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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022018 

ARTIGOS

É possível eliminarmos a transferência no ensino?

Is it possible to eliminate transference in teaching?

Ronaldo Filho Manzi1 

1Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP, 2013) e pela Radboud Universiteit Nijmegen (RUN, 2013) (co-tutela). Pós-doutor em filosofia (USP, 2017) e em Psicologia Social (USP, 2019). Publicou os livros: Quand les corps s’envahissent – Merleau-Ponty face à la psychanalyse (EUE, 2018); Memória, ato performativo e patologia do social – de permeio com a filosofia, a psicanálise e a literatura (Kotter, 2019); Complexo de Édipo em Freud e Lacan – Uma introdução à fobia do pequeno Hans (Via Lettera, 2019); Exemplos, exceções, metáforas... – Um estudo epistemológico da psicanálise (Clube de Autores, 2019); A ordem das razões e a desconstrução - Formas de pensar a história da filosofia (Clube de Autores, 2019); Uma leitura sobre ideologia, mídia e educação - o que é ficção e o que é real? (Brazil Publishing, 2020 (no prelo)); Quando os corpos se invadem - Merleau-Ponty face à psicanálise (Brazil Publishing, 2020 (no prelo)). Co-organizou os livros A filosofia após Freud (Humanitas, 2008) e Paisagens da Fenomenologia francesa (UFPR, 2011). Publicou artigos em periódicos especializados, além de diversas traduções de artigos e revisões de livros. Atua principalmente nas áreas da Filosofia da Educação, Fenomenologia francesa, Psicanálise e da Epistemologia da Psicanálise. É membro executivo do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (USP). É membro do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise do Centro-Oeste. É membro da International Society of Psychoanalysis and Philosophy (ISPP). Artista Plástico. Psicanalista. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Inhumas (FacMais).


Resumo

Este artigo visa contribuir no modo como pensamos a relação da psicanálise freudiana e a educação. Dentre os vários clássicos que lidam com essa questão, voltamo-nos ao livro de Catherine Millot, Freud anti-pédagogue, por este proporcionar uma visão ampla sobre nosso tema e ter uma conclusão polêmica: uma antinomia entre educar e analisar. Se isso for verdade, há como pensarmos em uma relação entre pedagogia e psicanálise? Millot nos diz que não pode haver uma pedagogia analítica no sentido de uma ciência da educação, considerando a referida ciência tal como se emprega o saber adquirido pela experiência psicanalítica sobre o inconsciente. Esse discurso bem articulado de Millot nos levou a crer (no meio acadêmico) que há um afastamento definitivo entre esses campos. Nossa questão aqui é: podemos pensar de outra forma? Para a presente reflexão, acompanhamos a posição de um pensador contemporâneo brasileiro: Rinaldo Voltolini, o qual argumenta que o problema da posição da psicanálise no campo educativo está voltado a um discurso de mestria. Pensaremos então sobre a impossibilidade do educar e o papel do ideal do eu na educação. Voltolini afirma que uma mestria é impossível. Em sua argumentação, mestria é entendida como uma maximização do efeito da educação sobre a criança em uma direção desejada. Em outras palavras: um direcionar-se a um ideal. Nesse sentido, podemos nos questionar: é possível, afinal, eliminarmos a transferência no ensino? Ou podemos nos utilizar da transferência no saber? Nossa conclusão se volta à ideia de que o educador trabalharia a partir de seu poder sugestivo; sabendo disso, ele pode se servir de tal poder na educação.

Palavras-chave Psicanálise; Pedagogia; Freud; Millot; Voltolini

Abstract

This article aims to contribute to the way we think about how freudian psychoanalysis relates to education. Amongst the many classics that deal with this matter, we turn to Catherine Millot’s book, Freud anti-pédagogue, for it provides a broad view of our theme and presents a controversial conclusion: an antinomy between educating and analyzing. If this is true, can we think of a connection between pedagogy and psychoanalysis? Millot tells us that there cannot be an analytical pedagogy in the sense of a science of education, considering the referred science just as one uses it as acquired knowledge by psychoanalytical experience about the unconscious. This well-articulated discourse by Millot led us to believe (in academia) that there is a definite divide between these fields. Our question here is thus: may we think otherwise? For the present reflection, we follow the position of a contemporary brazilian thinker: Rinaldo Voltolini. He argues that the issue of the position of psychoanalysis in educational field is oriented towards a discourse of mastery. We will then take into consideration the impossibility of educating and the role of the ideal of the self in education. Voltolini states that such mastery is impossible. In his argument, mastery is understood as a maximizing the effect of education on child in a desired direction. In other words, a move towards an ideal. In this sense, we can ask ourselves, is it possible, after all, to eliminate transference in education? Or rather, can we make use of a transference attitude in teaching/learning? Our conclusion turns to the idea that the educator would work starting from his suggestive power; knowing this, he can rely on such power while educating.

Keywords Psychoanalysis; Pedagogy; Freud; Millot; Voltolini

1. Introdução

Sigmund Freud, em muitos momentos de sua experiência de pensamento, buscou fazer algumas reflexões sobre a educação, as quais nem sempre foram “lineares” e às vezes tendiam a direções diversas. Fato é que herdamos questões fundamentais para repensar a educação levando em conta a psicanálise. Assim, o que podemos pensar sobre uma relação entre educação e psicanálise? Mais especificamente: seria possível eliminarmos a transferência no ensino?

