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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 20-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022022 

ARTIGOS

Professores(as) formadores(as) e suas concepções sobre o papel do(a) professor(a): uma análise a partir de Giroux, Freire e Gur-Ze’ev

Teacher trainers and their conceptions on the teacher role: an analysis based on Giroux, Freire and Gur-Ze’ev

Arthur da Silva Poziomyck1 

Alexandre Anselmo Guilherme2 

1Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, especialista em Direito Internacional, Mestre em Educação pela UFRGS, membro do GruPEV.

2Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Proprograma de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS. Coordenador do GruPev.


Resumo

Este artigo discute o papel do(a) professor(a) na Educação a partir da produção teórica dos autores Henry A. Giroux, Paulo Freire e Ilan Gur-Ze'ev e de uma pesquisa de campo aplicada a professores(as) formadores(as) no Brasil. Para tanto, aborda alguns conceitos propostos por cada um dos três autores, como o conceito de intelectual transformativo proposto por Giroux, a perspectiva do(a) professor(a) como um(a) libertador(a) político(a) desenvolvida por Freire e o conceito de professor-improvisador descrito por Gur-Ze’ev na sua teorização sobre a contraeducação. Na segunda parte as contribuições teóricas desses autores servem como referência para interpretar os dados obtidos em uma pesquisa qualitativa aplicada a professores(as) de disciplinas pedagógicas de cursos de Licenciatura de uma universidade pública federal no estado do Rio Grande do Sul sobre o papel do(a) professor(a) na Educação contemporânea. Na análise de dados, retoma-se a questão do emprego do termo “papel” apresentada na introdução bem como do emprego da expressão “papel do(a) professor(a)” como categoria de análise da pesquisa em relação à qual os entrevistados demonstraram, em sua maioria, identidade conceitual. Dentre as falas dos entrevistados, destacam-se as temáticas da intencionalidade da ação docente, da neutralidade e da politicidade da ação docente, as quais têm grande relevância na obra dos autores estudados e repercussão no debate social brasileiro, vide os mais variados projetos de lei apresentados nas casas legislativas brasileiras que intentam, à sua visão, despolitizar a Educação no país.

Palavras-chave Papel do(a) Professor(a); Freire; Giroux; Gur-Ze’ev

Abstract

This article discusses the role of the teacher in Education based on Henry A. Giroux, Paulo Freire and Ilan Gur-Ze'ev’s theoretical work and scientific data obtained from a field research applied to teacher trainers in Brazil. For this purpose, it approaches some theoretical concepts proposed by each of the aforementioned authors, such as the concept of transformative intellectual proposed by Giroux, a perspective of the teacher as a political liberator developed by Freire, and the concept of improviser-teacher described by Gur-Ze'ev in his theory on counter-education. In the second part, the theoretical contributions of these authors serve as a reference to interpret the data obtained in a qualitative research applied to teachers of pedagogical disciplines of undergraduate courses at a federal public university in the State of Rio Grande do Sul on the role of the teacher in contemporary Education. In the data analysis, the issue of applying the term “role” presented in the introduction was revisited, as well as the use of the expression “role of the teacher” as a category of research analysis, to what the majority of the respondents showed a conceptual identity. Some of the core topics identified from the respondents answers referred to the intentionality of teaching, the neutrality and the politicity of teaching, which are relevant topics in the theoretichal work of the authors and reverberate in the Brazilian social debate, as seen through varied bills distributed in the Brazilian legislative houses intending to depoliticize education in the country.

Keywords Role of the teacher; Freire; Giroux; Gur-Ze’ev

Introdução

Abordar o papel do(a) professor(a) na Educação não é tarefa simples. A expressão “papel do(a) professor(a)” é ponto de partida, não de chegada. Enquanto pensamos sobre o que referimos como o papel do(a) professor(a), é preciso que lembremos que o(a) professor(a) está inserido(a) em todo um contexto histórico, social e político que conforma e dá contornos ao seu fazer. Essa ideia do trabalho do(a) professor(a) fundamentada numa perspectiva sociopolítica é relativamente recente, contrastando com uma percepção sobre a atividade docente que prevaleceu até o século XX e identificava o trabalho docente com uma atividade superior, missionária (CUNHA, 2005, p. 99). Nesse sentido, ao falarmos do papel do(a) professor(a), estamos falando de atividade docente, história da atividade docente, espaços escolares e universitários, Educação como toda uma área de conhecimento e atuação, compondo uma teia de relações que não é apenas semântica, mas social.

Esse exercício de resgatar o contexto da atividade docente numa perspectiva sociopolítica, pensando no(a) professor(a) como um sujeito situado no espaço e no tempo, nos abre uma oportunidade para pensar na própria atividade docente como uma atividade política e, portanto, não neutra. Para Michael Apple (2006, p. 46-47), “a posição do educador não é neutra, nem nas formas de capital cultural distribuído e empregado pelas escolas e nem nos resultados econômicos e culturais do próprio empreendimento de escolarização”. Nesse trecho o autor defende que a posição do(a) educador(a) não é neutra e, quando lança seu olhar para os próprios resultados culturais e econômicos de todo o processo de escolarização, complexifica ainda mais a perspectiva sociopolítica da atividade docente. Sendo assim, nos faz refletir sobre o papel do(a) professor(a) na Educação e na sociedade.

