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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 20-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022026 

ARTIGOS

A representação na esfera do teatro segundo Jean-Jacques Rousseau

The representation in the sphere of the theater according to Jean-Jacques Rousseau

Luciano da Silva Façanha1 

Irlene Veruska Batista da Silva2 

1Pós-Doutorado em Filosofia, estética do Século XVIII - PUC/SP. Doutor e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Cidade de São Paulo e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão. Atua na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), como professor Associado no Departamento de Filosofia (DEFIL), e, professor permanente do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade - Mestrado Interdisciplinar (PPGCult). Foi coordenador do DINTER em Filosofia USP/UFMA; coordena o NEPI Núcleo de Estudos do Pensamento Iluminista; é líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisciplinar Jean-Jacques Rousseau UFMA/FAPEMA/CNPq (GEPI Rousseau UFMA), registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Integrante do Núcleo de sustentação do GT Rousseau e o Iluminismo da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase no Pensamento do Século XVIII, atuando principalmente nos temas relacionados à estética do século XVIII, História da Filosofia Moderna, Iluminismo, problemas da linguagem na filosofia, História, Filosofia e Literatura, Belas-Letras e Belas-Artes. Se dedica aos estudos dos filósofos Jean-Jacques Rousseau, Diderot, Voltaire e Montesquieu e a teoria crítica literária contemporânea de Maurice Blanchot e Roland Barthes referentes aos estudos estéticos do XVIII.

2Mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão. Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Participa do Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisciplinar Jean-Jacques Rousseau UFMA-FAPEMA/CNPq.


Resumo

Objetiva-se, com este artigo, uma explanação sobre a problemática da representação teatral e seus efeitos sobre os espectadores a partir do caráter etnológico e político por meio da crítica realizada pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau. Fundamenta-se na obra Carta a D'Alembert sobre os espetáculos, na qual Rousseau apresenta uma crítica à representação social por meio das artes, com ênfase no teatro de classe francês do século XVIII. A Carta nasceu em resposta a um verbete geográfico, Genebra, escrito no tomo VII da Enciclopédia por D’Alembert, em que este exaltava as qualidades do teatro e sugeria inaugurar uma companhia de comediantes na cidade homônima, o que até então era proibido. Como resposta a esse verbete, o genebrino discorre na Carta toda sua crítica e desprezo ao teatro francês do século XVIII e expressa meticulosamente as razões para não fundar uma companhia de teatro na sua República de Genebra, atribuindo aos jogos e aos espetáculos cívicos uma importância pedagógica em oposição aos espetáculos teatrais produzidos na época. Rompe, assim, definitivamente com o Iluminismo e com os homens de letras de sua época. Partindo desse contexto, abordaremos no presente artigo a dualidade entre ser e parecer que se evidencia como um jogo de oposição entre uma sociedade corrompida pelos espetáculos teatrais (e outras formas de representação) e outra livre dos efeitos corruptores da cena teatral. Nessa última, o único espetáculo possível é aquele em que o próprio espectador é o espetáculo: as festas cívicas. Para Rousseau, a festa proporciona um espetáculo sem representação, pois tudo gira em torno da naturalidade, o contato com o outro surge na espontaneidade, nada pode ser mostrado, decorado e imposto. O luxo confunde-se com o brilho do olhar coletivo da festa.

Palavras-chave Rousseau; Teatro; Crítica; Representação; Festa

Abstract

The objective is with this article, an explanation about the problem of theatrical representation and its effects on spectators from the ethnological and political character, through the criticism carried out by the philosopher Jean-Jacques Rousseau. It is based on the work Letter to D'Alembert on spectacles. In this work, Rousseau presents a critique of social representation through the arts, with an emphasis on the French class theater of the 18th century., which was until then was forbidden. The Charter was born in response to a geographical Verbete, Geneva, written in tome VII of the Encyclopedia by D'Alembert, in which the latter extolled the qualities of the Theater and suggested inaugurating a company of comedians in the eponymous city, which was until then prohibited. And in response to this issue, the Genevan discusses in the Charter, all its criticism and contempt for the French theater of the eighteenth century and meticulously expresses the reasons for not founding a theater company in its Republic of Geneva, attributing to the games and civic spectacles a pedagogical importance as opposed to the theatrical spectacles produced at the time. It breaks down, thus, definitely with the Enlightenment and with the men of letters of its time. Starting from this context, we will discuss in this article, about this duality between being and appearing to be a game of opposition between a society corrupted by theatrical spectacles (and other forms of representation) and another free from the corrupting effects of the theatrical scene. In the latter, the only possible spectacle is the one in which the spectator himself is the spectacle: the civic parties. For Rousseau, the party provides a show without representation, because everything revolves around naturalness, contact with the other arises in spontaneity, nothing can be shown, decorated and imposed. Luxury is intertwined with the brilliance of the collective gaze of the party.

Keywords Rousseau; Theater; Criticism; Representation; Party

Introdução

No “Século das Luzes” ou Ilustração3, o teatro se tornou alvo da preocupação dos filósofos. François Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) e Denis Diderot (1713-1784) acreditavam que o teatro é um propagador das “luzes da razão” que leva na sua essência a representação da sociedade emancipada, civilizada e virtuosa. Baseados nessa crença, tecem-se escritos com modelos e formas de exercícios da cena, tendo como propósito a defesa da propagação da visão do teatro para todas as localidades, para que seja efetivada a disseminação da ideia de civilização dos povos por meio de um ideal etnocêntrico de aprimoramento do homem.