São vários também os pensadores que buscaram lidar com essa relação entre a psicanálise e a educação. Na França, por exemplo, encontramos pensadores como Maud Mannoni, Françoise Dolto, Francis Imbert, Mireille Cifali, Any Codié, Catherine Millot; na Argentina, Sara Pain, Izabel Luzuriag e Silvia Bleichmar; no Brasil, Maria Cristina Kupfer, Leandro de Lajonquière, Rinaldo Voltolini etc. Dentre essas contribuições, destacamos o livro Freud anti-pédagogue, de Catherine Millot (1982) (traduzido para o espanhol como Freud Antipedagogo – versão utilizada aqui), uma vez que sua autora busca realizar uma espécie de inventário das relações possíveis entre esses saberes a partir de Freud valendo-se, também, de contribuições pós-freudianas. A autora parte das seguintes questões:

Pode-se conceber uma pedagogia “analítica” no sentido de que se proporia os mesmos fins que a cura com igual nome: resolução do complexo de Édipo e superação da “rocha da castração”? Ou no sentido de que se inspiraria no método analítico para transportá-lo a uma relação pedagógica? Pode haver nesse sentido uma aplicação da psicanálise na pedagogia?

(MILLOT, 1982, p. 10)

Ou seja, há uma diferença fundamental em dizer que a psicanálise nos leva a repensar a pedagogia e afirmar que seria possível uma pedagogia analítica – uma espécie de pedagogia com um viés psicanalítico. Buscaremos, aqui, recuperar essa análise de Millot para depois nos posicionarmos frente a esse problema. Traremos também uma reflexão contemporânea de Rinaldo Voltolini (2011; 2018) para enriquecer nossa discussão, visto que ele aponta a importância do educar partindo de Freud e diferenciando o educar do analisar.

É válido notar, ainda, que Freud dialoga com uma outra sociedade: a de Viena no começo do século XX. Muitas vezes esse argumento serve de justificativa para minimizar as análises de Freud sobre a educação. É um fato que sua clínica estava voltada ao tipo de sofrimento que ele encontrou em sua época, de modo que seria difícil falar hoje que uma pessoa sofre, por exemplo, de uma repressão da sexualidade aos moldes de Viena no começo daquele século, haja vista que a sexualidade está na mídia, nas redes sociais e se tornou um tópico comum e de visibilidade. Esse cenário levou alguns pensadores, como Michel Foucault (2005), a se perguntarem justamente o contrário: por que falamos tanto sobre a sexualidade? Contudo, apesar de verificarmos que houve uma mudança na forma com que a sociedade se organiza (se compararmos a Era Vitoriana à nossa), este texto defende que a teoria freudiana contribui na reflexão sobre a educação.

2. Discussão

2.1. Freud antipedagogo – uma leitura de Millot

Em primeiro lugar, Millot (1982) apresenta a educação em relação à moral. Afinal, é constante o diagnóstico de Freud de que as exigências da sexualidade não estão de acordo com a moral vigente de sua época. Esse desacordo é visível nos casos de histeria. Sendo assim, a primeira tarefa da educação seria de ordem profilática: se sabe-se que seguir à risca a moral vigente leva a sintomas, é preciso realizar uma educação que previna que a pessoa se submeta a tais exigências. Mais que isso, é preciso que haja uma transformação da moral para que esta seja mais flexível com as exigências da sexualidade humana. Desse modo, Millot sugere que Freud nos leva a pensar que, para além de uma liberação dos costumes sexuais, é preciso liberdade de fala e de pensamento sobre a sexualidade – pois foi a partir da fala que Freud e Breuer conseguiram trabalhar com os sintomas da histeria. Assim, percebemos por que Millot (1982) propõe uma ética baseada na palavra – uma ética da verdade.

Por outro lado, do ponto de vista da pulsão sexual, pode-se pensar diferente. Por exemplo, Freud (2016) teria nos mostrado como essa pulsão é perturbadora, sugerindo que a sexualidade, independentemente da moral vigente, nos perturba. São nesses momentos que Freud preconiza uma repressão orgânica primária (algo da ordem da fisiologia e não do âmbito social). Caso tomássemos isso como verdade, a educação deveria se voltar à sexualidade infantil, pois é nesse momento que as pulsões parciais estão mais claramente em atividade.

No estudo da sexualidade infantil, segundo Millot (1982), é difícil encontrar o que podemos conceder à educação e ao desenvolvimento infantil. O pudor, por exemplo, é advindo da moral sexual ou da unificação das pulsões parciais na genitalidade? Retomando Freud (2016), tal como coloca em nota (acrescentada em 1920) nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o complexo de Édipo é determinante nesse processo, pois este aparece como fator organizador do desenvolvimento libidinal do indivíduo.

Assim, a relação entre sexualidade e civilização deve ser questionada, pois não podemos ignorar, na educação, o descobrimento de tendências polimorfas na sexualidade (que são constitutivas) da criança. Não se pode simplesmente sufocá-las. Seria necessário encontrar uma “saída” para que a criança se tornasse socialmente aceitável, uma vez que não é possível fazer essas pulsões desaparecerem nem as dominar por completo. Entretanto, seria possível dar-lhes um destino. Nesse sentido, o excesso de julgamento sobre a sexualidade é central nessa discussão.

