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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022013 

ARTIGOS

Filosofia afro-brasileira como contribuição formativa para o ensino de filosofia

Afro-brazilian philosophy as a formative contribution to the teaching of philosophy

Antonio Filogenio de Paula Junior1 

1UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba. Graduado em Filosofia, mestre e doutor em Educação na área Filosofia da educação pesquisando temas relacionados as epistemologias descoloniais, teoria crítica, filosofia africana e afro-brasileira voltada para educação.


Resumo

Neste artigo apresentamos uma perspectiva de compreensão da história da filosofia, na qual é possível acessar outros modos de como essa história pode ser interpretada. Nessa perspectiva ocorre a desconstrução epistêmica eurocentrada de legitimação da ideia de um “milagre” grego que permite o surgimento da filosofia nessa região em detrimento a outros lugares. O pressuposto indicado é o da pluriversalidade de Mogobe Ramose (2011), que apresenta a ideia de pensamento reflexivo e crítico como condição humana, independente de local. Em relação ao continente africano, trazemos a crítica de que a escravidão moderna promovida pela Europa desumaniza africanos e indígenas e, com isso, lhes nega a capacidade de pensamento. Após essa análise, apresentamos a filosofia afro-brasileira como um desdobramento da filosofia africana em seu deslocamento do continente africano para as Américas no período da escravidão e colonização. Apresentamos as bases epistêmicas dessa filosofia mantidas nas culturas afro-brasileiras. Destacamos, também, os seus subsídios corporais, salientando a sua dimensão ética e estética ao propor outros modos de se relacionar, em que o coletivo é a alternativa ao individualismo, no qual se destaca uma ética comunitária e solidária. As narrativas constituídas no processo colonizador da modernidade são revistas em seus pressupostos de supremacia para dar lugar a uma filosofia que alcance o outro, que se estabeleça na alteridade. Tal proposta nos parece relevante para o ensino formal de filosofia, pois dialoga diretamente com a realidade de mundo existencial formativa do país e aponta outras possibilidades de organização da vida em distintos aspectos, mas todos perpassados pela educação; nesse caso, uma educação para ser e estar com o outro, o que solicita a revisão curricular na grade da filosofia, tanto da formação de professores quanto da disciplina destinada ao Ensino Médio.

Palavras-chave Filosofia; Afro-brasileira; Educação; Ética; Estética

Abstract

In this article we present a perspective of understanding the history of philosophy, in which it is possible to access other ways of how this history can be interpreted. In this perspective, the Eurocentered epistemic deconstruction of the legitimation of the idea of ??a Greek “miracle” occurs that allows the emergence of philosophy in this region to the detriment of other places. The assumption indicated is that of pluriversality by Mogobe Ramose (2011) who presents the idea of ??reflective and critical thinking as a human condition, regardless of location. In relation to the African continent, we bring the criticism that modern slavery promoted by Europe dehumanized Africans and Indians and, with this, denies them the capacity for thought. After this analysis, we present Afro-Brazilian philosophy as a development of African philosophy in its displacement from the African continent to the Americas during the period of slavery and colonization. We present the epistemic bases of this philosophy maintained in Afro-Brazilian cultures. We also highlight their bodily subsidies, highlighting their ethical and aesthetic dimension when proposing other ways of relating in which the collective is the alternative to individualism, in which a community and solidarity ethic stands out. The narratives constituted in the colonizing process of modernity are reviewed in their assumptions of supremacy to give rise to a philosophy that reaches out to the other, that is established in otherness. Such a proposal seems relevant to formal philosophy teaching, as it directly dialogues with the reality of the country's formative existential world, and points out other possibilities for organizing life in different aspects, but all of them permeated by education, in this case, education for to be and be with the other, which calls for curriculum revision in the philosophy grid, both in teacher training and in the discipline aimed at high school.

Keywords Philosophy; Afro-Brazilian; Education; Ethics; Aesthetics

Introdução

A história da filosofia tem sido apresentada ao longo de muitos anos, essencialmente, a partir de sua suposta origem grega e seu desenvolvimento no mundo ocidental, sobretudo euro-estadunidense. Tal narrativa tem encontrado ao longo das últimas décadas cada vez mais dificuldades de sustentação, uma vez que os estudos têm sido aprofundados e muitas outras escolas de pensamento estão sendo descobertas, entre elas as africanas. Em alguns casos, esse relato aparece entre os próprios gregos historicamente reconhecidos, em que eles próprios relatam os seus estudos nas escolas keméticas ou do Antigo Egito.

