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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 01-Maio-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021045 

DOSSIÊ: RELIGIÃO E POLÍTICA: PERSPECTIVAS, TRADIÇÕES E DESAFIOS

Religião e condição humana: uma leitura comparada entre Ludwig Feuerbach e Georg Simmel

Religion and human condition a comparative reading between Ludwig Feuerbach and Georg Simmel

Adriana Veríssimo Serrão* 
http://orcid.org/0000-0001-7452-4032

*Professora-Associada com agregação ao Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa, onde realizou o Mestrado sobre a Estética de Kant (1985) e o Doutoramento sobre a Antropologia de Ludwig Feuerbach (1996). É diretora, desde 2012, da revista Philosophica (Departamento e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa). Presidente, desde 1997, do Conselho Científico da Internationale Gesellschaft der FeuerbachForscher (Berlim, Münster). E-mail: adrianaserrao@letras.ulisboa.pt


Resumo

O presente artigo aborda, em leitura comparada, alguns aspectos centrais da filosofia da religião de Ludwig Feuerbach e de Georg Simmel. Para além das diferentes orientações filosóficas, aproxima-os uma perspectiva genética que reconduz as religiões historicamente instituídas à sua fonte na subjetividade. Na origem da religião estão a fé viva (Feuerbach) e a religiosidade (Simmel), expressões da experiência vivida que incluem dimensões não intelectuais, como o sentimento e a emoção. Ao aceder a zonas não conceptualizáveis do ser humano, a filosofia da religião trava estreitas articulações com a antropologia, explicitamente defendidas por Feuerbach e subjacentes em Simmel. Nos três primeiros pontos, o artigo analisa os desenvolvimentos do método regressivo que conduz da religião até o núcleo da religiosidade. Nos pontos finais, acentua a divergências entre as duas visões de mundo, sendo que Simmel defende a assunção de um núcleo metafísico na alma humana, e Feuerbach aponta à transformação dos impulsos religiosos em realização intersubjetiva e comunitária da humanidade.

Palavras-chave Ludwig Feuerbach; Georg Simmel; Religião; Sentimento; Antropologia

Abstract

This article discusses in comparative reading some of the main aspects of the philosophy of religion by Ludwig Feuerbach and Georg Simmel. Even though the different philosophical orientations, a genetic perspective brings the two philosophers to search in subjectivity the source of historically instituted religions. At the origin of religion are the living faith (Feuerbach) and the religiosity (Simmel), expressions of lived experience that include non-intellectual dimensions, such as feeling and emotion. When accessing non-conceptual areas of the human being, the philosophy of religion has close links with anthropology, explicitly sustained in Feuerbach, underlying in Simmel. In the first three points, the article analyzes the developments of the regressive method that leads from religion to the core of religiosity. In the final points, it accentuates the divergences between two worldviews, Simmel defending the assumption of a metaphysical nucleus in the human soul and Feuerbach pointing to the transformation of the religious impulses into the intersubjective realization of Humanity.

Keywords Ludwig Feuerbach; Georg Simmel; Religion; Feeling; Anthropology

1 O enigma da religião: dois percursos filosóficos

Considerando a amplitude das reflexões que Feuerbach e Simmel dedicam ao fenômeno da religião, não podem deixar de surpreender significativas afinidades e a atmosfera de consonância que aproxima os dois pensadores. Cientes da complexidade desse fenômeno omnipresente na história da humanidade, procuram captar o seu significado mais intrínseco, separando a religião, enquanto tal, da pluralidade das religiões instituídas, bem como das bases doutrinárias e dogmáticas com que tantas vezes se vê confundida. As distinções propedêuticas recorrentes, nas respectivas obras, – entre religião e teologia, entre fé viva e fé morta (em Feuerbach); entre religiosidade e religião (em Simmel) – são cruciais do ponto de vista metodológico e circunscrevem o da filosofia da religião, identificando um núcleo originário que tem a sua sede na subjetividade humana. A recondução à origem permite aceder a fenômenos que despontam e se organizam no seio da experiência vital, alimentados por uma tensão e por um dinamismo a que devem o seu surgimento e transformações, mas também o seu esgotamento. Manifestações tanto mais significantes quanto nelas é o próprio humano, o seu ser e a sua condição de existência – e não a referência ao mundo ou a qualquer entidade transcendente – que está, em última instância, implicado. Manifestações tanto mais complexas quanto nelas se conjuga uma pluralidade de fatores, sendo, por isso, insuscetíveis de uma explicação uniforme ou concludente.

Uma linha de continuidade ao longo das respectivas obras comprova a persistência de uma temática marcada por sucessivos aprofundamentos. Mas ainda mais do que o interesse por um tema, em ambos os pensadores, a religião ganha o estatuto de um problema filosófico. Não sendo óbvio mas enigmático o que a religião é, qualquer tentativa de resolução é precedida de formulação de um questionamento e a elucidação de um método. A filosofia é aquele exercício de pensamento que elucida os problemas que previamente colocou. Problema e resolução coincidem.