O ideal etnocêntrico dos Ilustrados tinha como propósito a universalização da “imagem do homem”. Por meio dessa imagem é definido o que é e quem seriam os homens da civilização. A característica do pensamento da Ilustração para realizar a tarefa da valorização do homem tem como eixo a ideia de uma razão una e universal, com base para o seu desenvolvimento o método de experiência e análise. O interesse dessa razão analítica e experimental é a conquista do domínio do conhecimento de tudo que diz respeito ao homem, e a ânsia pelo domínio do saber torna-se uma norma da pedagogia para os Ilustrados, pois é ela que permitirá a caminhada da humanidade para a evolução constante, sempre para o melhor, para o progresso. O progresso, guiado pela razão, permite que o homem, tanto no sentido de indivíduo como no sentido genérico, alcance o mais alto grau de civilização. Conforme Lima Vaz (2011, p. 102):

A ambição dessa Razão, seu intento de conquistar todos os domínios do saber humano e de tornar-se a norma de uma pedagogia que deve estender-se a toda humanidade, universalizando a libido sciendi: eis o vetor fundamental que atravessa o espaço mental da Ilustração. Desse modo, a linha de evolução segundo a qual a Ilustração lê a história humana é traçada segundo os progressos da Razão.

Nesse sentido, para os Ilustrados é mister que a ampliação do ideal de homem e de progresso, defendido pelos homens de letras, fosse apregoado em todos os lugares, no intuito de auxiliar os povos a alcançarem o progresso e a civilização. Para isso, utilizaram o poder pedagógico do teatro para difundir de forma amplificada os protótipos de homem, progresso e civilização defendidos por eles. Acreditavam que os modelos de razão, de homem, de progresso e de civilização construídos por eles, fundados nas suas condições sociais, políticas, culturais, históricas geográficas, etc., poderiam ser válidas de forma universal, pois os homens, segundo eles, possuem a mesma natureza humana universal, portanto possuem uma igualdade natural4. Desse modo, um pensamento construído dentro de uma particularidade poderia se universalizar devido a essa condição de igualdade natural e um dos principais veículos para a efetivação desse projeto era o teatro.

O filósofo Jean-Jacques Rousseau, não diferente dos seus contemporâneos, irá se debruçar sobre a problemática do teatro, porém terá como finalidade não a defesa, mas uma análise da função do teatro, ao refletir se realmente a pedagogia das peças teatrais tem o poder de promover ao homem a emancipação e o aprimoramento da virtude e dos costumes. Para isso levará em consideração o que nenhum outro filósofo se atentou: a diferença dos povos.

Ao ter em conta a alteridade, Rousseau nos mostra que “nem tudo serve a todos”, como ele descreve em uma nota na Carta “[...] a razão humana não tem medida comum bem determinada, e é injusto para todo homem oferecer a sua como regra para a dos outros” (ROUSSEAU, 1993, p. 137). A razão é comum aos homens, porém é cultivada de formas diferentes, como é afirmado no Emílio: “As cabeças formam-se sobre as linguagens, os pensamentos tomam o aspecto de idioma. Só a razão é comum, o espírito de cada língua, tem a sua forma particular [...]” (ROUSSEAU, 1999 p. 115). Isso posto, para Rousseau é necessário levar em conta as particularidades de cada lugar para estabelecer o teatro e seu conteúdo posto em cena ou qualquer outro tipo de espetáculo.

A diferença dos povos é importante no pensamento rousseauista para a análise do teatro. Por esse prisma Rousseau entende que o teatro deve ser analisado não em si mesmo, mas pela relação com o público do local que se insere. O público de cada lugar é diferente, pois as circunstâncias de cada povo se diferem e é na diferença que se determina o julgamento dos espetáculos. “Pode haver espetáculos de uma infinidade de espécies; de um povo a outro, há uma prodigiosa diversidade de costumes, de temperamentos e de caracteres” (ROUSSEAU, 1993, p. 40). Nesse sentido, a crítica desenvolvida ao teatro pelo genebrino não se restringe ao conteúdo da cena: é uma análise da realidade social e política que se fundamenta na representação promovida pela artificialização do teatro parisiense, a qual se reproduz no interior do indivíduo e na constituição social do lugar que o teatro ocupa.

Segundo Rousseau, o universo social é marcado pela corrupção dos homens e a sociedade é um grande palco onde todos “vestem” suas máscaras e representam em nome da estima pública. Assim, a sociedade é marcada pela dissimulação permanente, pela apoteose da representação, a qual surge na passagem do estado de natureza para o estado social. Nesse estágio ocorre o progresso da separação entre ser e parecer a partir do fortalecimento do amor próprio – sentimento oriundo da socialização e aprimorado pela civilização. Quanto mais distante da natureza, mais dissimulado é o homem e mais corrompida é a sociedade. A sociabilidade forja a separação do ser e do parecer, tornando-se necessária a representação, que nada mais é o parecer.

Ser e parecer tornaram-se completamente diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo. Por outro lado, o homem, de livre e independente que antes era, devido a uma multidão de novas necessidades, passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo, a seus semelhantes, dos quais num certo sentido se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: rico precisa de seu socorro, e a mediocridade não o coloca em condições de viver sem eles

(ROUSSEAU, 1987a, p. 71).