Aliás, kmt (kemet) era o nome como os egípcios antigos eram conhecidos e traz o sentido de pele escura, ou seja, negros. Por essa perspectiva muito bem trabalhada por Cheik Anta Diop e Theóphile Obenga, segundo Paula Junior (2020), já teríamos uma narrativa contrária ao suposto “milagre” grego da filosofia. Se recorrermos a outro filósofo, Mogobe Ramose, temos ainda uma base pluriversal, em que o surgimento da filosofia se dá simultaneamente em todos os contextos sociais em que o ser humano exista.

Nesse sentido, de acordo com Mogobe Ramose (2011), Noguera (2014) e Paula Junior (2020), a filosofia acontece onde o ser humano está. A negação na modernidade da humanidade do negro e outros povos no intuito da escravidão e colonização também serviu para negar essa capacidade aos africanos e seus descendentes.

No caso africano na diáspora escravista, o potencial epistêmico voltado para a filosofia pode ser encontrado em diferentes práticas culturais afro-brasileiras, bastando para isso a adequada apreensão desses elementos epistêmicos e seus sentidos. Para Noguera (2014), a cultura afro-brasileira é um subsídio para o estudo da filosofia africana. Nós dizemos que, além dessa significativa contribuição para a filosofia africana a partir da diáspora, a cultura afro-brasileira é, também, uma contribuição para o fazer filosófico, sobretudo naquilo que se estabelece no campo da ética e da estética.

Em nosso entendimento, pensamos que, no caso da diáspora, a cultura – sendo pensada em uma perspectiva ampliada, para além apenas das formas artísticas – é portadora da narrativa civilizatória dos povos, caminhando e se movimentando em acordo com as relações externas e internas estabelecidas e, com isso, organizando modos de ser, estar e pensar que configuram modelos civilizatórios de organização oriundos de distintas percepções críticas de mundo, o que envolve a própria noção diferenciada de mundo.

No Brasil a memória dos africanos escravizados de suas civilizações foi transportada em seus corpos, tese na qual a historiadora Antonieta Antonacci (2013) se baseia para suas pesquisas sobre o africano diaspórico, mas que já era referência no trabalho de Beatriz Nascimento, também historiadora e ativista do movimento negro. Nessa perspectiva é essencial uma outra discussão e abordagem sobre a ideia de corpo, suas representações e transformações. A estética do corpo e suas práticas estabelecem e proporcionam um campo de análise circunstancial nas culturas de matriz africana. Existe um pensar desde o corpo, estabelecendo-se uma conexão entre mundos por meio deste que se torna uma chave interpretativa do ser, portanto, uma ontologia desde o corpo que, além de histórico, é filosófico.

O reconhecimento, mesmo que tardio, da filosofia de matriz africana no Brasil é algo necessário para que se avance na desconstrução do racismo em qualquer uma de suas instâncias, mas principalmente na epistêmica que alcança o universo acadêmico, sem deixar de enfrentar toda a dimensão estrutural e institucional que o envolve.

O racismo tem sido o alvo principal ao longo da história da colonização e escravidão, no qual se estabelece o eixo central de resistência e afirmação da população negra diante da construção objetiva feita pela Europa sobre as muitas etnias africanas e seus descendentes na diáspora. O Ser tornado negro é a antítese tida como negativa pelo eurocentrismo ao também inventado branco, que em uma escala imagética é colocado e afirmado em condição de superioridade. Sob essa dupla lógica de invenções calculadamente sistematizadas para consolidarem-se modos de dominação, estabeleceram-se a partir da modernidade os “novos” modelos de opressão e conquista, agora “justificados” e “legitimados” por falsos argumentos em uma pseudociência programada para sustentar as políticas de morte e destruição.