Se pensar sobre o papel do(a) professor(a) implica uma perspectiva de análise sociopolítica, operar com o conceito de “papel” como ferramenta de análise também o faz. Para descrever o conceito de papel a partir de uma perspectiva sociológica, Hoyle (apudLIMA, 1996) desmembra-o em três elementos concorrentes, a saber: a) um status, b) um padrão de comportamentos, e c) um padrão de expectativas sociais. Nesse sentido, status é a posição ocupacional, a posição de professor, que efetivamente engendra um fazer, mas à qual atribuímos, como sociedade, diferentes expectativas – sejam elas durante o tempo, sejam elas apenas entre grupos diferentes.

A partir dessa perspectiva, a expectativa deste artigo é fazer algumas reflexões sobre o papel do(a) professor(a), especialmente a partir de Henry A. Giroux, Paulo Freire e Ilan Gur-Ze'ev, três educadores do nosso tempo, contrastando, ao final, com alguns dados obtidos em uma pesquisa qualitativa aplicada a professores(as) de disciplinas pedagógicas de cursos de Licenciatura de uma universidade pública federal no estado do Rio Grande do Sul sobre o papel do(a) professor(a) na Educação contemporânea.

1. O papel docente em Giroux, Freire e Gur-Ze'ev

Como veremos a seguir, a problematização do trabalho docente numa perspectiva sociopolítica e a questão do papel do(a) professor(a) no processo educacional têm sido elaboradas desde o século XX por diferentes autores que se preocuparam com o fenômeno da Educação. Iniciemos por Henry A. Giroux, considerado um dos teóricos fundadores da pedagogia crítica, que publicou no final da década de 1980 a obra intitulada “Professores como Intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem”, na qual propõe o conceito de “intelectual transformativo” como ferramenta para a análise da atividade docente.

O uso do termo “intelectual” nas ciências sociais é fortemente marcado pelos escritos de Antonio Gramsci, especialmente na obra “Os Cadernos do Cárcere”, volume 2, em que escreve sobre os intelectuais orgânicos e o princípio educativo. Para Gramsci (2017), os intelectuais orgânicos são antes definidos pela função social que desempenham do que pela natureza da sua atividade. Giroux acompanha Gramsci na perspectiva de que o intelectual é mais do que uma “pessoa de letras”, devendo ser entendido em termos políticos. Contudo, o conceito de intelectual transformativo de Giroux difere do conceito gramsciano de intelectual orgânico:

Este conceito difere do que Gramsci denomina intelectuais orgânicos radicais; nós acreditamos que os intelectuais em questão podem sair e trabalhar com todos aqueles grupos que opõem resistência ao conhecimento e às práticas asfixiantes que constituem sua formação social. Os intelectuais transformativos podem exercer a liderança moral, política e pedagógica em favor daqueles grupos que tomam como ponto de partida a crítica orientada a transformar as condições de opressão. Em nosso caso, o epíteto “orgânico” não pode reservar-se para aqueles intelectuais que consideram que a classe trabalhadora é o único agente revolucionário

(GIROUX, 1997, p. 202).

Precisamente na época da publicação da obra “Professores como Intelectuais”, Giroux preocupava-se com a diminuição do papel do(a) professor(a) em todos os níveis escolares e propriamente com a baixa inclusão dos(as) próprios(as) professores(as) no debate sobre aquele processo:

Em poucas palavras, o reconhecimento de que a atual crise educativa tem muito que ver com a tendência progressiva à redução do papel dos professores em todos os níveis educativos é um prerrequisito teórico necessário para que os docentes se organizem com eficácia e deixem ouvir coletivamente sua voz no atual debate

(GIROUX, 1997, p. 172).

Observando um processo de diminuição do papel do(a) professor(a) em função de um processo que chamou de proletarização do trabalho docente, pelo qual os docentes seriam reduzidos à categoria de técnicos especializados inseridos na estrutura escolar (tecnocratas), Giroux propõe o conceito de “intelectual” para refletir sobre o trabalho docente. Para ele, essa categoria de análise oferece uma base teórica que opõe a ideia do trabalho docente como puramente instrumental ou técnico, além de contribuir para esclarecer qual o papel dos docentes nos fenômenos de “produção e legitimação de diversos interesses políticos, econômicos e sociais através das pedagogias que eles mesmos aprovam e utilizam” (GIROUX, 1977, p. 176). Assim, analisando o trabalho docente inserido num contexto sociopolítico e econômico, Giroux descreve um papel para o(a) professor(a) que é político e, como aclara a passagem que segue, profundamente comprometido contra as injustiças sociais.

[...] os intelectuais em questão têm que pronunciar-se contra algumas injustiças econômicas, políticas e sociais, tanto dentro como fora das escolas. Paralelamente, tem de esforçar-se para criar as condições que proporcionem aos estudantes a oportunidade de converterem-se em cidadãos com o conhecimento e o valor adequados para lutar com a finalidade de que a desesperança resulte pouco convincente e a esperança algo prático. Por difícil que possa parecer esta tarefa aos educadores sociais, é uma luta em que vale a pena comprometer-se. Comportar-se de outro modo equivaleria a negar aos educadores sociais a oportunidade de assumir o papel de intelectuais transformativos

(GIROUX, 1997, p. 178).