Sendo o teatro fruto da sociedade corrompida e representação dos homens na condição social, o cidadão de Genebra, na sua obra Carta a D'Alembert, irá diagnosticar o teatro como reforço da artificialidade bem como denunciar a representação teatral como o reflexo de uma sociedade baseada em uma falsa inclusão e na participação de todos no corpo político e na falsa efetivação da igualdade e da liberdade no contexto social.

A partir desse diagnóstico levantado por Rousseau, o teatro será compreendido como lugar da individualização, espelhando separação do homem de si e da sua práxis coletiva. Rousseau inaugura uma nova forma de crítica ao teatro: possibilitar a análise da função da representação teatral a partir da realidade social como um problema não somente moral, mas político, pois se “[...] o teatro só toma forma nos espaços que a sociedade lhe prepara, se as diferenças entre as formas de espetáculo remetem as formas de poder, essa tipologia dos espetáculos será essencialmente política” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 285).

Por meio desse viés de análise o autor denuncia o caráter etnocêntrico do projeto Iluminista do século XVIII, o qual não leva em consideração o levantamento do inventário das diferenças5. Portanto, ao avaliar o teatro e a representação promovida nesse campo, avalia-se também o propósito do discurso do progresso e as próprias condições políticas e sociais do lugar onde o teatro se insere, possibilitando melhor compreensão do homem e o desdobramento de sua ação na coletividade6.

A representação na esfera do teatro

A originalidade da crítica de Rousseau em relação aos efeitos do teatro está em situá-lo enquanto fruto de uma realidade social. Ou seja: o teatro deve ser visto a partir dos efeitos, pois somente reflete as paixões e os costumes do lugar de onde se insere, haja vista que, para conquistar o público para suas peças, tem que agradar as paixões e o gosto já existentes no público a ser conquistado. Escreve Rousseau (1993, p. 41):

O teatro em geral, é um quadro das paixões humanas, cujo original está em nossos corações: mas se o pintor não se preocupasse em adular essas paixões, os espectadores logo iriam embora e não mais quereriam ver-se sob uma luz que os levariam a se desprezar a si mesmos [...]. Assim, o autor não faz com isso mais do que acompanhar o sentimento do público [...]. Só a razão não tem valor algum no palco. Um homem sem paixões, ou que sempre as dominasse, não seria capaz de interessar a ninguém no palco.

Partindo do exposto acima, Rousseau dá um novo caráter à análise dos efeitos das peças teatrais, que não perpassa somente o efeito moral do teatro, mas também a função política, que será o principal alvo da sua crítica. O teatro será a representação do espaço que a sociedade cede para o seu exercício e, desse modo, os espetáculos se diferenciam na sua forma de acordo com os costumes e as condições políticas da sociedade em que se inserem.

Em relação ao teatro do período da Ilustração, a representação se dá enquanto reforço do amor-próprio7 (das máscaras e da dissimulação em nome do olhar dos outros sobre si). A representação não é somente um conteúdo moral da cena, mas também o espelho da corrupção social. Nesse sentido, a questão se desloca “do âmbito da pura essência da cena para o do estado do seu público em sua facticidade [...]. Os efeitos da cena, seu caráter nocivo ou útil, tudo isso se decide em função da forma de existência que ela vem, por assim dizer escandir” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 291).

Rousseau não avaliará o teatro em si mesmo, condenando-o de forma absoluta, mas a partir do lugar que ocupa. O teatro e suas cenas serão julgados como bons ou maus de acordo com a facticidade do seu público, da sua condição sócio-histórica: “[...] os efeitos dos espetáculos variam e os espetáculos são necessariamente suscetíveis a avaliações diferentes. Assim com os ‘espíritos’ se particularizam, os homens também se modificam em função das circunstâncias de tempo e lugar” (FORTES, 1997, p. 153)8. Rousseau afirma que:

Quando as diversões são indiferentes por natureza (e quero por um momento considerar que os espetáculos são assim), é a natureza das ocupações que eles interrompem que faz com que sejam julgados bons ou maus; sobretudo quando são bastante fortes para se tornarem elas mesmas ocupações e substituírem o gosto pelo trabalho

(ROUSSEAU, 1993, p. 74).

Ainda em relação à dependência da facticidade de cada público, Rousseau nos mostrou que a representação teatral dos ilustrados em nada contribui para a formação dos seus espectadores:

Tanto se deduzirmos da natureza dos espetáculos em geral as melhores formas de que são capazes, quanto se examinarmos tudo o que as luzes de um século e de um povo esclarecidos fizeram para a perfeição dos nossos, creio que podemos concluir dessas considerações diversas que o efeito moral dos espetáculos e dos teatros nunca poderiam ser bom e salutar em si mesmo: já que, contando apenas as suas vantagens, não vemos aí nenhuma utilidade real, sem inconvenientes que a superem. Ora, em consequência de sua própria inutilidade, o teatro, que em nada pode corrigir os costumes, pode muito para corrompê-los. Favorecendo todas as nossas inclinações, ele dá uma ascendência nova as que às que nos dominam; as contínuas emoções que nele sentimos nos tiram a energia, nos enfraquecem, nos tornam mais incapazes de resistir as paixões e o estéreo interesse que ganhamos pela virtude só serve para contentar nosso amor-próprio, sem nos obrigar a praticá-la

(ROUSSEAU, 1993, p. 73).