Desse modo, o pensar crítico e reflexivo sobre o Ser no mundo, a filosofia, não pode ser concebido como um patrimônio civilizatório ocidental, pelo contrário, é uma expressão humana, por isso “afirmamos que não há nenhuma base ontológica para negar a existência de uma filosofia africana” (RAMOSE, 2011, p. 14). Do mesmo modo, as filosofias indígenas no Brasil precisam ser reconhecidas em sua anterioridade territorial, são saberes que precisam ser conhecidos, experiências vivenciais que se constituem na dialética existencial antes e depois dos acordos de civilização estabelecidos pelo Ocidente em sua modernidade.

Quando a universidade se coloca na vanguarda de iniciativas de revisão e atualização curricular para diferentes disciplinas, entre elas a formação de professores na área de filosofia, fica sinalizada a sua intenção de corrigir equívocos que avançaram no mundo acadêmico em período remoto e que ainda insistem em alguns nichos mais conservadores da produção do conhecimento.

De acordo com Renato Noguera (2014), é urgente que tais medidas avancem para que se possibilite a condição de formação de professores que tenham uma compreensão maior da constituição do pensamento filosófico no Brasil a partir de suas múltiplas heranças epistêmicas, todas elas basilares na formação intelectual brasileira.

O racismo e a colonialidade do saber, que tem o pressuposto da raça aliado ao processo de colonização, como diz Dantas (2015) em alusão a Quijano (2010), afirmam sua insistência “em desqualificar perspectivas filosóficas fora do eixo europeu, sugerindo, ainda, que haveria uma deficiência sistemática e racional em certos grupos humanos, o que impossibilitaria de serem reconhecidos ontologicamente, isto é, em seu modo de ser” (DANTAS, 2015, p. 27-28).

O equívoco do apagamento do outro permite que a sociedade reafirme os absurdos coloniais e escravistas por muito tempo, tornando as relações sociais em diferentes contextos cada vez mais difíceis, para não dizer trágicas. A ideia de nação não pode ser submetida a um modelo de aprovação unilateral ao preço da invisibilidade da maioria dos seus sujeitos formadores. Indígenas de diferentes nações que já estavam aqui e africanos de diferentes origens constituem o país ao lado dos europeus desde o século XVI.

Os modos de ser, fazer e, sobretudo, pensar a partir de distintas narrativas civilizatórias carregam enunciações epistêmicas de significações que muito explicam e demonstram maneiras de ser e estar no mundo. São modos que fazem parte do povo brasileiro e não podem ser negligenciados.

Há pouco tempo alguns filósofos brasileiros questionavam a existência de uma filosofia nacional, quando muito reconheciam um grupo de pensadores com competência técnica e teórica para escrever a história da filosofia, e mesmo assim afirmando a supremacia europeia no que concerne ao pensamento filosófico, o que remete a uma descrição filosófica essencialmente ocidental. Vejamos:

Integrados que estamos nas coordenadas da civilização do Ocidente, como filhos da prodigiosa cultura europeia, dela nós só podemos nos emancipar como se emancipam os filhos dignos, dignificando e potencializando a herança paterna, cientes e conscientes da nobreza de nossa estirpe espiritual

(REALE apudDANTAS, 2015, p. 22).

E depois dessa ênfase para a herança europeia, Miguel Reale diz:

Não ignoro as contribuições das culturas ameríndia e africana na modelagem do que justamente se considera a maior “democracia racial” do planeta, mas tais influências, malgrado a pretensão de certos “africanistas”, não são de molde a afastar-nos das linhas mestras do pensamento oriundo das fontes greco-latinas

(REALE apudDANTAS, 2015, p. 22).

No entanto, tal pensamento revela o quão refém ainda estamos da mentalidade colonial que domina os países historicamente explorados. Uma perspectiva que se mantém patriarcal e racista na Constituição do Brasil. Trata-se de uma colonização epistêmica, como salienta Sueli Carneiro (2005) – que é incapaz de perceber aquilo que para Mogobe Ramose (2011) é óbvio: o fato de que em qualquer lugar do mundo o ser humano em sua condição ontológica pensa, se comunica, estabelece a cultura e elabora processos de ensino e aprendizagem.

Porém, no que se refere à questão africana e ameríndia, tal negação é duramente sustentada por discursos pseudocientíficos constituídos ainda na modernidade, na qual a Europa vai se constituindo como centro do mundo, de acordo com a análise de Dussel (1977). Assim, negar essas contribuições na constituição histórica do povo brasileiro significa fracassar em qualquer projeto de reconhecimento cultural e epistêmico nacional com sérios agravamentos de políticas públicas.

