SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Pesquisa: três dimensões formativasProfessores(as) formadores(as) e suas concepções sobre o papel do(a) professor(a): uma análise a partir de Giroux, Freire e Gur-Ze’ev índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022021 

ARTIGOS

Educação para a humanização na perspectiva da ética da alteridade

Education for humanization in the. perspective of the ethics of otherness

Carlos Alberto Tolovi1 
http://orcid.org/0000-0002-0272-2379

Francione Charapa Alves2 
http://orcid.org/0000-0002-8405-8773

João Batista de Albuquerque Figueiredo3 
http://orcid.org/0000-0002-6199-8324

1Doutor em Ciências da Religião pela PUC – SP (2016). Pós-doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC. É professor de Filosofia na Universidade Regional do Cariri – URCA – CE, lotado no Departamento de Ciências Sociais.

2Professora Adjunta da Universidade Federal do Cariri- UFCA. Pós-doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará-UECE.

3Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Educação da UFC. Têm Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina.


Resumo

Uma das questões que desafia educadores e educadoras envolvidos(as) nos processos de ensino e aprendizagem consiste no papel da Educação do ponto de vista da vida em sociedade. E uma resposta aceita de forma genérica aponta para a dimensão da humanização. Questiona-se: Até que ponto a relação educativa possui a capacidade e a potencialidade de humanizar? Como relacionar a construção do conhecimento à perspectiva de valoração que promova a sociabilidade humana? A partir desses questionamentos, este texto objetiva refletir sobre a Educação na perspectiva da ética da alteridade como uma das alternativas viáveis para o processo de humanização. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, com base nas obras de Martin Buber (1974; 1987) e Paulo Freire (1979; 1983) como principais referências teóricas, pensando o papel da Educação no enfrentamento desse problema. A partir das leituras, compreendemos o conceito de alteridade, que aponta para o caminho da desmitologização da realidade por meio dessa mesma dimensão, que pode ser compreendida no campo da Educação. Concluímos que somente na perspectiva da ética da alteridade, essa relação pode ser dialógica, e apenas assim, esse processo pode ser transformador e libertador, postura educativa que potencializa relações de solidariedade e, consequentemente, humaniza em seu significado mais pleno de ser com o(a) outro(a).

Palavras-chave Ética; Educação; Colonialidade; Alteridade

Abstract

One of the issues that challenges educators involved in teaching and learning processes is the role of Education from the point of view of life in society. And a generally accepted answer points to the dimension of humanization. The question is: To what extent does the educational relationship have the capacity and potential to humanize? How to relate the construction of knowledge to the valuation perspective that promotes human sociability? Based on these questions, this text aims to reflect on Education from the perspective of the ethics of alterity as one of the viable alternatives for the humanization process. This is a bibliographical research, based on the works of Martin Buber (1974; 1987) and Paulo Freire (1979; 1983) as main theoretical references, considering the role of Education in facing this problem. From the readings, we understand the concept of alterity, which points to the path of demythologizing reality through this same dimension, which can be understood in the field of Education. We conclude that only from the perspective of the ethics of alterity, this relationship can be dialogic, and only then, this process can be transformative and liberating, an educational posture that enhances solidarity relationships and, consequently, humanizes in its fullest meaning of being with the other.

Keywords Ethics; Education; Coloniality; Otherness

1 Introdução

A conjuntura na qual estamos inseridos, tanto no âmbito mundial quanto no nacional, provoca-nos uma profunda reflexão sobre o tema da humanização. Em sua maioria, os avanços tecnológicos que proporcionam aos seres humanos maior acesso à informação, em um universo globalizado, não conseguem diminuir as desigualdades e as injustiças sociais.

Os avanços do agronegócio não vislumbram como propósito eliminar a fome no mundo. Os avanços no campo econômico não possuem como objetivo estabelecer a justiça social e a distribuição de renda de forma equitativa. Os avanços na indústria farmacêutica possuem como foco a doença, em vez de investir na prevenção e na promoção da saúde e na manutenção da harmonia. Enfim, se o sistema hegemônico que rege o atual mundo globalizado é o capitalismo neoliberal, o acúmulo de capital está acima da justiça social. “A economia é apresentada como a ‘grande Deusa’ que estaria exigindo, constantemente, o sacrifício de uma classe menos favorecida para a afirmação e o fortalecimento de outra, com todos os seus privilégios e regalias” (OLIVEIRA, 1993, p. 22-23).

Temos de admitir que, na atualidade, estamos sendo envolvidos, direta e indiretamente, pelos grandes avanços científicos e tecnológicos, mantendo o ritmo de um acelerado processo de industrialização. Mas será que esse processo está acompanhando esse mesmo ritmo? Não é difícil constatar que, com a mesma velocidade com que estão se dando os avanços nas diversas áreas científicas e tecnológicas, gerando novas descobertas e abrindo novas possibilidades para os seres humanos, também avança o processo de destruição da vida no nosso planeta por meio da utilização irresponsável dos bens naturais. Como afirma Mignolo (2017, p. 7) ao apontar um problema que se estende a partir dos processos de colonização: “A ‘natureza’ – amplamente concebida – se transformou em ´recursos naturais´, enquanto a ‘natureza’ – como substantivo concreto que nomeia o mundo físico e não humano – se tornou no Novo Mundo a base para o cultivo de açúcar, tabaco, algodão, etc.”.