Nesse sentido, o teatro somente leva o homem a não reconhecer seus vícios e suas paixões funestas, não possui “o poder de modificar os sentimentos nem os costumes, que ele só pode obedecer e embelezar” (ROUSSEAU, 1993, p. 41). Os espetáculos teatrais somente promovem o narcisismo, o seu olhar volta para o olhar dos outros no desejo de que outros voltem seus olhares para ele e assim debrucem toda sua estima na representação que ele faz de si mesmo para os outros. Longe de promover sentimentos virtuosos, as peças teatrais somente ajudam a reforçar o amor próprio, levando, dessa forma, ao reforço do ego.

As cenas teatrais e o ator forçam o indivíduo a acreditar que a opinião pública sobre sua aparência é mais importante do que a coletividade, pois “[...] o comediante e o teatro contribuem para [...] uma estimulação perigosa do amor-próprio” (FORTES, 1997, p. 173). A representação se torna fundamental para seu reconhecimento social. Longe de tornar os indivíduos transparentes em relação à sua essência, os deixa mais distantes do seu ser e reforça a representação de um personagem social. Segundo Jacira de Freitas (2003), o ator representa o indivíduo da sociedade corrompida, o qual é exilado da coletividade:

Ora, na cena francesa, é o expectador que se encontra nessa condição de exilado, pois a separação entre ator e expectador se dá interiormente. O homem social de Rousseau vive numa dicotomia que o leva a viver simultaneamente em dois planos distintos e inconciliáveis: o plano da aparência e o da essência. Ao incorporar simbolicamente essa dicotomia, o ator espelha aquilo que é vivenciado interiormente pelo indivíduo (espectador), mas que não pode emergir. Pois, como pensava Rousseau, a vida é cena e se somos atores, trazer à tona o conflito entre o que somos e o que parecemos ser seria abandonarmos esta condição de atores vivida no cotidiano, seria deslocarmo-nos para o plano da verdadeira essência. Ora, esse é justamente o “script” recusado pela sociedade já corrompida, a sociedade da aparência [...]. O ator, qualquer que seja seu personagem, representa por si só o indivíduo exilado da sociedade. Exilado porque é separado da sociedade, vivendo em um estado de solipsismo perpétuo que o impede de mostrar-se como realmente é

(FREITAS, 2003, p. 36).

O teatro, longe de ser o lugar da exteriorização do homem, é a representação de outro imaginário, daquilo que o público espera ou imagina que eles sejam. O ator, no palco, exime o espectador de toda ação virtuosa, de toda piedade sentida no exercício do seu papel social. O real é substituído pelo imaginário, a vivência simulada no palco substitui o real: “Uma vivência imaginária da prática do bem e da virtude, proporcionada ao espectador, dispensa-o da prática real” (FORTES, 1993, p. 164). O espectador, no local seguro que o teatro oferece por meio do ator e do palco, expõe sua piedade e exerce suas ações virtuosas de forma imaginária:

Chorando diante das ficções, satisfazemos a todos os direitos de humanidade, sem termos de dar mais nada de nós mesmos; ao passo que os desgraçados em pessoa exigiriam de nós atenções, cuidados, consolações e trabalhos que poderiam associar-nos a seus sofrimentos, que teriam um custo pelo menos para a nossa indolência, e dos quais estamos muito satisfeitos de estarmos isentos. Dir-se-ia que nosso coração se fecha para não ter que se comover às nossas custas

(ROUSSEAU, 1993, p. 46).

Na segurança oferecida pelo teatro, o espectador exerce sua virtude sem pôr em risco seus interesses pessoais: “Ele ama a virtude, sem dúvida, mas ama-a nos outros, porque espera lucrar com ela, não a quer para si mesmo, pois lhe sairia cara” (ROUSSEAU, 1993, p. 46). O ator exerce a virtude do expectador no palco, porém o espectador, ao exercer sua piedade no palco, é eximido da ação virtuosa no real:

No fundo, depois que um homem foi admirar algumas belas ações fabulosas e chorar as desgraças imaginárias, que mais se pode exigir dele? Não está contente consigo mesmo? Não aplaude sua bela alma? Não está com tudo em dia com tudo o que deve à virtude? Que mais queriam que ele fizesse? Que ele próprio praticasse a virtude? Ele não tem papel a representar: não é ator

(ROUSSEAU, 1993, p. 46).

As peças teatrais provocam o sentimento de piedade, mas esse sentimento somente é exercido no espaço do teatro, pois a piedade dos palcos é “Uma emoção passageira e vã, que não dura mais que do que a ilusão que a produziu; um resto de sentimento natural logo sufocado pelas paixões; uma piedade estéril que se nutre de algumas lágrimas e nunca produziu o menor ato de humanidade” (ROUSSEAU, 1993, p. 46).

O teatro é o lugar da “apoteose da mímesis” (1997, p. 166)9, pois ele reforça o que já está no costume e no gosto de seu público. Somente reforça o que já está posto na sociedade onde se insere. Nesse sentido, o teatro somente funcionará como espelho, onde refletirá os vícios dos seus espectadores, e ajudaria a acelerar a corrupção dos homens, pois os espetáculos teatrais reforçam os maus costumes. Os autores das peças teatrais, para conquistar espectadores e fazê-los irem para o teatro, se preocupam em adular as paixões e o gosto já existentes no seu público. Portanto, o teatro em nada corrige os costumes, mas reforça os vícios.