É nos escritos de 1838 e 1839 que se encontram documentadas as primeiras intuições de Feuerbach acerca da dimensão prática e vital da fé, pois “onde uma crença é uma verdade e não meramente uma fantasia, aí ela é [...] uma verdade prática, viva.” Pelo contrário, “quando a religião já não satisfaz o homem com as representações e relações que lhe são próprias, aí já não existe. A religião basta-se a si mesma e só há religião onde ela se basta a si mesma, onde é sagrada em si mesma e está satisfeita consigo mesma” (“Para a crítica da filosofia positiva”, GW, v. 8, p. 271, 185).1

Mais explícita é a interpretação dos acontecimentos miraculosos no ensaio sobre o milagre. A crença em milagres mais não seria do que a confiança humana no poder dos seus próprios desejos, que graças à imaginação vê concretizarem-se como acontecimentos observáveis como se, de facto, reais se tratasse. Uma certa propensão psicológica estaria na raiz da conversão da imanência em transcendência, a qual poderia, por sua vez, ser reconduzida a um imenso e continuado milagre. O inteiro universo das representações transcendentes não só acontece no e pelo ser humano, mas seria, mais ainda, expressão de uma atividade do seu mundo interior. “Os milagres são fenômenos psicológicos, ou melhor, antropológicos; têm o seu fundamento no homem.” Daí o enunciado final deste escrito, segundo o qual “o milagre contradiz a razão [...]. Mas não contradiz o homem em geral”. (“Sobre o milagre”, GW, v. 8, p. 320).

A separação entre a essência autêntica (antropológica) e a essência inautêntica (teológica) da religião estrutura a divisão, em duas partes, de A essência do cristianismo, de 1841. A primeira leva a cabo uma demorada inquirição antropológica em planos cruzados e não coincidentes. A antropologia implícita decorre da tradução dos predicados divinos em predicados humanos, segundo o princípio da inversão do sujeito: ler homem onde a religião diz Deus; em cada ato de tradução do divino enriquece-se o conhecimento do humano, que assim se vê desdobrado em inúmeras qualidades. A antropologia latente, por outro lado, irá desvendando múltiplas componentes afetivas, como o sentimento, a emoção, a imaginação. Em todo caso, há que sublinhar que a tese central do livro, sustentada logo na Introdução, da religião como um modo de conhecimento de si, se bem que iludido e destituído de consciência, é conduzida à luz de uma visão do humano (uma antropologia explícita) em que a atividade da razão e a consciência de si detêm a função principal.

Ao longo dos anos 40, nas Teses provisórias para a reforma da filosofia e nos Princípios da filosofia do futuro, já no contexto da ontologia do ser sensível e dos estudos sobre Lutero, o primado da consciência será substituído pelo primado da existência, e a racionalidade ampliada a ponto de integrar a passividade e as dimensões da “carne e do sangue” numa visão unitária e não hierarquizada do “homem integral”. Radicalizado o pathos como potência transformadora, a importância da religião no coração dos homens será valorizada, e a nova filosofia proclamada como “a ideia realizada – a verdade do cristianismo” (Teses provisórias para a reforma da filosofia, GW, v. 9, p. 263).

No horizonte englobante de uma filosofia da natureza, a fundamentação dos escritos tardios, como A essência da religião (1846) e as Preleções sobre a essência da religião (1851), acentuará, com traços marcadamente existenciais, o sentimento de dependência, a finitude e a posição ambivalente do ser no mundo que é também um ser da e na natureza.

O percurso de Simmel é igualmente traçado pela continuidade e pelo retomar de uma interrogação que permanece constante sob sucessivos ângulos de abordagem, que, numa primeira fase, incluem a sociologia, a história e a psicologia e, posteriormente, a filosofia da cultura e a metafísica. Ainda no virar de século, quando a formação em ambiente neo-kantiano o leva a privilegiar questões de teoria do conhecimento e a articular a filosofia com as nascentes ciências humanas, está já presente que a religião assenta num plano pré-religioso, isto é, que há embriões de religiosidade antes da formação das religiões como sectores independentes. Na “Contribuição para a sociologia da religião” (1898), depois de aludir ao véu enigmático que envolve a essência e a origem da religião, afirma:

Podemos atingir uma percepção clara acerca do surgimento e da natureza da religião se descobrirmos certas qualidades religiosas em inúmeras relações e interesses que não são religiosos e que, à medida que ganham autonomia e coesão, passam a tornar-se “religião”

(R, v. 2/2, p. 2).

As referidas qualidades seriam conteúdos psíquicos sem qualquer correspondência perceptiva – tais como a obediência (a um chefe) e a unidade (a coesão do grupo), condições da paz interna –, que remetem histórico-socialmente para épocas primitivas e emergem das inter-relações e das formas de associação entre os membros de uma comunidade.