Diante desse problema, podemos nos perguntar: Se o homem é um ser em constante tessitura, como se constitui a dimensão de valoração nesse processo existencial contínuo, inserido em uma realidade cultural de objetivação? Além disso, o que a moral e a ética teriam a ver com isso? Se a dimensão de valores consiste na base da moral e da ética, como isso estaria implicado às relações sociais, justificando dominação ou luta pela sua libertação? Se a moral e a ética se constituem por meio de valores, e se estes são construídos historicamente, como compreender esses dois campos como justificadores das relações de poder? E qual seria o papel da Educação diante dessa realidade? De que forma podemos colaborar para que a Educação se transforme em uma mediação capaz de contribuir para a humanização e o fortalecimento de princípios éticos fundamentais? É nesse contexto que iremos recorrer a Martin Buber (1974; 1987) e Paulo Freire (1979; 1983). Nosso propósito consiste em oferecer elementos de reflexão, tomando como referência os impactos da moral e da ética no campo da Educação e das relações sociais.

Dessa forma, entendemos que é possível refletir com mais fundamentação epistemológica sobre o papel da Educação como uma forma de “desmitologização” e “descolonização”, mesmo porque, se o mito é produzido a partir dos elementos de uma determinada cultura, por meio de valores que são cultivados coletivamente, como entender o papel da ética? Se a ética consiste em uma forma de extrapolar os limites da moral, o que representa isso no campo da Educação? Por fim, como definir o papel e o lugar do(a) educador(a) no processo de resistência e transformação da realidade? O caminhar da humanização pela Educação não passaria necessariamente pela ética da alteridade? Partindo desses questionamentos, este escrito objetiva refletir sobre a Educação na perspectiva da ética da alteridade, como uma das alternativas viáveis para o processo de humanização.

2 A mitologização no campo da Educação

Durante muito tempo, e mesmo na atualidade, é muito comum falar de mito como sendo apenas uma narrativa que produz uma “mentira”. Quando queremos apontar uma narrativa como algo que falsifica a realidade, gerando adesão da comunidade, costumamos afirmar que é um mito. Por outro lado, quando queremos empoderar um personagem, fazendo com que ele receba, por certa narrativa, a roupagem de um super-herói, também podemos recorrer à ideia de mito.

Mas, afinal, o que define um mito? Essa é uma questão que nos desafia. Contudo, mesmo de forma limitada, podemos resumir a estrutura do mito partindo de um elemento que descrevemos como condição sine qua non, ou seja, a condição a partir da qual todos os mitos são gerados: o caos4. Como afirma Croatto (2010, p. 316): “Do ponto de vista tipológico, o mal é igual ao caos (informe, desestruturado) e a salvação é igual à criação”.

Se analisarmos com atenção, todas as narrativas míticas que explicam e justificam a origem de alguma coisa ou de algum cosmos, fazendo sentido para uma determinada cultura, têm a desordem ou uma condição caótica como a dimensão geradora de determinadas necessidades. Esse caos pode ser natural ou social. Sendo social, pode ser produzido. O problema é que, em geral, os grandes sistemas de dominação constroem narrativas que naturalizam o caos produzido por eles mesmos. Aqui reside o papel pedagógico da moral colonializante, da colonialidade (LANDER, 2005; QUIJANO, 1991; 1997; 2005). Como afirma Buber (1974, p. 35): “o mundo ordenado não significa a ordem do mundo”.

Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer que o caos, que gera determinadas necessidades, também desperta desejos partilhados coletivamente. A narrativa, portanto, responde aos desejos e às necessidades coletivas, apontando formas de transcendência, mesmo que essas narrativas não tenham fundamentação racional, levando em conta a lógica filosófica ou científica. Mas a questão está no fato de que não é a narrativa que dá vida ao mito. O segredo da vida do mito está na aceitação coletiva. A coletividade é quem oferece o sopro de vida.

Porém, todas as necessidades e os desejos da coletividade, a partir da narrativa, são direcionados a um personagem mítico, o qual pode passar a ser visto com o poder de resolver todos os problemas geradores do caos. No entanto, esse “deus” estabelece seu “preço”, que, por sua vez, assume o caráter de sacrifício, requer sacrifício. Contudo, o mesmo é feito por meio de rituais para os quais as vítimas são selecionadas a partir de critérios bem determinados: elas não podem possuir poder de reação, para não colocarem em risco o sistema sacrificial do algoz. Como afirma Girard (1990, p. 16), “[…] a sociedade procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima ‘sacrificiável’, uma violência que talvez golpeasse os seus próprios membros, que ela pretende proteger a qualquer custo”.

A partir dessa estrutura, podemos compreender melhor o processo de colonialização que desemboca em uma realidade colonializada. Quando a vítima, olhando para o “fundo da caverna” 5, acredita que somente o seu algoz pode garantir a sua própria sobrevivência, então o poder de quem a domina passa a ser compreendido como o poder de quem a permite viver.