Os brasileiros, em toda expressão do seu conjunto civilizatório, são aptos para o pensamento filosófico como qualquer povo no mundo. Essa é a proposta indicada como hipótese mais plausível e se aproxima das reflexões com as quais Ramose (2011) apresenta o conceito da pluriversalidade, no qual o conhecimento e o pensamento filosófico surgem em vários lugares e povos, não havendo predominância de um sobre o outro.

É relevante pensar essa capacidade filosófica em uma perspectiva mais profunda, que exige formação com orientação e metodologia capazes de habilitar a reflexão para os mais diferentes aspectos da existência humana, o Ser no mundo e seus sentidos. Nesse aspecto, o reconhecimento da matriz africana na filosofia vem a contribuir para o diálogo ao apresentar o seu campo epistêmico e as manifestações culturais de resistência que preservam esses saberes.

São culturas que se originam a partir de heranças africanas preservadas nos corpos, no espaço territorial do próprio corpo, o que inclui o pensamento. Heranças que foram readaptadas, reinventadas e ressignificadas em solo brasileiro e remetem a percepções de mundo próprias, muitas delas contrárias às lógicas modernas ocidentais, permeadas pela exploração do outro.

O pressuposto principal da escravidão moderna que se destinou principalmente aos africanos e aos povos originários do Brasil, os indígenas, foi a desumanização, algo novo nas relações de servidão, pois indicava uma categoria de exploração sem limites que culmina na busca pela destruição ontológica e civilizatória do outro, por isso a “naturalização” de negar a capacidade de pensar aos escravizados.

Em nossa proposta intentamos demonstrar alguns conceitos filosóficos de matriz africana que podem ser acessados por meio das manifestações culturais afro-brasileiras, representações africanas recriadas na diáspora em diálogo com outras culturas existentes no Brasil.

Culturas afro-brasileiras: epistemologia e educação

As muitas culturas de matriz africana constituídas no Brasil representam um vasto conjunto de formas de resistência e (re)existência que preservam modos de ser, cuja origem está no continente africano. São matrizes africanas que se originam principalmente no macro grupo étnico linguístico bantu, mas também nas etnias da África ocidental, tais como: os iorubás e os fons, entre outros que aportaram no Brasil na condição de escravizados.

Alguns desses grupos são portadores de legados civilizacionais muito antigos. Em cada um deles existe um conjunto complexo, sistematizado e organizado que abarca todos os conhecimentos possíveis aos seres humanos, e são eles que, ao resistirem à escravidão, afirmam a sua humanidade e ontologia e, com isso, estabelecem pela cultura um vasto repositório de saberes, que mesmo negligenciados foram o alicerce que garantiu a vida dessas pessoas.

A filosofia africana contemporânea elaborada desde os princípios e valores que regem a vida do ser africano, dentro da sua imensa diversidade, encontra-se absorvida não apenas nas suas diferentes culturas, mas também no seu modo particular (e diverso) de pensar os problemas locais, dentro do universal, partindo dos seus mitos, provérbios, ditados, rituais, religiosidade/espiritualidade, assim como das questões políticas, do mundo da literatura, da poesia, do jeito de falar com o coração, com o tambor, com a batucada, com o próprio tempo, com o próprio corpo. Filosofia tecendo e sendo tecida por corpos e suas/nossas experiências

(MACHADO, 2019, p. 284).

A cultura afro-brasileira é representada em todas as regiões do Brasil e revela muito de suas estéticas originais e seu imaginário. Os bantu são responsáveis por várias dessas culturas. Porém, outros importantes modos de ser e estar foram transportados para o Brasil e aqui deram origem a significativas culturas afro-brasileiras, entre elas o candomblé de diferentes nações.