Sabendo que existe uma sexualidade infantil polimorfa, uma vez que esta se mostra de várias formas (ou seja, seus prazeres não se restringem a uma zona erógena específica), não há como pensar analogicamente um adulto e uma criança. Não se pode negligenciar também que o adulto passou por uma fase infantil e que ela está presente no inconsciente deste, à sua revelia – há uma insistência de Freud (2019) em afirmar que o inconsciente está “fora do tempo” cronológico (por isso o autor insiste que o inconsciente é atemporal). Freud destaca que a simples supressão das satisfações, por exemplo, pode levar à impotência, no homem, e à frigidez, na mulher. É necessário, portanto, que haja certas “doses” de satisfação na criança. Caso contrário, a exigência da castidade, especialmente nas mulheres, pode conduzir a um não desenvolvimento da pessoa como um todo, inclusive intelectualmente. Daí o porquê de Freud novamente insistir em uma mudança na moral da sexualidade civilizada à luz das descobertas da psicanálise (MILLOT, 1982).

Millot também nos mostra como a tarefa da educação se modifica quando Freud afirma que existe algo para além do princípio de prazer. Ou seja, seria também prejudicial que houvesse uma ilimitada liberação do prazer sexual. Isto é, nem a repressão das pulsões nem a sua liberação total seriam posições que possivelmente inibiriam uma patologia. A lei do incesto, por exemplo, é fundamental para que haja a civilização segundo a teoria freudiana em Totem e tabu. Temos então uma dificuldade em conciliar as reivindicações da pulsão sexual e as exigências da civilização – para alguns sendo até uma conciliação impossível (MILLOT, 1982).

Ainda, quando Freud (2016) reflete sobre a sexualidade infantil, a questão da educação se coloca, segundo Millot, em primeiro plano. Nesse aspecto, o conhecimento do desenvolvimento da sexualidade seria fundamental para que o educador soubesse lidar com a criança. Contudo, no fundo, não há uma “grande novidade” nisso, uma vez que se reforça o processo de organização libidinal da criança, composto por: pulsões parciais para a dominância genital; reorientação das pulsões para alternativas socialmente aceitáveis (e não satisfações sexuais diretas); e perspectiva da educação como uma profilaxia. O que Freud critica nesse padrão é o excesso de inibição das satisfações (MILLOT, 1982). Nas palavras de Freud:

Educação e terapia se acham numa relação que podemos delinear. A educação cuida para que certas disposições e tendências da criança não produzam nada que seja nocivo ao indivíduo e à sociedade. A terapia entra em ação quando essas disposições já resultaram em indesejáveis sintomas patológicos. O outro deslanche possível, de que as inclinações imprestáveis não levem às formações substitutivas dos sintomas mas a diretas perversões do caráter, é quase inacessível à terapia, e geralmente se furta à influência do educador. A educação é uma profilaxia que deve evitar ambos os desenlaces, o da neurose e o da perversão; a psicoterapia procura desfazer o mais frágil dos dois e constituir uma espécie de pós-educação.

(FREUD, 2010a, p. 341)

Em outros momentos, como quando Freud lida diretamente com o caso do pequeno Hans (caso clássico em que a análise de uma criança é realizada pelo próprio pai, orientado por Freud), Millot destaca como ele critica a censura que havia nos adultos no que se referia à fala/curiosidade infantil. Nesse ponto, temos dois lados da questão: censurar a criança por fazer alguma pergunta que pareça imprópria para a moral vigente; ou responder de forma omissa, fazendo a criança crer que há um tipo de segredo que não pode ser revelado – como se, na verdade, se tratasse de algo muito abominável. Esse raciocínio é fundamental porque correlaciona a curiosidade infantil e a confiança da criança na fala do adulto. Mais que isso, destaca-se o poder da fala na decisão de um adulto ao fazer da sexualidade algo “natural” para a criança ou ao criar um grande estigma que nem mesmo poderá ser mencionado.

Millot (1982, p. 63) continua sobre o caso do pequeno Hans: “[...] [a análise] ensina o peso da verdade (verdade que, se for desconhecida, reprimida, conduz à enfermidade) e o poder apaziguador da palavra verdadeira mediante a qual os desejos se fazem reconhecidos”. Afirma, ainda, que estamos diante de uma ética da verdade – o que exige uma fala que exponha a realidade psíquica (como denominada por Freud), uma realidade do desejo (nas palavras de Millot). É essa realidade psíquica que o educador deveria reconhecer na criança e é esse o traço que Freud mais percebe como sendo negado por parte dos que educam – como se tivessem esquecido das crianças que eles mesmos foram um dia.

A tarefa aqui é árdua: o educador deve tentar encontrar uma saída para as pulsões sexuais da criança de modo a não prejudicar o indivíduo nem a sociedade da qual ele faz parte. Nesse sentido, Millot destaca que o reconhecimento da realidade psíquica e seus conflitos devem ser considerados um problema social como um todo, porque envolve não só a tradição, mas também como a criança irá posteriormente se inserir no meio social. Trata-se, então, de uma necessária tentativa de “harmonia” entre o individual e o social.

Essa busca pela harmonia, que é sempre tênue, muitas vezes resulta em fracasso. A psicanálise, nesse caso, viria a ser uma educação posterior (pós-educação) ou reeducação, devido ao fracasso inicial da educação que teria levado o indivíduo a uma neurose, por exemplo. Esse é um ponto importante, pois Freud associa, então, a análise a uma educação de forma direta (mesmo que se trate de uma reeducação); mas, em ambos os casos, insiste, em vários momentos, que nem o educador nem o analista deve se colocar no papel de modelo a ser seguido. Esse é um conceito central: o educador não deveria se colocar no papel de modelo, assim como o analista não tem o papel de se posicionar enquanto um ideal. Tomemos um exemplo de um artigo sobre a técnica psicanalítica, que Freud escreve em 1912 e em 2010 é traduzido por Paulo César Souza, com o título Recomendações ao médico que pratica a psicanálise. Freud diz:

Outra tentação vem da atividade pedagógica que no tratamento psicanalítico recai sobre o médico, sem que haja intenção por parte dele. Dissolvendo-se as inibições ao desenvolvimento, ocorre naturalmente que o médico chegue à situação de indicar novas metas para as tendências liberadas. É então compreensível que ele ambicione fazer algo extraordinário da pessoa em cuja libertação da neurose ele tanto se empenhou, e prescreva elevados objetivos para os desejos dela. Mas também aí o médico deveria se manter em xeque e orientar-se mais pela aptidão do paciente do que por seus próprios desejos

(FREUD, 2010a, p. 160).