Nesse sentido, podemos afirmar que a vítima expiatória não “cai do céu”. Ela é produzida “na terra”, como consequência das relações de poder geradoras de injustiças e desigualdades sociais, que retiram oportunidades e não possibilitam o despertar das potencialidades. Nesse contexto, falar em cultura de paz, sem levar em conta a superação das desigualdades sociais, consiste em alimentar uma moral conservadora que sustenta relações de poder injustas em nome de uma falsa homogeneidade. Portanto:

Há uma relação clara entre a dominação e a exploração: nem toda dominação implica exploração. Mas esta não é possível sem aquela. A dominação é, portanto, sine qua non de todo o poder. Esta é uma velha constante histórica. A produção de um imaginário mitológico é um dos seus mecanismos mais característicos. A naturalização das instituições e das categorias que ordenam as relações de poder foram impostas pelos vencedores/dominadores tem sido, até agora, o seu procedimento específico

(SANTOS, 2009, p. 112).

Tomando por base esse ambiente, podemos compreender, de forma mais aprofundada, a preocupação de Freire ao defender uma Educação que potencialize a consciência crítica e, como tal, contribua com o desmitologizar/descolonializar a realidade, o superar a opressão. Em suas palavras:

A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a conscientização para a libertação. [...] Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência de mistificar a realidade que se dá a captação dos oprimidos, para os quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso mesmo a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a “desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante

(FREIRE, 1979, p. 15).

Porém, precisamos entender, também, que na base de todo sistema de dominação há duas dimensões que fazem parte da estrutura das relações de poder: a negação do(a) outro(a) enquanto ser e a mitologização da realidade como forma de colonialização, em que o(a) oprimido(a) internaliza os valores do(a) opressor(a), com o início de um processo de colonialidade.

Neste artigo, com Martim Buber; trabalhamos a primeira dimensão, principalmente a partir da obra “Eu e Tu” (1974); na segunda perspectiva, teremos como referencial teórico o educador Paulo Freire, especificamente, a obra “Pedagogia do oprimido” (1983).

3 Martim Buber e as bases do conceito de alteridade

A realidade na qual estamos inseridos, principalmente em tempos de pandemia, revela-nos que a primazia do poder econômico coloca em xeque a dignidade da vida de milhões de pessoas no nosso planeta, apontando para a necessidade urgente de trabalharmos a dimensão da alteridade e da corresponsabilidade como duas categorias de extrema importância no campo da Educação. E diante dos debates sobre a “Escola sem Partido”, promovidos pela extrema direita no Brasil nestes últimos anos, somando-se à proposta de “Reforma do Ensino Médio”, da desvalorização da área de humanas e da retirada de investimentos na Educação em geral, podemos perceber que não temos apenas uma estrutura educacional que promove saberes fragmentados. O que estamos enfrentando pode ser definido como uma onda de adequação de uma nova composição ideológica para um Estado completamente dominado pelo mercado e voltado às elites do nosso país. Afinal, como afirma Harvey (2016, p. 10): “Crises são essenciais para a reprodução do capitalismo”. Em outras palavras, um caos para os mais vulneráveis.

É nesse contexto que Freire está sendo retomado e, por isso, perseguido. Porém, se a proposta freireana passa por uma relação educativa, que se constitui essencialmente como dialógica e humanizante, então pode corroborar com isso a reflexão sobre as categorias buberianas.

Se Freire trabalha a Educação como forma de emancipação e processo de libertação de mecanismos de opressão e dominação (1979; 1983), por meio de uma interação dialética e dialógica, Buber (1987) corrobora com a possibilidade de compreendermos a relação a partir das bases da alteridade, o que será depois aprofundado por Lévinas (1991), Dussel (2000) e outros pensadores.

Buber nos indica uma dupla possibilidade do existir como ser humano no mundo, a partir de duas relações: Eu -Tu (relação ontológica) e Eu - Isso (relação objetivante). É nesse âmbito que nasce a nossa responsabilidade para com o(a) outro(a).

Se tomarmos o conceito em toda a sua realidade, responsabilidade significa sempre responsabilidade diante de alguém. Responsabilidade para consigo mesmo é uma ilusão. A verdadeira responsabilidade é sempre responsabilidade diante do outro. A autêntica responsabilidade repousa sempre sobre a realidade Eu e Tu

(BUBER, 1987, p. 79).

Para entendermos melhor essa categoria da relação, como fonte da responsabilidade, podemos tomar outra afirmação de Buber (1974, p. 5): “Não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavraprincípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso”.

Buber destaca a relação como o eixo orientador de nossa existência. Afinal, nós somos a partir do(a) outro(a), somos com o(a) outro(a) e, em tudo o que fazemos, de uma forma ou de outra, levamos em conta o(a) outro(a), como ente em si ou objeto. Porém, para deixar clara a relação como reciprocidade fundamental, Buber (1974, p. 10) afirma: “Eu não experiencio o homem a quem digo Tu. [...] A experiência é distanciamento do Tu”.

Nesse sentido, ir ao encontro do(a) outro(a) não significa, necessariamente, que “estou” dialogando com ele(a). O(a) outro(a) pode ser objetivado(a) a partir de “meus” desejos, “minhas” vontades, “minhas” necessidades e minha intencionalidade. Na relação dialógica, “O Tu encontra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado” (BUBER, 1974, p. 12). A gratuidade é condição de possibilidade de um encontro ente o Eu e o Tu. Afinal, como afirma Buber (1974, p. 15), “O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado”.