Em cada uma das manifestações afro-brasileiras é possível recolher um conjunto de saberes que retratam a cosmopercepção desses grupos e, com isso, uma capacidade enorme para o diálogo. Os africanos são aptos aos encontros e buscam por comunicação. De acordo com Paula Junior (2014), a tradição oral reflete o modo de ser dos africanos no continente e na diáspora bem como tem continuidade nas culturas afro-brasileiras. Por isso Paula Junior (2019; 2020), a partir da análise dessas culturas e da referência na obra de Hampaté Bâ (2003; 2010), denomina esses modos de ser e estar como uma filosofia da oralidade.

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recriação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial

(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 169).

Esses modos de ser foram transportados para o Brasil e expressos em corpos, sendo, como diz Antonacci (2013), “memórias ancoradas em corpos negros”. É o corpo o território que permaneceu conectado ao continente africano e é esse corpo torturado, machucado, subjugado e humilhado que tem nos seus próprios gestos os mecanismos de sua autocura e libertação. As culturas afro-brasileiras são expressões desses corpos, são possibilidades que ampliam os caminhos para o outro, pois, juntos, se reconhecem mais fortes, expressando uma filosofia para e com o outro.

É uma filosofia aberta para as possibilidades, não estando enquadrada nos moldes epistemológicos da filosofia ocidental. Sai da totalidade para pensar a alteridade, este é seu ponto de partida, daí ser a ética uma filosofia. Enxerga a diversidade em vez da identidade, mas não a exclui; mira a diversidade na unidade e a unidade na diversidade; é atitude e não uma metafísica, é corpo inteiro, razão, emoção, todos os sentidos. Filosofia da diferença que prima por uma ética de inclusão, ciência da sensibilidade, é estética, pensa epistemologias para a vida, para o existir, conhecimentos propositivos de uma mudança consistente e duradoura, epistemologias para a práxis e não com a finalidade última de obtenção de poder político e epistemológico

(MACHADO, 2019, p. 284-285).

Em cada uma das representações estéticas das culturas afro-brasileiras é possível identificar e recolher um conjunto de modos de pensar que se revelam em circularidades, umbigadas e gingas que guardam em suas representações formas ancestrais africanas de acessar o conhecimento, não apenas mediado por uma racionalidade ocidentalizada, mas prioritariamente tendo o corpo como um todo e suas dimensões em igual medida como suportes de acesso ao conhecimento. Trata-se de uma cosmopercepção, como indica Oyèrónké Oyěwùmí. São outras maneiras de compreensão e estruturação do pensamento.

De acordo com os filósofos Banza Mwepu Mulundwe e Muhota Tshahwa (2007), da Universidade de Lubumbashi no Congo, a ideia de uma filosofia que rejeita a narrativa cultural dos povos, dos sujeitos em sua cotidianidade está fora de cogitação na perspectiva dos encontros com a filosofia africana, já que a ideia de mythos grego, como narrativa do comum, do cotidiano, e que faz a sua releitura do passado em sua presentificação é, no caso do pensamento africano, nunca oposto ao logos, tido como a narrativa racionalizada, interpretada do fenômeno. No caso africano e afro-brasileiro, essas nuances não se excluem, ao contrário, se complementam, cabendo para ambas um papel fundamental na concepção do conhecimento. Para esses autores, “há uma certa estrutura mesclada acerca dos mundos visível e invisível” (MULUNDWE; TSHAWA, 2007, p. 21). O que, neste aspecto, indica a cosmopercepção e a ligação entre os planos físico e metafísico, material e espiritual, tal qual se concebe a filosofia africana

(PAULA JUNIOR, 2019, p. 83).

Nas culturas de matriz africana as outras dimensões existenciais são reconhecidas e acessadas. O ser humano não se define apenas pelo cérebro e os padrões de pensamento a ele relacionados, o ser humano é corporal, espiritual, sensível, prático, histórico, dialógico e dialético. E é com esses pressupostos que se concebe a filosofia africana, a filosofia afro-brasileira ou de matriz africana.

As culturas que emergem das lutas pela liberdade no momento da escravidão são conhecidas como culturas de resistência, pois resistiam ao processo de coisificação a que o escravizado era submetido. Elas fazem lembrar ao sujeito “negro” a sua humanidade, por isso são mecanismos de libertação e humanização realizados a partir das heranças oriundas do continente africano e dialogadas no novo espaço

(PAULA JUNIOR, 2019, p. 20).