Fomentadora da corrupção dos homens e instrumento conservador do amor próprio já instalado na sociedade corrompida, a representação teatral irá somente ampliar a separação do ser e do parecer. A representação é o retrato da sociedade já vestida com as máscaras das representações cotidianas, a sociedade é o palco onde quem contracena é cada indivíduo que a compõe: “Toda sociedade encena uma espécie de teatro implícito que a institucionalização do espetáculo vem despertar e, por assim dizer, purificar e tornar hiperbólico” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 292). Cada pessoa se veste de seus personagens em nome da conquista do olhar e da opinião dos outros. Na medida em que coloca as máscaras conforme a circunstância, o ator da vida – o indivíduo – esquece do seu ser e vive em função do parecer, da aparência que agrada o gosto social. Nesse sentido, é válido lembrar que quando Rousseau discorre sobre os efeitos das ciências e das artes nos costumes, em seu Discurso sobre as ciências e as artes, afirma que:

Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstancias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem

(ROUSSEAU, 1987b, p. 140).

A função do comediante, diferentemente do orador e do pregador, é a representação clara dessa dicotomia entre essência e aparência, entre ser e parecer. Rousseau escreve na Carta:

Poderão dizer-me ainda que o orador e o pregador, como o comediante, também se expõem. A diferença é imensa. Quando o orador se mostra, ele o faz para falar e não para se oferecer como espetáculo: só representa a si mesmo, só desempenha seu próprio papel, só fala em seu próprio nome, só diz ou só deve dizer o que pensa; como o homem e a personagem são a mesma pessoa, ele está no seu lugar; é o mesmo caso de todo cidadão que cumpre as funções de sua condição. Mas o comediante, no palco, exibindo sentimentos diferentes dos seus, dizendo apenas o que lhe fazem dizer, muitas vezes representando um ser quimérico, aniquila-se, por assim dizer, anula-se com seu herói; e nesse esquecimento do homem, se algo ainda restar, será apenas o joguete dos espectadores

(ROUSSEAU, 1993, p. 92).

O comediante representa o homem alienado de si mesmo em função da representação do que os outros desejam. A alienação é a perda do ser em nome de outro imaginário, isto é, em nome de uma “imagem” que é construída pela opinião pública. Não é a representação dos espetáculos teatrais que cria essa condição no homem, o teatro somente a reforça, uma vez que para mostrar essa condição da alienação é preciso ver o espaço que ocupa, isto é, em que sociedade está inserida, como fora dito acima. É o estado de alienação do público (sociedade) que reivindica esse tipo de espetáculo, e essa condição alienante do público se dá por meio da falsa universalização de um grupo dominante. Portanto, o teatro representa a falsa universalização da aristocracia e aniquila todas as outras representações de classes sociais. Nas palavras de Bento Prado Júnior (2008, p. 300):

Não é a armadilha da representação que perde e aliena o público, mas o estado de alienação do público que exige esse espetáculo. Essa alienação é, antes de tudo, a de uma classe social que se toma por universal. Falsa universalidade, pois é justamente o sentido do universal que lhe falta, como falta ao teatro em que essa classe se reconhece.

Desse modo, podemos perceber que o teatro somente mostra visão parcial da realidade e tem como pretensão a universalização dessa visão parcial, demostrando, assim, seu caráter etnocêntrico ao ignorar a representação das diferenças em nome do ideal de civilização. Desse mesmo modo agem os Ilustrados ao defender a universalização do teatro, o qual acreditam levar o reflexo da civilização para todos os povos por meio da pedagogia do teatro, mas não percebem que defendem um instrumento de aceleração do crescimento do amor próprio por meio da imitação do gosto de povos já corrompidos. A representação na esfera do teatro, ao representar os gostos e os costumes dos povos já corrompidos, leva o espectador a mimetizar o que é posto no palco do teatro, reforçando, assim, as máscaras sociais fomentadas pelo amor próprio já instalado na sociedade civilizada. Ao reforçar o amor próprio a representação teatral reforça a alienação de si, a perda de si mesmo nas máscaras impostas pela civilização. A representação das imagens do real não permite a identificação do espectador com o fictício, “[...] tudo o que é representado no teatro não se aproxima de nós, mas se afasta” (ROUSSEAU, 1993, p. 47). Sendo assim, até a essência de si não será identificada no palco, porque a representação do palco é uma ilusão da realidade.

A festa como lugar da conformidade entre ser e parecer

Rousseau, ao constatar os efeitos nocivos da representação teatral em Genebra, dentre eles o reforço do amor próprio, nos propõe as festas cívicas, as quais, realizadas ao ar livre, permitem a purgação do amor próprio promovido pela corrupção da sociedade e o surgimento do amor de si10, a transparência, já que na festa os indivíduos não precisam dissimular para conquistar a opinião púbica. Por ser um espetáculo puramente espontâneo, nasce do improviso, a festa é livre, e por ter essa característica esse espetáculo permite a retirada das máscaras que ocultam o que somos11 e permite nossa abertura para o outro por meio da representação de nós mesmos. “O espetáculo aberto a todos, que é o espetáculo da abertura de todos os corações, é inocente e sem perigo, mas é também mais inebriante” (STAROBINSKI, 2011, p. 133).