Em chave psicológica, vão expressões da “Contribuição para a epistemologia da religião”, de 1902, como: “A religião, enquanto tal, é um produto da consciência humana, e nada mais” (R, v. 2/2, p. 19). Essa “atitude subjetiva dos seres humanos” ou “estado da alma humana” consistiria em “um emaranhado de sentimentos elementares distintos” uns dos outros, mas aqui reunidos com intencionalidade própria; nesse único plano que se nos torna acessível estaria também o único campo de trabalho disponível para o filósofo. Com a ênfase na tonalidade emocional de uma experiência mental, Simmel, nesse ponto tal como Feuerbach, desloca a fundação da religião da revelação de Deus como entidade inaugural para uma disposição interior; confere, porém, a essa específica configuração psíquica de onde brotam organicamente diferentes conteúdos um estatuto de irredutibilidade, que não só não carece de legitimação pela teoria quanto a põe ao abrigo da dissolução racionalista proposta por Feuerbach (Contribuição para a epistemologia da religião, R, v. 2/2, p. 19-22).

O pensamento da forma – característico de toda a obra simmeliana – é retomado no âmbito da filosofia da cultura, elegendo a religião como formação cultural regida por leis próprias que a distinguem da arte, da moral, da ciência, da filosofia. Em estádios de desenvolvimento avançado e já autonomizados mais fácil se torna surpreender a efectivação das energias rudimentares ainda informes e indistintas, tornando-se, também, fecundos cruzamentos vários, designadamente, entre religião, estilos artísticos e categorias estéticas (O cristianismo e a arte, de 1907; A arte religiosa de Rembrandt, de 1914).

Para além – ou aquém – de todas as conformações sociais e histórico-culturais, a filosofia da vida, que ilustra o último pensamento de Simmel, abordará a dimensão metafísica da alma numa série de escritos, como Da salvação da alma (1903) e A religião e os opostos da vida (1904). Em A Religião (1906, ampliada em 1912, encontra-se a exposição muito ampla da sequência que vai da transformação dos afetos no seio do grupo social até a religião objectiva, percurso esse que exige sempre uma construção posterior por parte do filósofo. Fica bem claro nesse escrito que a sociologia simmeliana não deve ser confundida com uma ciência dos fatos sociais compactos, porque a sociedade é um plano de objectivação da vida; a sociologia da religião não é, por isso, uma alternativa à filosofia da vida, mas uma perspectiva complementar. Filosofia e sociologia visam ambas à compreensão da totalidade e dos mecanismos de diferenciação das partes no seu seio.

2 Da génese da religião: o movimento regressivo

Fora de todo o compromisso confessional, o filósofo adocta uma posição à partida neutral segundo a qual, por princípio, todas as religiões se equivalem. Daqui decorrem duas implicações complementares:

a) Trata-se, sempre, de um fenómeno sintético, não dedutível analiticamente de um primeiro termo; de uma correlação móvel e oscilante entre o lado subjectivo (faculdades, na terminologia feuerbachiana; energias, na terminologia simmeliana) e o lado objectivo (os conteúdos da consciência fixados em entidades e representações). Feuerbach falará do duplo movimento circulatório de sístole e diástole que vai do crente ao seu Deus para, de novo, regressar a si (A essência do cristianismo, GW, v. 5, p. 73) num andamento desnivelado regido pela lei do “tanto mais, quanto menos”: um homem pobre tem como contrapartida um Deus rico, e vice-versa. Tanto maior o despojamento do ser próprio (alienação), tanto maior a necessidade de reconforto (compensação imaginária).

Simmel usa a imagem da escala para ilustrar a condição religiosa que se desdobra em duas direcções divergentes, tendendo, preferencialmente, à conceptualização ou à intensificação afectiva: “Na direcção intelectual, ela resulta em imagens mentais teóricas sobre a existência dos factos da salvação; na direção dos estados de espírito, ela resulta em emoção.” (Contribuição para a epistemologia da religião, R, v., 2/2, p. 28). A escala do fenômeno religioso consente gradações e dosagens muito diversas consoante a proporção relativa entre sujeito e objecto. Tanto pode a afirmação da existência de Deus (artigos de fé ou teses filosóficas) ser destituída de devoção, quanto a religiosidade pode espraiar-se por realidades humanas, interpessoais ou naturais, imanentes e não transcendentes. Qualquer religião tem, em última instância, a sua condição de possibilidade na vida interior. Essa dualidade impede qualquer redução do problema a um esquema lógico ou a um determinismo segundo causas e efeitos. A explicitação possível será de tipo hermenêutico e fenomenológico, visando à decifração de instâncias da vida interior; a religião deve ser compreendida a partir de procedimentos primários e mecanismos profundos da subjectividade e da psicologia humanas.

b) Acresce que não sendo de ordem intelectual, nem resultado da escolha voluntária, mas uma actividade psíquica que se move sem contornos nítidos, a fé genuína (Feuerbach) ou a religiosidade (Simmel), são de ordem vivencial e repousam em modos sensíveis e sentimentais. Nos capítulos iniciais de A essência do cristianismo, Feuerbach mostra que as concepções de Deus como ser pensante, primeiro princípio e criador do mundo ou como instituidor e garantidor da ordem moral são insuficientes para satisfazer o crente que busca, no divino, um ser próximo, um Tu, que responda aos seus anseios e com quem estabelece relação.