Especialmente nessa obra, Giroux utiliza a expressão “papel do professor” repetidamente e propõe uma categoria de análise para o trabalho docente – intelectual transformativo – que afasta qualquer conceitualização de ordem gerencialista e inscreve o(a) professor(a) num contexto político e social de transformação por meio da Educação.

Vale destacar que Giroux (1997) também caracterizou os docentes como trabalhadores reflexivos, compartilhando de uma noção freireana, cujo trabalho ajudou a publicar e divulgar nos Estados Unidos. Sobre isso, Hypolito e Ghiggi (2005, p. 3) observam que “a noção de Freire sobre a docência como uma função exercida por trabalhadores culturais é uma influência nítida neste autor”.

Também um expoente da chamada pedagogia crítica, o educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) teve marcante influência no campo educacional, marcadamente a partir da segunda metade do século XX. Freire (1970) era categórico ao afirmar que nenhum sistema educacional ou educador é neutro e, como corolário, apolítico. Assim, tornou-se uma das vozes mais expressivas na defesa da conscientização política dos indivíduos.

O respeito aos educandos não pode fundar-se no escamoteamento da verdade – a da politicidade da educação e na afirmação de uma mentira: a sua neutralidade. Uma das bonitezas da prática educativa está exatamente no reconhecimento e na assunção de sua politicidade que nos leva a viver o respeito real aos educandos ao não tratar, de forma sub-reptícia ou de forma grosseira, de impor-lhes nossos pontos de vista

(FREIRE, 2001, p. 21).

Para Freire, em que pese impossível falar-se em neutralidade no contexto educacional, o discurso em defesa de uma dita Educação neutra faz sentido na manutenção dos interesses dominantes:

Do ponto de vista, porém, dos interesses dominantes, é fundamental defender uma prática educativa neutra, que se contente com o puro ensino, se é que isto existe, ou com a pura transmissão asséptica de conteúdos, como se fosse possível, por exemplo, falar da “inchação” dos centros urbanos brasileiros sem discutir a reforma agrária e a oposição a ela feita pelas forças retrógradas do país. Como se fosse possível ensinar não importa o quê, lavando as mãos, indiferentemente, diante do quadro de miséria e de aflição a que se acha submetida a maioria de nossa população

(FREIRE, 2001, p. 49).

Ambos os excertos acima dão conta de uma visão em Freire que é, em apertada síntese, de uma Educação não neutra e política. Contudo, é na sua obra anterior, “Pedagogia do Oprimido” (1970), que Freire desvela sua perspectiva sobre as relações de opressor-oprimido e sua interface com o processo educacional. Descreve, assim, a Educação de sua época (então 1970) como uma Educação que chamou de “bancária”, diametralmente oposta à Educação aque chamou “libertadora”. Na Educação bancária, “para a qual a educação é ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação” (FREIRE, 1970, p. 82). Assim, “[n]a medida em que esta visão bancária anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação” (FREIRE, 1970, p. 83).

Ao enxergar as relações de opressor-oprimido e as dinâmicas de poder e dominação no espaço educacional, inclusive, Freire afirma que a Educação pode domesticar ou libertar. Nesse contexto, a “Educação bancária” seria uma forma de domesticação, preparando os indivíduos para inadvertidamente se encaixarem num sistema em que são subjugados pelas elites opressoras (GUILHERME, MORGAN, 2018).

Em oposição ao modelo bancário de Educação, caracterizado por Freire como um processo que acredita na transmissão de conhecimentos e está comprometido com a manutenção dos interesses de uma elite opressora, o educador crítico poderia promover uma Educação problematizadora, reflexiva e, assim, transformadora e libertadora para “seus” educandos – aspas que aqui tomamos emprestadas de Freire. Nesse sentido, o docente desempenha um importante papel como libertador político na conscientização e na libertação dos oprimidos (GUILHERME, MORGAN, 2018).

Sendo assim, a análise dos escritos de ambos os autores, Henry Giroux e Paulo Freire, mostra algumas convergências na prescrição de um(a) professor(a) cujo papel deve ser transformador, capaz de, por meio da sua ação docente reflexiva e problematizadora, impactar a formação dos educandos (FREIRE, 1970, p. 80), voltando-se para o desvelamento das injustiças econômicas, políticas e sociais, dentro e fora da escola (GIROUX, 1997, p. 178).

Influenciado pela pedagogia crítica e pelo pensamento de Freire, o filósofo e escritor israelense Ilan Gur-Ze'ev elabora críticas e aponta problemas nas formulações da pedagogia crítica e da proposição de opressor-oprimido proposta por Freire. Falecido prematuramente em 2012, deixou obras destacadas como “Critical Theory and Critical Pedagogy Today: toward a new language in education (2005)” e “Beyond the Modern-Postmodern Struggle in Education: toward counter-education and enduring improvisation (2007)”, tidas como seus textos mais importantes em língua inglesa (MCLAREN, 2012).