Na liberdade oferecida pela festa o espectador se reencontra com seu ser. Ser e parecer se fundem, surgindo a autêntica relação consigo mesmo e com o outro, pois na festa não há nada para ser visto, mas para comemorar o fato de estarem reunidos. Cito:

Quais serão, porém, os objetivos dos espetáculos? Que se mostrará neles? Nada, se quisermos. Com a liberdade, em todos os lugares onde reina a abundância, o bem-estar reina também. Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor ainda: oferecei os próprios espectadores como espetáculo; tornai-os eles mesmos atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para que com isso todos fiquem mais unidos

(ROUSSEAU, 1993, p. 128).

Ao contrário do teatro francês12, que oferece a representação em seu mais alto nível, a festa promove o “grau zero da representação” (FORTES, 1997, p. 147), pois o próprio espectador é oferecido como espetáculo, o ator é espectador. Desse modo, todos se mostram e todos se olham, “o nada [...] é estranhamente necessário ao aparecimento da totalidade subjetiva” (STAROBINSKI, 2011, p. 134). Nesse sentido, a festa é a representação genuína da liberdade, pois permite a abertura dos corações e proporciona um reconhecimento de si a partir do olhar dos outros. Promove, igualmente, o reencontro com sua essência, com sua natureza. Para Starobinski (2011, p. 135):

O que o Contrato estipula no plano da vontade e do ter, a festa realiza no plano do olhar e do ser: cada um é ‘alienado’ no olhar dos outros, e cada um é restituído a si mesmo por um ‘reconhecimento’ universal [...] o eu assim contemplado é pura liberdade, pura transparência, em continuidade com as outras liberdades, outras transparências – é um eu comum.

Nesse sentido, a representação autêntica do indivíduo se dá somente na liberdade coletiva da festa cívica. Por meio da representação genuína da felicidade proporcionada pela festa cívica é promovida a libertação de si mesmo das amarras das representações sociais impostas pela sociedade corrompida. Na mesma medida, surge uma convivência autêntica do corpo social e, assim, a prática de ações que visam não mais ao desejo individual, mas ao todo coletivo. A festa cívica nos assente uma abertura para mostrarmos nossas personalidades e assim percebermos que há novas possibilidades de convivência social. Por consequência, torna possível a consideração de outros pontos de vista existentes nesse lugar comum, uma vez que por meio da liberdade promovida nos meios festivos a coletividade engendra sua própria forma de vivência esteada no sentimento nobre dos homens:

A festa contribui, assim, para esboçar o perfil de uma personalidade que se opõe àquela que emerge na vida cotidiana. Nela o ideal propriamente político ganha uma figuração viva e concreta, na qual o prazer do convívio é levado a sua máxima potência ela opera uma inversão de se colocar no mundo e nos lembrar que há outros pontos de vista, que é possível projetar nossa existência a partir de outros lugares. Aqui a práxis coletiva adquire um novo sentido

(FREITAS, 2003, p. 45).

Na festa os indivíduos esquecem das suas diferenças e tornam-se fundidos numa única essência que é a de comunidade. Diferente do teatro que promove a separação dos homens e os ensina a representar diversas máscaras para tornarem-se bem vistos aos olhos dos outros, a festa proporciona felicidade, o reflexo da sociedade comum, laços de comunhão e de amor entre seus componentes, trazendo à tona a essência de cada indivíduo na prática do convívio.

Na festa cívica, o homem torna-se livre das amarras da representação e da dissimulação: “A festa é o anti-espelho ou, em outras palavras, o estágio da transparência, condição essencial, segundo Rousseau, na construção do cidadão” (FREITAS, 2003, p. 32). Convoca o indivíduo para a coletividade social, rompe com o cotidiano e apresenta novas possibilidades de convivência social. O geral se sobrepõe ao particular e o indivíduo se reconhece num todo, no corpo social.

Nesse sentido a festa terá como função política não a criação, mas a fortificação do elo social por meio da sua pedagogia para o exercício da igualdade e da liberdade. No exercício da festa coletiva há o estreitamento do convívio, permitindo o surgimento de novas possibilidades de uma vida em comum: “Todas as sociedades juntam-se numa só, tudo se torna comum a todos” (ROUSSEAU, 1993 p. 129). A festa cívica permite que surja sensações diferentes do cotidiano, nos permitindo pensar e sentir novas formas de vivência, como afirma Jacira de Freitas (2003, p. 45):

A festa contribui, assim, para esboçar um perfil de uma personalidade que se opõe aquela que emerge da vida cotidiana. Nela, o ideal propriamente político ganha uma figuração viva e concreta, na qual o prazer do convívio é elevado à sua máxima potência. Ela opera uma inversão na forma de se colocar no mundo e nos lembra que há outros pontos de vista, que é possível projetar nossa existência a partir de outros lugares. Aqui a práxis coletiva adquire outro sentido.

Por intermédio do elo consolidado, as facções políticas se desfazem e as diferenças ideológicas se dissipam. Assim, a vontade geral13 se sobressai em relação aos interesses egoístas pelo motivo da promoção da substituição do amor próprio – sentimento responsável pelo ego narcisista da sociedade civilizada – pelo amor de si que a festa proporciona na reunião dos homens em meio à liberdade. A festa expressa o pertencimento do indivíduo no corpo social e a consagração da liberdade humana que se dá na união com os outros. Ela nos mostra que é possível uma relação do indivíduo com a sociedade sem conflitos, já que por meio delas “[...] se exorcizam as desigualdades sociais e uma espécie de catarse14 coletiva purga os indivíduos do seu ego, ajudando a pessoa privada a purificar-se do seu amor próprio e do narcisismo” (FORTES, 1997, p. 188).