Simmel explicita, detalhadamente, os diferentes significados que poderão caber no conceito de fé. Uma crença teórica faz ainda parte da esfera do conhecimento ao cobrir níveis de menor certeza, colocando hipóteses àquelas áreas do domínio empírico que carecem de comprovação factual. Tal como a fé prática, de que são exemplo os postulados kantianos, que complementam a ordem moral, ou ainda as conjecturas metafísicas que estabelecem as condições necessárias para a compreensão unitária do mundo para além do aparecer fenoménico. A fé religiosa, por sua vez, impõe, ela própria, certezas, traz de antemão, consigo, sem necessitar de mediações ou justificações, a certificação da verdade das suas convições. Por essa via, a alma, pura energia expansiva ainda sem qualquer referência particular, cria as suas próprias figuras sem precisar de sustentação em elementos empíricos (A Religião, R, v. 1/2, p. 46-53).

É nesse ponto evidente como o tópico da fides creatrix que assume diferentes matizes. Em Feuerbach, ela é geradora de seres semelhantes, profusos de atributos, se bem que maximizados em grau hiperbólico. Assim sucede que, no caso dos deuses pessoais, sobretudo no Deus-homem cristão, a prevalência recai nas qualidades, no conjunto de imagens de que é investido. Em contraste com o Deus teológico e filosófico em que a existência per se do sujeito precede os predicados e os nomes, podendo, mesmo, prescindir deles como na teologia negativa, um Deus religioso é a soma dos seus atributos. O amor, a justiça, a misericórdia, por exemplo, são considerados divinos não por pertencerem a um Deus determinado, mas são-lhe, pelo contrário, atribuídos por serem considerados absolutos: o divino significa com maior propriedade o divinizado. Por espelhar o mundo sensível, o além é a duplicação do aquém.

Em Simmel, a energia criadora lança-se para o diferente, o desconhecido, como que transpondo as amarras das ocorrências, dos incontáveis nexos causais destituídos de teleologia evidente, para se lançar para o absoluto, o infinito, na demanda de um ponto de apoio para o eu que dele carece. Dirigindo-se para fora de si sem um termo determinado, abandonando as sequências conhecidas e produzindo um novo, acompanha-o um estado de enriquecimento do sujeito no seu interior (A Religião, R, v. 1/2, p. 47-48). Será, portanto, superficial a tese da projecção ou transposição da imagem do homem na imagem de Deus, que Simmel refuta veementemente como superficialidade da visão iluminista (Um problema de filosofia da religião, R, v. 2/2, p. 43-44).

3 Explicitação: dois modos de interrogar

Pergunta Feuerbach: “O que é a religião?”

A hermenêutica da religião, enquanto é fenomenologia da experiência crente, não pode escapar de uma inevitável circularidade entre interior e exterior: o filósofo parte de formas manifestas para o seu plano recôndito; e as confirma, acompanhando-as já desenvolvidas e multiplicadas com diferentes expressões. Em socorro a essa dificuldade, vem a dimensão genética, mas revestida em Feuerbach, de uma intenção crítica; o método “genético-crítico”, um trabalho sobre as significações, que decompõe analiticamente as representações religiosas, distingue-as nos aspectos subjectivo e objectivo, e avalia o respectivo valor em confronto com a realidade dada aos sentidos (A essência do cristianismo, GW, v. 5, p. 105).

Feuerbach identifica a atitude religiosa como uma orientação psicológica da essência humana, um conjunto de capacidades constitutivas da humanidade do homem em geral. Universal, presente em todos os indivíduos, revela-se um complexo triádico de forças fundamentais – a razão, a vontade e o coração – de que o homem individual se torna consciente ao pensar, ao agir e ao amar. Não sendo substancial, mas potencial, não predetermina inteiramente o ser de cada um. E não sendo nenhum indivíduo, enquanto tal, uma encarnação da essência, ele só se humaniza ao ultrapassar a sua esfera restrita, pessoal e íntima, constituindo, precisamente, essa saída de si o horizonte da vida plena. Humanização implica ampliação e expansão conjuntamente exercida no seio do género humano.

Ora, na atitude religiosa, essas faculdades que compõem a essência (a humanidade) do homem) são desviadas do seu curso naturalmente dirigido para a exterioridade sensível e concentradas na interioridade: o crente realiza, no seu interior, pleno de representações e entidades transcendentes, a necessidade vital que o homem racional e empírico realiza fora de si, na relação mundana e na convivência interpessoal. Não se trata, portanto, de contrapor diferentes tipos de homem, nem de uma alternativa entre faculdades (por exemplo, entre a razão e o sentimento): em rigor, não existe uma faculdade especificamente religiosa, mas duas orientações globais da existência: pela sensibilidade (racionalidade) ou pelo sentimento.