Ou ainda esta passagem de 1913, escrita no Prefácio a ‘O método psicanalítico’, de Oskar Pfister: “o educador, porém, trabalha com material plástico, sensível a toda impressão, e deve impor-se a obrigação de não formar a jovem psique de acordo com seus ideais próprios, mas sim conforme as predisposições e possibilidades inerentes ao objeto” (FREUD, 2010a, p. 343). Baseando-se nesse posicionamento, Millot (1982, p. 69) diz que há “[...] a necessidade do refreamento sexual na educação, e [Freud] afirma, por outro lado, a nocividade de um refreamento pela força e a ineficácia da coerção como método educativo”. Retomaremos a essa questão mais adiante.

Em uma outra concepção da tarefa de educar, Millot encontra a discussão sobre o princípio do prazer e o da realidade. É preciso lidar com as frustrações que a realidade nos traz, e isso ao longo da vida. O amor é um dos ganhos que a criança recebe ao dominar o princípio do prazer, considerando que valeria a pena sacrificar algumas satisfações momentâneas em troca de ser amado e protegido do mundo exterior. O que Millot observa é que a falha em completar essa espera pela recompensa é também uma falha pedagógica – quando a criança age sem esperar a perda ou o ganho de amor – como se o amor fosse garantido independentemente de suas ações. Assim, a educação deveria agir na pulsão do eu, já que as pulsões sexuais são muito mais difíceis de dominar. Diante desse problema, Millot aduz:

A educação, diz Freud, deve ser um “jogo de vida”, mas deve-se preservar a criança do enfrentamento brutal com a existência. As medidas educativas consistem basicamente em exigir da criança a tolerância de certas doses de desprazer que constitui a renúncia às satisfações pulsionais imediatas, a fim de obter um prazer diferente.

(MILLOT, 1982, p. 78)

Já nos textos em que Freud trata mais diretamente sobre o individual e o social, fica mais claro o papel da educação enquanto uma ação social e não individual. Obras como Totem e Tabu (FREUD, 2012) nos levam a correlacionar as práticas educativas com a ideia de civilização e repressão. Na verdade, com a teoria da morte do Pai Primevo, agimos como se a humanidade repetisse, de geração em geração, o recalque da culpa do assassinato desse Pai.

Sendo assim, a proibição e a culpa seriam uma herança filogenética e os educadores teriam que saber lidar com essa culpa original (também inscrita neles mesmos). O que Millot (1982) propõe é que a hipótese de Totem e Tabu nos leva a pensar em uma comunicação entre inconscientes, uma vez que o inconsciente do educador também herdaria o que se passa no inconsciente de uma criança, pois o que se passou na história do educador ainda está presente em seu inconsciente (lembrando que o inconsciente é atemporal). Por isso, os educadores deveriam passar por um processo analítico (MILLOT, 1982). O educador, nesse caso, também estaria agindo a partir de “forças” que estão à sua revelia.

Millot (1982) conclui que o complexo de Édipo (aquilo que o educador passou quando criança) é a pedra fundamental no processo educativo. Uma vez que esse complexo é “inescapável”, é preciso que o educador saiba lidar não só com o seu complexo, mas também com o da criança. Nesse raciocínio, há “[...] uma impotência do educador: o essencial escapa do seu controle” (MILLOT, 1982, p. 103). Esse ponto é fundamental em nossa reflexão porque toca em um problema da transmissão da psicanálise e em uma questão sobre o ideal do eu.

Outra questão abordada por Millot se relaciona ao tema do narcisismo. No estudo Introdução ao narcisismo, Freud (2010b) expõe de forma mais clara os conceitos centrais para pensarmos a educação: ideal do eu; eu ideal; e supereu. Mais especificamente, em relação à educação, o ideal do eu é fundamental, porque é um modelo que a criança incorpora e aspira alcançar. Um ideal, muitas vezes, repressivo. Tomemos a seguinte passagem de Freud (2010b, p. 41): “[...] a formação de ideal aumenta as exigências do Eu e é o que mais favorece a repressão; a sublimação representa a saída para cumprir a exigência sem ocasionar a repressão”. Ou seja, é importante que o educador não reforce esse ideal, nem se coloque nessa posição. Millot destaca:

Deste modo, a psicanálise permite elucidar a bem conhecida função de modelo, do exemplo, que desempenha os padres e educadores. Só a partir do jogo de transformações da libido de objeto e da libido narcísica que a criança assimila as características das pessoas que a rodeiam e se apropria de suas exigências. Durante o período de latência, são os professores e geralmente as pessoas encarregadas de educar a criança que ocupariam para ela o lugar dos pais, em particular do pai, e do qual herdariam os sentimentos que a criança experimenta em relação à saída do complexo de Édipo. Os educadores, investidos da relação afetiva primitivamente dirigida ao pai, se beneficiam com a influência que esse exercia sobre a criança e assim poderiam contribuir na formação de seu ideal de eu.