Trazendo para a área da Educação, podemos afirmar que grande parte de nossas tarefas e ações com os(a) nossos(a) estudantes caem no campo da objetivação. Afinal, não se faz necessário que o sujeito do conhecimento dialogue com o objeto a ser conhecido. Assim como não se faz necessário construir relação dialógica para a transmissão de conhecimento. Portanto, em geral, a nossa relação se dá no campo do Eu - Isso, com planejamento preelaborado, horários predeterminados, metas, notas, etc.

Porém, quando o(a) educador(a) é dialógico(a), mesmo no campo das objetividades intencionais, pois está inserido(a) dentro de uma estrutura predeterminada, e precisa responder a determinados objetivos predefinidos, ele(a) pode provocar momentos de encontro. Aquele momento em que o horário, o conteúdo, a avaliação, etc., tudo se torna secundário diante do encontro que se dá entre educador(a) e educando(a), quando entram em uma mesma “sintonia”, de forma “desarmada” e para além da obrigatoriedade instituída. Porém, esse encontro não é possível de acontecer quando se olha o(a) outro(a) como objeto de uma determinada ação ou atuação.

Somente quando o(a) outro(a) é reconhecido(a) na condição de ser em si, no reconhecimento de seus direitos, de sua dignidade e de suas possibilidades, no universo da diversidade, é que esse encontro dialógico pode acontecer. Portanto, a alteridade se constitui como condição essencial para possibilitar a dialogicidade. Como afirma Buber (1974, p. 152), “O curar como o educar não é possível, senão àquele que vive no face-a-face, sem contudo deixarse absolver”. Mas, nessa absorção, entramos e saímos. Contudo, sempre um pouco mais transformados(a)6, levando em conta os campos do conhecimento, da humanização e da sabedoria. Como afirma Dussel (1977, p. 37): “ O distanciamento funda a possibilidade das possibilidades, das mediações”.

4 Paulo Freire: a relação educador(a) - educando(a)

Podemos realizar uma releitura da teoria freiriana no que diz respeito aos processos de ensino e aprendizagem partindo da concepção buberiana de relação. Ele nos provoca à percepção de que o(a) educando(a) é um(a) outro(a) que deve ser elevado(a) à condição de ser histórico, em toda a sua plenitude, sem negar o seu universo objetivo e subjetivo. Portanto, para Freire (1983), outro(a) não é apenas um Tu, é um(a) autor(a)histórico(a), situado(a) historicamente, com todas as amarras que o(a) prendem a um lugar social que, por sua vez, influencia a sua visão de mundo.

Dito isso, Paulo Freire, mesmo sem negar a importância da dimensão antropológica, afirma a necessidade de se dar visibilidade à dimensão política da Educação, na qual a relação educativa se transforma em uma relação que possibilita a desmitologização e o desvelamento de uma realidade alienante, despertando a consciência crítica para chegar ao que se denomina hoje de “empoderamento do sujeito histórico” ou, ainda, empoderamento dos(as) atores (atrizes) sociais. Corroborando com esse pensamento, Schmidt (2021, p.717) retoma Freire ao afirmar:

Freire ensina que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo que a nutre, enquanto a radicalização é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. A primeira é mítica, enquanto a outra é crítica. Aquela, irracional, transforma a realidade numa falsa realidade que, assim, não pode ser mudada; essa, libertadora, engaja os homens e as mulheres cada vez mais no esforço da transformação da realidade concreta, objetiva.

A partir daí a proposta de Freire define um claro objetivo: interferir nos “destinos” do indivíduo para intervir na formação da vida coletiva. Todavia, o autor era consciente de que as transformações sociais necessárias para produzir igualdade nas relações de alteridade e justiça social nas condições materiais que definem a luta pela sobrevivência, na perspectiva de uma vida digna, não poderiam ficar restritas ao campo do idealismo.

Era preciso levar em conta, também, as categorias marxistas: as condições materiais e históricas em que esse indivíduo estava inserido. Afinal, é a partir desse universo, associado aos emaranhados da teia do cotidiano, que se materializam as ilusões ideológicas que servem de manutenção para todo e qualquer sistema de dominação. Como afirma Duarte (2003, p. 13-14):

Quando uma ilusão desempenha o papel de reprodução ideológica de uma sociedade, ela não deve ser tratada como algo inofensivo ou de pouca importância por aqueles que busquem a superação dessa sociedade. Ao contrário, é preciso compreender qual o papel desempenhado por uma ilusão na reprodução ideológica de uma formação societária específica, pois isso nos ajudará a criarmos formas de intervenção coletiva e organizada na lógica objetiva dessa formação societária.

Como observa Freire, não podemos dialogar com os oprimidos a partir da denúncia de sua opressão. Precisamos compreendê-los a partir de seu “senso comum”. Esse ensinamento freireano é precioso para pensarmos a relação dialógica na perspectiva do desvelamento da realidade. Freire (1983, p.102) nos diz que:

O nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “‘bancária’” ou de pregar no deserto.