Esses processos de resistência permanecem ao longo da trajetória civilizatória dos africanos e seus descendentes em território diaspórico, visando, sobretudo, dar condições de vida, de existência humana. É desse contexto que temos a filosofia de matriz africana como uma filosofia afro-brasileira totalmente alicerçada nas demandas sociais reais às quais os negros foram e ainda estão submetidos.

É uma filosofia que tem como prerrogativa a noção epistêmica do quilombo, o local de libertação e acolhimento. Até hoje se pode pensar o quilombo como esse lugar de refúgio, daí o conceito de quilombismo desenvolvido por Abdias do Nascimento.

Os quilombos hoje são estudados em suas características rurais e urbanas, sendo estas em referência, também, aos centros de preservação cultural afro-brasileira, tais como festas do batuque de umbigada, escolas de capoeira, rodas de samba e jongo, congadas e moçambiques, maracatus, casas de culto afro-brasileiro, irmandades e confrarias religiosas, enfim, todo um vasto conjunto de lugares reinventados que garantiram aos descendentes de africanos condição de vida e preservação de sua filosofia.

O ensino de filosofia e a ética de uma filosofia com o outro

Na cultura de matriz bantu, o ubuntu se configura como uma filosofia pautada na ética, uma noção ampliada que implica o cuidado e a atenção para o outro. Como explica Ramose (2010), ubuntu é a junção de duas palavras, ubu e ntu, em que aparece a noção de ser: no termo ntu é o ser dado e em ubu é o ser em constituição, por isso a ideia do ser-sendo, um valor ontológico que remete o ubuntu à humanidade, somente alcançada com e pelo outro, daí a noção expressa de “somente sou quando o outro é”. Dessa maneira, estabelece-se “com princípios de comunidade, coletividade, ancestralidade, espiritualidade e alteridade” (PAULA JUNIOR, 2019, p. 18).

Esse princípio ético e ontológico encontrado no ubuntu é basilar para uma sociedade que se propõe a uma educação integrada em que os saberes são celebrados em partilha, assim como todos os bens possíveis oriundos do encontro com o outro.

Para Castiano (2015), o ubuntu encerra valores que envolvem todos os seres humanos, portanto, trata-se de uma filosofia africana presente na diáspora, como diz Paula Junior (2019), mas que contribui para se pensar uma humanidade em harmonia e equilíbrio com a natureza, na qual o ser humano é um cuidador responsável desses bens comuns. Assim, é “a existência de uma filosofia que se baseia ou tem seu ponto de partida na ética” (CASTIANO, 2015, p. 178).

O ubuntu é um dos muitos exemplos que podem ser recolhidos do vasto espectro epistêmico de matriz africana recriado no Brasil. Outras narrativas de igual importância e significação podem ser identificadas nas expressões culturais, pois, apesar da diversidade, existe um elo de semelhanças entre as culturas afro-brasileiras e as africanas. Trata-se, segundo Hampaté Bâ (2003), da tradição oral.

Trazer para o conjunto formativo dos professores de filosofia esses saberes e, consequentemente, para os alunos do Ensino Médio outras possibilidades de se fazer filosofia a partir de realidades culturais próximas nos parece bastante relevante e vai ao encontro das necessidades éticas para constituição de uma sociedade democrática e inclusiva, pois “a filosofia não é uma erupção misteriosa de conceitos provenientes do espaço sideral, sem qualquer conexão com o nosso mundo empírico, apesar de o afetarem” (RAMOSE, 2010, p. 176). Desse modo, “a filosofia está na realidade de mundo vivido e vivenciado em todas as suas dimensões” (PAULA JUNIOR, 2019, p. 19).

Portanto, repensar o currículo da disciplina é essencial, pois “o importante do currículo é a experiência, a recriação da cultura em termos de vivências, a provocação de situações problemáticas” (SACRISTÀN, 2000, p. 41). Em nosso caso, é promover uma abordagem consistente dos pressupostos que determinaram a escravidão no país e suas consequências até os dias de hoje, o que significa o reconhecimento daqueles que foram sumariamente negligenciados no processo civilizatório brasileiro, a ponto de as atuais “lideranças” políticas, ao se referirem à formação cultural do Brasil, ainda minimizarem o papel dos africanos e dos indígenas nesse processo.