No pensamento de Gur-Ze'ev (2010), a pedagogia crítica cria uma visão estreita da realidade ao conceber a opressão em um sentido muito limitado. Como analisado anteriormente, a pedagogia crítica busca a transformação da realidade para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa, superando a relação de opressor-oprimido.

Por exemplo, a visão de Freire deve ser compreendida por meio da libertação de um oprimido pobre iluminado (Freire, 1970); para McLaren, por meio de uma democracia socialista (McLaren, 1998); para Giroux, por meio de uma democracia das diferenças (Giroux, 1991) (Yaakoby, 2012). O que é comum a cada uma destas visões estreitas da realidade é que um lado oprime, enquanto o outro é oprimido.

(GUILHERME, MORGAN, 2018, p. 6).

Nessa concepção, a opressão é estruturada sobre a dicotomia de dois opostos, a parte que oprime e a parte que é oprimida, perdendo de vista toda a trama de relações de poder que pode fazer do mesmo sujeito, em contextos diferentes, opressor e oprimido. Assim, um sujeito pobre, oprimido pela sua condição social na perspectiva de Gur-Ze'ev, pode ser opressor de outro por meio de dinâmicas de exclusão racial e de gênero, por exemplo.

O segundo ponto para o qual Gur-Ze'ev atenta ao criticar a pedagogia crítica é que, a partir da referida concepção de opressão a que atribui sentido muito limitado, a pedagogia crítica teria se tornado incapaz de autocrítica, acreditando na aplicação mecânica do seu método como ferramenta suficiente para a explicação de todos os problemas da realidade (YAAKOBY, 2012; TUBBS, 2005; GUR-ZE'EV, 2005). Isso, porque, para superação da relação opressor-oprimido, cria-se um ideal utópico positivo a ser alcançado (libertação, emancipação), que passa a integrar o próprio projeto da Educação crítica. Assim, criticar e revisar o objetivo, o ideal que se busca, significa pôr em xeque o próprio projeto. “Para Gur-Ze'ev, o que é problemático é o potencial para uma falta de autocrítica incorporada na pedagogia crítica, sendo nossa discussão que isto aponta para um problema fundamental enfrentado pelas pedagogias críticas” (GUILHERME, MORGAN, 2018, p. 6).

Diante das críticas que apresenta, Gur-Ze'ev propõe uma alternativa, a qual chamou de “contraeducação”. A proposta da contraeducação distancia-se das utopias da pedagogia crítica e fundamenta-se na constância da dialogicidade e da criticidade, inclusive em relação a si mesma, num esforço contínuo de tudo questionar e, nesse processo, avançar. É nesse contexto que exsurge o “professor-improvisador” de Gur-Ze'ev. O “professor-improvisador”, que não oferece utopias, é, portanto, um crítico e incentivador à crítica, e é nesse processo que residiria a mola propulsora da transformação.

[...] o professor-improvisador supera uma fragilidade crucial enfrentada pelo professor-político de Freire. Ou seja, o professor-político pode se tornar o propagandista de uma visão ideológica (como a libertação do oprimido ao iluminar os pobres) e, em consequência disto, do uso dos sujeitos como meios para alcançar uma finalidade (como usar os pobres oprimidos para alcançar o objetivo da libertação, porém restrita a uma forma muito estreita). O professor-político sabe o que o oprimido deve saber para alcançar sua utopia positiva, o que gera uma contradição porque o oprimido deve ser iluminado, mas de uma maneira predefinida determinada pelo professor-político

(GUILHERME, MORGAN, 2018, p. 6).

Se de um lado Gur-Ze'ev reconhece as relações de poder presentes no processo educacional, o caráter político da Educação e a importância da transformação para os educandos e a sociedade, de outro alerta para a fragilidade da persecução de utopias no processo pedagógico, não pela qualidade da utopia, mas pela definição de uma. Propõe, assim, um(a) professor(a) cujo papel está centrado na crítica por meio do diálogo.

2. Uma pesquisa com professores(as) formadores(as) no Brasil

Na seção anterior, analisamos algumas contribuições dos autores Paulo Freire, Henry Giroux e Ilan Gur-Ze'ev para o debate sobre o papel do(a) professor(a) na Educação. Nesta seção, tomamos emprestadas suas contribuições para interpretar alguns dados obtidos em uma pesquisa de campo aplicada a professores(as) formadores(as) de uma universidade pública federal no estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa abrangeu diversos aspectos da percepção do(a) professor(a) formador(a) sobre o processo da atividade docente, na qual os entrevistados foram questionados sobre processos de ensino-aprendizagem (como os alunos aprendem) e o papel do(a) professor(a), dois eixos que compunham a pesquisa (POZIOMYCK, 2016).