Essa afirmação pode ser analisada a partir das categorias buberianas. A realidade, em si, é objetivante e objetivada. Analisar e compreender o(a) oprimido(a) dentro dessa realidade consiste numa atitude racional objetiva. Contudo, para dialogar com o(a) oprimido(a) é preciso que haja o encontro, o qual, em si mesmo, não precisa ser explicado, nem justificado. Não carece de ser sustentado pela intencionalidade pragmática. Ou seja, minha intenção não é, por exemplo, promover este ou aquele encontro por conta de uma necessidade, tendo em vista a resolução de um problema ou a definição de um encaminhamento prático. Enfim, não é preciso esse encontro para atingir um objetivo predeterminado ou como um meio para atingir um fim. Como afirma Buber (1974, p. 13), “ somente na medida em que todos os meios são abolidos acontece o encontro”.

Toda relação educativa pode ser pensada a partir desse pressuposto. Se a relação ensino-aprendizagem acontecer dentro dessa perspectiva, o conhecimento consistirá em uma construção que emerge da relação entre pessoas (Eu e Tu), norteada pelo princípio da alteridade. Diante disso, o principal desafio não consiste em entender o método proposto ou o que devemos fazer para colocar em prática uma teoria simples de ser compreendida. A principal questão que pode ser levantada aqui consiste na dificuldade do(a) educador(a) de se inserir no universo do(a) educando(a), encontrar-se com ele(a) e, a partir desse encontro, fazer emergir o diálogo que não se dá apenas por meio de palavras e conceitos, mas de uma relação dialógica e dialética. Uma relação conflitante e ao mesmo tempo respeitosa. Enfim, como afirma Freire (2000, p. 74), “[…] a dialogicidade não pode ser entendida como instrumento usado pelo educador, às vezes, em coerência com sua opção política. A dialogicidade é uma exigência da natureza humana e também um reclamo da opção democrática do educador”.

Dessa forma, tanto Buber quanto Freire afirmam que o diálogo não pode ser um meio para se atingir um fim. Afinal, se a Educação consiste em uma determinada forma de relação, esta pode ser dialógica e libertadora em si mesma. Contudo, precisa superar os limites da racionalidade teórica e se fazer práxis concreta, entendida como “[...] reflexão e ação dos seres humanos sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1975, p. 40).

Sendo assim, é no desafio da inserção do(a) educador(a) na realidade do(a) educando(a), para poder dialogar com ele(a), levando em conta o seu lugar social, que colocamos a importância da moral e da ética. Afinal, se esses dois campos possuem como base a dimensão de valores, são os mesmos que definem a leitura de mundo das pessoas que habitam o “universo” de um mesmo senso comum.

5 Dimensão moral na Educação

Quando nascemos em uma cultura, somos automaticamente envolvidos(a)por determinadas normas, ligadas a costumes, a partir de valores que o nosso grupo social cultivou. Nessa perspectiva, remetemo-nos a Platão (2001), quando nos diz que, ao nascer, somos acorrentados aos pés e ao pescoço dentro de uma caverna que limita a nossa visão de mundo7. Como afirma Tolle (2011, p. 48), “A história do cristianismo é um exemplo básico de como a crença de que estamos na isolada posição de detentores da verdade, ou seja, certos, pode corromper nossas ações e nossos comportamentos ao ponto da insanidade”.

Nesse contexto, a cultura ocidental greco-judaica-cristã, que se pretende dominante, interdita a concepção de Deus na condição de feminino; nossos anjos não podem ser negros; nossas relações familiares, em geral, não podem fugir do heterocentrismo; na relação de gênero estamos amarrados(as) a uma concepção machista; e o pobre, em geral, não pode assumir espaços de poder no campo da política, dominado pela elite8. De acordo com Silva (2008, p. 84): “A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido. Como sabemos desde o início, a diferença é parte ativa da formação da identidade.”

Da mesma forma, as histórias infantis alimentam o imaginário da criança com imagens de príncipes, princesas e heróis ligados ao perfil do(a) colonizador(a). É assim que também nas grandes narrativas o bem e o mal ganham formas e nestas os inimigos são muito bem escolhidos a partir de uma ideologia dominante e hegemônica. Dessa forma, o nosso universo cultural é cosmificado e mitologizado. Os(as) vencidos(as) são subalternizados(as) e colonializados(as), tendo de aceitar, assimilar e reproduzir as narrativas dos(as) vencedores(as). Como afirma Fanon (1968, p. 9):

[...] A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir-o “respeito dêsses homens subjugados; procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga.

À vista disso, Freire percebe o quanto a Educação poderia ajudar na desconstrução desses mecanismos de dominação, por isso, ele afirma:

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que hospedam o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor, poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora

(FREIRE, 1983, p. 32).

Nessa perspectiva, uma questão elementar deveria nos fazer refletir: o que estaria na base das relações de opressão? Afinal, estas não podem ser pensadas somente a partir da condição de dominação, que se constitui pelo poder de imposição. É preciso que haja um processo de submissão, de aceitação. Como afirma Freire (1983, p. 45), “[...] não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conformam como violentados, numa situação objetiva de opressão”.

E aqui queremos destacar uma questão fundamental: qual seria a forma mais eficiente de internalização dos valores do(a) outro(a)? E nós respondemos: por meio da moral violenta. É essa moral que, a partir da sua dimensão cultural, normatiza, normaliza, organiza e define a conduta, conduzindo as pessoas de um determinado grupo social a perceber o mundo de uma mesma forma, levando-as a agir de uma determinada maneira. Sabemos que a internalização desses valores está relacionada à atribuição de sentido que é dada ao mundo social pela luta que gira em torno dessas significações que se cristalizam na cultura.