A via sensível abre-se ao exterior e busca, num mundo que celebra, como ontologicamente rico e pleno, a satisfação das aspirações. A via sentimental, pelo contrário, desliga-se do mundo que contraria os seus anseios, onde vê dificuldades e barreiras, e se fecha em si mesmo, recorrendo à imaginação e à criação de outros mundos para compensar o desconforto da finitude e impotência. Feuerbach evita, desse modo, introduzir cisões na unidade do gênero humano, essa que é uma das teses cruciais da sua visão universalista. Há, quando muito, um órgão mais disposto para o religioso: o ânimo (Gemüt), introvertido, egoísta e sonhador (A essência do cristianismo, GW, v. 5, p. 480-485). Também o homem religioso pretende obter resultados para os dois desejos fundamentais: a felicidade (a plenitude da vida) e a salvação (a prossecução indefinida da vida). Mas nos obtém perdendo os apoios na realidade e afastando-se dela, e substituindo com a criação de mundos supraterrenos o anseio de completude constitutivo da existência.

Pergunta Simmel: “Como é possível a religião?”

A inquirição sobre as condições de possibilidade é reiteradamente invocada e, por vezes, exemplificada em analogia com o surgimento de outros fenômenos culturais; tal como as obras de arte são precedidas de impulsos estéticos disseminados em diferentes esferas do comportamento, assim a religião parte de um estado do sentir íntimo. Em obras posteriores, falará de uma compreensão “a partir da raiz”: o movimento da vida no processo de se dar forma; um fenômeno “em estado nascente”, embrião que contém, ainda, indiferenciadas as potencialidades que se virão depois a desenvolver quando dotadas de certa autonomia. A origem não é, portanto, um início histórico nem um começo eterno de ordem metafísica, nem um axioma segundo uma lógica dedutiva ou demonstrativa. É como a fonte vivificadora, o jorrar espontâneo de produção diferenciada de formas, que têm de ser constantemente actualizado e reactivado (A Religião, R, v. 1/2, p. 26-27). “A religião, enquanto experiência espiritual, não é uma coisa pronta, mas sim um processo vital que cada alma deve produzir para si mesma a cada instante, não importando quão consistente seja o conteúdo tradicional” (Contribuição para a sociologia da religião, R, v. 2/2, p. 17).

Se Feuerbach enfatiza a cisão da consciência, do sujeito que se divide em “um outro eu em mim”, Simmel sublinha a unidade de opostos, logo, a reunificação do dividido que impele a totalidade da alma numa direção distinta do conhecimento e da moral. A religiosidade exprime uma coordenação de estados e energias que em outras situações de vida são sentidos separadamente, mas que aqui estão mesclados, fundidos numa atitude única, vivida em uníssono, sem se poderem de facto isolar nem reconhecer como isoláveis. Esse complexo de motivos, inclinações e afectos que não são em si mesmos religiosos define, quando conjugados, um peculiar valor da alma humana, uma forma sintética sui generis, que Simmel categoriza com traços vagamente kantianos.

Compõe-na uma mescla dúplice de humildade e de élan apaixonado; de renúncia e de pertença, de ligação ao princípio e de separação dele; de imediatez e de abstracção, e de estar em si e ao mesmo tempo fora de si.

Esse estado de alma dá ao conteúdo um alcance e uma forma específica de ser e de valor que só se pode descrever psicologicamente como um emaranhado de sentimentos elementares distintos, tais como: o eu, renunciando a si mesmo e ao mesmo tempo se reafirmando; um reservatório pleno de humildade e de impulso apaixonado; uma fusão íntima com o princípio supremo e uma separação ante ele; uma imediatez sensível e uma abstracção sensível transcendente de nossa imagem mental sobre esse princípio”

(Contribuição para a epistemologia da religião, R, v. 2/2, p. 21).

A religiosidade pode ser descrita como categoria ou forma a priori da consciência subjectiva, que reconduz esses afectos difusos, contraditórios quando tomados isoladamente, a uma síntese unificadora. Sendo uma forma, e não uma matéria, pode, por isso, dar colorido a qualquer conteúdo – humano ou transcendente, terreno ou supraterreno – sem ser determinada por ele. A alma religiosa renuncia a si como indivíduo, tornando-se membro de uma esfera comum onde se insere, mas sem nela se diluir enquanto é individualidade. De um estado da alma, sentimento de si indecomponível do qual não se tem conhecimento mas tão-só experiência própria, pode ampliar-se até ser a forma global da existência que envolve a totalidade da alma psíquica no seu inteiro processo de vida.

4 Implicações: a tensão entre religiosidade e religião

Perguntar se a religiosidade está contra a religião, ou se entre ambas existe sempre harmonia ou sempre conflito não obtém uma resposta simples dos dois pensadores.

