações. O que acontece numa relação Eu-Tu é algo que enseja um movimento de profunda atualização dos seres que se encontram em relação.

Partindo dessa noção relacional, Buber nos apresenta outro elemento importante a ser considerado: a responsabilidade que acompanha o homem que se vê interpelado pelo mundo que o cerca. Para esse filósofo, cabe ao homem responder de forma mais autêntica às diversas demandas que lhe surjam durante sua vida. A exemplo dessa responsabilidade, da importância da resposta autêntica, destacamos alguns eventos de sua própria vida: já quando criança, Buber vivenciou uma situação de conflito ao ser escolhido pelo diretor da escola para delatar seus colegas que estavam fazendo brincadeiras. O jovem Buber sabia que se os delatasse eles receberiam um castigo severo, mas também sabia que negar um pedido do diretor da escola implicava em um ato de desobediência que seria mal visto. Quando a situação o interpelou, Buber foi fiel aos seus princípios e silenciou. Outro evento de sua vida foi o afastamento dele em relação ao movimento sionista, uma vez que o movimento caminhava para uma direção que Buber entendia que não contribuiria para a renovação particular de cada judeu (por isso, sua resposta autêntica foi o afastamento).

Por fim, o último evento que destacamos de sua vida aconteceu como um aprendizado a partir de uma tragédia: Buber tinha recebido um jovem judeu (Méhé) para conversar com ele e para orientá-lo em questões triviais – assim achava Buber. Acontece que o jovem Méhé não expressou com palavras algo que muito provavelmente se passava em seu interior: ir ou não para a guerra? Buber soube depois que Méhé havia morrido na guerra e só então percebeu que ele próprio não estava presente quando de seu encontro com Méhé; o próprio Buber reconhece que falhou com o jovem, que falhou em sua responsabilidade.

Para Buber, a responsabilidade humana está interligada ao mundo concreto que o cerca. E é aqui que a noção de religiosidade do referido filósofo nos lega um importante aprendizado: vivemos imersos em contextos que nos falam e que nos exigem uma resposta; e temos a oportunidade, o tempo todo, de dedicar nossa atenção a esses contextos (sejam eles situações, seres ou coisas) e a respondê-los da forma mais singular possível, movidos por uma ética da responsabilidade.

A partir dessas reflexões podemos dizer ainda que a política e a religião, quando concebidas como expressões da ação do homem-no-mundo, devem ser vistas como responsabilidades deste homem singular. Não queremos, com isso, dizer que os condicionamentos externos não influenciam o homem na resposta que ele dá ao mundo, mas queremos enfatizar que a dualidade da existência humana (Eu-Tu/Eu-Isso) permite ao homem responder a partir de todo o seu ser ou apenas com fragmentos dele.

Reconheçamos nossas culpas na enfermização de nossa sociedade, não para ficarmos remoendo autocomiserações inúteis ou para, comodamente, abraçarmos a desistência. Se não quisermos nos tornar cínicos históricos, aceitemos as responsabilidades pessoais e coletivas de reconstruir um contexto social [...]

(MORAIS, 2003, p. 15-16).

1O utilitarismo caracteriza-se pela articulação de uma proposta positiva – somente os sujeitos pertinentes da ação são os indivíduos que procuram maximizar racionalmente a satisfação de seus próprios interesses ou preferências – e de uma proposta normativa: é justo (bom, bem, certo) aquilo que concorre para a maximização do bem-estar do maior número possível de sujeitos (CAILLÉ, 2002, p. 14).

2Atentamos para o fato de que a modernidade foi reduzida à lógica utilitária. Nessa direção, D’Angelo (2006) afirma que, na modernidade, “a significação de cada coisa passa a ser fixada pelo preço”. Contudo, apesar da redução da modernidade a essa lógica, sabemos que isso não caracteriza sua totalidade. Pois ideias valorosas, humanamente falando – como a boa natureza do homem de Rousseau ou o imperativo categórico de Kant – datam desse período.

3Para um melhor detalhamento desse assunto, conferir Lira et al. (2013).

4Sionismo é um movimento que defende o direito do povo judeu de se fixar na região (Jerusalém) dos seus ancestrais bíblicos.

5O hassidismo é uma vertente menos ortodoxa do judaísmo que surgiu na Polônia, no século XVIII.

6Gershom Scholem é um dos maiores críticos de Buber.

7Essa palavra francesa tem como um dos seus significados o termo obra.

8Tal afirmação implica uma contraposição às leis judaico-ortodoxas.

9Newton Aquiles Von Zuben é um dos mais importantes tradutores de Buber aqui no Brasil.

10As diásporas do povo judeu correspondem aos vários momentos em que esse povo foi expulso por grandes impérios de suas terras e obrigado a perambular pelo mundo se fixando em outros lugares.

11Em alguns autores, o termo é grafado hassid e, em outros, hassidim. Os hassidim são os que têm como mestre os líderes do hassidismo. Como afirmou Buber (1967, p. 20), “[...] os hassidim, os devotos, ou, mais corretamente, os fiéis à aliança [...]”.

12Em alguns autores o termo é grafado tzadik em outros tzadikim. Os tzadikim são líderes do hassidismo, e por sua vez são os mestres dos hassidim. “Os Tzadikim, termo que geralmente se traduz por ‘os Justos’, mas que significa os que mostraram sua justeza, os que deram à prova [...]” (BUBER, 1967, p. 20).

13Texto que contém os mandamentos que devem ser seguidos pelos judeus.

14Antes de explicitar o que significa antissemitismo, achamos válido esclarecer que são chamados de Semitas vários povos da antiguidade (arameus, assírios, babilônios, sírios, hebreus, fenícios e caldeus) que possuem as mesmas origens culturais. Vale ressaltar que essa palavra é oriunda de um termo do livro Gênesis, que se refere à linhagem de descendentes de Sem, filho de Noé. Dentro desses horizontes, podemos dizer que antissemitismos são ações preconceituosas realizadas contra os judeus. Esse termo “tem sido usado para designar, de forma genérica, as manifestações de hostilidade contra judeus desde os tempos greco-romanos até os dias de hoje. (SORJ, 2007, p. 1, Antissemitismo na Europa hoje).

15Na França, um homem judeu havia sido preso injustamente e o Estado e a Igreja haviam se unido para realizar tal ato, sendo o mesmo denunciado pelo escritor Émile Zola (FRIEDMAN, 1993, p. 36).

16Na Rússia, existiam várias medidas contra os semitas, como formas de expulsão, que eram tomadas para fazer com que os judeus de lá migrassem para a Europa ocidental e para a América (FRIEDMAN, 1993, p. 36).

17Em nosso entendimento, o jovem Buber tinha alguma noção de que algo o exigia em sua inteireza, mas não era algo sobre o que o jovem tivesse refletido.

Referências

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Recebido: 31 de Dezembro de 2020; Aceito: 03 de Março de 2021

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