É pela moral que a coletividade acredita na possibilidade de “reordenamento”, de harmonização. Contudo, essa reconstrução da ordem, sem a transformação das estruturas de poder, passa por uma narrativa mítica. Como afirma Freire (1983, p. 198), “Enquanto na teoria antidialógica a elite dominadora mitifica o mundo para melhor dominar, a teoria dialógica exige o desvelamento do mundo”.

Quando, por meio de uma relação de dominação, os valores do(a) opressor(a) são assumidos pelos(a)oprimidos(as), na condição de vencidos(as), ocorre um processo de colonialização, mas, quando se compreende esse processo como algo que vai além das formas históricas de conquista, de dominação de povos e territórios, em um determinado tempo histórico e lugar geográfico, pode-se perceber esse mesmo mecanismo na perspectiva da colonialidade (QUIJANO, 1997).

Portanto, se quisermos pensar a Educação como condição de possibilidade do processo de libertação, teremos de pensá-la imediatamente ligada à sua relação com a cultura dominante. Tomando essa realidade como nosso desafio, tendo em vista uma mudança de compreensão do mundo. “ Esta mudança de percepção não é outra coisa senão a substituição de uma percepção distorcida da realidade por uma percepção crítica da mesma” (FREIRE, 1983, p. 60).

É nesse contexto que queremos destacar a importância dos valores morais. Mesmo porque, no processo de colonialidade, faz-se necessário que o(a) colonializado(a) entenda como naturais as diferenças no campo do direito e das possibilidades. Ele(a) precisa interpretar passivamente o mundo a partir do lugar social ao qual foi “acorrentado (a)”, na “caverna”, que delimita a sua visão de mundo, tendo a teologia e a ideologia do(a) colonializador(a) como única possibilidade de compreender a realidade, projetada por meio das “sombras”.

Seguindo essa interpretação, a alegoria da caverna, de Platão torna-se profundamente significativa. Na caverna, os(a) prisioneiros(a) olham somente para o fundo, onde não é possível vislumbrar saída e sem esse vislumbre, a adesão às narrativas míticas se torna completa. Até mesmo a esperança não extrapola os limites das sombras projetadas. E a crença nas sombras é fundamental para se manter a ordem no interior da caverna, tomando o medo como mecanismo de controle.

Logo, os valores produzidos culturalmente ganham a estrutura de normatividade, que, por sua vez, estabelecem a “normalidade”. Uma necessidade da coletividade que precisa produzir para si mesma o sentimento de segurança diante da possibilidade da “desordem”. Dito isso, a moral é vislumbrada como a condição do ordenamento social. É por isso que quando a família e os(as) professores(as) perdem a autoridade sobre os(a) que estão sob sua responsabilidade, no senso comum, significa que perdem a moral. É nesse sentido que, também, a moral se tornou um elemento primordial no processo de colonialização. Se o(a) colonizador(a) é o(a) grande responsável para colocar “ordem” no mundo, implantando um processo de civilização, então, exigir que todos(as) se enquadrem em um mundo “civilizado” consiste em buscar o estabelecimento dessa ordem mundial.

Mas como compreender que essa mesma concepção continua presente em nossa Educação? Bem, quando Freire fala da Educação bancária ele está se referindo a uma Educação que reproduz o sistema de dominação. Uma Educação que prega e defende a ordem, mas uma ordem que ignora as contradições. Segundo Freire (1983, p. 78), “Para manter a contradição, a concepção ‘bancária’ nega a dialogicidade como essência da Educação e se faz antidialógica; para realizar a superação, a Educação problematizadora – situação gnosiológica – afirma a dialogicidade e se faz dialógica”.

O conceito de conscientização, ligada ao despertar da consciência crítica pela relação educativa, aparece como um elemento importante nas obras de Freire, principalmente na “Pedagogia do oprimido”. Afinal, faz-se necessário desmitologizar a realidade, desvelando-a, para que ela se torne objeto de reflexão dos(as) que são objetivados(as) dentro de um sistema de dominação e subalternização.

Somente assim os(as) colonializados(as) poderão perceber os limites dos valores morais que normalizam, normatizam e naturalizam relações de poder que justificam e sustentam as desigualdades sociais. Segundo Freire (1983, p. 55), “Até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de seu estado de opressão ‘aceitam’ fatalisticamente a sua exploração”. Nesse cenário, a vítima aceita que seu algoz decida por ela tudo o que diz respeito à sua própria vida.

6 A ética da alteridade como saída

Nós somos a diferença complexa na individualidade do ser e, ao mesmo tempo, a unidade presente no todo orgânico da existência. Somos a partir do todo, mas temos uma identidade que nos distingue. Hoje, mais do que nunca, os grupos minoritários no campo das relações de poder, por exemplo, reivindicam o reconhecimento a partir de uma identidade específica que exige respeito à diversidade. E no campo da Educação esse é um tema fundamental e paradigmático.

Afirmar que a relação dialógica se faz necessária na Educação é relativamente simples de se compreender e se acatar como argumento. Difícil mesmo é o exercício do diálogo na relação educativa, que envolve afetividade e racionalidade, no encontro que não elimina a latente diversidade. O(a) educador(a) que, de vez em quando, chama o(a) educando(a) para dialogar, dificilmente, consegue extrapolar os limites de combinados e acordos formais. O(a) educador(a) dialógico(a) constrói a dialogicidade na relação que reconhece o(a) educando(a) como autor(a) de um processo em construção, na dialética que respeita a alteridade. Isto é, se a condição de possibilidade para o diálogo está na relação, esta, do ponto de vista do inter-humano, deve se dar no campo da alteridade.