Para Feuerbach a evolução histórica de uma religião – fá-lo longamente a propósito do cristianismo primitivo – comprova que a espontaneidade do momento inicial, a frescura dos primeiros tempos tende a perder-se, vindo a codificar-se como canónica e institucionalizar-se como doutrina. O curso da consciência religiosa colectiva – ao contrário do curso progressivo da filosofia – é declinante, como decorre das polémicas contra a irreligiosidade descrente do seu tempo ou das rivalidades entre religiões, foco de insanáveis cisões no género humano.

Mais grave ainda é o círculo quase sem saída em que cai inevitavelmente o homem crente, quando faz depender o seu ser de um Outro ser, que não é mais do que um produto do seu próprio desejo. A inconsciência da ordem de prioridades – a confusão entre produtor e produto, entre coisa real e imagem – gera o enfraquecimento e, em último grau, a clausura. Espontânea na sua origem, a fé verdadeira torna-se crescente ilusão, cisão de si e perda de essência quando se sobrepõe ao mundo terreno e esfuma o ser como mera aparência. A filosofia da religião tem, por isso, intenção crítica, mas também clínica: elabora um diagnóstico com função terapêutica, porque a alienação não é uma condenação irremediável, mas um estado doente que precisamente por via do esclarecimento se pode vir a restabelecer.

Também para Simmel a passagem da religiosidade à objectivação nas religiões instituídas acarreta o perigo comum a todas as formas culturais maduras: o da petrificação como algo de definitivo que anularia a mobilidade e o dinamismo do fluxo vital. O congelamento da forma que se desliga da seiva que a fez nascer e ganha a existência própria de uma entidade auto-suficiente é uma das facetas da condição humana na Modernidade, longamente analisada sob o tema da “tragédia da cultura” ou da divergência entre a cultura subjectiva e a cultura objectiva. A mutação das formas culturais, ao longo da História, reside na perpétua luta entre a vida – continuidade temporal e dinâmica expressiva – e a necessidade da fixação em limites diferenciados. Limites esses, que, inicialmente correspondentes ao fluxo subjectivo e adequados à formação individual, vêm a ganhar independência tornando-se sistemas fechados, estranhos e insignificantes aos indivíduos. “O problema da situação religiosa” (1911) e “O conflito da cultura moderna” (1918) descrevem essa tensão entre nascimento, morte e renascimento a propósito de uma tendência do seu tempo: a reacção contra a forma, e não apenas contra certas instituições determinadas, mas a recusa da forma em geral como um entrave ao seu expressar-se. O derradeiro esforço da vida para ser ela mesma encontrar-se-ia, no caso religioso, no misticismo, que transborda qualquer figura e não se deixa encerra em nenhuma divindade: a religiosidade sem religião (O conflito da cultura moderna, R, v. 2/2, p. 99-104).

Mas o que transparece da leitura dos seus ensaios é a tonalidade positiva: a religião como forma explicitada e desenvolvida clarifica o que o núcleo embrionário continha em estado nascente. Daí que a religiosidade feita religião possa oferecer uma cosmovisão coerente que dá sentido às contradições da vida, unifica as fracções esparsas do mundo e dota-as de uma coloração homogénea. Ao ligar o desunido, produz uma unificação dos opostos. Para mais, pacifica a alma do homem, participante de múltiplas instâncias supra-individuais nas quais, enquanto indivíduo sujeito à divisão do trabalho e ao anonimato, corre o risco de se perder.

A necessidade de completar a existência fragmentária; de reconciliar os conflitos dentro do indivíduo e entre os homens; de encontrar um ponto fixo em meio à instabilidade ao redor, uma justiça nas crueldades da vida e por detrás delas, uma unidade dentro e acima da multiplicidade desconcertante da vida e um objecto absoluto para onde dirigir nossa humildade e nosso desejo de felicidade – tudo isso nutre as ideias de transcendência...

(A Religião, R, v. 1/ 2, p. 26).

Se Feuerbach com o seu essencialismo fundado nos existenciais concretos – a encarnação no corpo, no sensível e na convivência – e acérrimo defensor da unidade do género humano, anunciava com optimismo um futuro emancipador para a Humanidade, Simmel, com algum pessimismo, afasta-se de qualquer universalismo, fosse ele fundado na natureza humana ou na razão. Sendo o homem um ser intermédio, uma ponte entre mundos, na confluência incerta de múltiplos domínios de inserção, a condição humana estará sempre individualmente caracterizada. A unificação convergente dos impulsos não se dá universalmente nem do mesmo modo, mas enraíza-se na vivência de cada um e na escolha do seu destino. Entre a total diversidade dos caminhos – a que a sua ética, fazendo apelo à arte de viver, chamará a lei individual – e qualquer ideia de unidade conceptual e abstractamente postulada desenham-se tipos gerais de personalidade – religiosos, artísticos, práticos, estéticos, racionalistas […] –, consoante a coordenação de todas as forças propulsoras num valor dominante.