A abordagem adotada na pesquisa foi qualitativa, utilizando-se da realização de entrevistas, procedimento de natureza interativa por meio do qual o entrevistador dialoga com o entrevistado para obter informações (YIN, 2010). Partindo do conceito de entrevista compreensiva, que considera o processo da coleta de dados como parte da própria construção da problemática de estudo (ZAGO, 2003), a pesquisa aplicou entrevistas semiestruturadas, norteadas por um roteiro de questões previamente elaboradas e divididas por eixo. Correspondiam ao eixo sobre o papel do(a) professor(a) as seguintes três questões: 1. “No âmbito da formação inicial de professores(as), tu achas que tuas concepções influenciam o(a) futuro(a) professor(a)?”; 2. “Qual o papel do(a) professor(a) na sociedade contemporânea?”; e 3. “Tu achas que esse papel do(a) professor(a) é diferente no ensino fundamental e médio e no ensino superior”. Essas questões foram formuladas no sentido de apreender do entrevistado seu entendimento a respeito do papel do(a) professor(a) no contexto educacional atual e serviram como um roteiro para a entrevista. Para a análise de dados, a pesquisa adotou a abordagem teórico-metodológica da Análise Relacional proposta por Apple (2006), que propõe uma análise crítica dos fenômenos sociais em Educação a partir dos seus laços e relações, muitas vezes ocultas, inclusive suas contradições. Segundo o autor, a análise relacional:

[...] envolve compreender a atividade social – sendo a educação uma forma particular dessa atividade – como algo ligado ao grande grupo de instituições que distribuem recursos, de forma que determinados grupos e classe têm historicamente sido ajudados, ao passo que outros têm sido tratados de maneira menos adequada. [...] as coisas recebem significados relacionais, pelas conexões e laços complexos com o modo pelo qual uma sociedade é organizada e controlada. As próprias relações são as características definidoras. Assim, para entender, digamos, as noções de ciência e de indivíduo, do modo que empregamos na educação, precisamos vê-las como sendo primeiramente categorias ideológicas e econômicas que são essenciais tanto para a produção de agentes que preencham os papeis econômicos existentes, quanto para a reprodução de disposições e significados que “causarão”, nesses próprios agentes, a aceitação desses papéis alienantes sem muito questionamento

(APPLE, 2006, p. 44).

Nesse sentido, a análise relacional serviu como uma lente de observação que buscou complexificar a interpretação dos dados colhidos, dando à pesquisa uma perspectiva sobre os processos e movimentos relacionados às escolhas e posições dos entrevistados. A pesquisa foi aplicada a uma amostra de nove sujeitos, sendo cinco mulheres e quatro homens, todos professores(as) de disciplinas pedagógicas de cursos de licenciatura e vinculados a diferentes departamentos da Faculdade de Educação.

A escolha dos entrevistados obedeceu a dois critérios: que os(as) professores(as) de um mesmo departamento pertencessem a áreas de atuação distintas (ex: Psicologia, Sociologia, Políticas Educacionais) e que ao menos um dos entrevistados contasse com mais de 10 anos de experiência como docente na faculdade pesquisada no momento da entrevista, alargando a faixa geracional pesquisada. Satisfeitos esses critérios, a escolha dos sujeitos seguiu apenas o critério do interesse e da disponibilidade dos convidados.

Antes de cada entrevista os entrevistados foram perguntados sobre a possibilidade do uso de gravador de voz como recurso para posterior análise de dados, o que foi negado em apenas uma oportunidade, ocasião na qual a entrevista foi registrada manualmente pelo pesquisador. Todos os entrevistados foram ouvidos na condição de anonimato e autorizaram, mediante a assinatura de Termo de Consentimento, a coleta, a análise e a publicação dos dados obtidos.

2.1 O “papel do(a) professor(a)” como categoria de análise

Em sua maioria, os respondentes demonstraram identidade conceitual com a noção de papel como proposto na pesquisa a partir do conceito de Hoyle (apudLIMA, 1996), formulando suas respostas com naturalidade. Destaque-se, contudo, que dois entrevistados demonstraram resistência ao emprego do termo “papel” para tratar da atividade docente.

Respondente 1: “Hoje eu falei assim: que isso essa coisa de papel? Que que (sic) usam tanto “papel” na sociologia, nas ciências sociais, não é? [...] Então, papel... Mas acaba virando, enfim. Acho complicado usar papel. Porque acabou virando um senso comum. Então tá, é um paradigma que comporta essa noção. O papel nosso... risos... eu não sei!” – grifo dos autores

(POZIOMYCK, 2016, p. 73, grifos nossos).

A declaração do Respondente 1 sobre o senso comum no emprego da expressão “papel do professor” faz referência ao uso repetido do termo, não apenas em meios acadêmicos, mas no debate amplo sobre Educação. O senso comum consiste em crenças que oferecem parâmetros para os vários problemas experimentados no cotidiano e que, partilhadas socialmente, são hegemônicas em determinados períodos históricos (GANDIN, HYPOLITO, 2003). Essa perspectiva, oferecida pelo Respondente 1, remete ao que defendemos no princípio do artigo, no qual dissemos que falar do papel do(a) professor(a) exige de nós contextualizar a atividade docente nas suas dimensões histórica, social e política, especialmente para dar limite e sentido ao emprego da expressão. Dessa forma, é possível afastar-se do senso comum e fazer emprego científico da expressão para debater o tema da atividade docente, como fizeram os autores analisados neste artigo.

Por sua vez, perguntado sobre o papel do(a) professor(a), declarou o Respondente 2: “Pois é. Prefiro a noção de função. Não sei” (POZIOMYCK, 2016, p. 73). Ato seguinte, questionado sobre a escolha pelo termo “função”, disse que “função” é um termo mais analítico e que “papel” pode ser psicologizante, mais forte (POZIOMYCK, 2016). Na produção técnica do campo, as expressões “função docente” e “função do professor” são igualmente encontradas para tratar do tema, sendo usadas de forma intercambiante.