Por meio das festas cívicas ocorre a manutenção do corpo político. A capacidade pedagógica das festas cívicas reside na possibilidade do exercício de uma vivência em comum entre os cidadãos. Por meio dos laços fraternos oriundos do sentimento da piedade e do amor de si, que surge dos espetáculos festivos, gera-se a restauração do “nós” na vida social. Por esse ângulo, a representação autêntica do indivíduo se dá somente na liberdade coletiva. Por meio da representação genuína da felicidade proporcionada pela festa é promovida a libertação de si mesmo das amarras das representações sociais impostas pela sociedade corrompida e, na mesma medida, surge uma convivência autêntica do corpo social.

Considerações finais

As críticas de Rousseau ao teatro são uma preocupação sobre a formação social e as formas de exteriorização do homem. O teatro, por meio da representação, faz do indivíduo um narcisista e impede, desse modo, a restauração da unidade do indivíduo com o corpo social. Ao propor a festa como espetáculo para a república genebrina, Rousseau tem como propósito celebrar a unidade dos cidadãos e a alegria da coletividade sem suas máscaras sociais cotidianas. Por meio da celebração coletiva o homem deve transpor o isolamento de si mesmo e, portanto, olhar os outros sem sentir o desejo da necessidade de representar para usurpar o lugar destes ou de ser melhor que eles. Por meio da festa o amor e a fraternidade surgem tornando as relações sociais fortes e com novas possibilidades de se realizar. Conforme Luciano Façanha:

A partir daí, a festa rousseauniana acabaria produzindo aquilo que foi perdido com a entrada na vida social, resgata uma ilusão necessária para que o homem se renove e preencha um jogo exaltado pela imagem festiva. Pode-se, no entanto, reavaliar que a festa popular tem a função política de construir um elo social, substituindo o amor próprio pelo amor de si e, por fim, pelo amor à pátria. Rousseau registra para isso um lugar concreto – a República de Genebra –, e o que está nas entrelinhas de todo fundamento levantado por d’Alembert é a questão puramente política envolvida na implantação dos espetáculos. Na festa, o homem cindido se perde, o jogo do ser e parecer é danificado, reprovado e eliminado, floresce a experiência de um momento livre e autêntico. O cidadão esbanja criatividade em seu contexto social e político

(FAÇANHA, 2019, p. 229).

Desse modo, Rousseau inaugura uma nova forma de crítica ao teatro: possibilitar a análise da função da representação teatral a partir da realidade social como um problema, não somente moral, mas político. Por esse viés de análise, o autor elaborou uma das maiores críticas à ideia de imitação no cenário do Iluminismo. Nesse sentido, “Rousseau se contrapôs à mania universalizante do iluminismo de que tudo serve a todos de forma abrangente” (FAÇANHA, 2019, p. 224). Assim, o autor denuncia o caráter etnocêntrico do projeto Iluminista do século XVIII, o qual não leva em consideração o levantamento do inventário das diferenças, ou seja, ignora a diferença dos povos. Ao examinar o teatro, Rousseau pretende analisar sua função pedagógica, se de fato ela melhora a virtude dos homens, como defendiam os homens de letras, e se sua pedagogia é válida para todos os povos. Rousseau constata que não deve ser levado em consideração só o teatro, mas todos os tipos de espetáculos. É necessária a conservação dos espetáculos de cada lugar, pois a ação pedagógica de cada um deles está de acordo com os costumes de cada povo. No caso de Genebra são as festas cívicas.

3O filósofo Sergio Paulo Rouanet, em seu livro Mal-estar na modernidade, descreve que a Ilustração é um momento da História Ocidental que se caracteriza como uma “[...] destilação teórica da corrente de ideias que floresceu no século XVIII em torno de filósofos enciclopedistas como Voltaire e Diderot” (ROUANET, 1993, p. 13). É interessante ressaltar que esse movimento cultural da Ilustração – o qual possui como projeto o ideal de emancipação do homem – se estende até o século XIX, por meio das correntes do liberalismo e do socialismo, com a integração seletiva de determinadas categorias criadas pela Ilustração (por exemplo, a ideia de universalidade, individualidade e autonomia).

4Conforme o verbete Igualdade natural da Enciclopédia: “Já que a natureza humana é a mesma para todos os homens, é claro que, segundo o direito natural, cada um deve estimar e tratar os outros como seres que lhes são naturalmente iguais, ou seja, homens tanto quanto eles” (JAUCOURT, 2015, p. 201). Os Ilustrados, ao afirmarem que os homens possuem uma natureza humana universal, portanto uma igualdade natural, nos dizem que os homens possuem as intuições da razão prática que seja válida de forma universal, pois “[...] todos os homens são iguais em todas as latitudes, têm as mesmas disposições racionais, têm a mesma organização passional, são movidos pelos mesmos desejos, são motivados pelos mesmos interesses [...]” (ROUANET, 2007, p. 211).