A típica alma religiosa, que congrega certas qualidades do ser psicológico e um peculiar processo de condução do existir – procura a reconciliação total do eu e do mundo: do eu que busca o repouso (desprendido de conflitos internos) e do mundo (desprendido da concorrência de múltiplas acções em jogo). A ânsia pela totalidade é tarefa inacabada, mas que encontra a pacificação mais perfeita em Deus – unidade máxima da existência, ponto de apoio exterior e superior, e meta por excelência da fé, – quer como Deus pessoal do teísmo, que busca Deus no mundo, quer como panteísmo, a visão do mundo em Deus (A Religião, R, v. 1/ 2, p. 47 ss. e 77 ss.).

No estrato mais profundo da alma, metafísico, o intuito de salvação seria cumprido, não pela imortalidade substancial e permanente, mas pela completa libertação dos obstáculos. Eu e mundo deixariam de ser dois centros contrapostos, o eu penetrando o mundo e o mundo penetrando a alma numa harmonia que elimina a situação humana básica: a diferença e oposição entre sujeito e mundo (R, v. 1/2, p. 1-2). Mas essa interminável busca da continuidade entre alma e mundo através de um terceiro elemento dá-se neste mundo. Eleva-se acima da vida permanecendo na vida.

Situada no meio da vida, a religião se encontra nas relações mais variadas e contrastantes possíveis com os elementos vitais; mas ao mesmo tempo ela se eleva acima da vida e, agindo deste modo, em seus momentos mais sublimes, ela se eleva acima de si própria, na reconciliação de todos os conflitos em que se envolvera, enquanto um elemento da vida (A religião e os opostos da vida

(R, v. 2/2, p. 37).

Tudo se passa como se a alma, que está inserida na corrente da temporalidade, fosse como que impregnada, banhada pelo pressentimento de que esta vida se funda em algo que está para além dela, um “mais que vida” (Mehr als Leben), uma intuição destituída de revelação e figurada na imagem da Altura. Num pequeno ensaio, “Os Alpes” (1911), que nada tem aparentemente que ver com religião, Simmel descreve a aliança entre sentimento estético e sublimidade mística. A subida da montanha ilustra a escalada que sobe dos estratos inferiores dos vales onde tudo é relacional até aos cumes mais elevados de onde se intui, por fim, o desprendimento da incessante mobilidade e comparabilidade em que tudo está em acção recíproca, e se surpreende por instantes a quietude.

5 O sentimento religioso e a condição humana

Por não associar, como Feuerbach, qualquer estatuto de menoridade ou sinal de inverdade a essa apetência da alma que, ao se desconhecer, se constitui ilusoriamente como um Deus, Simmel sublinha, em sentido inverso, que a produção do divino provém não da carência mas da superabundância e exaltação de intensidades sempre dispersas nas demais actividades (A religião e os opostos da vida (R, v. 2/2, p. 37). Por isso, nunca se esgotaria nos objectos que cria. O desejo de plenitude excede as modalidades em que se concretiza. Simmel deixa em aberto a possibilidade, cuja compreensão estaria fora do campo da filosofia, de o sentimento religioso se originar num facto metafísico, não excluindo, deixando entre parênteses, que tenha um fundamento fora dele. Por isso, as raras referências que faz a Feuerbach visam denunciar esta ausência; circunscrito à antropologia terrena, Feuerbach teria esquecido a dimensão metafísica da pessoa.

A configuração psicológica especificamente humana pressupõe uma origem que não é, em si, produto dessa mesma configuração. O raciocínio de Feuerbach se desvia nesse ponto: Deus é simplesmente para ele um resultado do ser humano, o qual, diante das necessidades prementes, se expande para o infinito e busca auxílio no deus que ele criou. […] Mas ele deveria ter concluído: a dimensão metafísica da religião, e que transcende o indivíduo, está contida na essência religiosa do próprio ser humano”

(O problema da situação religiosa, R, v. 1/2, p. 14).

No entanto, num livro tardio, as Prelecções sobre a essência da religião, de 1851, Feuerbach inscreve o sentimento religioso nas profundezas do humano, não já por mera ausência de consciência (como em A essência do cristianismo), nem como antídoto à miséria e dor (nas Teses provisórias para a reforma da filosofia), mas como sentimento de dependência, manifestação dúplice de uma insuperável tensão entre o eu e o não-eu. O religioso nomearia o sentimento que brota da dependência sentida, quer de uma alteridade exterior (a Natureza), quer do fundo abissal que o homem, individualmente, transporta consigo, um inconsciente que convive com o consciente e torna impossível que o homem se conheça a si mesmo. Por essência, o ser humano traz em si a sua própria cisão, sente a fragilidade da existência e o seu carácter precário.