(MILLOT, 1982, p. 114)

Também aqui se trata de um processo que escapa do domínio do educador (MILLOT, 1982). O supereu, herdeiro do complexo de Édipo, também escapa desse processo educacional. Tudo indica que há algo à revelia do educador nos processos constitutivos da criança. Afinal, os professores herdam resíduos de situações que eles mesmos não “dominam”; herdam o conflito de amor e ódio, por exemplo, que a criança tem em relação ao pai.

É essa parte que está fora do saber consciente do educador que mais nos interessa aqui e que também foi uma situação apontada por Millot em vários momentos. Vejamos alguns. Por exemplo, em relação ao narcisismo: “Freud bem poderia estar apontando ao narcisismo do próprio educador, e sua advertência consistiria em observar que o educador (como o psicanalista) não deve buscar satisfazer seu próprio narcisismo tentando realizar seu ideal através da criança em sua tarefa de educar” (MILLOT, 1982, p. 116). É preciso que o educador renuncie a possibilidade de ver na criança seu ideal, mas para isso seria necessário um conhecimento da psicanálise? Ou mesmo que o educador passasse por uma análise? Seria uma exigência difícil para os educadores se pensarmos de uma forma geral.

Pode-se dizer que os fantasmas e desejos do professor se fazem presentes na sua relação com os educandos, como uma espécie de revanche contra o que a própria pessoa sofreu em sua infância. Eis que retorna a questão da transmissão da psicanálise como nosso horizonte de reflexão. Millot (1982, p. 117) escreve: “[...] é surpreendente ver com que insistência alerta Freud, tanto aos educadores como aos analistas, contra o ideal, e mais precisamente, contra a tentação de encarnar eles mesmos esse ideal às expensas do educando ou do analisando, ou de querer que estes adotem seu próprio ideal”. Ou seja, Freud insiste que não devemos projetar no outro nosso ideal. Mas, fundamentalmente, Freud associa, de certa forma, o papel do analista com o papel do educador. Nesse caso, é preciso desconstruir (ou superar?) esse ideal, mas de que modo?

Millot destaca uma mudança de perspectiva da relação da educação com a psicanálise depois de Freud postular a existência de uma pulsão de morte. Nesses momentos Freud revela a necessidade de a pessoa lidar com as frustrações que o mundo impõe. É preciso se dar conta do “peso” da realidade. Nesse sentido, uma pedagogia voltada à religião, ou que nela se apoiasse, seria contrária à pretensão de levar a pessoa a tomar parte da realidade. A religião seria uma espécie de consolo e, nessa esteira, um obstáculo a ser vencido. Daí porque Millot escreve:

A religião atua em favor da repressão e da irracionalidade nos comportamentos humanos. É merecida a tentativa de teste de uma educação que rechace esta orientação, uma educação que procure que o homem assuma, sem o socorro de consolos ilusórios e do embotamento anestesiante, “o peso da vida, a cruel realidade” [Freud]. A isto se poderia chamar, diz Freud, “educação para a realidade”.

(MILLOT, 1982, p. 133)

Partindo dessa possibilidade, o homem tende a uma fase científica que, no caso freudiano, se resume à renúncia do princípio de prazer. Tendo isso em vista, Millot nos diz que Freud propõe uma nova educação:

Freud não se deteve muito em conselhos educativos. Além disso, suas críticas da educação não se separam do juízo que a civilização o inspira: o fato de que seja ela enferma amplia certamente seu alcance. Se bem que movido por uma inquietude profilática que denuncia rapidamente os erros que seria conveniente evitar na ação educativa, raros são os textos em que indica a orientação positiva que gostaria de vê-la tomada. Em Freud não encontramos nenhum tratado de educação. A escassez de indicações positivas sobre a matéria nos incita a prestar uma atenção particular na formulação dos princípios a partir dos quais gostaria de ver instaurar, nos diz, uma educação nova. Porém, tal formulação produz desconcerto. Razão e realidade: não é, por acaso, cabalmente, em nome de educadores e mestre que nos impõem sua lei? É necessário ser freudiano para aderir a elas? O assombro cresce diante do fato de Freud parecer considerar adequados estes princípios para inaugurar uma nova era da civilização, práticas sociais e educativas em ruptura com aquelas cujas fraquezas experimenta. Fora dela, tais slogans não deixam de evocar em nós uma concepção ortopédica da psicanálise que vê na adaptação do sujeito ao seu mundo a meta de sua ação. Fácil é o deslizamento da ‘realidade’ aqui designada em direção a uma realidade social com a qual o indivíduo teria que se propor entrar em harmonia, no fim de uma evolução cuja normalidade estaria garantida por um feliz concurso da natureza e da educação. Endereçar as urdiduras acidentais de um processo semelhante – reeducar: tal seria em sua perspectiva a missão da psicanálise.

(MILLOT, 1982, p. 133-134)

Estamos diante de uma questão crucial: significa isso uma espécie de adaptação ao real? Parece que não. Se vivemos em uma realidade social mascarada por uma ilusão, tal como no consolo religioso, o que Freud propõe é romper com essas máscaras para então poder se defrontar com a realidade, mesmo que ela seja frustrante. Freud nos convida a lidar com a dureza da realidade tal como ela é. Ou seja, não mais pautarmo-nos em uma ética de ideais, mas tomarmos a realidade em conta. Uma nova educação deve se valer não da ilusão, mas do reconhecimento dos desejos, o qual se realiza na fala. “Tal poderia ser o programa de uma educação de orientação analítica”, como nos diz Millot (1982, p. 139).