Em que pese a resistência expressada pelos Respondentes 1 e 2 quanto ao emprego do termo “papel”, a questão específica sobre o papel do(a) professor(a) foi enfrentada por todos os pesquisados, não sem hesitação. As respostas demandaram grande esforço de síntese por parte de cada entrevistado, que passou por escolhas terminológicas e uma reflexão sobre sua própria prática docente. Contudo, os dados que orientaram a mirada sobre a concepção de cada sujeito a respeito do papel do(a) professor(a) foram coletados durante todo o decorrer das entrevistas, na esteira do método da entrevista compreensiva.

Em uma primeira análise, as respostas formuladas pelos entrevistados sobre o papel do(a) professor(a) concentraram-se em dois grupos temáticos. O primeiro grupo, composto por cinco dentre os nove entrevistados na pesquisa, atribuiu ao professor um papel de elo entre o aluno e o conhecimento. Nessas falas, essa ideia esteve representada pelo emprego de termos como mediar, interpretar, traduzir, e dar acesso. Vejamos alguns excertos das declarações em que esses termos são empregados:

Respondente 1: “[...] eu comparo tradutor com o professor. Eu digo, enquanto profissão”.

Respondente 2: "O professor tem o compromisso de acessar o patrimônio às novas gerações e oportunizar a eles refazer a história”.

Respondente 4: “Meu papel nisso [processo de discussão em sala de aula] é um papel de, primeiro, indicar. Segundo, mediar. Primeiro indico: está aqui o texto. O texto é sobre um problema”.

Respondente 5: “[...] o papel do professor na sociedade contemporânea é o de propor, ou de mediar, essa aquisição do conhecimento”.

Respondente 6: “[...] o papel do professor é abrir e facilitar processos”

(POZIOMYCK, 2016, p. 77, grifos nossos).

Já o segundo grupo, representado por outros dois dentre os nove entrevistados, atribuiu ao professor o papel de uma “formação humana”, como se percebe dos excertos de declarações a seguir:

Respondente 7: “[Papel] De formação humana. No sentido amplo. Quer dizer, não é pura transmissão, absolutamente. Conhecimento, informação, saber, formação moral, quer dizer, formação num sentido absolutamente amplo [...]”.

Respondente 8: “Na formação de seres humanos, seja de um professor de educação infantil, de ensino fundamental séries iniciais, finais, ensino superior, pós-graduação. Nós atuamos na formação de seres humanos. Com certeza, seres humanos em seu processo de formação”

(POZIOMYCK, 2016, p. 74-75, grifos nossos).

Ambas as perspectivas ora referidas, tanto da noção de um elo entre aluno e conhecimento quanto da noção de uma formação humana, foram analisadas e discutidas no âmbito do estudo original. Não se enquadraram nesses padrões os Respondentes 3 e 9. Neste artigo, contudo, tomaremos a base teórica de Giroux, Freire e Gur-Ze'ev para, a partir da mesma coleta de dados, lançar um novo olhar às declarações dos entrevistados.

2.2 Intencionalidade, neutralidade e politicidade da ação docente

Revisitar os dados colhidos na fase de entrevistas da pesquisa, desta vez a partir dos teóricos Giroux, Freire e Gur-Ze'ev, nos proporcionou uma nova perspectiva de análise por meio da qual nos atentamos para outros elementos do campo e suas relações. Nesse processo identificamos nas respostas dos entrevistados três temas que marcam o debate crítico em Educação e se relacionam entre si por sua própria natureza conceitual: a intencionalidade, a neutralidade e a politicidade da ação docente. O entrelaçamento dos temas, além de conceitual, evidencia-se na análise das entrevistas a partir da produção teórica escolhida.

Na sua obra Ideologia e Currículo (2006), na introdução do capítulo sobre Hegemonia, Apple escreve sobre o conjunto básico de princípios que orientavam seu trabalho como educador, passagem na qual relaciona logicamente os conceitos de neutralidade e ação política – politicidade da ação docente – no debate sobre Educação:

[...] sustentei com firmeza que a educação não era um empreendimento neutro, que, pela própria natureza da instituição, o educador estava implicado, de modo consciente ou não, num ato político. Afirmei que, em última análise, os educadores não poderiam separar completamente sua atividade educacional dos programas institucionais de tendências diversas e das formas de consciência que dominam as economias industrialmente desenvolvidas como a nossa

(APPLE, 2006, p. 9).

Para Apple, como já referido anteriormente, a Educação não é uma atividade neutra, tampouco são neutras as instituições ou as atividades educacionais. Para afirmá-lo, explica que, pela própria natureza da Educação/escolarização, a atividade educativa é um ato político e, dessa forma, não é neutra. Nessa lógica, a politicidade da Educação lhe nega qualquer neutralidade possível. Apple sustenta, ainda, que a atividade docente segue sendo um ato político ainda que os educadores não o percebam ou reconheçam, não sendo hipótese de escolha de parte do educador que assim o seja. Nesse sentido, independente da intencionalidade dos educadores, o próprio ato educativo se constitui num ato político.