O homem situa-se com o seu eu ou consciência na margem de um abismo insondável, que não é porém senão a sua própria essência inconsciente que lhe aparece como uma essência estranha. O sentimento que se apodera do homem diante desse abismo e que irrompe nas exclamações: “Que sou? De onde venho? Para onde vou?” é o sentimento religioso, o sentimento de que eu nada sou sem um não-eu, que é de facto diferente de mim, mas está contudo intimamente ligado a mim, que é um outro ser e contudo a minha própria essência

(Prelecções sobre a essência da religião, GW, v. 6, p. 349).

Mas o homem não concebe nem suporta a sua própria profundidade e rasga por isso, a sua essência num eu sem nãoeu, a que chama Deus, e num não-eu sem eu, a que chama Natureza”

(Prelecções sobre a essência da religião, GW, v. 6, nota).

Numa tentativa de epílogo mais que imperfeito, talvez a imagem com que possamos ficar desta aproximação entre os dois filósofos decorra do modo como integram o religioso nas respectivas concepções de mundo.

Simmel, filósofo da vida – a corrente do acontecer onde tudo é fugidio – e pensador da individualidade, enfatiza o movimento centrífugo da individualidade que, aspirando à suspensão da relatividade, liga profundidade interior e exterioridade absoluta num olhar ascendente. Mas reconhece quão insuportável seria transformar esta união em novo ponto fixo, incorrendo num estaticismo estéril. No final de “O problema da situação religiosa” coloca a questão de saber se para os homens do futuro a “substância de Deu, do céu e dos ‘factos transcendentes’”, “todo o êxtase e rejeição, toda a justiça e misericórdia não serão mais encontrados nas altas dimensões acima da vida, mas nas camadas profundas do seu ser.” (R, v. 1/2, p. 19-20).

Feuerbach, filósofo da existência concreta, não radicaliza esse conflito insanável entre real e ideal, esse fundo sem fundo, frágil sustentação e marca da finitude de um humano que é locatário, e não proprietário da natureza –, mas procura reorientá-lo prospectivamente numa direcção de futuro histórico. Essa perspectiva é, diga-se de modo imagético, horizontal e não vertical, e resulta prática e politicamente condensada no tópico da “realização do céu na terra”. A filosofia do futuro como nova filosofia assumirá a condução da Humanidade como nova religião:

A velha filosofia tinha uma dupla verdade – a verdade para si mesma, que não se preocupava com o homem – a filosofia – e a verdade para o homema religião. A nova filosofia, pelo contrário, sendo a filosofia do homem, é também essencialmente a filosofia para o homem – e sem prejuízo da dignidade e autonomia da teoria, e mesmo no mais íntimo acordo com ela, tem essencialmente uma tendência prática, e prática no mais elevado sentido do termo; ela toma o lugar da religião, tem em si a essência da religião, é na verdade ela mesma religião

(Princípios da filosofia do futuro, GW, v. 9, p. 340).

O princípio “o homem é o Deus do homem” consagra o poder da cooperação interpessoal Eu e Tu, a única que pode cumprir sem ilusões fantasiosas na imanência das relações efectivas entre seres concretos o conteúdo desiderativo projectado no divino:

Só o género está em condições de suprimir e, ao mesmo tempo, de substituir a divindade, a religião. Não ter religião significa pensar apenas em si mesmo, ter religião pensar em outros. E esta religião é a única que permanecerá, pelo menos enquanto não houver sobre a terra um ser humano “único”; pois basta que tenhamos dois seres humanos, como homem e mulher, para termos já religião. Dois, diferença, é a origem da religião – o tu é o Deus do eu, pois eu não sou sem ti; eu dependo de ti; nenhum tu – nenhum eu.

(“Sobre a ‘Essência do Cristianismo’ em relação com o ‘Único e sua Propriedade’ de Stirner”, GW, v. 9, p. 429).

Os laços da cooperação, da solidariedade e do altruísmo instituem no seio da Humanidade comunidades inclusivas que reconheçam os direitos do indivíduo como ser integral mas ao mesmo tempo não-absoluto, pleno e ao mesmo tempo finito. O amor como relação equiparada e sem desníveis entre seres concretos, não o sentimentalismo emanante de um eu enclausurado e projectivo, é a figura por excelência da vitalidade do ser prático, verdadeira religação da Humanidade inteira e condição de possibilidade, quer do género, quer do indivíduo.

1A sigla GW se refere à edição crítica das obras de Feuerbach: Ludwig Feuerbach. Gesammelte Werke, hrsg. von Werner Schuffenhauer, Berlin, Akademie Verlag, 1967 ss. As traduções, feitas do original, são da minha autoria. Para os textos de Simmel, seguem-se as traduções em língua portuguesa constantes da antologia Religião. Ensaios, 2 v., ed. de Jorge Cláudio Ribeiro, com prefácio de Frédéric Vandenberghe e Leopoldo Waizbort, São Paulo: Olho d’Água, 2010 e 2011, com a sigla R. Os títulos completos dos escritos mencionados constam das referências bibliográficas.

Referências

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Recebido: 17 de Novembro de 2020; Aceito: 10 de Janeiro de 2021

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