O problema que Millot se volta agora é sobre a renúncia de satisfações que os indivíduos devem fazer para viver em sociedade. A própria ideia de viver em sociedade só é possível por esse preço que se traduz em um mal-estar. É preciso reprimir a agressividade humana para que haja um meio social. O problema, como diz Millot (1982, p. 149), pensando na filogênese e na ontogênese, é: “A civilização é o resultado do processo educativo da humanidade” – educação entendida, aqui, como um processo estrutural incorporado pelos indivíduos. O supereu, por exemplo, é um resultado tanto filogenético como ontogênico. Como pensarmos a educação a partir dessa reflexão?

2.2. Uma educação voltada ao real

Uma educação voltada ao real teria que lidar com a crueza de um mundo que não está colocado para nos satisfazer. Podemos, em muitos momentos, fantasiar o mundo, viver em uma ilusão, como na religião, contudo isso não resolve o problema. Ainda teríamos que saber lidar com as frustrações que o mundo nos traz. Millot observa que não é necessário ser analista para se atentar a essa conjuntura, pois qualquer pessoa pode alcançar uma ética voltada ao real. Então, mesmo aceitando que haja essa “ética voltada ao real”, em que a psicanálise nos ajudaria?

Freud nos mostra em larga medida que a educação deve ter uma boa medida de liberdade e, ao mesmo tempo, habilidade para coagir a pessoa. Entretanto, como diz Millot, é preciso complementar: “O único auxílio que a psicanálise parece capaz de contribuir à educação e ao educando é de caráter... analítico. Não haveria educação ‘analítica’ no sentido de uma aplicação da psicanálise à educação. Mas educador e educando podem ter proveito de uma cura analítica” (MILLOT, 1982, p. 157). Isto é, a possibilidade de uma pedagogia analítica seria contraditória, porque a posição de um educador não poderia ser a mesma que a de um psicanalista em relação a uma mesma pessoa ao mesmo tempo.

Millot insiste nesse ponto de mal-estar, de uma impossibilidade de tentarmos mascarar nossas frustrações, e chega à conclusão de que “Não há humanidade sem neurose, não há civilização – tomada no sentido de aculturação – sem mal-estar. Nenhuma reforma pedagógica, nenhuma transformação social permitiria eximir-se dessa consequência da existência da linguagem: o Inconsciente” (MILLOT, 1982, p. 164). Então, podemos questionar, não há nada que a psicanálise possa nos trazer na reflexão sobre a educação?

Talvez o principal ponto seja a insistência de Freud em dizer que é possível uma reeducação pela análise. Reeducar, nesse caso, significa tomar uma outra postura em relação a si, ao outro, à sociedade, à moral, aos seus próprios desejos, à nossa relação com as frustrações etc. Ou seja, uma tarefa que Freud diz ser impossível – como seria possível uma reeducação em tal “densidade” de questões?

Pensando na obra Sobre a Pedagogia, Emmanuel Kant (2018) aproxima a educação e a arte de governar: “Duas invenções dos homens podem ser consideradas como sendo as mais difíceis, a saber, a arte de governar e a arte de educar, e, no entanto, as ideias de ambas ainda são controversas” (KANT, 2018, p. 15). Anos depois, em uma célebre passagem de um dos últimos textos de Sigmund Freud, Análise terminável e interminável, ele acrescenta a psicanálise à lista das invenções mais difíceis de realizar: “É como se analisar fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’, em que de antemão se sabe que o resultado será insatisfatório. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são educar e governar” (FREUD, 2018, p. 319).

Impossível, poder-se-ia pensar, porque não existe um modelo a se seguir, tanto no ato de governar como na análise e na educação. Pensando no educador, não há um modelo em que ele poderia se basear; no educando, não há um modelo em que ele poderia se pautar. Seria preciso superar essa ideia; superar a concepção mimética de agirmos a partir de um ideal. Seria essa, afinal, a tarefa impossível da análise, da educação e do ato de governar?

Pensando em responder isso, o que mais interessa na discussão de Millot é sua posição:

Por nossa parte, cremos que aqui residem as diferenças essenciais entre a orientação analítica e a orientação pedagógica. A pedagogia se dirige ao Eu e aponta ao seu reforço, mediante à angústia, com o fim de submeter a si as pulsões. Isto só faz com que culmine na produção de repressão. A análise, pelo contrário, se apoia no inconsciente para obter o levantamento daquele.

(MILLOT, 1982, p. 181)

A psicanálise, no fundo, mesmo buscando fazer uma reforma na educação, teria chegado a um impasse, qual seja o de que é preciso saber lidar com a realidade. Porém, a forma como o sujeito leva em conta essa realidade não seria análoga à forma como um educador poderia dispor aos seus educandos se estivesse visando uma profilaxia – uma possibilidade de evitar que a pessoa desenvolva problemas que poderiam ser “previstos”, como no caso de a criança lidar com sua sexualidade. Tem-se então uma tarefa impossível, segundo Freud, porque mesmo tendo “notícias” sobre a sexualidade infantil, não parece ser possível evitar que a criança passe por momentos de frustração. Assim, a conclusão de Millot é de que a psicanálise teria contribuído para pensarmos a pedagogia, mas sua pretensão não seria “maior” do que torná-la mais “liberal”, no sentido de ser menos repressiva em algumas práticas de comportamentos sexuais das crianças.