Para realizar tal intento é possível estabelecer métodos de aproximação e percepção refletida dessas práticas culturais, o que implica trazer para o espaço escolar pessoas (mestres dos saberes tradicionais), o que na filosofia africana é denominado como o conhecimento dos sábios. São pessoas que vivenciam determinados modos de vida e que em suas comunidades adquirem o reconhecimento de sua maestria. É possível, nessa metodologia, trazer textos, fotografias e vídeos de culturas afro-brasileiras como suporte para refletir sobre aspectos conceituais que remetem à filosofia como um todo e à filosofia africana/afro-brasileira em específico, buscando o diálogo com autores da filosofia do Ocidente, cuja perspectiva alcance o espaço do encontro e do reconhecimento da humanidade em todas as culturas e civilizações. Uma humanidade que continua em sua formação e aprendizado.

Sendo assim, o nosso objetivo é contribuir no ensino de filosofia apresentando aos alunos e professores outras formas epistêmicas celebradas em racionalidades distintas e divergentes da que foi moldada no eurocentrismo. Ao realizar essa proposta salientamos a relevância do conhecimento filosófico constituído no Ocidente, capaz de participar e contribuir para esse encontro. Salientamos o ubuntu como proposta de aproximação e interesse pelo outro em sua subjetividade, o que possibilita conduzir-se o diálogo profícuo entre as culturas e suas filosofias.

Conclusão

A proposta deste artigo é trazer para a pauta do ensino de filosofia a relevante presença da filosofia de matriz africana tanto no continente como na diáspora e, desse modo, viabilizar outros suportes conceituais para reflexão das questões atuais. Para tanto, se faz notória a aproximação de filósofos africanos e afro-brasileiros que percebem a filosofia como ponto nodal para refletir sobre as relações étnico-raciais no currículo escolar e na sociedade como um todo.

Essa proposta concorda com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, indicando, no que diz respeito à filosofia, o “estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade” (BRASIL, 2004, p. 24).

Se a escravidão africana e suas consequências, assim como a desapropriação territorial indígena, são assumidas como pauta política emergencial, há nas discussões sociais nacionais um crivo delineador dos seus desdobramentos no campo econômico e cultural. São questões que colocam todas as outras lutas sociais no conjunto das pautas de relevância, entre elas as questões de gênero e da distribuição de renda.

As mulheres negras e indígenas foram aquelas que na, escala societal brasileira, estiveram em último lugar no que concerne à exploração. Compreender esse aspecto revela algo significativo para as lutas em geral das mulheres brasileiras. Entender a não condição de classe trabalhadora destinada ao escravizado e a realização de uma abolição que não estabelece direitos e condições de vida para essas pessoas apresenta o aspecto mais cruel das relações de trabalho existentes no Brasil, algo que não pode ser pensado sem coragem de enfrentar o processo histórico de dominação que se alonga.

É enorme a lista do que se pode elaborar aqui como aspectos tensos de uma sociedade que ainda mata mais homens negros e jovens bem como submete mulheres negras aos mais variados tipos de violência, entre elas a obstétrica e a sexual. As questões de segurança e o aparelho do Estado que deveria proteger, mas, ao contrário, elimina, junto com problemas de saúde pública, moradia, acesso e permanência na educação, solicitam uma filosofia engajada, de fato crítica e vivenciada na realidade de muitos. Essa filosofia comprometida com a realidade humana em que habitamos precisa estar na base formativa do nosso pensar e solicita mais do que nunca o seu espaço na educação escolar, também responsável pela formação.

Trata-se de um compromisso ético que precisa ser assumido para garantir condições de vida não apenas aos negros e indígenas, mas para todas as pessoas, todos os seres que existem de modo integrado e requerem sempre o aprendizado da solidariedade, da coletividade e da alteridade. Um aprendizado de encontros, diálogos, partilhas mútuas e celebrações (re)encantadas do viver.

A formação em filosofia é permanente e dinâmica, como são a existência e os processos de reflexão a que os seres humanos são submetidos e, desse modo, solicitados a dar sentido à experiência do viver. E isso mediados pela capacidade de transformar o mundo com responsabilidade pelo todo.

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Recebido: 21 de Agosto de 2020; Aceito: 18 de Outubro de 2021

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