Sobre intencionalidade, Mizukami (1986) afirma que, no contexto da atividade docente, toda a ação educativa exercida por professores(as) em situações planejadas encerra uma intencionalidade. Posteriormente, a Enciclopédia de Pedagogia Universitária (MOROSINI et al., 2006) definiu “ação educativa” como o “exercício intencional que emprega energias humanas capazes de produzir um efeito pedagógico, passando do projeto à sua realização”, bem como “prática pedagógica” como a “prática intencional de ensino e de aprendizagem, não reduzida à questão didática ou às metodologias de estudar e de aprender” (MOROSINI et al., 2006, p. 444-447). Para as autoras, a atividade docente é por definição uma prática intencional.

Na pesquisa em análise, a intencionalidade da ação docente foi assumida pelos entrevistados e diretamente referida por quatro deles. Assim diz o Respondente 3: “Eu tenho uma razão, uma intenção, para o conjunto da disciplina, e para cada uma das propostas que eu faço. E eu preparo a aula, e eu avalio constantemente se aquilo está funcionando. [...] Eu tenho intencionalidade” (POZIOMYCK, 2016, p. 81).

Essa concepção de intencionalidade da ação docente, é possível dizer, constitui as noções de intelectual transformativo de Giroux e de professor político de Freire. Ambos, declaradamente, buscam a transformação dos sujeitos pela Educação. Diferente não é para Gur-Ze'ev, que, apesar de rechaçar a busca das utopias em Freire, propõe o conceito de professor improvisador, cuja finalidade da ação docente é continuamente questionar. Para esses autores, não cabe qualquer concepção de atividade docente dissociada de uma intencionalidade. Nesse sentido, completa o Respondente 3:

[...] Os pais educam, a sociedade educa, o vizinho educa, o amigo educa, no sentido mais amplo de educar, a educação passa por vários espaços. Algumas vezes com intencionalidade, como é o caso dos pais, às vezes sem intencionalidade, como o colega de escola que ensina muitas coisas sem nunca ter pretendido ensinar.3

Por esta fala, o entrevistado define o que possa ser entendido como o marcador da intencionalidade da ação docente: o propósito de fazê-lo. Observe-se, neste ponto, que o próprio conceito de “papel”, discutido na seção anterior, compreende a noção de intencionalidade com o sentido de propósito.

Entre os entrevistados, o tema da intencionalidade da ação docente aparece conexo com os conceitos de neutralidade e politicidade. Na entrevista com o Respondente 4, ele diz: “tenho que pensar, às vezes, no que eu faço, no que eu quero para meus alunos, que tipo de sociedade eu quero, para que eu quero contribuir” (POZIOMYCK, 2016, p. 82). Nesta declaração, o entrevistado assume a intencionalidade da sua ação docente – “pensar o que eu quero”, e também o que Freire chamaria de seu caráter político – “para o que eu quero contribuir”. Na perspectiva de Freire, não há neutralidade em Educação, o que implica dizer que a ação docente é também política.

As declarações de diferentes entrevistados adotam a postura de uma ação docente orientada à reflexão, ao desvelamento das lógicas sociais, do senso comum, na mesma esteira do pensamento de Giroux e Freire. Vejamos a seguir: Respondente 1 – “Eu acho que é um papel transcriador, um papel criador. Um papel de estimular a criação, de estimular a saída dos clichês. [...] eu trabalho nesse sentido, de dizer para eles que precisa haver um desmanche dos clichês, que precisa haver uma luta... hoje mesmo disse: essa luta constante, é uma luta constante contra o senso comum”4; Respondente 3 – “Disputar espaços, disputar concepção” (POZIOMYCK, 2016, p. 71); Respondente 5 – “Acho que o papel do professor continua sendo o de proposição de ações, de atividades, de reflexões, para essa aquisição, para essa apropriação do conhecimento” (POZIOMYCK, 2016, p. 78); Respondente 6 – “O professor contribui no devir da história. [...] agora infelizmente para poucos, existem não-professores e professores, que reproduzem uma lógica, aí acho que não são professores, no sentido pleno da palavra, aí são outra coisa...”5.

Noutra passagem, o Respondente 1 é perguntado sobre o papel do(a) professor(a) e sua expectativa enquanto professor formador para com as competências desenvolvidas pelos licenciandos. Refere, então, que sua expectativa é contribuir para a formação de um professor “transcriador”.

Respondente 1: “[...] um aluno na primeira aula disse, quando eu estava falando em criação, tradução, transcriação: ‘ah, professor, mas quando o senhor fala de transcriação, o senhor já está botando um objetivo, uma finalidade’. Eu falei: ‘bom, tudo bem, mas ao menos não estou dizendo onde tu tens que chegar. Pelo menos é duvidosa a meta’”

(POZIOMYCK, 2016, p. 82).

A partir do relato acima transcrito, o entrevistado deixa clara a intencionalidade da sua prática ao dizer que sua expectativa é formar um aluno “transcriador”. É ao final do relato que faz sobre o diálogo com seu aluno em sala de aula que justifica sua intencionalidade, dizendo que não estabelece o ponto de chegada, a meta. A justificativa lembra o conceito de Gur-Ze'ev do professor-improvisador, que é descomprometido com a busca de um objetivo. O professor-improvisador está comprometido com uma ação crítica, que seria o processo da contraeducação.