Isso nos traz uma reflexão sobre a relação do inconsciente do educador e do educando e, ainda, do educador consigo, com sua história com os outros e com a sociedade em geral. O mesmo poderíamos pensar sobre o educando. Se há algo que a psicanálise nos ensina é que o inconsciente está presente nesse processo – e seria isso que estaria em jogo entre o educador e o educando. Consequentemente, seria uma ilusão imaginar que isso não tem um efeito (ou que poderia ser “dominado”) na relação do adulto com a criança. “Na relação pedagógica, o inconsciente do educador demonstra pesar muito mais que todas as suas intenções conscientes” (MILLOT, 1982, p. 199).

Se isso for verdade, há como pensarmos em uma relação entre pedagogia e psicanálise? A conclusão de Millot (1982, p. 199) é de que “Não pode haver uma pedagogia analítica no sentido de uma ciência da educação que emprega para seu proveito o saber sobre o inconsciente adquirida pela experiência psicanalítica”. Podemos pensar de outra forma? Se não, a psicanálise só poderia exercer uma função de forma isolada, na clínica. O ideal seria que os educadores passassem por uma análise, unicamente para lidarem melhor com suas questões. Nesse sentido, retomamos as últimas palavras do livro de Millot:

A contribuição da análise à educação consistiria pois, essencialmente, no descobrimento da nocividade desta, ao mesmo tempo, sua necessidade. Não há aplicação possível da psicanálise na pedagogia; não há pedagogia analítica no sentido de que o pedagogo alinharia sua posição subjetiva sobre a do analista e adotaria ‘uma atualidade analítica’ em relação ao educando. Tudo o que o pedagogo pode aprender da análise e pela análise é saber pôr limites à sua ação: saber que não pertence à ordem de nenhuma ciência, se não da arte. [...] A antinomia entre o processo pedagógico e o processo analítico traz como corolário a impossibilidade de ocupar frente à mesma pessoa o lugar do educador e do analista.

(MILLOT, 1982, p. 205-208)

Tentemos avaliar outra forma de pensar essa relação entre a educação e a psicanálise a partir de um outro pensador contemporâneo brasileiro: Rinaldo Voltolini. Ele reconhece a importância do trabalho de Millot, principalmente no Brasil, percebendo que há uma “conclusão que permanece muito verdadeira, mas que para além de seu valor específico tornou-se a base de um afastamento entre os campos produzindo um ostracismo na pesquisa psicanalítica na educação” (VOLTOLINI, 2018, p. 20). Entretanto, seria esta uma conclusão definitiva? Vejamos o que ele propõe.

3. Conclusão – educação e psicanálise: uma relação possível?

Rinaldo Voltolini tem vários textos publicados sobre o entrecruzamento entre a educação e a psicanálise. Um deles se chama Educação e psicanálise (2011). Sua posição nesse livro é: “[...] não existe uma pedagogia psicanalítica porque, ao contrário, a posição da psicanálise no campo educativo é a de desmontar a pedagogia enquanto discurso mestre e exclusivo sobre a educação” (VOLTOLINI, 2011, p. 10). Isso não significa ser contra a pedagogia, mas representa uma proposta de pensá-la do avesso. Ou seja, a psicanálise pode modificar nossa forma de pensar a educação.

Voltolini (2011, p. 11) afirma também que, ao se debruçar sobre a pedagogia, há algo que nos revela a psicanálise: há “[...] a ignorância particular e insuperável, embora não incontornável, de todo adulto em relação à criança e sobre o campo amoroso que se instala entre o educador e o educando, permeando essa relação com uma atmosfera particular, decisiva quanto ao destino da aprendizagem”. Essa ignorância do adulto levaria a educação a um “fracasso”.

Ao propor uma mudança da concepção disciplinar na educação, por exemplo, assim como na forma que se pensa uma criança, a psicanálise não vai contra a educação, mas pensa a partir dela. Na verdade, o que Voltolini propõe é pensar quais as condições de possibilidade do educar. Por exemplo: sem se voltar a um ideal. O que se propõe, de forma ousada, é a ação de deslocar a ideia de educação para o educar. Contudo, é preciso perceber que há uma diferença entre educar e analisar: o analista não tem o papel de educar, mas a psicanálise tem com o que contribuir no educar.

Voltolini destaca aquelas três impossibilidades (curar, educar e governar). A seu ver, o que Freud diz sobre essa impossibilidade vem de algo estrutural inalcançável. Isso, porque, independentemente dos meios dispostos para educar, há uma impossibilidade lógica para tal. Por quê? Sua resposta é: pela impossível mestria. Mestria é aqui entendida como uma maximização do efeito da educação sobre a criança em uma direção desejada. Ou seja, há um direcionar-se a um ideal – uma educação que visa adequar a criança ao desejo do outro (dos pais, por exemplo). Mas como saber ou controlar o efeito do impacto da educação na criança? Seria possível não influenciar o desejo da criança? Seria possível os pais não criarem uma fantasia em relação ao filho ou não o influenciarem em relação às suas próprias fantasias? Eis a resposta de Voltolini (2011, p. 31): “[...] trata-se de uma influência não controlável, ou seja, de uma impossível mestria”.

Há de se destacar, ainda, o papel da transferência na relação professor-aluno, assim como acontece na análise (analista-analisando). Na transferência, o aluno toma o professor como “sujeito suposto saber” – tal como formula Jacques Lacan (1973). Isto é, há algo mais do que uma simples relação entre ensino-aprendizagem.