Se a ética implica incluir o(a) diferente a partir de princípios que exigem reflexão, escolha livre e corresponsabilidade, o que significaria isso diante de uma moral colonializante que, em geral, exclui a diversidade – os(as) que não fazem parte do mesmo campo dos valores compartilhados por um determinado grupo social? Para respondermos essa questão, faz-se necessário esclarecer que uma das diferenças básicas entre a moral e a ética consiste na distinção entre normas e princípios.

A norma, tomando como referência um valor (ou um conjunto de valores), não exige reflexão ou fundamentação, apenas adesão. É por isso que a moral, apesar de ajudar na identidade e resistência dos grupos sociais, na luta por sua sobrevivência, é também um elemento muito eficiente no processo de colonialização, por meio da aculturação – que corresponde à imposição dos valores culturais dos(as) dominadores(as) sobre os valores culturais e existenciais dos(as) dominados(as). Por outro lado, percebemos o quanto a existência de outras identidades que não se enquadram no padrão hegemônico cria uma tensão e rompe barreiras conceituais, afetando o poder ao questioná-lo por meio das diferenças (SILVA, 2000).

Por outro lado, o princípio, também tendo por base a dimensão de valor, toma-o como referência que orienta uma reflexão, busca fundamentação, exige liberdade, consciência e coerência. Assim, enquanto a moral se baseia em normas, nas quais o indivíduo se coloca como objeto uma ação predeterminada por um valor pronto que define o seu comportamento, o ponto de partida da ética é o valor moral para que a realidade possa ser problematizada por um sujeito histórico que assume a condição de possibilidade da discordância e de uma ação contrária ao que já havia se cristalizado nos costumes de seu grupo social. Somente pela ética é possível extrapolar os limites da cultura e da moral e incluir os(as) excluídos(as) pelos valores morais e pelas normas dos(as) colonializadores(as). Mesmo porque, enquanto a norma é cultural, o princípio tem a pretensão de ser universal, extrapolando os limites de um valor produzido para uma determinada forma de controle social.

Nesse sentido, como afirma Manfredo Araújo de Oliveira (1993, p. 141-142), “Enquanto as normas são fatos históricos contingentes, a reflexão ética dirige-se à ‘normatividade das normas’: a questão de fundo é, agora, como justificar sentenças normativas”. Justificativa que exige reflexão e fundamentação, levando em conta a dimensão de inclusão – esse valor, que serve para mim como referência da ação, poderia servir a todos(as), dentro das mesmas condições e possibilidades?

Não podemos esquecer que, se constituem a base da ética e da moral, os valores não caem do céu, eles nascem da terra, ou melhor: na relação entre terra e céus, no seio das relações de poder nas quais estão envolvidos os seres humanos históricos em constante luta pela sobrevivência e pela dominação. Sendo assim, mesmo em busca da universalidade, a ética possui os limites de um ser racional em construção.

Depois desse preâmbulo, podemos destacar um princípio fundamental para a superação de relações de opressão, que implica a possibilidade de uma relação ética decolonial entre os(as) homens/ mulheres: o reconhecimento do(a) outro(a) como autor(a). Se esta é condição para uma relação dialógica, é também para uma relação ética, numa lógica descolonializante (FREIRE, 1983; BUBER, 1974).

Isso nos coloca no campo da alteridade, o qual também é condição para a interação com a diversidade, mesmo porque o racismo, o machismo, o etnocentrismo e diversos outros “ismos” que buscam homogeneizar relações de dominação por uma cultura e moral dominantes só podem ser superados pela relação de alteridade. A abertura para o(a) outro(a), o acolhimento do(a) diferente, a relação com a diversidade, pressupõe uma postura de dialogicidade.

O respeito à dignidade do(a) outro(a) consiste, também, em mais um princípio fundamental para uma ética da alteridade. O que indica uma outra condição de possibilidade para a superação dos preconceitos, também sustentados culturalmente e transformados em discursos morais. O feminicídio e a homofobia revelam uma patologia social tendo como base o que pode ser definido como moralismo.

É nessa perspectiva que podemos pensar uma Educação que seja, ao mesmo tempo, dialógica e libertadora. Se a mitologização, apontada por Paulo Freire, pode ser percebida por uma forma de moralização, a desmitologização pode ser pensada pelo caminho da ética. Na perspectiva da emancipação do sujeito histórico, que não rejeita e nem combate a diversidade e que possui a coragem de perguntar pelo fundamento do “dever ser”, é possível pensar um processo educacional que leve em conta a justiça social.

7 Considerações finais

Após esse percurso ético, somos desafiados(as) a fazer uma síntese provisória, sempre com o foco nas questões-problema que apontaram as nossas reflexões. Assim, retomamos nossa principal questão: de que forma podemos compreender a dimensão de valores, na perspectiva da moral e da ética, como base para as relações de poder? E como a Educação poderia se transformar em uma mediação para a superação do moralismo colonializante para uma ética da alteridade?