Os trechos de entrevistas acima destacados tocam à temática da intencionalidade, neutralidade e politicidade da ação docente, ainda que não se utilizem de um ou mais dos referidos termos e que o objeto em discussão seja o papel do(a) professor(a). Isso, porque falar do papel do(a) professor(a) implica pensar na atividade docente nas relações do agente com o meio. Cada um dos entrevistados demonstrou uma perspectiva sobre o papel do(a) professor(a) e, ainda assim, se posicionou sobre os aspectos políticos da atividade docente. O objeto e a extensão das obras de Giroux, GurZe'ev e Freire nos permitem inferir, quando não diretamente expresso, suas perspectivas sobre o tema.

Conclusão

A produção científica por meio de pesquisas de campo se faz importante para que tenhamos dados de realidade para pensar e repensar nossas atividades como educadores. Igualmente relevante nos parece retomar dados anteriormente colhidos à luz de novos autores ou mesmo de novos dados do mesmo campo de pesquisa que agora se possa ter acesso. Neste artigo nos dedicamos a rever os dados colhidos numa pesquisa de campo feita com professores(as) de disciplinas pedagógicas de uma universidade federal do Rio Grande do Sul sobre suas concepções a respeito do papel do(a) professor(a). A revista dos dados foi conduzida pela perspectiva de três autores de grande relevância no debate crítico em Educação, sendo eles o brasileiro Paulo Freire, o estadunidense Henry A. Giroux e o israelense Ilan Gur-Ze'ev. Em análise anterior (POZIOMYCK, 2016), identificaram-se como relevantes na análise de dados algumas temáticas, como o papel do(a) professor(a), a intencionalidade e o aspecto político da atividade docente, o bom professor, o professor como exemplo, dentre as quais agora retomou-se as duas primeiras à luz dos teóricos referidos. Nesta nova oportunidade, abordamos os conceitos e as perspectivas dos autores sobre o papel do(a) professor(a), apresentando o(a) professor(a) como intelectual transformativo(a) de Giroux, o(a) professor(a) político(a) de Freire e o(a) professor(a)-improvisador(a) de Gur-Ze'ev. Os três autores ofereceram conceitos para interpretar as falas dos entrevistados, que assumiram aspectos de intencionalidade na sua ação docente e se afastaram de qualquer perspectiva do processo educativo como um empreendimento neutro.

O tema da neutralidade da ação educativa versus seu caráter político e ainda a relação da intencionalidade da ação docente nesse processo permanecem sendo tópicos relevantes no debate em Educação e na arena pública. Entre 2014 e 2016 projetos de lei sobre Educação escolar, inspirados em um movimento alegadamente apartidário e anti-ideológico intitulado Movimento Escola Sem Partido, foram apresentados nas duas casas legislativas brasileiras. A finalidade desses projetos, os quais encontram paralelo nas casas legislativas de diferentes estados brasileiros, é – em apertada síntese – limitar a atuação da escola/instituição de ensino a fim de despolitizar o processo educativo. Em artigo sobre o tema publicado na Revista Brasileira de Educação, os autores observam que “excluir a política do ambiente escolar – além de ser uma postura política – tem como consequência a exclusão da ação e da liberdade” (GUILHERME; PICOLI, 2018, p. 13). Outras reflexões e análises dos referidos projetos cabem ainda no campo da Educação.

Pesquisar e refletir sobre o papel do(a) professor(a) no processo educacional é igualmente um tema pertinente que instiga novos pensares. Neste artigo destacamos as falas de professores(as) formadores(as) sobre sua própria atividade e sua percepção sobre qual deve ser o papel do professor – pelo que vimos, referências à mediação e à tradução entre aluno e conhecimento, à formação humana do aluno bem como à reflexão, ao desvelamento das lógicas sociais, do senso comum, na mesma esteira do pensamento de Giroux e Freire, ou à postura questionadora do professor improvisador de Gur-Ze'ev. Entendemos que nenhuma das concepções apresentadas neste artigo – o(a) professor(a) como intelectual transformativo(a) de Giroux, o(a) professor(a) político(a) de Freire, e o(a) professor(a)-improvisador(a) de Gur-Ze'ev – são finais; como a pesquisa com os(as) professores(as) formadores(as) demonstrou, ora o(a) professor(a) necessita assumir o papel de um intelectual transformativo refletindo sobre problemas societários e como solucioná-los, ora requer assumir um papel político negando a neutralidade da Educação,e ora precisa se tornar um improvisador, lidando de uma maneira crítica com todas as situações apresentadas.

3Excerto de entrevista realizada no âmbito da pesquisa de mestrado, não utilizado anteriormente (POZIOMYCK, 2016).

4Excerto de entrevista realizada no âmbito da pesquisa de mestrado, não utilizado anteriormente (POZIOMYCK, 2016).

5Excerto de entrevista realizada no âmbito da pesquisa de Mestrado, não utilizado anteriormente (POZIOMYCK, 2016).

Referências

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Recebido: 17 de Março de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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