Freud cria aqui uma distinção nunca antes formulada cujo quilate só a psicanálise está em condições de acusar: transmitir versus ensinar. En-signar quer dizer “pôr em signos”, o que exige uma intencionalidade consciente e deliberada na direção de passar uma certa significação. Já “transmitir” indica, feito um vírus que passamos adiante à nossa revelia, ausência de intenção consciente e, consequentemente, de qualquer possibilidade de mestria.

(VOLTOLINI, 2011, p. 35-36)

Dessa forma, muitas vezes o educador transmite “o que não sabe” e o aluno recebe, por alguma escolha inconsciente, o que está sendo transmitido, mesmo que não dito em voz alta – algo que está à nossa revelia: “em suma, qualquer intenção de mestria é impossível simplesmente porque falamos, e em nossa fala estamos referidos sempre a uma outra cena que nos condicionou e condiciona, e que fala através de nós” (VOLTOLINI, 2011, p. 36).

Assim, apesar de impor um certo ideal cultural a ser seguido,

[...] [a criança] luta contra aquilo que a constrange numa dada direção idealizada pelo outro. Do lado dela, joga-se um impossível de adaptação. O impossível da educação encontra aqui sua face expressamente positiva, quer dizer, é ela que chancela, que ratifica a liberdade humana. A educação mais bem-sucedida é a que fracassa, permitindo que a nova geração introduza o novo.

(VOLTOLINI, 2011, p. 56)

Voltolini nos traz uma ideia de que, apesar de haver transferência, consciente ou não, se a criança incorpora um ideal de eu, ela é capaz de transformá-lo. Essa ideia pode ser encontrada na filosofia também. Por exemplo, ao lermos os cursos de Maurice Merleau-Ponty, A instituição na história pessoal e pública e O problema da Passividade – o sono, o inconsciente, a memória, ele escreve: “viver, para um homem, não é somente impor perpetuamente significações, mas continuar um turbilhão de experiências que é formado, com nosso nascimento, no ponto de contato com o ‘fora’ e naquilo que ele é convocado a viver” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 67). Afinal, deformamos nossas memórias sempre: não podemos tomar nosso passado senão a partir de nosso campo de presença, pois “a memória deforma a realidade que, entretanto, não se forma como realidade senão nela” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 271). Ou seja, o fato de haver transferência não significa que seremos fixados a um ideal. Podemos modificar o que vivenciamos.

Ademais, Voltolini (2011, p. 62) destaca que, tendo em mente o poder da transferência, Freud também daria importância à cautela, pois “o educador trabalharia a partir de seu poder sugestivo, servindo como medida de ideal do eu para um educando e servindo-se desse poder para garantir sua influência sobre ele”.

Podemos perceber como, tanto na educação quanto na psicanálise, há contribuições nesse debate. Mesmo tratando de campos epistemologicamente diferentes, a reflexão de um possível entrecruzamento entre eles pode nos levar a pensar de outra forma, ampliando a própria concepção do que um analista ouve de um outro em sua clínica ou a forma como um educador incorpora os efeitos do inconsciente subjetivo relacionados aos problemas da aprendizagem em um discurso social escolar.

Uma forma de concluirmos a reflexão sobre a psicanálise e a educação pode ser pensada analogicamente com a descrição que Marilena Chaui faz sobre o que ela pensa ser ensinar:

Eu tenho da prática de ensinar uma ideia cujo sentido, certa vez, por acaso, reencontrei (com alegria e orgulho, aliás) num texto de Merleau-Ponty em que ele diz que o bom professor não é aquele que diz aos alunos “façam como eu”, e sim aquele que lhes diz “façam comigo”. E Merleau-Ponty dá um exemplo. O mau professor de natação faz duas coisas: primeiro, se joga sozinho na água e diz aos alunos “façam como eu”. Depois ensina os alunos a nadar na areia, como se areia e água fossem o mesmo; ao contrário, o bom professor de natação é aquele que se joga na água com os alunos e lhes diz “façam comigo”, porque a relação não é dos alunos com o professor, mas com a água. Eu penso que o bom professor é aquele que não ocupa o lugar do saber, aquele que deixa o lugar do saber sempre vazio, que instiga os alunos a se relacionarem com o próprio saber pela mediação do professor, que faz com que todos compreendam que, o lugar do saber estando vazio, todos podem aspirar por ele. Penso que há um enorme equívoco sobre a prática do diálogo. Explico-me. Em geral, o professor imagina que desmontará a aparência autoritária do ensino se ele estabelecer um diálogo contínuo com os alunos. Ora, qual o engano? Supor que o diálogo dos alunos deva ser com ele, professor (suposto ocupante do lugar do saber), quando deve ser com o próprio saber. Acredito que o professor deve ser o mediador desse diálogo, e não o objeto do diálogo. Por isso penso que o bom professor é o que mantém a assimetria entre ele e os alunos para que estes, sozinhos, conquistem uma relação de simetria e de igualdade com ele, tornando-se professores também. Em suma, eu penso (e prático) a educação como formação, e não como transmissão e adestramento que seriam facilitados pelo “diálogo”.

(CHAUI, 2018, p. 61)

Pensando nessa analogia, tanto na psicanálise quanto na educação há uma suposição que deve ser eliminada durante o processo de análise ou de ensino/aprendizagem, qual seja a de que alguém ocupe um suposto saber. Nessa relação, tanto o analista como o professor seriam os mediadores.

Referências

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Recebido: 02 de Abril de 2020; Aceito: 04 de Julho de 2020

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