5De acordo com o filósofo Bento Prado Júnior, no livro A retórica de Rousseau e outros ensaios, Rousseau se distancia da filosofia ao exercer uma mudança metodológica e propor a análise dos efeitos do teatro. Para ele, “Rousseau opera uma virada metodológica pela qual ainda marca sua distância em relação a filosofia: a filosofia, na impaciência de seu método, acredita poder decidir suas questões sem ter que fazer o inventário das diferenças, tanto no tempo quanto no espaço e, desse modo, sempre projeta seus preconceitos (ou os do século) em seu objeto” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 305).

6Luiz Roberto Salinas Fortes, filósofo reconhecido principalmente por seus escritos sobre Rousseau, nos aponta no livro Paradoxo do espetáculo que Rousseau, ao chamar atenção para as diferenças, acusa que o foco do problema não se desdobra somente na função dos espetáculos, “[...] o que se acha em jogo é essa questão mais geral e relativa às diferenças espaço-temporais entre os ‘homens’ e a ação histórica, das possibilidades de intervenção na vida coletiva e a condução política e histórica dos povos” (FORTES, 1997, p. 157).

7Na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau escreve que “o amor-próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra” (1987a, p. 111). Isso posto, o amor próprio é como um sentimento próprio do estado de sociedade. É um sentimento que preza pela estima pública na figura da honra.

8O filósofo Luiz Roberto Salinas Fortes aborda a questão do paradoxo dos espetáculos pelo viés da crítica ao teatro e da reabilitação dos espetáculos por meio da festa cívica. Por meio do teatro e da festa apresenta o jogo da representação que se desenvolve por meio de uma “‘dialética’ entre espetáculo e ação” (FORTES, 1997, p. 184).

9 Fortes (1997, p. 166) irá definir no Paradoxo do espetáculo o espaço do teatro como apoteose da mímesis porque sua “[...] capacidade imitativa é a maior possível”. Por possuir essa característica, o teatro será, segundo ele, “[..] o espelho que reforça, reforço narcísico, reflexo e, por outro lado, suplemento, substituto do real, é um quase real, uma construção imaginária que se põe no lugar do real” (FORTES, 1997, p. 166). Sobre o termo mímesis, conforme Luciano Façanha, em sua tese Poética e estética em Rousseau: corrupção do gosto, degeneração e mimesis das paixões, “tanto ‘mímese’ (μίμησις de μιμεîσθαι), como ‘mímesis’ ou ‘mimese’ estão corretas” (FAÇANHA, 2010, p. 47). E, segundo Auerbach, em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, o termo mimese, em sua acepção mais geral, “significa literalmente imitação; representação em grego.” Platão e Aristóteles percebiam na mimesis, a representação da natureza. Todavia, na sua filosofia, Platão designa a semelhança das coisas empíricas com as ideias, de que são representações, incluindo entre elas, as obras de arte, tendo um sentido pejorativo. Para Aristóteles, na Poética, via o drama como sendo a “imitação de uma ação”, que na tragédia teria o efeito catártico. Como rejeita o mundo das ideias, portanto, valoriza a arte como representação do mundo, compreendendo o conceito de mimese enquanto aspecto fundamental das artes miméticas. Assim, a mímesis, torna-se conceito central da estética (2004, p. 1-20).

10Na nota (O) do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau descreve que o “Amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela sua própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade produz a humanidade e a virtude” (ROUSSEAU, 1987a, p. 110). O amor próprio necessita do outro e da sua estima em relação a mim mesmo. Por causa desse sentimento de necessidade do reconhecimento da estima pública o homem social sempre permanece fora de si. Enquanto o amor de si permite a abertura para o outro como relação, “é um sentir junto ao outro” (FORTES, 1997, p.61), possibilitando, assim, a conservação mútua de toda a espécie.

11Segundo Rousseau o homem é bom em sua natureza, mas, com o desenvolvimento da sociedade se tornou mau. Porém, o coração do homem, mesmo vivendo em uma sociedade corrompida, ainda permanece bom: “[...] o homem é bom – creio tê-lo demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo depravado a esse ponto senão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Por mais que se admire a sociedade humana, não será menos verdadeiro que ela necessariamente leva os homens a se odiarem entre si a medida que seus interesses se cruzam, a aparentemente prestarem serviços e a realmente se causarem todos os males imagináveis” (ROUSSEAU, 1987a, p. 95).

12De acordo com Daniela Zilio em seu artigo A evolução da caixa cênica transformações sociais e tecnológicas no desenvolvimento da dramaturgia e da arquitetura teatral, o teatro francês do século XVIII tem como característica o palco à italiana e plateia em forma de ferradura, com camarotes e balcões em torno da sala. Sua arquitetura monumental fez com que se tornasse o estereótipo do teatro da burguesia dominante. As peças teatrais eram feitas sob a norma do estilo classicista francês.

13A vontade geral é a união de todos para formar uma força comum no pacto social. Para exercer a vontade geral, todos alienam-se. Ou seja, desapegam-se dos seus interesses particulares em nome de uma comunidade inteira. Segundo Rousseau, no Contrato Social (1987c, p. 33) “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. A alienação proposta no contrato rousseauniano não promove perdas, pois “[...] cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem” (ROUSSEAU, 1987c, p. 33). O pacto social, baseado na vontade geral, permite que o povo faça um comprometimento consigo mesmo.

14A catarse, segundo Aristóteles: “É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem efeito purificador dessas emoções” (ARISTÓTELES, 1987, L VI, 1449 b 24).

Referências

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Recebido: 03 de Junho de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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