Diante desses problemas, abordamos o tema da colonialização pela perspectiva da mitologização. Nesse sentido, apontamos o conjunto de valores morais como dispositivos com capacidade de transformar a ação de colonização/dominação em processo de colonialidade.

Por outro lado, destacamos a ética como alternativa para a desmitologização, tendo em vista a decolonialidade. Nesse sentido, a diferença significativa é que esta se baseia em princípios que exigem reflexão, escolha consciente e livre, em uma relação de alteridade, afetividade, amorosidade e, acima de tudo, responsabilidade. Um caminho que supera o moralismo para se incluir e dialogar com a diversidade.

Por fim, dialogamos com dois educadores, tomando-os como referência para essa tarefa: Martin Buber e Paulo Freire, o primeiro lançando as bases para a compreensão do conceito de alteridade, o segundo apontando para o caminho da desmitologização da realidade por meio dessa mesma dimensão. E o lugar onde essa tarefa pode potencialmente ser desenvolvida é o campo da Educação.

Somente na perspectiva da ética essa relação pode ser dialógica, e somente na relação dialógica esse processo pode ser transformador e libertador. Esse procedimento educativo potencializa relações de solidariedade e, consequentemente, humaniza seu significado mais pleno de ser com o(a) outro(a), uma tarefa que pode encontrar reforço na filosofia da libertação, que aponta para a dimensão da alteridade como alternativa metodológica para a inclusão da diversidade e a emancipação humana.

Como nos diz Buber (apudGOES, 1991, p. 69), “Eu pego aquele que me escuta pela mão e o guio até a janela. Abro a janela e aponto para fora”, uma relação de respeito e afetividade que resulta em um processo dialético de saídas e chegadas dos e nos “lugares seguros”. O que também nos leva a renovarmos o nosso ânimo na luta pela desmitologização da realidade que passa pelas relações de poder, tendo em vista o processo de humanização libertador inserido na práxis político-pedagógica do(a) educador(a).

4Pode-se observar que o caos está presente em todos os mitos de origem, exigindo uma narrativa de ordenamento, como o mito de origem de nossa cultura ocidental narrado na Bíblia, no livro dos Gênesis: “No princípio a terra estava informe e vazia” (Gn. 1, 2).

5Referência ao Mito da Caverna de Platão. Cf. livro VII; da obra A República, elaborado por Platão como forma de crítica e denúncia da sociedade de seu tempo, defendendo de um lado, a ideia de que a realidade realmente real poderia ser encontrada a partir do mundo das ideias e explicitando de outro, que a visão de mundo da qual emergem os valores tradicionais que definem as relações sociais provém do senso comum e se constitui em relações de poder.

6É válido ressaltar que o(a) outro(a), enquanto totalmente outro(a), outrem, não pode ser reduzido(a) ao mesmo. O(a) outro(a) surge como interdição da mesmidade, enquanto negação da atitude que almeja reduzir o irreduzível. Esse é o debate que dá significação à diferença, à exterioridade, categorias fundantes que tensionam a possibilidade da existência da alteridade.

7Cf. Platão, A República(Livro VII).

8Sobre esse assunto, cf. Souza, 2017.

Referências

BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. 2. ed. São Paulo: Ed. Moraes, 1974. [ Links ]

BUBER, Martin. Sobre comunidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987. (Col. Debates, v. 203). [ Links ]

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à Fenomenologia da Religião. 3. ed. São Paulo: Ed. Paulinas, 2010. [ Links ]

DUARTE, Newton. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? São Paulo: Ed. Autores Associados, 2003. (Col. Polêmicas do Nosso Tempo, n. 86). [ Links ]

DUSSEL, Henrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Ed. Loyola, 1977. [ Links ]

DUSSEL, Henrique. Ética da libertação na idade da globalização. Tradução de Ephaim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lucia M. E. Orth. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Cortez Moraes, 1979. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. [ Links ]

GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Ed. UNESP e Paz e Terra, 1990. [ Links ]

GOES, Albrecht. Posfácio. In: Buber, Martin. Encontro: fragmentos autobiográficos. Petrópolis: Vozes, 1991. [ Links ]

LANDER, Edgardo. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005. [ Links ]

LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaio sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. [ Links ]

MIGNOLO, Walter D. O lado escuro da colonialidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017. [ Links ]

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. (Col. Filosofia, n. 23.). [ Links ]

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001. [ Links ]

QUIJANO, Aníbal. América, el capitalismo y la modernidad nacieron el mismo día. ILLA Lima, n. 10, Jan. 1991. [ Links ]

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina.In: Anuário Mariateguiano, Lima, Amatua, v. 9, n. 9, 1997. [ Links ]

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005. p. 107-130. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologia do sul. Coimbra: Ed. Almedina, 2009. [ Links ]

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. [ Links ]

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Leya: Rio de Janeiro, 2017. [ Links ]

SCHMIDT, Mariana. Encontrar-se com o outro: a ética do diálogo em meio à guerra cultural bolsonarista. Revista Ecopós, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 716-725, nov. 2021. [ Links ]

TOLLE, Eckhart. Um novo mundo: o despertar de uma nova consciência. Tradução de Henrique Monteiro. Rio de Janeiro: Ed. Sextente, 2011. [ Links ]

Recebido: 16 de Março de 2021; Aceito: 14 de Março de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.